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Cad. Est. Ling., Campinas, {19}: 117-122, jul/dez. 1990 POLEMICA E DENEGACAO; DOIS FUNCIONAMENTOS. DISCURSIVOS DA NEGACAO * FREDA INDURSKY UFRGS INTRODUCAO Este trabalho pretende produzir uma distingéo entre negago polémica © denegagao. Esse desdobramento esté embasado em ani recortes extraidos do discurso presidencial da Ila Repdblica Brasileira (1964-1984), Tal reflexdo determinou a revisdo do trabalho de Ducrot, que sintetizamos brevemente, a seguir. ONDE NEGAGAO POLEMICA EQUIVALE A DENEGAGAO Em 1972, Ducrot apontava duas funcées diversas para a nega- ‘$80: (1) a fungdo descritiva - que realiza a representagéo de um estado de coisas © (2) a fungéo metalingilstica - que consiste ne oposigéo a um enunciado afirmativo. Em 1973, 0 autor, ao retomar sua andlise, mantém a fungio descritiva, entendida como a afirmagdo de um contetido negativo, mas substitui a fungdo metalingifstica pola fungSo polémica, considerando-a como a rejeigéo de um contetido positive. Em 1980 e, posteriomente, em 1984, Ducrot retoma novamente 8 questo para harmonizé-la com sua teoria da polifonia. Descreve trés ti- os de negagdo: (1) descritiva, (2) metalingdfstica e (3) polémica. A primel- a no sofreu modificago. A segunda refuta um locutor, opondo-se a seu enunciado e/ou seus pressupostos. Destas no nos ocuparemos neste tra- * Trabatho apresentado no Encontro Lingua, Discurso, Interagéo, realizedo em 20/07/80, durante a 42% Reuni8o Anual da SBPC, Porto Alegre, RS, de 08/07/90 a 1307/80, balho. A negagéo polémica, por sua vez, permite que se expressem, simul- ‘taneamente, no mesmo enunciado os pontos de vista antagdnicos de dois enunciadores: 0 enunciado positive é imputado a um primeiro enunciador; enquanto 0 negativo 6 atribuldo a um segundo enunciador, com 0 qual © locutor se identifica para opor-se ao primeira. Vejamos o recorte! absixo. “Revolugdo, em verdade, ¢ no golpe de Estado... Revolugéo, endo motim militar...” {CS - 03.10.66 - Frente a0 Congreso Nacional, apés sui 0) Nesse recorte, confrontam-se dois pontos de vista incompat!- veis, produzidos por enunciadores antagénicos. Para o primeiro, o movi- mento de marco de 1964 6 um golpe de Estado, um motim militar, Para o segundo, o movimento de margo 6 uma Revolugéo. Costa e Silva mobilize (03 dois pontos de vista antagénicos, identificando-se com o segundo para refutar 0 primeiro. Assim procedendo, instaura a negacéo polémica em seu discurso. Segundo Ducrot (1980, p.60), a negagdo polémica & similar & denegagéo psicanalitica, cujo funcionamento foi descrito por Freud, em 1925, embora no a designasse assim. O termo denegagéo fol introdu; posteriormente pela escola francesa de psicanslise. Na teoria psicanalitica, através da negagéo, 0 sujeito pode mascarar aquilo que, por ter sido censurado pelo superego e recalcado no inconsciente, nfo Ihe é facultado dizer. Ou, se preferirmos, através da de negagéo, 0 sujeito diz sem, de fato, dizer, apresentando-se dividido entre ‘seu desejo de dizer e sua necossidade de recalcar. Ee denegacao possibi ta a verbalizagio dessa divisso, pols 0 sujeito, a0 formular o recalcado ne- gativamente, pode expressé-lo sem, contudo, admiti-lo. Comparando @ negagéo polémica com a denegaclo, percebe-se uma duplicidade de enunciadores na primeira, e um desdobramento do sujeito, na segunda. E ¢ justamente essa similaridade que levou Ducrot a ‘estabelecer uma analogia entre os dois funcionamentos, pois, em ambos, dé-se a ocorréneia de um enunciado negativo que se contrapée a um enunciado afirmativo contrério. Considerando 0s pressupostos tedricos da teoria seméntica da ‘enunciagdo e sua concepgéo de sujeito, essa analogia é valida. © mesmo nao ocorre, entretanto, no Ambito da Andlise do Discurso (AD), como ve- remos, a seg 18 ONDE NEGAGAO POLEMICA NAO EQUIVALE A DENEGAGAO Se as duas teorias aproximam-se por conceberam um suieito fragmentado, 6 ainda em fungo do sujeito que ambas se distinguem, Para 2 AD, além de fragmentado, descentrado e disperso, o sujeito 6 ideologi camente constituldo. Consoqdentemente seu discurso relaciona-se com uma formagéo discursiva (FD) especitica, sendo por ela determinado. Ou seja, a FD constitui-se de um saber que Ihe é préprio, determinando o que pode e deve ser dito por um sujeito por ela afetado, daf decorrendo a coe- réncia discursive de seu dizer. Assim, a0 mobilizar enunciados produzidos Por outros enunciadores, 0 sujelito com eles estabelece relagées ideologi- camente determinadas de identidade, similaridede, divergéncia, conflito, antagonismo, otc, Dito isto, retomemos 0 exame da nega¢do polémice © da dene: acto. Na teoria semantica da enunciago, a negagéo polémica decor- re do confronto direto entre os pontos de vista de dois enunciadores anta- Onicos. Ao passar para a AD, dé-se um deslocamento. A polémica af se instaura porque tais pontos de vista representam posicées de sujeito de- terminadas por FD antagénicas. Dito em outras palavras: em AD, a relagio Polémica néo se estabelece diretamente entre dois sujeitos, mas entre duas posig6es de sujeitos que representam FD antagénicas. Assim, a po- Yemica discursiva néo é individual, ela decorre do confronto entre préticas discursivas sociais. Desse modo, o sujeito, ao refutar um elemento do sa- ber de outra FD, refuta um elemento que é exterior ao saber de sua FD. Retomemos, & luz da AD, a anélise do recorte anteriormente examinado. A nega¢éo estabelece conflito entre duas posigées de sujeito divergentes por estarem afetadas por FD antagénicas, de tal sorte que aquilo que significa golpe de Estado, motim, para uma, & RevolugSo, para a outra. E, sendo antag6nicas, a relacdo que se estabelece entre os su tos por elas afetados também o 6, instaurando-se, por conseguinte, uma relago polémica, responsével pelo que Maingueneau (1989, p. 119-21) de- nomina de interincompreensé0, decorrente do confronto entre dois suj tos cujo discurso se situa em duas redes discursivas simétricas ¢ antag6ni- cas (Courtine, 1981). Tal simetria impede que haja comunicagéo entre am- bas, restando-Ihes apenas o recurso & polémica que repudia e refuta o sa ber adverso. Vejamos, agora, a denegagdo. Na psicanilise, este proceso instaura-se quando 0 sujeito nega um comportamento seu que no reco- nhece, deixando-o recalcado em seu inconsciente. Ao deslocar esse concel- to pare @ AD, faz-se necessério manter um paralelismo. Assim, proponho 19

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