You are on page 1of 21
FRANCO MORETTI O século sério Falarei aqui de discurso indireto livre, de estilo analitico e dos “preenchimen- tos” [riempitivi] romanescos (que sao os epis6dios em que nao ocorre algo relevante, e de que, terminada a leitura, mal se recorda). Coisas técnicas, que 4 primeira vista nao prometem muito, mas coisas em cujo labor subterraneo depois tomam forma alguns grandes valores do século x1x: a impessoalidade, aprecisio, a conduta de vida regular e metédica, certo distanciamento emotivo, em uma palavra (uma palavra que sempre voltara), a “seriedade’. Aliés, digamos de maneira abrangente, a seriedade burguesa: na Franca, na Gra-Bretanha na Alemanha. Burguesia e seriedade. No inicio eu pensava num horizonte mais vasto, mais indefinido, Redagdo apés redacio, porém, a argumentacao se restringia cada vez mais em torno ao estilo sério e ao burgués do século x1x; um encontro que exclua infelizmente muitas outras coisas importantes (Stendhal; Dickens; toda a litera- tura de massa), mas que conferia ao ensaio aquele tom antropolégico ~ historia da literatura como histéria da cultura — que é a aposta deste volume. E, portanto, tentemos pensar acerca do século sério do romance europeu. 1. De Vermeer a Austen Num belo livo de alguns anos ats, intitulado Arte del descrivere Svetlana Ap, afirma que o século xvit holandés mudara 0 curso d: " 3 arte europea, aur ss que fora tipica data, "Os holandeses nao represen as grandes cenas da hist6ria sagrada e profana, mas naturezas mortas, tituira pela “imitagao das ages humanas significativa pictdrica,a “descricio do mundo observado' = Pasage, terion vistas de cidades, mapas peogréficos..em sum: “uma ane a endo narrativa’! Bela ideia; mas com uma exce¢ao importante ~ Vermeer - em Que me parece arecimento do componente nara, mas a sua adogio de uma forma nova no que a verdadeira novidade nio é tanto o desap: concerne ao passad. Feitora de azul, de Amsterda (fig. 1). Estranha forma do corpo, vez, €acarta que esté lendo com tanta concentragio, de p lo. Tomes, Esta gr ta de quem él, tum marido no além-mar, como sugere o mapa ali na parede?, eaquele of abertoem primeiro plano, significa talvez que a carta € antiga, e que far algun tempo que nao chegam mais cartas? (H4 muitas cartas, em Vermeer, e toda ver trazem consigo uma pequena historia: er uma carta significa que outro aluin Screveus tempos passados, sobre acontecimentos ainda anteriores Tes camady ‘emporais, naquele pedacinho de tela.) E essa outra carta (fig. 2), acabou de entregar a patroa (ou foi esta que deu a ela’); observe-ve a dininia dos olhares: preocupacio, desprezo, cumplicidade... Quase se pode vera crads As se forna Patroa de sua patroa. E que estranha moldura: a porta, pers Taimalfeita~ ha alguém que espera uma resposta, lé fora? Eno quadio da Fh Collection de Nova ‘York (fig. 3), bebeu, daquele jarro que esta s €, uma ver mais, ‘Que esté oculto? Que espécie ‘essas historias? Paro por aqui ‘mo tempo tao in Pace Alpers, “ag que a crits ue sortiso é esse, o da moga? O quanto de visho *obre a mesa (uma pergunta nada tola, na pints uma pergunta de tipo narrativo)? E o homem, po de historias the tera contado? E a moga, acedioo iimas contra a vontade, porque essas cenas ti precisas,¢ 20m defnidas, sugerem outras mil perguntas, porque si extant Bes humanas signficativas ‘enas de um conto, de ums hist miss. Cet, no s30 a8 grandes cenas da Weltgeschichte (Historia univers 1S. Alpers, Arte del dese bor 16 Selenza e pittura nel Seicento olandese. uri: Bol e984. sen tura nel Seicento oland endo 2. Johannes Vermeer, A carta de amor, Johannes Vermeer, Mulher lendo J uma carta, Oleo sobre tela, 1662-65, Oleo sobre tela, c. 1669-70. Amsterda Amsterda, Rijksmus Rijksmuseum 3 Johannes Vermeer, Soldado ¢ moga risonha. leo sabre tela c. 1658. Nova York, Frick Collection. =~" ae io é 0 morticinio dos inocentes (que é 0 exemplo de pintura nan por Alpers; mas a questio & que a narraiva ndo ¢feita apenas dc ny Esse foi olampejo de genio de Vermeer; e também nds procurenen isso, com a ajuda da teoria narrativa. te Prefetidg tender 1966, Roland Barthes escreve um ensaio intitulado “Introducao & an tural da narativa”, em que subdivide os epis6dios narratives nas duas gn erereerinas (cae0 elles: A terminologis squad, on” discov Chatrnan Gala de “niicleos" € “satis”, cu falarei de “bits Gente-se aqui a sua profunda afinidade com aquela civilidade das boas € € logico, as boas maneiras. davida rmaneiras tdo importantes no mundo de Austen; servem justamente para conferir certa regularidade, Gragas a elas, a vida cotidiana se mostra elevada, estilizada era em parte uma comédia, ese enche de dignidade. Como os quadros de Vermeer com respeito &ipintura “de género” holandesa:alguém olha para elas, e sed conta de que al 10 maximo um sorriso, mas este também raramente, porque viade regraos seus personagens tem o semblante educad e composto da mulher ‘de azul: sério. Sério, como na formula magica - “imitacio séria do cotidiano” = com a qual Auerbach define o realismo' ( j para 0s Goncourt, no preficio «a Germinie Lacerteucx, 0 romance era “a grande forma séria”) Sério: “Alheio certa forma a existéncia singuém mais «em todos os eros que indicam o carter otidiano -“alhaghic Fonea se justamente a cootasioabtrala€ Um Pow ontrast com o significado mais antigo € 3 Nocomego do século xix, “everyday, “quotidien, “quotidian” ~ re covaga de “habitual “ordindri’ equente’ em ‘rida que opanha ocotidiano 20 sagrado. 4 _Ebora 0 tul esolido por Averbsch Ps “imitagc" (mimesis), parece-me que 2 st unio do “seria” edo “eaidanc sobre para Mimesisoensalo “Ober dic emste Nachahmnng fia do cotidiano) ~ em que vinham também tmados em cons “exten” como alternativs posses 4 pde-se encontrar o costo em Ts Sete Tike guacaic romans bel: sel Unrtc Edaret Ta 195 Pp.272-73 fda, prncipalmente 20 apecto da 42.0 liv a erdadeira descobert "ic rest, veravao longo estado preparatoio des alhaglchen’ [Sobre a imitagio sé draco os terms “alto” cotidians

You might also like