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Branko
O momento da verdade para
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FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR VASCO CÂMARA DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS DESIGNERS ANA CARVALHO, IVONE RALHA FOTO DA CAPA NUNO FERR
4 11 14 16 20
Branko Zerlina Lourdes Castro Taiwan Tara Westover
A vida depois Um texto violento Uma artista As mulheres na sua A rapariga que
dos Buraka por João Botelho nouvelle vague história e no seu existia à espera
e Luísa Cruz cinema — proposta do fim do mundo
do Fantasporto
2 | ípsilon | Sexta-feira 22 Fevereiro 2019
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29
Coppola reverberação de uma coisa
reve
Pré-publicação
ão infe
infernal: as relações, os
hom
homens, as mulheres...
de Cinema
ao Vivo Por Vasco Câmara
vasco.camara@publico.pt
ípsilon | Sexta-feira 22 Fevereiro 2019 | 3
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Da casa de
No início os como limite, ou mesmo como barreira dessas ideias terem sido expressas co-
Buraka eram anímica, e raramente como ponto de meçou todo o processo — gravar, ex-
periferia. ligação. perimentar, apagar, acabar ou regres-
Agora Branko A potencialidade da música é essa. sar ao início.”
está no Não existem impossíveis. Branko so-
centro. nha e a música brota. “Às vezes per- A abordagem do fã
É como se em guntam-se se existe uma nova música Se em Atlas a ideia era mostrar que
Nosso tivesse de Lisboa? Para mim, existe. Não é um existiam linguagens musicais conota-
conseguido género. São uma série deles. Entre eles das com diferentes cidades do globo,
ligar as pontas os que são influenciados pela presença agora foi criar um corpo sonoro que
soltas que de novas gerações de afrodescenden- reflectisse as influências transatlânti-
separavam tes dos países de língua portuguesa. É cas que afluem a Lisboa e dar-lhe no-
o centro de inegável que isso está a ter impacto na vas tonalidades com uma série de
periferia, música que é feita aqui e numa série convidados vocais, como Sango, Dino
reflectindo de ramificações sonoras. E isso vai d’ Santiago, Cosima, Mallu Magalhães,
que hoje continuar a ser descoberto. Há mais Miles From Kinshasa, Pierre Kwenders
fazem parte de dez anos, quando os Buraka come- ou Dengue Dengue Dengue.
da mesma çaram, tudo aquilo que fazíamos tinha “Acaba por ser um álbum diverso, com
verdade qualquer coisa de alienígena e em quatro línguas, temas mais ritmados
indissociável bruto para a maior parte das pessoas. e outros mais atmosféricos. Não acho
Hoje essa realidade disseminou-se e que tenhamos de ir atrás de formatos,
temos muitos e novos produtores de mas talvez por causa de plataformas
música de dança, mas também quem como o Spotify ou a Apple music, aca-
faça canções. Há muitas ramifica- bamos por consumir mais canções
ções.” individuais. Talvez este álbum reflicta
O primeiro álbum de Branko, Atlas, isso.”
é de 2015, e tinha um conceito fechado. É uma visão. A nossa é outra. Nosso
“Constituía uma viagem por cinco ci- reflecte coerência. Existem muitos
dades e a ideia era captar um pouco elementos a povoar cada uma das can-
da realidade cultural e musical mais ções e diferentes vozes, ritmos e tex-
subterrânea dessas urbes, trabalhando turas, mas fica a sensação de uma
com vários artistas locais. Agora a ideia respiração semelhante para cada um
foi mais aberta. Não existia propria- dos temas, com uma definição espa-
mente um percurso. Tinha a certeza cial e temporal apurada em todos
que queria começar e acabar em Lis- eles.
boa, mas pelo meio foram aconte- Do ponto de vista da construção do
cendo uma série de coisas sem ideário. disco as principais dificuldades podem
Foram acontecendo gravações com advir do facto de não existir muito
vocalistas e músicos, por todo o lado. tempo para aprofundar relações hu-
Houve muita gente a contribuir com manas. “Há uma coisa muito bonita
texturas, ideias e vozes.” nesse gesto de duas pessoas que não
O Nosso do título refere-se às marcas se conhecem muito bem sentarem-se
identitárias que poderão distinguir em estúdio para colaborarem. Mas é
qualquer coisa que faz sentido agora, preciso ter noção que isso também
aqui, em Lisboa, e em Portugal, mas pode ser inibidor. Por mais aberto, e
também à afirmação de uma vontade flexível, que sejas, nunca se sabe o que
colectiva inclusiva na qual todos são vai acontecer.”
convidados a participar. “Acima de Na maior parte das vezes, diz
tudo é um disco que reflecte diferentes Branko, a sua abordagem às pessoas
inspirações, com vozes dos quatro com quem deseja colaborar é a de
cantos do mundo, e uma música que um fã. “Já as ouvi alguma vez e digo-
faz sentido neste tempo. Inicialmente lhes, de forma genuína, que gosto da
havia 40 temas instrumentais e depois sua música e que adorava ter e
tempo para, um dia, nos sentarmos, colaboração flexível que não passa
falar e encetar uma colaboração. Em pelo modelo de conceder ordens.”
alguns casos podem ser pessoas ami-
gas de outras pessoas que encetam O momento da verdade
esses contactos, mas na maior parte De todos os membros dos Buraka,
das vezes a iniciativa advém do meu Branko foi quase sempre o mais activo
lado.” fora do âmbito do grupo, actuando
Em 2015, no seu anterior álbum, um pouco por todo o mundo como DJ,
já haviam colaborado uma série de ao mesmo tempo que lançou vários
nomes (Princess Nokia, Cachupa singles, remisturas e mixtapes (Drums,
Psicadélica, Skip & Die ou The Clerk) Slums & Hums de 2013), para além do
e existiram inclusive canções resul- álbum Atlas. Mas quando esse registo
tantes de contributos efectuados foi editado o grupo ainda estava em
(Mayra Andrade ou Cícero) que aca- actividade. Agora o panorama é dife-
baram por não constar do disco. rente. É uma espécie de momento da
“Às vezes existem canções que, verdade para ele.
por boas que sejam, no conjunto do “O Atlas funcionou como projecto
álbum acabam por não fazer grande paralelo, embora do lançamento na
sentido, como acontecia nesse casoal ZDB ao concerto na última passagem
como há coisas que vão sendo grava- do ano no Terreiro do Paço, passando
das e que nunca são finalizadas.” É pelo documentário que passou na
preciso que num processo colabora- RTP2, tenha sido uma aventura fasci-
tivo existir uma certa empatia? “Sim, nante. Mas, sim, agora existiu outro
essa química é importante, mas nem controle e direcção. Há aqui um pro-
sempre é garantia de alguma coisa. pósito de afirmação maior daquilo que
Às vezes acorda-se no dia seguinte e é a minha visão da música, ao mesmo
percebe-se que, afinal, estava tudo tempo que existe um processo de cres-
errado.” cimento.”
No caso do presente disco todas as Nos movimentos finais dos Buraka
gravações efectuadas nos Estados Uni- era perceptível que uns puxavam mais
dos acabaram por ser esquecidas. pela cadência rítmica, a sonoplastia e
“Algumas dessas colaborações foram o nervo, enquanto outros se posicio-
com pessoas de uma veia mais pop, e navam mais próximos da ideia de can-
outras mais rap, que gravei em Los ção. “Sou viciado nessa noção de com-
Angeles e Nova Iorque, mas no final posição, de levar uma ideia musical a
percebi que não queria ir muito por ali um extremo, agarrando numa voz
e acabei por retirar esses registos do para a desconstruir, experimentando,
material a trabalhar.” montando e desmontando. Por um
Às vezes fala como o realizador de lado interessa-me inovar, por outro
cinema que tem de justificar a mon- perceber como é que se pode ser ainda
tagem final de um filme, as cenas que assim apelativo. Situo-me nessas mar-
foram esquecidas ou cortadas em gens. Equilibro-me nessa dinâmica.
favor de outras, contra a opinião dos Mas isso também acontecia nos Bu-
próprios actores, que não se revêm raka. O meu lema é: se uma canção
nas opções. Ri-se. funciona numa versão de guitarra e
“Sim, é um processo que nem voz, ou de piano e voz, também fun-
sempre é pacífico porque se criam cionará a partir da combinação voz e
expectativas, mas no caso do cinema ritmos.”
é diferente. Dá-me ideia que um rea- Depois do apagamento dos Buraka
lizador tem mais controlo. No meu poderia advir um certo vazio. Mas
caso tento manter as pessoas a par Branko rejeita a ideia. “As coisas fluí-
do processo. Explico o que fiz ou que ram normalmente. Houve mais espaço
pretendo fazer. Há uma lógica de que foi preenchido com mais atenção
SOU FUJIMOTO
poderão pop foram criando alternativas ao
distinguir dominante eixo anglo-saxónico — mas
qualquer coisa dir-se-ia que, na actualidade, o as-
que faz sentido sunto tem tido mais visibilidade, em
agora, aqui, em
Lisboa, e em
parte pelo sucesso da espanhola Ro-
sália. “Para mim foi o maior fenó-
FUTURO DOMÉSTICO PRIMITIVO
Portugal, mas meno de 2018, criando um espaço MUSEU DO ORIENTE | 22 FEVEREIRO A 26 MAIO
também à que não existia, e fê-lo de forma e
afirmação de
uma vontade
mecenas principal seguradora oficial www.museudooriente.pt
colectiva
CONTACTOS
inclusiva na
Av. Brasília Doca de Alcântara (Norte) | Tel. 213 585 200
qual todos são
convidados a
participar
ípsilon | Sexta-feira 22 Fevereiro 2019 | 9
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Em vez de sexo,
muita sensualidade
A inÅuência de Branko sente-se
na música popular portuguesa
dos nossos dias. Se depois
da cessação dos Buraka ainda
existiam dúvidas, o lançamento
do presente álbum é o momento
de aÄrmação autoral deÄnitiva.
brutal. O que é incrível é que ela pode tendo alguma visibilidade acaba por Ele nunca escondeu que o universo da canção lhe
mover-se no mercado da música la-
tina, que é um gigante da indústria
também não encaixar num movi-
mento musical pré-existente. É o caso
A Lisboa que viu corria nas veias. João Barbosa, ou seja Branko, nos
projectos que foi desenvolvendo (dos 1-Uik Project
discográfica, ao mesmo tempo que
tem presença global. Daqui a dez
do Dino d’ Santiago, que tanto canta
em português como em crioulo, o
nascer os Buraka, já aos Buraka Som Sistema) sempre perseguiu esse
desígnio. Fazer música que, de alguma forma,
anos, quem sabe, se a música dos paí-
ses de língua portuguesa não poderá
que cria afinidades mas também re-
sistências. Mas existe muita curiosi-
não é a mesma que hospedasse ideias de composição, palavras e vozes,
não necessariamente para criar canções segundo
ser também uma força preponde-
rante da música mundial?”
dade sobre o que está a acontecer,
mais até fora de Portugal, de contrá-
agora recebe um modelo fechado e tradicional, mas para alcançar
um modelo que contivesse qualquer coisa de
Nosso
Branko
Quem tem trilhado um percurso
próprio, mas com algumas caracterís-
rio não teria pessoas da Rolling Stone
a telefonarem-me com interesse so-
Madonna e assiste familiar, sem renegar uma linha mais exploradora.
Já era isso que estava presente no anterior álbum
Edi. Enchufada
Zerlina
Pela primeira
vez, Luísa Cruz
dá voz a um
monólogo e João só podia existir
depois
Botelho surge
como encenador.
No CCB até
6 de Março,
A Criada Zerlina
mostra-se um
texto violento
e ao sabor
de memórias
negociadas entre
a fantasia
e a realidade.
da catástrofe
Gonçalo
Frota
Z
erlina é uma criada. E, como jogo constante a que Zerlina recorre caso desta A Criada Zerlina, que está que, descrição do próprio, se deixou os unia nos seus percursos: ela teve
sabemos, as criadas não cos- enquanto se alonga a contar as suas em cena no Centro Cultural de Be- dominar por “uma ideia de aventu- uma pequena participação numa
tumam ter voz. Pelo menos memórias a um interlocutor quase lém desde 21 e até 26 de Fevereiro, e ras infanto-juvenis”. longa-metragem dele, Filme do De-
uma voz que se oiça, soter- ausente (denominado por A.), cede de 3 a 6 de Março (segue-se, a 8 de Botelho nunca tinha lido o texto sassossego, em 2010.
rada que costuma ficar de- ao exagero e à distorção, aproxima Março, o Teatro Académico Gil Vi- de Broch; Luísa Cruz recorda-se de Este texto que Hannah Arendt
baixo das ordens e dos man- essas memórias de como gostaria que cente, em Coimbra), é uma peça feita uma “leitura en passant, há muitos considerou “talvez a mais bela his-
dos e desmandos dos seus senhores tivessem mesmo acontecido, mas a de primeiras vezes: o monólogo anos”, sem que tivesse estudado ou tória de amor da literatura alemã”,
e das suas senhoras, resumida a uns partir de um lugar de narradora que inaugural de Luísa Cruz, a estreia do analisado estas palavras com porme- foi escrito por Hermann Broch no
sussurros caídos pelos cantos. Mas não costuma ser oferecido a quem é cineasta João Botelho enquanto en- nor. Nenhum dos dois viu as versões contexto do pós-guerra e esse é um
A Criada Zerlina, escrita em 1950 permitido observar mas não opinar, cenador. “Embora eu faça muito protagonizadas por Eunice Muñoz e dado fundamental na opinião de
pelo autor austríaco Hermann Broch, testemunhar a vida mas não interfe- teatro nos meus filmes”, ressalva em por Micaela Cardoso; e a nenhum João Botelho. “O facto de as mulhe-
reclama essa voz e não deixa, de rir, cuidar apenas do desalinho e conversa com o Ípsilon. Mas nada dos dois, na verdade, ocorreu pegar res terem trabalhado em fábricas
resto, que mais nenhuma se interpo- compor tudo para que os outros vi- como aqui, em que enche os pul- em Broch ou trabalhar uma parceria durante a guerra enquanto os ho-
nha no seu discurso. De certa forma, vam sem grumos. Talvez por isso A mões deste ar e mergulha com con- criativa. O desafio partiu de Luísa mens iam para o combate deu-lhes
ela expande a sua voz até se apro- Criada Zerlina de Broch se tenha tor- fesso entusiasmo na linguagem tea- Taveira (administradora do CCB), um poder e uma autonomia, come-
priar de todas as outras. Mesmo que nado uma figura tão magnética e tão tral. “O teatro”, compara Botelho, tendo Luísa Cruz como destinatária; çaram a ganhar dinheiro e a partir
para isso tenha de tornar a verdade propensa a saltar das páginas de um “não tem fim. O cinema parece que depois de ter aceitado uma proposta desse momento puderam tornar-se
um conceito lato — tão lato que possa livro para os palcos do mundo. fechou um círculo — começou nas em branco, o CCB sugeriu ainda que mais independentes”, afirma, sem
até mesmo incluir a falsidade. Foi um acontecimento, aliás, feiras e acabou nos centros comer- fosse João Botelho a tomar as rédeas esquecer o quanto a luta feminista
Talvez por isso, devido a essa enfá- quando, em 1988, Eunice Muñoz foi ciais. No teatro ninguém liga os tele- do espectáculo. E foi assim, escolhi- do princípio do século ajudava a que
tica declaração que faz no texto de Zerlina numa encenação de João móveis, ninguém come nem bebe; é dos por terceiros, que actriz e reali- essas conquistas se mostrassem
que “era uma emoção verdadeira e, Perry — salto que Micaela Cardoso mais nobre.” A nobreza que acredita zador se voltaram a cruzar depois de mais sólidas.
no entanto, era falsa”, devido a esse viria a repetir anos mais tarde. No andar desaparecida num cinema uma curta referência biográfica que “Só no pós-guerra é possível pegar
numa criada, que em princípio não É também a independência moral, tas vezes transportam segredos, ou- É uma peça feita de primeiras
tinha voz, e dar-lhe uma”, continua. amorosa e sexual que Zerlina chama vem confissões, são padres, mães, vezes: o monólogo inaugural de
“Só depois de uma catástrofe é que a si no texto de Hermann Broch que pais, irmãs, psicólogas, são tudo isso Luísa Cruz, a estreia do cineasta
se pode mudar as regras. As catástro- seduz Luísa Cruz neste seu primeiro numa criada.” Ao mesmo tempo que João Botelho enquanto encenador
fes são coisas boas, não são coisas monólogo. É Luísa, tanto quanto não podem pensar em criar a sua
más. Quando há um grande tempo- Zerlina, que assume todas as outras família, abrir a porta de uma casa
ral ou qualquer outra situação em vozes — a perspectiva sobre o mundo que lhes pertença.
que as pessoas ficam em risco, isso altera-se, deforma-se e ganha novos João Botelho recorda que, em Trá-
pode mudar vidas. Tal como acredito contornos aos seus olhos. Para a ac- fico, punha na boca de um actor um
que o teatro deve mudar vidas: triz, que em As Criadas, de Jean Ge- pequeno texto de Maupassant em
quando as pessoas vêm para um es- net (encenação de Marco Martins em que se dizia algo como (a citação é
pectáculo têm, depois, de fazer al- 2016), fora a “Senhora” que as cria- inexacta, recolhida nos meandros da
guma coisa diferente — andar de das sonhavam matar, em A Criada memória): “Um criado é um ser
patins, desenhar, cantar, dançar, fa- Zerlina, muito mais do que luta de muito estranho: não é do povo por-
zer coisas diferentes do normal.” classes, é a indagação sobre quem é que o renegou, saiu de lá, mas por
Essa tal voz rara, acrescenta por esta mulher que conta. “Para mim é mais que queira também não é da
comparação com Zerlina, lembra-lhe a pergunta de quem são estas pes- burguesia de quem está a servir.” E
a pintura de Courbet quando “ele soas e onde é que vivem. Porque é lembra ainda os “maravilhosos fil-
tira os santos e os reis dos quadros e como se vivessem numa terra de nin- mes do Renoir, em que os criados
começa a pintar camponeses, co- guém — não são da família, mas são observam e criticam com o olhar ou
meça a dar outra dignidade ao ser quase. Têm os afectos, vivem na até com o sorriso”. “Aqui não, ela
humano, independentemente da mesma casa, mas não é a casa delas. tem a palavra. Esta é a história de ele
situação em que se encontra.” Trabalham, vivem, interagem, mui- se apropriar da palavra.”
Lourdes Castro,
uma artista
nouvelle vague
num museu
A curadora Anne
V
iveu em França durante 25 tista, estabelece um paralelismo com Os lençóis bordados com contor- a da arte internacional do seu tempo,
anos, mas nunca tinha tido o interesse pelo objecto que o grupo nos de corpos deitados, que chamam ela é também possuidora de uma
uma grande retrospectiva
neste país. Lourdes Castro, Bonnin possui uma dos Nouveaux Réalistes deixava
transparecer, muito na linha, de
a atenção para a recuperação de um
trabalho tradicionalmente feminino
originalidade que espantou quem a
viu pela primeira vez em Sérignan.
uma das mais importantes
artistas portuguesas con- série de reflexões resto, da obsessão da Pop Arte pelos
bens produzidos pela sociedade de
na ilha da Madeira, acompanha a
projecção do único filme feito sobre
Há, no entanto, pontos de contacto
que podemos estabelecer com outros
temporâneas, vê agora esta falha
colmatada, com a inauguração, no totalmente novas consumo na década de 60, pouco
tempo depois das penúrias e dos ra-
o Teatro de Sombras, um espectáculo
que Lourdes Castro criou com o seu
criadores contemporâneos. A pri-
meira referência está nas Antropome-
dia 16, de Lourdes Castro, ombres &
compagnie, a grande exposição que sobre a obra de cionamentos dos anos de guerra.
Nestas caixas, de que a exposição
segundo companheiro, Manuel Zim-
bro. Nesta última secção da exposi-
trias de Yves Klein, feitas a partir de
corpos femininos pintados que, por
o Musée Régional d’Art Contempo-
rain (MRAC) da Occitânia / Pirinéus- Lourdes Castro mostra quatro exemplares, nota-se
o cuidado com que a artista as reco-
ção apresentam-se obras que estão
relacionadas com a contemplação
pressão, deixam marcas azuis sobre
telas brancas. Mas no trabalho da
Mediterrâneo lhe dedicou. A exposi-
ção, feita graças aos empréstimos de proporcionadas briu de monocromias, quando não
escolheu os objectos que elas con-
do mundo vegetal, sejam elas os de-
senhos de contornos de sombras
artista portuguesa não há contacto
directo (excepto talvez nos bordados,
colecções públicas tão importantes
como as dos museus Gulbenkian, pelo conhecimento têm segundo um critério cromático
ou matérico. Em duas colagens com
projectada de vasos de flores, sejam
as diferentes imagens do Grande Her-
e no herbário que criou) entre o mo-
delo e a sua sombra. É no produto
Serralves, Chiado e Colecção Be-
rardo, para além de cedências de íntimo da cultura letras de madeira, colocadas ao lado
das caixas, cobriu também toda a
bário de Sombras, obtidas pela colo-
cação de plantas e flores sobre papel
final do cinema, que também traba-
lha com sombras que se reflectem
coleccionadores privados, é uma
apresentação excelente e muito da época, e que, nos superfície com spray prateado.
A monocromia, ou seja, a ausência
fotossensível. Numa sala do primeiro
andar, mais perto agora dos espaços
num ecrã, que de facto pensamos de
imediato. Anne Bonnin destaca dois
abrangente da obra da artista.
O MRAC fica em Sérignan, a alguns textos escritos por de caracteres identificadores (a boca,
os olhos, o nariz, as feições, em
do MRAC destinados à apresentação
da colecção permanente do museu
contornos de amigos cineastas dese-
nhados segurando a câmara de fil-
quilómetros de Béziers que é uma
das cidades mais importantes do portugueses que se suma) conduzem rapidamente para
o campo da representação de som-
e a outras exposições temporárias,
mostra-se o Álbum de Família, uma
mar, para voltar a acentuar este pa-
ralelismo e nos dar a entender que
lado francês dos Pirinéus. Anne Bon-
nin, a comissária da exposição, debruçam sobre bras, a grande marca autoral de
Lourdes Castro. Anne Bonnin fala da
enciclopédia de sombras diversas
que a artista tem vindo a coleccionar
tudo, na obra de Lourdes Castro, tem
a ver com a imagem fugidia e efémera
pensa que a partir de agora se abri-
rão oportunidades para apresenta- a artista, não surgem leitura de um livro de Adelbert Von
Chamisso sobre a história de um ho-
desde os anos 60. Há também livros
de artista, desenhados, feitos com
dessa disciplina artística.
Nada de mais aqui: o cinema sem-
ção da obra de Lourdes Castro nou-
tras cidades francesas, tal como re- habitualmente mem sem sombra, e do interesse que
este negativo da luz — e neste sentido
colagens, bordados. O livro, como as
outras práticas que na época eram
pre influenciou a prática dos artistas.
Já o contrário só raramente aconte-
centemente foi o caso de Paula Rego, a sombra é o contrário da pintura, vistas não exactamente integradas ceu. No catálogo cita-se Topor, que
que pertence praticamente à mesma que é essencialmente luz — se mani- no âmbito das belas-artes, sempre além de pintor foi também actor, e
geração desta pintora, ou, há alguns festou na artista a partir desse mo- mereceu o olhar atento e a prática que vivia acompanhado pela sua
anos, de Helena Almeida e Amadeo mento. A exposição apresenta um desta artista, como bem pudemos sombra bordada na cortina da janela.
de Souza-Cardoso. Muitos dos que sem número de sombras pintadas, observar na exposição Todos os livros E que se espantava que o seu corpo
estavam presentes na inauguração primeiro, e recortadas em pléxiglas que teve lugar no Museu Gulbenkian “tão cheio, tão pesado e tão presente
indagaram as razões da retrospectiva colorido, mais tarde, por vezes nu- em 2015. contivesse tanta ausência”. A som-
do trabalho de Lourdes Castro ape- meradas, indicando que se trata de Embora a obra de Lourdes Castro bra, ou o contorno, não sendo reais,
nas ter tido lugar agora, ela que viveu múltiplos. Lourdes Castro desenha seja hoje considerada com inte- apenas podem traduzir uma estética
os seus anos artisticamente mais fe- sistematicamente o marido, René grando a primeira geração que cria da ausência e do desaparecimento.
cundos em Paris e que privou e tra- Bertholo, bem como os amigos. As uma linguagem em consonância com Como na obra de Lourdes Castro.
balhou com muitos artistas bem co- sombras deixam adivinhar gente que
nhecidos da cena parisiense dos conversa, que lê, que dorme, que
anos 60 e 70. A interrogação perma- fuma, que se beija e que se abraça. Universidade do Porto
nece sem resposta. Tornam-se moventes, coloridas com Faculdade de Belas Artes (FBAUP)
Mas recordemos as razões desta o uso do pléxiglas. De certo modo,
Formação
ligação tão forte que Lourdes Castro materializam de uma forma directa
tinha com França. Madeirense por o que a fotografia e o cinema fazem
nascimento, mudou-se para Lisboa já em grande escala e habitualmente
aos 18 anos para estudar nas Belas- no quotidiano dos anos 60 e 70.
Contínua
Artes. Este não era seguramente o Segunda Guerra Mundial, a naciona- Anne Bonnin fala da Nouvelle Vague.
ambiente ideal para uma jovem ar- lidade portuguesa ao húngaro Arpad E diz que Lourdes Castro é muito
tista que já sentia o apelo das novas Szènes. “nouvelle vague”: coloca em questão
linguagens que o pós-guerra tinha Desta época, a exposição mostra os próprios princípios da fotografia
2018/19
definido, em França como no uni- algumas pinturas feitas no espírito e do cinema, tal como Godard,
verso anglo-saxónico. Em 1956 sai da da abstracção lírica que estava então Truffaut e mesmo Agnès Varda o fa-
escola, por não lhe ser aí permitido na moda na Escola de Paris, próxi- ziam naqueles anos.
adoptar uma linguagem abstracta, e, mas da própria pintura de Vieira e Exemplificando a sua tese, apro-
como o primeiro marido, René de Arpad. Nada mais normal: é pre- xima-se de uma mesa onde estão
Bertholo, muda-se para Munique. ciso primeiro captar a linguagem dos dispostos alguns exemplares da re- INSCRIÇÕES ABERTAS NAS ÁREAS:
Fica aqui um ano; logo de seguida, já artistas que se admira antes de se vista KWY, que Lourdes Castro funda
munida da indispensável bolsa da poder criar uma obra original. A par em França logo em 1959, e faz-nos
Gulbenkian — uma necessidade im- destas pinturas, há também na ex- notar a participação de um número CRÍTICA DA ARTE
periosa para qualquer artista da posição um auto-retrato juvenil, considerável de criadores — artistas DESENHO
época que quisesse trabalhar no es- onde Lourdes Castro substituiu a mas também escritores da época — DESIGN, EDIÇÃO E LIVRO DE ARTISTA
trangeiro — vai para Paris. Aqui vi- pintura das íris dos olhos por duas na concepção de cada número. O
verá durante um quarto de século. manchas acinzentadas, como se se núcleo duro inicial incluía, além de
FOTOGRAFIA
Em Paris, como quase sempre su- tratasse de uma pintura de dois es- Lourdes e do marido, os pintores ILUSTRAÇÃO E BANDA DESENHADA
cedia com todos os jovens artistas pelhos. Anne Bonnin chama a aten- Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, José METODOLOGIA
emigrados, é acolhida pelo casal Ma- ção para esta peça, e refere que este Escada e João Vieira, a que se juntam MULTIMÉDIA E VÍDEO
ria Helena Vieira da Silva e Arpad é o olhar tradicional do pintor, que mais tarde Jan Voss e Christo. Con-
Szènes. Estes arranjam casa, espaço capta o mundo e devolve o seu re- tudo, era frequente convidarem ami- PERFORMANCE
de trabalho e galeria. Muitos anos flexo. gos para paginar determinada sec- PINTURA
mais tarde, Lourdes Castro contaria A curadora possui, de facto, uma ção; a comissária chama-nos a aten- TÊXTIL
que o casal mais velho os tratava de série de reflexões totalmente novas ção para uma página, concebida por
“les enfants”, as crianças. Nunca tive- sobre a obra de Lourdes Castro que Robert Filliou, onde se vê a fotografia
VIDRO E CERÂMICA
ram filhos, e a generosidade que lhe são proporcionadas pelo conhe- de uma mulher de costas, de cabelo
Maria Helena e Arpad demonstraram cimento íntimo da cultura da época, comprido, sobre a qual há um poema
sempre para estes e outros jovens, e que, nos textos escritos por portu- dactilografado que repete quase tex- Avenida de Rodrigues de Freitas, 265, Porto
forçados a emigrar para fugir ao am- gueses que se debruçam sobre a ar- tualmente um diálogo entre Brigitte 225 192 416
biente tacanho da ditadura já em tista, não surgem habitualmente. Bardot e Michel Piccoli no filme O formcontinua@fba.up.pt
decomposição, era o oposto da du- Assim, passando logo de seguida Desprezo, de Godard, afirmando que fbaupformacaocontinua.wordpress.com
reza de que o Estado português dera para as caixas com objectos que se não há fronteiras entre as diferentes Facebook: FBAUP Formação Contínua
provas quando recusara, nos anos da seguem na produção artística da ar- práticas artísticas nesta época.
ípsilon | Sexta-feira 22 Fevereiro 2019 | 15
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Francisco
Noronha
Prosseguindo a proposta do ano passado, o Fantasporto volta
a olhar para a história e o cinema de Taiwan através de um conjunto
de Älmes que, feitos durante o período do “Terror Branco” (a lei
marcial vigente entre 1949 e 1987), têm a representação da mulher
como tema primordial. “Eram os anos 60”? Nos seus essenciais nós,
ambiguidades, vicissitudes, continuam a ser os nossos.
Q
uatro arestas: eis a exacta sobressai é a evidência de que este cí- Six Suspects Lin Tuan-Chiu mulheres, são elas que dão o tom de
similitude entre uma câmara nico fotógrafo — ex-amante da mulher a destapar o oculto, a lançar luz tristeza prevalecente… São persona-
e uma janela, entre estas e que agora chantageia por ter sido sobre a verdade das coisas gens que provêm de famílias pobres
um ecrã. Essa a geometria posto na prateleira (ela percebeu que — sobre as aparências, e que são forçadas ou voluntaria-
do segredo e da revelação (o é noutros cavalos que tem que apostar as conveniências, a impostura mente se sacrificam em ir para a ci-
que se faz com um rolo foto- para subir na vida) — é, no fundo, um moral de uma sociedade dade trabalhar em clubes nocturnos
gráfico no escuro senão… revelá-lo?) duplo de Lin a “fotografar” a socie- conservadora mas que se atola ou casando com homens ricos para
que um dia Hitchcock imortalizou em dade taiwanesa. O homem da câmara em adultérios, violência, sustentar a família. E que, devido à
The Rear Window (1954). Six Suspects de fotografar/filmar a destapar o “crimes e escapadelas” sua genérica impotência, são fre-
(1965), um dos filmes que poderemos oculto, a lançar luz sobre a verdade quentemente alvo de abusos se-
ver nesta 39.ª edição do Fantasporto, das coisas — é dizer, sobre as aparên- xuais”. Por isso, prossegue, “a men-
tem como protagonista um fotógrafo: cias, as conveniências, a impostura nista verdadeiramente principal. O sagem moral nesses filmes é a de que
um “diabo ex machina” (as sádicas moral de uma sociedade conservadora que corresponde a uma tradição lite- se espera que as mulheres cumpram
gargalhadas que não cessam) que se mas que, “nas costas”, se atola em rária na qual a frustração em relação com os seus papéis tradicionais, em-
dedica a captar os segredos, tabus, a adultérios, violência, “crimes e esca- ao país patriarcal redundou na espe- bora, involuntariamente, a transgres-
hipocrisia de uma sociedade em mu- padelas” vários. Pôr o chiaro no scuro, rança de que Taiwan se renovasse são lhes seja consentida como forma
dança. The Changing Face of Feminity testar os telhados de vidro de cada como uma nação poderosa sob o co- de lutar contra uma força económica
in 60’s Taiwan, assim se designa a rodinha dentada da dissimulada má- mando das mulheres. Portanto, na opressiva maior”.
mostra de filmes taiwaneses (falados quina conservadora — a câmara foto- premissa de servirem a nação, a trans- “A determinadíssima protagonista
em taiwanês, Taiyupian, num cam- gráfica como paradigmático acto-de- gressão destas mulheres é-lhes descul- de Six Suspects será, porém, assassi-
peonato à parte do dos falados em cinema que torna o visível o invisível. pada! Fora desse âmbito, a busca pe- nada pelo patrão da empresa onde é
chinês) com que o festival prossegue, Ao contrário do protagonista do los seus desejos, sexuais ou materiais, secretária, um homem casado, “de
de 22 a 28 no Pequeno Auditório do Blow-Up de Antonioni, este mefistofé- é sempre vista de forma problemática família”, que se decide a eliminar as
Rivoli, uma frutuosa colaboração com lico fotógrafo não tropeça por acaso quando implica uma violação dos pa- pontas soltas. O mesmo que dirá à
o Taiwan Film Institute (TFI). em close-ups: ele persegue-os astuta- péis de género tradicionais”. filha, depois de se lamentar por a ter
Estamos nos anos 60 e a censura de mente, “apanha-os”. Pelo caminho A mulher (a ex-amante do fotó- pressionado a casar com um homem,
Chiang Kai-shek não brinca: as autori- apanhando também em “flagrante grafo) a partir da qual se desenrola que é ela quem deve fazer essa esco-
dades também “montam” filmes, cor- delito” os actores desta peça de teatro toda a trama de Six Suspects provoca lha — para, momentos depois, acabar
tam e colam, desde os elementos mais chamada Taiwan, país-laboratório no no espectador emoções mistas: dú- a sugerir-lhe outro homem e, perante
óbvios como o sexo, a pobreza e o mais qual demolha o rolo fotográfico — o plice, gananciosa, interesseira, é, si- o encolher de ombros da filha, dizer
remoto indício de “comunismo”, até, whodunnit central do filme volver-se-á, multaneamente, uma mulher autó- triunfantemente que sim, que essa é
diz-nos Tan Joe-Eng, uma investiga- então, num incómodo whoiswho. noma, determinada, que vive sozinha uma “boa escolha” para si.
dora do TFI, a aspectos como o elogio num apartamento onde recebe os Quando a questionamos sobre a
da superstição, a heresia, cenas de O melodrama como homens que bem lhe apetece — uma dimensão do prazer feminino neste
conflito demasiado longas ou, mesmo, palco privilegiado mulher normal dos nossos dias, mas filme, Tan Joe-Eng sublinha que a
o nome dos personagens. Six Suspects Comparando Six Suspects com os fil- bem singular nos anos 60, em Taiwan protagonista “é simultaneamente
(dia 28), último dos três filmes assina- mes de espiões, Chun Chi-Wang, do- como em tantas partes do mundo. assassina e vítima. É retratada como
dos por Lin Tuan-Chiu (1920-1998), é cente na Universidade Nacional Dong Para Chi-Wang, “a representação das uma mulher atraente, moralmente
um objecto estranho. Inicia-se como Hwa e doutorada pela Universidade mulheres é diferente nos finais de 50 decadente, hedonista, egoísta. E a
os melhores noir franceses dos anos da Carolina do Sul com tese sobre a e a partir de meados dos 60. O género sua busca pelo prazer sexual é pre-
50-60 (Carné, Melville, Becker, Malle), representação de mulheres lésbicas popular nos finais de 50 é o melo- cisamente uma das razões pelas
o preto e branco esconso de mãos da- no cinema taiwanês, diz-nos que, drama, que aborda as crises e as an- quais é morta”.
das com um jazz inquietante e a mon- “embora o aparecimento dos filmes siedades da modernização de Taiwan Em The Husband’s Secret (1960),
tagem vibrante para, 40 minutos de- de espiões taiwaneses esteja relacio- no processo de transição da agricul- primeiro filme de Lin (dia 22), o pro-
pois, se volver numa investigação cri- nado com a popularidade dos filmes tura para o sistema capitalista indus- tagonista masculino vai tentando,
minal de cordel, a mise en scène de James Bond, são diferentes na me- trial. O sentimento de ambivalência, ingloriamente, engravidar a esposa
cedendo à narrativa, ao plot, ao teatro dida em que têm sempre uma mulher de apreensão sobre essa transição Tsiu-Bi, dona-de-casa e mulher infér-
filmado. E é pena, pois, até aí, o que espia ágil e inteligente como protago- está presente nos infortúnios destas til (e o que de relevante possui, e
numa visão utilitariamente machista, Perspicazmente, Tan Joe-Eng frisa vezes se lamenta que o seu “destino” a primeira se sacrificou para lhe per-
uma mulher doméstica sem capaci- que “a redescoberta dos filmes de de angústia e infortúnio está mar- mitir uma formação universitária) a
dade para gerar prole?), até ao mo- Lin prova que havia formas subtis e cado, cuja raiz é um homem, o ex- acorrer a uma entrevista de emprego
mento em que Le-Hun, amor um dia complexas de representar a mulher namorado gangster de quem teve um numa grande farmacêutica (sentem-
terminado mas nunca resolvido (e no cinema dos anos 60, e que muitos filho — por isso dirá, impressionante- se bem os ventos da mudança, as
amiga da sua mulher), volta a apare- desses detalhados retratos psicoló- mente, que não lhe resta outra coisa mulheres a entraram num mundo até
cer na sua vida. Estamos, agora, no gicos, nomeadamente da consciên- senão morrer, perguntando ao filho, aí exclusivamente masculino). Numa
terreno do melodrama clássico, car- cia feminina e da solidariedade entre num dramatismo quase mórbido, se das primeiras cenas em que vemos
regado de pathos mas, simultanea- mulheres, não são possíveis de en- a acompanhará. Ao contrário do que Siok-Hui em palco, um dos clientes
mente, de contenção. Com um certo contrar nos filmes de hoje”. sucedeu um pouco por todo o (um gangster chaplinesco) pede à
eco mizoguchiano, pois claro, não Filme de repetida violência mas- mundo, onde as “novas vagas” ir- manda-chuva do clube que lhe apre-
tivesse Lin estudado no Japão e traba- culina sobre as mulheres, há tam- romperam pelos anos 60, o cinema gerações, três mulheres aninhadas sente a estrela. “Tens de ir, é um ho-
lhado na produtora Toho (ao invés, bém, em The Husband’s Secret, uma taiwanês só viria a conhecer o fenó- aos pés da cama onde a mãe, doente, mem muito rico e importante”, in-
“Hollywood” é a placa luminosa que “violência” exercida pelas mulheres meno nos anos 80, sendo The Hus- se despede. Alea jacta est: como se siste a patroa com Siok-Hui, chaman-
vemos em fundo sempre que os ho- sobre si próprias: Le-Hun por várias band’s Secret bem ilustrativo desse desenrascarão estas duas irmãs órfãs do-a depois de “princesa” quando
mens mergulham nas noites de álcool desfasamento: moderno no seu (o pai nunca é mencionado), pobres esta se recusa prestar a tal papel: o
e prostituição de Taipé…). Como ethos, no seu retratismo social e psi- e ainda crianças, na vida toda que machismo naturalizado numa mulher
realça Tan Joe-Eng, “o japonês foi não Fantasy of the Deer Warrior cológico, mas conservador na forma, têm pela frente? para quem a recusa em aceder ao de-
só a primeira língua em que ele estu- Numa floresta a mais bela veada na sua praxis cinematográfica. Os dados estão lançados e elas sejo de um homem poderoso só pode
dou cinema, como também a pri- tem de optar entre dois animais May 13th, Night of Sorrow (1965) - jogá-los-ão de formas diferentes. A ser sinónimo de capricho. Siok-Hui,
meira em que escreveu à mão os seus do sexo masculino que dia 23 - talvez seja, por isso, o melhor emancipação das personagens na que durante toda a vida foi menospre-
filmes, depois traduzidos para taiwa- se digladiam ferozmente. dos três filmes assinados por Lin, tela tinha correspondência na vida zada e “ocultada” pela irmã mais nova
nês”. Se dissemos “eco” e não traço, Esquizóide objecto série Z, aquele em que o equilíbrio entre es- das actrizes? Chi-Wang afirma que devido à sua profissão (e que é cons-
é porque o cinema não se chega, afi- o filme de Ying Chang vale pelo ses dois vectores mais plenamente é “algumas das mais famosas eram tantemente pressionada pelas amigas
nal, a cumprir: The Husband’s Secret, modo como alterna entre conseguido, e onde o domínio da mulheres verdadeiramente indepen- a casar-se, por já ser “velha”), apaixo-
de uma ponta à outra marcado pelo o burlesco, o absurdo mise en scène melhor se expressa, por dentes. Bai Lan e Gin Mei, por exem- nar-se-á, sem o saber, pelo mesmo
dispositivo literário, só muito espaça- e a gravidade vezes de modo esplendoroso. Três plo, tornaram-se ambas produtoras, homem (Siu-Gi) que a irmã. O gag
damente é pontuado por verdadeira criaram as suas próprias produtoras! chega a ser cómico: em dois momen-
consciência de mise en scène. Outras foram para Hong Kong ex- tos diferentes, as irmãs dizem uma à
Para Chi-Wang, “o que torna os pandir a sua carreira. Os jornais fa- outra, muito “progressistamente”,
filmes de Lin diferentes dos do lavam de como elas negociavam para tomar a iniciativa, para o beijar.
mesmo período é que as mulheres duramente os seus contratos com a Rima, ironia cruel: uma vez mais, um
supostamente rivais preferem tratar indústria, bem como dos seus casos homem é a raiz de todos os equívocos
umas das outras em vez de tentarem amorosos, o que fazia delas, em e disputas. Num encontro fortuito
conquistar o homem que amam. Pa- certa medida, figuras não conven- num museu, Lin havia enquadrado
ralelamente, o papel deste é minimi- cionais para a sociedade taiwanesa. Siok-Tshing e Siu-Gi com uma pintura
zado, e é por isso que alguns argu- Mas claro que ‘ser uma mulher inde- de um quadro revolto em fundo; mais
mentam que as personagens mascu- pendente’ fazia também parte do tarde, as ondas embaterão violenta-
linas são sempre ‘incompetentes’. discurso, ou seja, havia sempre uma mente nas rochas no momento em
Por outro lado, as mulheres são sem- negociação com os valores tradicio- que ambos combinam um jantar para
pre de classes sociais diferentes, so- nais. Por exemplo, muitas delas ter- apresentar o namorado à irmã; por
bretudo das mais baixas. Lin procura minaram as suas carreiras no mo- sua vez, nessa mesma tarde, a avó de
representar a sua luta: são mulheres mento em que casaram…”. Siu-Gi contara a Siok-Tshing como
que não têm muitas hipóteses para Elipse em May 13th, Night of Sorrow havia conhecido o amor da sua vida
a sua vida, e, as que existem, estão e, já adultas, encontramos Siok-Hui, à beira-mar... É nele, no mar, que o
quase sempre associadas ao sexo, o a mais velha, a cantar num clube noc- amor se faz e desfaz, a vida a seguir o
que faz com que sejam moralmente turno (mise en scène, agora sim, des- seu curso natural, perpétua renova-
recriminadas”. lumbrante), e Siok-Tshing (por quem ção, como no último plano do Prima-
A redescoberta dos
filmes de Lin mostra
que muitos dos
detalhados retratos
da consciência
feminina e da
solidariedade entre
mulheres no cinema
de Taiwan não são
possíveis de
encontrar nos filmes
de hoje
vera Tardia de Ozu que o jovem Lin taiwanês com códigos próprios, sus- do parentesco, a cortejam e inclusi- The Husband’s Secret marcado como documentário. A representa-
certamente viu… Eis senão quando o pensas que estão as normas sociais vamente a disputam. pelo dispositivo literário, revela ção das mulheres hoje é complicada
gangster se apercebe de que Siok- do mundo “lá fora”. Chen terminará o filme com um ainda assim um certo eco pela sua intersecção com outros fac-
Tshing anda com outro homem e, “Mulheres de todo o mundo, uni- plano belíssimo, as três irmãs no cimo mizoguchiano, não tivesse Lin tores: a pobreza, a etnia, a globaliza-
dirigindo-se a sua casa na companhia vos!”: logo numa das primeiras in- de um monte verdejante atirando os Tuan-Chiu estudado no Japão ção, a sexualidade. A opressão de
de um grupo de mulheres-capangas, vestidas, uma das irmãs descarrega sabres fora: a vingança está consu- e trabalhado na produtora Toho; género não é apenas uma questão de
ordena-lhes que a espanquem, na golpes e espadeiradas num bando de mada, a renúncia à violência é explí- filme de repetida violência género! Têm sido feitos vários filmes
rua, à vista de todos. As próprias mu- homens que se preparava para abu- cita, a sua razão de ser deixou de masculina sobre as mulheres, sobre o fenómeno das mulheres chi-
lheres a fazerem o trabalho sujo dos sar de uma aldeã. “Eu gosto de mu- existir. Talvez agora sim: uma vez feita há também uma “violência” nesas ou do sudeste asiático que vêm
homens, quanta perversão. lheres fortes que saibam lutar!”, justiça, reequilibrada a balança, tal- exercida pelas mulheres sobre para Taiwan e se casam com homens
detectamos-lhe os duplos sentidos vez agora homens e mulheres possam si próprias taiwaneses, e alguns dos melhores
Irmandade feminina num filme cuja “irmandade” cele- começar de novo. Tan Joe-Eng, po- filmes são realizados por mulheres.
O raccord desta sequência de 13th, brada, mais do que de sangue, é de rém, confessa-nos que, a seu ver, “o São filmes que abordam a discrimina-
Night of Sorrow terá lugar em Ven- género. Pelo meio, o filme deixa-se realismo social, nomeadamente o dos animais do sexo masculino), que se ção que essas mulheres sofrem den-
geance of the Phoenix Sisters (1968), salpicar por espirituosos gags, o me- Taiwan B-Movies dos anos 80 [exibi- digladiam ferozmente, medindo tes- tro da família dos maridos e da socie-
de Hung Min Chen (dia 27), filme da lhor deles repousando na confusão dos pelo Fantas no ano passado], tosteronas. Esquizóide objecto série dade em geral, e que falam de como,
gloriosa cambalhota: depois de terem “de género” sobre uma das rapari- soube lidar melhor com a emancipa- Z, auto-paródico, alterna entre o bur- num casamento ‘transnacional’ deste
testemunhado a morte dos pais às gas: tomada como rapaz quer pelos ção da mulher. As mulheres dos fil- lesco, o absurdo, e, subitamente, tipo, o amor e o compromisso em
mãos de três homens, três irmãs que homens (pelo cabelo apanhado, sim, mes dos anos 60 estão sempre dentro momentos graves (a raposa que, in- nada interessam ao lado das obriga-
o tempo separou mas que o desejo mas também pelo facto de dominar da ordem social — mesmo no Ven- vejando a popularidade da veada, ções contratuais e familiares que a
de vingança reagrupa partirão numa a arte samurai, como se isso fosse geance of the Phoenix, a vingança é ajudará, ela própria, um dos machos mulher tem de cumprir”.
demanda homicida sem apelo nem qualidade inata reservada aos ho- perspectivada como um acto de jus- a tomá-la pela força, ou quando uma Dando eco das repercussões do
agravo. “Por que raio nos haveríamos mens), quer por mulheres — nomea- tiça! Pelo contrário, nos revenge mo- das criaturas, pretendendo desapa- movimento MeToo em Taiwan (o rea-
de preocupar com três miúdas?”, damente, as suas… irmãs, que, até vies dos oitentas, as mulheres são recer, se lamenta pelo facto de o sui- lizador Doze Niu foi acusado judicial-
haviam zombado os algozes no mo- ao momento em que se apercebem socialmente ostracizadas e, por esse cídio só funcionar para os humanos) mente do abuso de uma ex-colabora-
mento em que, depois de matarem motivo, desistem da possibilidade de ou que se abrem a leituras infinitas (é dora), Chi-Wang frisa que, “de acordo
os pais, desistem da ideia de ir no seu estar em paz com a sociedade. Esse o caso da representação do corpo e com um relatório recente do Minis-
encalço, menosprezando, literal- Vengeance of the Phoenix beco sem saída acaba por não lhes da moral, com a veada “boa”, sempre tério do Trabalho, um homem ganha,
mente tomando por “mais fraco” o Sisters típico revenge movie, deixar outra escolha senão tornarem- vestida e polida, e a raposa “má”, des- em média, mais 14% do que uma mu-
sexo feminino. Típico revenge movie em si mesmo um exercício com se nesses ‘anjos vingadores’”. nuda e carnal; ou a ideia de os ho- lher nas mesmas funções. Por outro
, em si mesmo exercício com fortís- fortíssima tradição no cinema Se a violência é o mantra de Ven- mens como “canibais”, alimentícia, lado, as estatísticas oficiais mostram
sima tradição no cinema asiático, asiático, o filme de Hung Min geance of the Phoenix, é também ela económica e moralmente falando). que, em 2017, foram reportados 137
consegue surpreender o espectador, Chen consegue, ainda assim, que presidirá ao OVNI que é The Fan- Isto sempre numa tangente ao imagi- mil casos de violência doméstica, e
tamanha a sofisticação e o aparato da surpreender o espectador, tasy of the Deer Warrior (1961), de Ying nário fabulístico, em especial o conto os números têm-se mantido iguais
mise en scène nas sequências de com- tamanha a sofisticação Chang - dia 25. Numa floresta antro- do Capuchinho Vermelho (ele pró- nos últimos anos... Tem havido um
bate — logo a primeira delas (o assas- e o aparato da mise en scène pomorfizada, a mais bela veada tem prio um tratado de múltiplas leituras backlash contra o aprofundamento
sinato do pai) é um tratado de espec- nas sequências de combate de optar entre dois homens (i.é, dois em matéria de moral e abuso): da igualdade de género no ensino
tacularidade dramatúrgica (a certa quando a veada faz uma ronda pela primário e secundário, sobretudo em
altura, a câmara quase que adopta o floresta perguntando aos demais se o assuntos relacionados com a educa-
ponto de vista do sabre, como que lobo não a deveria poupar, a única ção sexual e temas LGBTQ, e diz-se
uma câmara-arma) capaz de colocar que a defende é uma “mulher”, que que são grupos cristãos conservado-
em tensão o espectador mais batido. inclusivamente a ajudará a matá-lo. res quem estão a influenciar esse re-
Partilhando com o western aqueles Característica ironicamente comum trocesso. Por outro lado, duas mulhe-
grandes planos dos olhares em ten- a todos estes filmes: o facto de serem res abertamente lésbicas foram elei-
são, mas não apenas isso: uma vez realizados por homens — num país tas como deputadas nacionais no ano
reunidas, as irmãs trilharão a pé hoje presidido por uma mulher. passado... Portanto, estes serão, de-
enormes planícies no encalço dos “Actualmente, há algumas realiza- cididamente, assuntos quentes nos
“índios”, num Monument Valley doras em Taiwan a fazer tanto ficção próximos anos”.
A rapariga que P
ercorrer as montanhas do
Idaho é ter a sensação forte
de que alguém pode ficar
ali esquecido — ou deixar-se
esquecer — para sempre.
Sem a extensão das imensas
planícies do Sul que iludem acerca
existia à espera
da possibilidade de um olhar infinito,
capaz de abarcar tudo, o horizonte
recortado do extremo noroeste dos
Estados Unidos permite o recolhi-
mento de uma toca. É um lugar que
sugere a hipótese de ser, em grande
parte, inexpugnável. Viver como um
do fim do mundo
eremita entre o gelo dos invernos
longos e o verde da floresta recor-
tado pela neve derretida em linhas
de água no Verão generoso faz parte
do imaginário variado da América.
Talvez por isso, Tara Westover pu-
desse ter existido ali como se não
existisse de facto.
Até aos nove anos não teve certi-
Uma Educação é a memória de dão de nascimento. Até aos 17, nunca
como Tara viveu e sobreviveu frequentou uma escola e nunca foi a
entre a natureza e um pai um médico. Não sabia o dia em que
religioso radical que acreditava nasceu e não achava isso estranho.
que o fim do mundo estava Achava que todos podiam escolher
Tara Westover
cresceu sem
certidão de
nascimento,
sem ir à escola
ou ao médico,
numa família
de religiosos
radicais que a
preparavam para
o Äm do mundo.
Aos 17 anos, Äcou
chocada com
a dimensão da
sua ignorância.
Dez anos depois
tinha um
doutoramento
por Cambridge
e escreveu
as memórias.
Uma Educação
é uma prova
de resistência
também
na leitura. Ela
conta como foi.
fim de Setembro. No mundo de Tara Buck’s Peak e fica no Sudeste do denada pela sociedade que aprecia Leu todos os livros, conseguiu nota sente a humilhação, a fragilidade, a
Westover todos trabalhavam, crian- Idaho, junto à fronteira com o Utah. o sucesso e o dinheiro. Lá, estamos e entrou. Aí, foi confrontada com a incapacidade dela perante o silêncio
ças e adultos; as mulheres mais, por- De lá, observa-se o regresso dos bú- no Ohio interior narrado na primeira sua mais terrível ignorância. Numa dos outros e a auto-justificação de
que a tudo o resto acumulavam as falos no início de cada primavera. pessoa por alguém que conseguiu aula de História de Arte, levantou o que o mal está com ela porque ela só
tarefas domésticas e a maternidade. A curiosidade de Tara pelo mundo vencer o estigma e licenciar-se numa braço para perguntar o que signifi- sabe ler através do discurso deles,
Aos domingos ia à missa e vagueava fora da montanha aconteceu ao ou- das prestigiadas universidades da cava uma palavra. Nunca a ouvira, dos que a rodeiam. Há trauma e ele
pela sucata do pai. Pelos montes. vir os CDs de um dos seus irmãos Ivy League. Foi apontado como um nunca a lera: Holocausto. instala-se também nela, que se acha
Não é um filme, não foi num mais velhos, Tyler. Ele era um incon- livro essencial para entender parte “Não sei se o choque foi por ter capaz de tudo, com um instinto que
tempo longínquo, não é mito, mas formado com o mundo à volta, que- da América que elegeu Donald descoberto uma coisa horrenda ou vê como um anjo da guarda. Custa-
faz parte de uma mitologia de vida. ria estudar, e tinha o único “tijolo” lá Trump. “Acho que estilisticamente por ter tomado consciência da mi- lhe ainda falar os maus tratos, mas
Rara, violenta, dogmática, com mo- de casa”. “Foi o amor pela música são dois livros muito diferentes, mas nha ignorância”, escreveu. Também fala. Para isso escreveu, justifica. E
mentos de felicidade ou próximos que me fez explorar um pouco mais, os dois vêm de um universo rural não sabia da escravatura, da luta pe- interpreta a cumplicidade de quem
disso. Aconteceu entre os anos 90 estudar além da família. Não foi tanto remoto. Há essa semelhança. E acho los direitos civis nos anos 50 e 60 do sabia e nada fez antes os abusos. “As
do século XX até à primeira década a curiosidade em geral, mas a curio- que ele faz um pouco de sociologia; século XX. Diz na conversa: “Foi cho- pessoas acharam mais fácil ignorar
deste século, o momento em que a sidade que vinha de um gosto muito eu conto uma história, só isso”, cante a escala do quanto eu não sa- uma série de coisas. Os meus pais
curiosidade levou Tara Westover a específico”, conta Tara. Na altura, afirma Tara Westover. bia. E se eu não sabia aquilo que mais escolheram o caminho da negação e
sair da montanha. Tinha 17 anos e, pediu à mãe para a levar à cidade É a história de uma rapariga que não saberia?” esse caminho era mais longo do que
aos 27, completava um doutora- mais perto, onde quase só iam aos aprendeu a ler em casa, com a mãe, Estava traçada a sua área de inte- aquilo que eles pensavam. Na minha
mento em Cambridge, no Reino domingos à missa. Queria aprender e que leu e sublinhou o Antigo Testa- resse. A História. Na escrita deste li- família, era maneira normal de lidar
Unido, coisa que não cabia na ima- a dançar. A “indecência” das roupas mento, o Livro de Mórmon; que vro, acaba por aplicar o método da com aquilo; fazia parte de uma nor-
ginação da rapariga que, com dez provocou a fúria do pai e levou a que aprendeu a história de pioneiros, pesquisa dessa disciplina. “Tentei, malidade com lidavam com coisas
anos, trabalhava na sucata do pai, a mãe a inscrevesse em aulas de seus antepassados que se aventura- tanto quando possível, confirmar a difíceis. Simplesmente não lidavam.
por onde já haviam passado os seis canto. Sempre podia cantar na igreja, ram “pelas regiões selvagens ameri- informação acerca dos factos que E isso chegou a um extremo.”
irmãos mais velhos. Ouviram-na e, pela primeira vez, viu canas”, e desenvolve uma aptidão tinha nos meus diários. Entrevistei Parte da família não lhe fala, os
“Fora educada segundo os ritmos um pai que não conhecia e se dei- crucial, “a paciência para ler coisas pessoas, tentei documentar-me para pais puseram-lhe um processo em
da montanha, em que a mudança xava encantar. Deixou-a ser Annie que ainda não compreendia”, e aos desfazer discrepâncias. Acho que a tribunal. Ela é um elemento do Mal.
nunca era fundamental, apenas cí- num espectáculo da cidade, porque 16 anos decide pedir equivalência ao minha formação em História influen- Assim, maiúsculo, como ela o apren-
clica. O mesmo Sol aparecia todas as ela era “uma graça de Deus”. Mas ensino secundário, num exame em ciou o modo como encarei o livro e deu. “Queria contra uma história
manhãs, varria o vale e descia atrás não participava das conversas dos que passou, e aos 17 se candidata a o escrevi; estabeleci uma cronologia que desafiasse ideias pré-concebidas
do pico. As neves que caíam no in- outros, não sabia como. uma universidade em Salt Lake City. e o modo como isso me permitia che- que temos acerca de educação. Mui-
verno derretiam sempre na prima- “Eu nunca aprendera a falar como gar a outros pontos de vista. É isso tas vezes pensamos em educação
vera. A nossa vida era um ciclo, o ciclo pessoas que não eram como nós, que que a boa História faz, tocar outras como tendo a ver só com graus aca-
do dia, o ciclo das estações, ciclos de iam à escola e que consultavam mé- narrativas, outras perspectivas”, ar- démicos, que visa encontrar um em-
mudanças perpétuas que, quando dicos; que não se preparavam, todos gumenta. E pôs isso no livro, admi- prego. Pensamos em instituições,
completadas, significavam que abso- os dias, para o Fim do Mundo”, lê-se. tindo terem sido poucas as referên- salas de aula, e trabalhos de casa.
lutamente nada mudara. Eu acredi- Pela primeira vez também, Tara teve cias da literatura. Aos 16 anos leu Os Quis contar as diferentes formas
tava que a minha família fazia parte o sentimento de não pertença, isola- Miseráveis, de Victor Hugo, e não foi como a educação muda quem somos
deste padrão imortal, que, de alguma va-se. “Era um tipo diferente de iso- capaz de distinguir Napoleão de Jean e muda a nossa vida. Em inglês,
maneira, éramos eternos. Mas a eter- lamento [do da montanha]. Quando Valjean, o protagonista. Para ela quando se diz de alguém que é edu-
nidade era apenas atributo da mon- estava isolada com a minha família eram duas figuras reais. “Demorou cado pode significar privilégio, aca-
tanha”, escreve em A Educação, não sabia o que era isolamento por- até ser capaz de distinguir entre his- demia, um monte de coisas. Quis li-
memória de como viveu e sobreviveu que estava com muitas pessoas, com tória e ficção. É preciso aprender a bertar-me disso e fazer com que as
entre a natureza, um pai indulgente, pessoas a quem sentia pertencer”, Uma ler literatura. Levou-me muitos pessoas se interroguem acerca do
religioso radical que acumulava ali- diz agora. Tinha então 12 anos e fixa Educação anos”, admite. que significa ser educado.” Daí o tí-
mentos, acreditando que o fim do nesse atura o tal princípio da curio- Tara Westover Nos anos de Salt Lake City e de- tulo e m interesse que não se esgotou
mundo estava próximo, que dizia que sidade. Diz: “Fui explorar o mundo (Trad. Cláudia pois, quando ganhou uma bolsa para com o livro. Tara Westover está a es-
“um dia haveria de viver completa- lá fora pela música e uma vez que saí Brito) estudar em Cambridge, e mais tarde tudar os alunos em contexto. Não
mente à margem do sistema”, uma aí sim, comecei a ter um pouco mais Bertrand quando foi convidada a fazer douto- chegou a muitas conclusões, apenas
mãe ervanária que lhes cuidava da de curiosidade e quis aprender ramento em Harvard, e mais tarde que a maioria não pensa ir para a
saúde, os abusos de um irmão mais acerca de um monte de coisas.” ainda, quando voltou a Cambridge, universidade, mas o que quer fazer
velho, e uma única expectativa de Dividido em capítulos curtos, mmmmm estava exposta apenas à História e à na quinta, se semear batatas ou criar
vida: “Quando fizesse dezoito ou de- cada um a funcionar como um Filosofia. “Nunca li muita literatura vacas. “Sim, estou a tentar estudar
zanove anos, casava-me, o pai conto, o livro segue uma cronologia até decidir escrever este livro. Talvez de que modo crescer em ambiente
dava-me um canto da quinta, e o meu de vida numa escrita elegante, com os meus preferidos sejam Joan Di- rural dificulta uma formação univer-
marido construía ali uma casa. A mãe descrições pungentes, perguntas dion, Tobias Wolff, Muriel Spark. sitária.” Já chegou a conclusões?
ensinava-me a usar ervas medicinais difíceis de uma criança, depois ado- Não li muitas memórias, mas li O “Ainda não. Mas acho que tem muito
e o trabalho de parteira (...) Quando lescente e uma jovem mulher sobre Ano do Pensamento Mágico, de Di- a ver com o facto de não haver exem-
tivesse filhos, seria a mãe a ajudá-los a sua relação com a família, com a dion, e achei maravilhoso”. Por essa plos na comunidade, os jovens não
as nascer, e um dia, imaginava, se- religião, a procura de uma identi- altura já havia sido confrontada com conhecem quem se tenha formado.
ria eu a parteira.” Não foi assim. E A dade, o questionar do papel da mu- as várias perspectivas acerca da His- É muito difícil ultrapassar isso se
Educação transformou-se num dos
textos mais comentados de 2018, com
lher, da poligamia entre os mór-
mons, o sentimento de culpa ou de “Em inglês, quando tória, diferentes maneiras de olhar o
passado e isso desenvolveu uma es-
nunca se viu ninguém e não se pede
ajuda. É a minha experiência.”
Bill Gates e Barack Obama a recomen-
dá-lo, considerado um dos livros do
traição que se instalava à medida
que o seu conhecimento do mundo se diz de alguém pécie de independência de pensa-
mento diante de muitas coisas. Filo-
Quando terminou livro mostrou-o
aos irmãos com quem fala, os que,
ano em muitos suplementos literários
e a sua autora olhada como uma es-
lhe mudava a perspectiva e a afas-
tava irremediavelmente desse nú- que é educado pode sofia, política, religião... “Assim que
nos apercebemos que há ideias dife-
como ela, saíram da montanha e
frequenta a universidade. Dos ou-
pécie de heroína, com a capacidade
de contrariar não a força de uma
cleo que aprendeu como essencial:
o pai, a mãe, os irmãos, a casa, significar privilégio, rentes das das pessoas que nos ro-
deiam nunca se sabe até onde isso
tros não sabe. O que ficou deles?
“Muita coisa”, garante. E a religião?
montanha mas a de um pai desequi-
librado criador de um ambiente onde
Buck’s Peak e uma doutrina, a de
que “não podiam existir duas opi- academia, um monte pode ir”, afirma tara que vê isso
como o grande desafio e também por
“Já não sou religiosa, mas tenho al-
guma sensibilidade em relação ao
não havia espaço para outros mode-
los de vida que não aqueles que ele,
niões razoáveis sobre o mesmo as-
sunto”, ou seja, “existe a Verdade e de coisas. isso decidiu escrever este livro em
registo de memória. “Achei que a
mormonismo. Não sinto que a mi-
nha família seja representativa do
nessa montanha, lhe reservava.
“Acho que fui uma criança bas-
existe a Mentira”. Eles eram, achava
Tara, “os únicos verdadeiros mór- Quis libertar-me memória seria mais útil. Há uma
grande estranheza, e mesmo es-
mormonismo, não sinto que a ma-
neira como viviam seja mórmon;
tante feliz. Aquela era a realidade
que conhecia”, diz Tara Westover ao
mones que conhecera”.
O livro de Tara tem sido compa- disso e fazer com tigma, que leva a que muitas pessoas
não falem de forma aberta acerca de
conheci muitos mórmons que iam
ao medico e à escola. O meu pai era
Ípsilon, numa conversa a partir de
um aeroporto, prestes a apanhar um
rado ao também muito aplau-
dido The Hillbilly Elegy (2016), de J. que as pessoas se experiências limite. Quis que o livro
pudesse ser útil a quem estivesse a
um radical e tinha ideias radicais
acerca de tudo e também sobre a
avião para Nova Iorque, onde vive.
Tem 32 anos, o livro saiu quando ti-
D. Vance, na altura com 31 anos (pu-
blicado em Portugal em 2017, pela D. interroguem acerca lutar com isso. A memória é como se
alguém estivesse ali a dizer: aconte-
religião. Não culpo o mormonismo
pelo modo como fui criada. Dito
nha 31, e faz tempo que não volta à
montanha, embora ela permaneça
Quixote, com o título Lamento de
Uma Família em Ruínas). É também do que significa ceu-me isto.”
E o leitor acompanha a transfor-
isto, já não sou mórmon. Gosto de
avaliar cada coisa de cada vez, à me-
na sua cabeça, “antiga e grandiosa
como uma catedral”. Chama-se
uma memória centrada num modelo
familiar de uma América rural con- ser educado” mação de Tara de forma dura, parti-
lha inquietações, entende a raiva,
dida que me vou deparado com elas
e evitando visões dogmáticas.”
ípsilon | Sexta-feira 22 Fevereiro 2019 | 21
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Livros
Estrofes & Versos), e Nina Guerra e revolucionário casto e puro disposto do presente volume e que é uma
Ficção Filipe Guerra traduziram História exclusivamente ao sacrifício pelo reelaboração do Evangelho, guiada
dos Sete Enforcados e O Pensamento bem da humanidade. Ele próprio pelo ponto de vista do traidor por
A verdade (ed. Hespéria).
O volume agora publicado pela
afirma: “toda a minha vida tem sido
vivida para os outros, nada para
antonomásia. A narração é colocada
desde o início sob o império de um
é como a morte Antígona colige, por esta ordem, mim”. Ao que a prostituta responde, relativismo indecifrável: “Os ladrões
cinco narrativas ficcionais: As Trevas cínica e furiosamente: “Oh, porque também têm amigos, os bandidos
Um punhado de histórias e Judas Iscariotes (ambas de 1907), O és tão bonzinho? […] Olha que fui têm companheiros, os mentirosos
Governador (1905), No Nevoeiro dada à luz pelo mesmo sítio que tu, têm mulheres a quem dizem a
portentosas contadas (1902) e Os Fantasmas (1904). A de cabeça para a frente!” Mas serve verdade, mas Judas troça dos
por um magnífico narrador. designação contos é meramente também, o referido pormenor, para ladrões do mesmo modo que troça
Mário Santos convencional, podendo falar mais uma vez da “carne dos honestos” (p. 63). Até
considerar-se as três primeiras como amotinada” pelo desejo sexual, o literalmente, o malquisto apóstolo
As Trevas e Outros Contos novelas. Ultrapassando cada uma motivo central de No Nevoeiro. O tem duas caras: “Também a cara de
delas a meia centena de páginas, nosso romântico revolucionário Judas era dupla: de um lado, com o
Leonid Andréev
são, aliás, frequentemente verá ruir naquela noite todas as suas olho negro, perscrutador, era viva,
(Trad. Nina Guerra e Filipe
publicadas em volumes autónomos. convicções, descobre-se estrangeiro, movediça, formando
Guerra)
Antígona As cinco narrativas ficcionais outro. “A verdade é como a morte”, instantaneamente um dédalo de
pertencem, portanto, ao período diz-lhe, escarninha, a prostituta. “A pequenas rugas tortas. Do outro
mmmmm que é geralmente considerado como verdade, qual verdade?” — esperneia lado, o rosto não tinha rugas, era liso
de plena maturidade do escritor, a consciência do prometido herói. e mortiço e, embora esta fosse do
Não obstante a aquela primeira década do século Mas o veneno da dúvida já fez o seu mesmo tamanho que a outra parte,
eventual e relativa XX que consagrou a sua reputação. trabalho. Trabalho que o comissário parecia enorme graças ao olho cego
estranheza que o Difícil de conter em qualquer das da polícia — cujo corpo “balançava muito aberto.” (pp. 65-6) Esta
seu nome possa muitas “escolas” concorrentes do dentro da farda como a gema num duplicidade é duplamente
causar nos leitores período, começando por ser bem ovo não galado” — confirmará pouco produtiva, complexificando
actuais, Leonid acolhido tanto pelo simbolista Béli depois, ao dizer “com ar sério que crescentemente as motivações e a
Andréev quanto pelo realista Gorki, por semelhantes heróis eram estratégia de Judas, e expondo, por
(1871-1919) foi um exemplo, Andréev acabou rejeitado necessários, quanto mais não fosse outro lado, e com quase socrática
escritor bastante e esquecido por quase todos. Muito para os enforcarem” (p. 55). ironia, a mesquinhez, a vaidade e a
popular na Rússia do início do injustamente. Resumidamente, A certa altura, o protagonista de impotência (a incompetência?) dos
século XX, ombreando com diga-se em sua defesa que a prosa As Trevas refere-se aos seus restantes apóstolos. Dir-se-á
Tchékhov, Béli, Blok e Gorki. deste autor — na qual a eloquência companheiros de ideal — adiante: “Traindo Jesus com uma
Particularmente significativa foi a negra de certas imagens vem companheiros que ele, com júbilo mão, Judas fazia tudo para, com a
sua relação com este último, que sacudir liricamente o debate suicida, se prepara para atraiçoar, outra, frustrar os seus próprios
evoluiu de uma inicial cumplicidade encenado de heróicos ou que já atraiçoou, simbólica e planos.” (p. 103) Padecido o
até uma quase total discordância, metafísicos dilemas — não enjeita metaforicamente, pelo menos — sacrifício de Jesus — sacrifício inútil,
política, estética e literária. E se, nenhum recurso. como sendo “inimigos mortais tanto como poderá depreender-se da
após a Revolução de Outubro, Gorki Toda a acção de As Trevas do mundo contra o qual lutavam imprecação de Iscariotes: “O
ganhou um estatuto paradigmático, decorre, no intervalo de uma noite, como do mundo pelo qual sacrifício é sofrimento para um e
Andréev, que sempre fora no quarto de um bordel onde um lutavam”. E remata: “a forca, ou os opróbio para todos. Traidores,
pragmaticamente refractário a anarquista acossado pela polícia trabalhos forçados, ou a loucura traidores, o que fizestes da terra?”
escolas e figurinos, viu-se relegado procura refúgio. A regulamentar esperam cada um deles; não há mais (p. 132) —, Judas acusa os discípulos
pelo emergente poder soviético para unidade de tempo e lugar e o facto nada a esperar — trabalhos forçados, predilectos do Messias de nada
uma quarentena da qual só viria a de a acção recair quase forca, loucura.” Esta ambivalência terem feito para impedir a sua
emergir com a desestalinização dos exclusivamente no diálogo entre o fatalista, esta dualidade sem morte. Pedro e João defendem-se,
anos de 1950. Ficcionista e protagonista e a prostituta sua resolução possível, enigmática e lembrando que “o Mestre proibiu
dramaturgo bem-sucedido (e antagonista criam uma tensão sombria, é recorrente na ficção de matar”. “E também vos proibiu de
também, ocasionalmente, retratista particularmente dramática e teatral. Andréev (e pode, aliás, ajudar a morrer?” — pergunta Judas:
e fotógrafo), Andréev nasceu numa “Terrorista e bombista famoso”, o perceber uma certa orfandade que “Porque estais vivos, vós, e ele
pequena cidade situada cerca de acossado anarquista “aos vinte e seis tinge simultaneamente a vida e a morto?” (p. 133)
200 quilómetros a sudoeste de anos ainda era virgem”. Este obra do autor). Voltamos a Uma radical e insolúvel alienação,
Moscovo. Órfão de pai muito cedo, pormenor ajuda a conformar a encontrá-las na novela Judas um mortal estranhamento de si
estudou Direito, foi cronista judicial, personagem ao molde simbólico do Iscariotes, a mais extensa narrativa mesmo, um fim inevitável (e que,
viajou pela Alemanha e por Itália. aliás, já nem sequer se deseja evitar)
Suicida falhado, morreu na contaminam também a novela O
Finlândia, exilado e na penúria. Governador. Perseguido pela
Em português, a sua recepção recordação do massacre que
pode considerar-se invulgarmente ordenara para pôr termo a uma
temporã, contando-se por várias manifestação de operários — “Era
dezenas os títulos publicados ao como se vivesse numa sala com mil
longo do século passado dos dois portas e, abrisse qual abrisse,
lados do Atlântico. Em traduções recebia-o a mesma imagem imóvel
vertidas, geralmente, ou do francês atrás de cada uma” (p. 138) —, o
ou do inglês. É nessa qualidade que governador de certa cidade desiste
deparamos, entre os tradutores de fugir ao seu destino — ser alvo de
portugueses de Andréev, com o um atentado terrorista — e exila-se
filósofo Agostinho da Silva e com os psicologicamente da família e dos
poetas neo-realistas Egito Gonçalves amigos: “Parecia que, dantes,
e Armindo Rodrigues. Recordaria apenas a educação e os hábitos o
aqui as narrativas O Governador e ligavam não só às pessoas mas
Silêncio, publicadas no Porto em também aos pensamentos; e agora
volumes antológicos editados pela que os hábitos e a educação tinham
histórica Inova na década de 1970, e sido arredados da sua vida, os
O Riso Vermelho, objecto de um pensamentos, de algum modo,
daqueles não menos icónicos haviam desaparecido. Era tão
(hélas!) pequenos volumes da solitário dentro da sua cabeça como
colecção Livro B da Editorial em casa.” (p. 197). Com implacável
Estampa. Só neste século, porém, a fatalismo, o governador da cidade
obra de Andréev começaria a ser fecha-se numa “negra espera sem
transposta directamente da língua fundo”. Torna-se um “cadáver em
russa para a portuguesa. Em 2009, Andréev foi relegado pelo poder soviético para uma quarentena marcha cerimonial à procura do
Monica Cozacenco traduziu os da qual só viria a emergir com a desestalinização dos anos de 1950 túmulo”. Consuma-se em vida a
contos A Flor Pisada e Lázaro (ed. morte anunciada.
22 | ípsilon | Sexta-feira 22 Fevereiro 2019
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também para descrever uma elite encontra vai ser melhor do que concerto. Condicionada à disponibilidade da sala, a oferta é limitada aos primeiros 10 leitores e válida apenas para um
convite por jornal e por leitor. Obrigatória a apresentação do documento de identificação no acto do levantamento.
em ascensão — ou elites, quer aquilo que acabou de ler.
política, social ou económica — ao Inês Pedrosa retrata neste
ípsilon | Sexta-feira 22 Fevereiro 2019 | 23
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Discos
A poesia de Fernando Assis californiano Cass McCombs, ele
Pacheco promove uma aliança Pop que já foi country-rocker de
inquebrável entre a inteligibilidade recorte (mais ou menos) clássico,
do léxico e a rectidão com que se
organiza a frase e se compõe a
Cass McCombs que já foi esteta psicadélico, que
já foi americano em Londres
construção do verso. Manuel com o peso (livremente) inspirado pelos
Gusmão, que assina o posfácio desta clássicos britânicos, que foi
nova edição de A Musa Irregular, e as medidas soulman caminhando entre
falara já, a fechar o volume póstumo
Respiração Assistida (Assírio &
perfeitas assombrações, não pode ter
reencarnado alguém sem
Alvim, 2003), de uma “amizade quaisquer semelhanças com o
entre escrita e leitura”. Por outro O oitavo álbum mostra-o seu eu anterior. É também
lado, tudo se conjuga com a um artesão, com marca verdade que Tip of The Sphere,
assimilação e a recusa do impulso autoral vincada, no sucessor de Mangy Love, álbum
modernista — “É favor não pedirem domínio perfeito da sua editado em 2016, é um disco de
a esta poesia/ que faça o jeito às micro-reencarnações, digamos
alegadas tendências/ do tempo nem Alguém que devolve a vida ao arte. Mário Lopes assim, em que reencontramos,
às vãs experiências/ que sempre a que se habituou ao espartilho Tip Of The Sphere em novas composições, pedaços
deixaram de mão fria.” (p.228) A dos discursos epecializados. Ou daquilo que McCombs foi sendo.
Cass McCombs
firme rejeição de todo o ao culturalismo mais frustrante Anti; distri. PIAS O segredo, aquilo que faz este
contorcionismo do verbo não deve, álbum de uma hora de duração
porém, fazer esquecer que só pode mmmmM uma viagem tão completa e
recusar tão firmemente aquele que sobre si mesma e a sua condição inspirada, é a forma como tudo
antes tiver degustado, ou, pelo nunca constituem fases de “I’ve been nele parece fluir de forma livre e
menos, conhecido — “em 1973 abrandamento, nem deposições reincarnated harmoniosa, qual trabalho de
ponho de parte alguns/ alibis a mortiças, mas rápidos desvios, into this thing / artesão com mão tão treinada e
começar pelo da fealdade própria/ engenhosos atalhos que não That resembles conhecedora que tudo o que dela
que mais me serve e tu soubeste/ repudiam os perigos do caminho. nothing of the nasce parece surgir, sem esforço,
sempre para fingir libertino// tento Uma das palavras que mais former man”. Lá com o peso e as medidas
aprender um jogo/ afinal simples: poderiam ocorrer, perante a poesia vai Cass McCombs, cá está ele, ao perfeitas.
desnudar-me e logo depois um de Fernando Assis Pacheco, é oitavo álbum, a dizer-nos que é Gravado de um fôlego com a
outro/ revestir-me em quatro honestidade. Algo que nos deveria agora outro, guitarra aberta no sua actual banda suporte num
segundos ao cronómetro/ pensava recordar certos versos de Camões: seu movimento circular estúdio em Brooklyn (o Figure 8
eu na minha que se deve à amada/ “Nem me falta na vida honesto encantatório, a voz em tom de de Shahzad Ismaily, baixista que
tudo inclusive o espectáculo íntimo” estudo/ Com longa experiência,/ vigília e o órgão sonhando outras vimos recentemente em Portugal
(p.170) Aqui, como alhures nesta Nem engenho, que aoqui vereis paragens no final de cada enquanto membro dos Ceramic
escrita, as intercalações, a presente,/ Cousas que juntas se compasso. Claro que McCombs, Dogs de Marc Ribot), Tip Of The
insinuação de níveis diferentes de acham raramente.” Mas é o intrigante e fascinante Sphere é um álbum de rock com
registo e presença discursiva, não importante reparar como a cantautor que julgamos planície abrindo-se no horizonte
concorrem para uma modernização aproximação a qualquer exemplo conhecer melhor a cada novo (pedal-steel a colorir o cenário),
aparatosa do que se vai construindo. canónico — e a poesia Assis Pacheco álbum lançado, seria o primeiro é um álbum onde o baladeiro
Mantendo a analogia, não se trataria tem esse movimento — se faz de a avisar-nos do erro decisivo que folk se liberta no fervilhar
de remodelar, muito menos de forma tão fundamental, tão pouco cometemos: nada do que escreve discreto do órgão, é um álbum
decorar a casa, mas de zelar pela mediata. Porque, mesmo quando é autobiográfico, nada dele onde o storyteller canta
sólida robustez de uma residência cita John nDryden, Assis Pacheco encontramos nas palavras que apocalipses pendentes ou
concreta e habitável. Daí que perca nunca é o germanista do seu CV, canta. McCombs fala sempre aventuras de marinheiros e
preponderância o estrito feito mas muito outra coisa — e muita pela voz de alguém e as suas criminosos algures no Hawai,
formal, para passar a assumir outra coisa. Alguém que consegue canções pertencem às deixando ainda espaço para,
centralidade o apelo do ritmo, a devolver a vida ao que se habituou, personagens que encarna em canto transformado em voz
naturalidade com que se procede ao quase só, ao espartilho dos discursos música — assim se vai revelando falada e caixa de ritmos a fazer a
desconjuntar de sequências epecializados. Ou ao culturalismo sem se mostrar sua aparição, cruzar Suicide, Lou
demasiado estáveis. Mas, nestes mais frustrante. Trapaças que esta verdadeiramente. Reed e David Lynch para nos
versos — tomados como simples poesia jamais conhece. É então verdade que o pintar um fresco da América
exemplo —, tudo se torna mais e Fernando Assis Pacheco foi um
mais difícl de prever, de limitar. dos últimos poetas que rimaram,
Porque o todo se vai corroendo por não como quem compõe e faz
tensas contradições. A força decoração, mas por um processo de
resultante destas trocas de energia é precisão rítmica e acerto da fonética
muito menos um projecto e do verso. Os constrangimentos
deliberado de reproduzir o vendaval rimáticos são alavancas, não
do tempo do que uma consequência atoleiros; funcionam como
de uma via muito pessoal, a do aceleradores ou travões para a
autor, para si mesmo e para a sua relação inextricável entre
poética. sonoridade e significado. E desde
Esta escrita convoca uma memóra Alexander Pope que sabemos que “o
activa. Nela encontra lugar uma som deve parecer-nos um eco do
permanência que luta sem nunca sentido” — um verso que bem
depor armas. A expressão deste poderia ser um dos lemas para a
poeta lapida os seus materiais como poesia de Assis Pacheco. Se faz
se fosse necessário adaptar o verso sempre pouco sentido falar de
ao trânsito idiomático. Ao mesmo herdeiros e continuadores, talvez se
tempo que o faz, a poesia de pudessem encontrar vestígios deste
Fernando Assis Pacheco actualiza saber dos sons, da própria rima, do
constantemente os modelos gosto pelo dizer harmonioso, por
clássicos. Nem mesmo um vezes cáustico, a tocar o humor, ou a
coloquialismo como o que encerra o impressão de uma bonomia lúcida,
poema Páscoa — “ao tempo que isto não raro amargurada, em dois
foi” (p.374) — se ressente de contemporâneos como José Luís
qualquer espécie de relaxamento Costa (20 poemas a Anton Webern,
que pusesse em perigo a tensão 2005; Da Madragoa a Meca, 2013;
fundamental que deve percorrer o Canto da Alforreca, 2016) e Sebastião
poema. Paralelamente, os Belfort Cerqueira (O Pequeno Mal,
momentos em que a poesia de 2011; El Segundo, 2015; RSO & SBC, Cass McCombs a liderar uma banda inspiradíssima, agindo em estúdio c
Fenando Assis Pacheco reflecte com Ramiro S. Osório, 2018).
24 | ípsilon | Sexta-feira 22 Fevereiro 2019
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MIKE GHOST
neste preciso momento — “In toca, canta e escreve tudo aquilo
American Canyon / Where Fado e hip-hop Harriet Brown com o que o ouvinte se depara),
Walmart employees and convive, por vezes de forma
costumers / Are one and the same / como sob o signo demasiado conflituosa, com essa
They even built apartments here /
To add a residential coffin to the
se fossem de Prince omnipresente sombra de Prince
(por definição, a sombra, se
bargain”. um só O segundo longa-duração
protege, também retira brilho).
Aquela última que referimos, Mas, ao contrário do que por
American canyon sutra, é, no
Fado e hip-hop embatem de Brown é mais um capítulo vezes se ouve a determinados
contexto de Tip of the Sphere , a de uma obra obsessiva músicos que se dizem
carta fora do baralho — peça sem estrondo pelas mãos “influenciados” por X ou Y,
de Stereossauro. que se advinha talhada
desalinhada para dar mostrando-se tal referência tão
singularidade ao conjunto. No Sem desastre. No entanto, para grandes voos. vaga que passível de substituição
restante, temos Cass McCombs a não há maravilhamento Francisco Noronha por um qualquer outro nome da
liderar uma banda mesma família, aqui, o caso é
inspiradíssima, agindo em ou deslumbramento (muito) mais sério: apertando o
Mall of Fortune
estúdio como o vemos em palco, perante esta união. play de Mall of Fortune,
Harriet Brown
ou seja, deixando as canções Gonçalo Frota Innovative Leisure rapidamente se percebe como o
cumprirem-se no tempo e no americano escutou — mais do que
modo que estas exigem: e, assim, Bairro da Ponte mmmmm isso: estudou — aturadamente o
eis os quase oito minutos da som de Prince, de tal forma ele
Stereossauro
abertura, “I followed the river NorteSul; Valentim de Carvalho Defeito, está entranhado em praticamente
south to what”, e os mais de dez obviamente, tudo o que se lhe ouve. Da
da despedida, “Rounder”, que mmmmm nunca poderia vulnerabilidade sexy que imprime
evoluirá até que a Americana se ser: a profunda aos falsetes às modulações
transforme em empolgante Mais tarde ou influência de distintas nos graves (ou
viagem jazzy iluminada a Fender mais cedo os Prince em toda a simplesmente, no modo
Rhodes. caminhos tinham Stereossauro cumpriu com proposta do californiano de repentino como, de um momento
Imediatamente antes de de se cruzar. E é rigor e profissionalismo uma ascendência filipina Harriet em que está a puxar pelos
Rounder está Tying loose ends, um descanso tarefa exigente Brown, em tempos estudante de agudos, transita para um registo
balada belíssima com harmónica saber que se arquitectura, é feitio que o próprio grave falado, quase rappado), das
perdida lá ao longe, ouvida em cruzaram pela mão de assume despudoradamente guitarras eléctricas ora funky, ora
surdina sob o diálogo que se Stereossauro, que lhes torceu os É também irresistível ser quando se afirma filho do génio rockeiras que assomem
estabelece entre a guitarra e um destinos até fado e hip-hop apanhado em cheio pelo Nunca dos saltos altos e de Sade. Algo inesperadamente a fechar uma
saxofone soprado como brisa embaterem sem estrondo. Sem pares de Slow J, Papillon e que, já pressentível em Contact, malha ao aventureirismo na
quente. Cass McCombs fala de estrondo naquilo que isso tem de Plutónio, ou pelo Código da rua de LP de 2017 (roxa era a capa, pois experimentação de sons e
um velho álbum de fotografias e positivo e de negativo. Ou seja, Ace, como é difícil resistir a Ana claro…) que sucedeu à estreia em arranjos, enfim, do próprio
pergunta, “Is there anyone still não há desastre nenhum a Moura num registo que parece New Era EP (2013), sai agora timbre (!) da sua vocalização a
left who can tell me / who all these acampar em Bairro da Ponte, o DJ tomar António Variações por reforçado de Mall of Fortune, cuja todo o seu mantra
people are?”. Cass McCombs não e produtor nunca se espalha ao modelo em Depressa demais, marca vincadamente autoral, ultra-romântico (e
lhes descobre os nomes. “Tying comprido, não incorre em opções acompanhada por DJ Ride, ou laboriosa (multi-instrumentalista, “androgenizado”) — tudo nos
up loose ends, before I gotta go”. É que soam forçadas ou descabidas, Gisela João entregar-se a Vento e é Brown quem produz, arranja, situa, de facto, no património e
isso que faz, liga pontas soltas — faz com que as vozes de Camané, Capicua a espraiar-se por cima da
das tablas, violino e piano Ana Moura, Gisela João ou Carlos guitarra portuguesa até desaguar
encantados de Real life” ao do Carmo pareçam tão lógicas na voz de Amália em Duas casas.
country-rock de Sleeping quando deitadas sobre estes Só que a sensação é a de que
volcanoes —, antes de seguir em instrumentais quanto as Stereossauro, talvez por excesso
frente. Não é uma reencarnação, prestações de NBC, Slow J, de talento, saltou um degrau. Não
certamente. É um artesão com Capicua ou Ace. O que, permitiu à música acolher a
marca autoral vincada no convenhamos, não é coisa pouca. fricção entre géneros, limando-a
domínio perfeito da sua arte. Por outro lado, no entanto, não até fado e hip-hop encaixarem
Nunca deixou de ser um prazer há maravilhamento ou sem dificuldade.
reencontrá-lo. deslumbramento perante esta Seguindo uma busca pelo
SILVIA GRAV
união, como se Stereossauro encontro de tradição e
tivesse cumprido com absoluto modernidade, Stereossauro mata
rigor e profissionalismo uma tarefa com toda a limpeza um interdito
exigente — que envolvia partir do que persistia na música
valiosíssimo acervo da Valentim de portuguesa e em que ninguém se
Carvalho respeitante a Amália atrevia a pegar pela delicadeza e
Rodrigues e Carlos Paredes —, mas particularidade do que a proposta
em que o casamento parece tão envolvia. E fá-lo com uma tal
imaculado quanto a mera desenvoltura que ninguém se
formalidade legal de uma ligação atreverá a partir de hoje a afirmar
antiga. Parece contradição, é que fado e hip-hop não
verdade: porque o casamento não combinam, que são linguagens
é antigo e Stereossauro o faz soar inconciliáveis ou que uma música
tão natural que parece algo com nascida nos playgrounds
que sempre crescemos. Camané e de Nova Iorque não cabe na
Carlos do Carmo deslizam sobre estreiteza das ruas dos bairros
estes temas como se a sua lisboetas que testemunharam o
aprendizagem nas casas de fados parto do fado.
tivesse sido feita tanto a ouvir os Tendo acertado à primeira na
maiores intérpretes do género, forma de unir estas duas músicas,
quanto os melhores guitarristas e é possível que a única pecha de
beatmakers, a tocarem lado a lado. Bairro da Ponte seja, afinal, não se
Só que essa ausência de surpresa libertar mais desses dois legados e
rouba-nos o arrepio de ouvir arriscar, como acontece em
(naqueles que são dois dos Arleking (tema com Rui Reininho)
melhores temas de Bairro da ou em Pequenino (com Holly),
Ponte) Camané a cantar Flor de seguir uma música menos presa à
maracujá ou Carlos do Carmo encruzilhada que pretende
acompanhado por Legendary explorar. Fazer uma música que Um nome ainda marginal (demasiado), tem tudo para ser um dos
o como o vemos em palco Tigerman e Ricardo Gordo a vai sem precisar de dizer criadores mais estimulantes dos próximos anos
recriar o seu Cacilheiro. ao que vem.
ípsilon | Sexta-feira 22 Fevereiro 2019 | 25
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BRUNO LOPES
Exposições
de The Artist. Se bem que
maculado por uma indisfarçável
overproduction (demasiados,
desnecessários, arranjos e ideias
na mesma faixa), Mall of Fortune
revela-se um conjunto de canções
muitíssimo sólido, coeso, embora
até acabe talvez por ser esse um
dos seus pontos menos positivos:
um resultado-de-conjunto
demasiado regular, sem picos,
carente de momentos catchy ou
orelhudos, ou de um single mais
forte — enfim, nada que nos
agarre pelos colarinhos, nos
interpele desesperadamente, que
nos vicie (ironicamente, um
sossego que nenhum trabalho de
Prince jamais consente ao
ouvinte). Por essa razão é que
aqui não se encontra nenhuma
canção do nível de Mother,
Atlantis ou Obsession, todas
inscritas em Contact (as que disso
mais se aproximam talvez sejam A referência ao real é incontestável e, no entanto, elusiva
Shower Up, Saddle Up,
Outerworld, Method, Driver’s
Seat), outra forma de dizer que, cores – como não reparar no azul sombra estende-se não apenas ao
de facto, e com excepções Pintar com a luz de Projecção ou nas tonalidades de soalho de uma sala (representado),
pontuais, o LP anterior acaba por amarelo, laranja e vermelho que diminuindo a sua luminosidade,
nos parecer, em termos globais, Na sua pintura, Isabel Simões contornam a sombra de Eclipse? mas também ao limite da tela,
mais interessante do que este Uma maciez, uma lisura, eis o que, antes de ser contido pela moldura.
disco — o que diz muito, portanto,
materializa o movimento da colhendo a luz da fotografia, esta O interior da pintura permanece
do quanto de prometedor, luz sobre as coisas. José pintura sugere. Veja-se a série fechado, mas não sem uma tensão
fascinante mesmo, nele já existia. Marmeleira Meteorologia, em que se com o espaço físico em que se
E a isso não será alheio o facto de contemplam as traseiras de um movimenta o espectador, com o
que a influência de Prince, Humor prédio, com as suas janelas, seu corpo.
embora já então latente, fosse escadas, vasos de plantas, Também entre tipos de imagens,
Isabel Simões
bem menos intensa, com isso andaimes. A referência ao real (um as fronteiras ameaçam dissolver-se.
permitindo a emergência de um mmmmm real que é o da vida da artista, na Certas pinturas, parecem, por
som, de uma voz, próprios. sua actividade solitária e privada) é instantes, imagens fotográficas antes
Que isso não nos faça de perder LISBOA: Galeria Bruno Múrias, Rua Capitão incontestável e, no entanto, de a visão, concentrada na
Leitão 10-16. Até 9 de Março
vista, porém, o que de elusiva. O que se vê é, também, superfície pictórica, vir desfazer o
extremamente valioso sobrevive uma composição vibrante de equívoco (como se por aqui
deste disco, e que se pode Quem, sob a claridade do dia, visitar linhas, de cores, de manchas, de permanecesse outra sombra, a da
resumir nesta ideia de que, Humor, a mais recente exposição de atmosferas em que o azul do céu se fotografia). Outra vezes, o
efectivamente, nenhuma má Isabel Simões, pode não reparar torna água ou chão, em que o reconhecimento tarda ou
canção se vislumbra nesta numa série de quadrinhos exterior se torna interior, em que simplesmente fica suspenso (como
burilada peça de R&B, funk e intitulados Ecrãs. Colocados no as coisas surgem viradas, em Eclipse ou Contorno do ar) e
(neo)soul (mas também de interior da vitrine da Galeria Bruno literalmente, do avesso. lentamente, vai sendo substituído
electro, o de Holy Place ou Paper), Múrias. quase no topo da superfície, Isabel Simões permite-se e pelo encantamento que a
mais devedora dos 90s do que passam despercebidos. Do interior, permite-nos esse recuo face à experiência pictórica por si só
Contact era dos 80s. Por aí se contudo, revelam-se, iluminam-se. representação, para que se instale proporciona. Em “Projecção”
posicionando, sonicamente São diapositivos que, banhados o gozo e a alegria da percepção das imobiliza-se o bruxulear da sombra
falando, num lugar à parte: nem pelos raios solares, revindicam o cores e das formas, sentimentos sobre o canto de uma porta ou talvez
próximo do R&B e trap palco da sua aparição. Cada um semelhantes aos que o narrador de de uma janela. Sombra de uma
contemporâneos, nem revivalista contém uma imagem de coisas Em Busca do Tempo Perdido planta que se desdobra, que se
do R&B dos anos 90 (movimento distintas: objectos, plantas, lugares, exprime quando descreve a parte, pelo pincel, em três outras
actualmente em força e, em certa superfícies que a artista registou pintura do sol sobre as gaivotas no sombras sobre o azul, o branco e
medida, “de reacção” à primeira fotograficamente. Imagens que só mar da imaginária Balbec. Se a arte bege. Um teatro de cores banhado
das tendências referidas). Eis existem quando o espectador, nos deixa reconhecer contornos, por uma luz que a artista reproduziu
Brown, alguém que, mais do que atraído pelo brilho que emitem, traços, volumes, espaços, coisas, é e viu reproduzida e na qual a
“orgulhosamente só”, levanta o olhar. A uma distância, para que, diante deles, nos contemplação e o desejo de entrar,
orgulhosamente singular — ele num intervalo: contidas pelos possamos surpreender com a instigado pelo efeito de trompe-l’oeil,
que do one-man-show ao vivo slides, são, também, objectos de um transfiguração operada pela se confundem. Isabel Simões tem
(cantando e tocando múltiplos processo de trabalho, que se pintura, pelos gestos de pintar e uma predilecção por espaços, sítios,
instrumentos, recusando sempre declina, que se expande nas colocar no espaço as imagens que coisas, objectos, entradas, janelas,
o recurso aos bem mais práticos paredes, em pinturas. A sua desse trabalho nasceram. Conjunto passagens. Fornecem-lhes os
laptop com que tanta respeitável autonomia é, portanto, esquiva, de variações independentes de motivos com os quais constrói um
gente se apresenta em público) ambígua, tímida. cromatismos, de impressões, universo visual e formal ao qual traz
passou, actualmente, para uma Com a fotografia, a artista viu, Meteorologia pode ser concebida o espectador entre o
bem apetrechada banda. admirou-se sobre o que viu, tomou não apenas como uma série de reconhecimento e o puro deleite
Diríamos, por isso, que, um ponto de vista, compôs, pinturas, mas de objectos sobre os com a luz e a cor, de um modo que
libertando-se da excessiva atenta, sensível à reflexão da luz quais alguém solidificou, se torna físico, háptico sem deixar
preponderância de Prince (“A nas cores, nas formas, nos materializou o movimento da luz de ser óptico. Veja-se Contorno de
‘Sign O’ The Times’ for our times”, volumes, nas coisas. E pintou a sobre as coisas. Ar, em que a vontade de dizermos o
pode ler-se na nota de partir dessas imagens, Entre a pintura e o seu princípio que representa (uma paisagem?)
apresentação do disco…), Brown, observando-as. As pinturas (o que Isabel Simões viu e guardou soçobra face à sua presença
hoje um nome ainda marginal remetem para algo que lhes é com a fotografia), estão aberturas, material, face à incandescência que
(demasiado), tem tudo para ser exterior (o mundo), sem deixarem entradas, fendas das quais o toma conta da superfície. Uma
uma das vozes, dos sons, dos de ser pintura. Estão lá as espectador se abeira. Note-se, por pintura atravessada pela claridade
criadores mais estimulantes dos pinceladas, a densidade exemplo, a única tela que, como as imagens de Ecrãs que,
próximos anos — vejamos o que a epidérmica e fluída da tinta, a encostada sobre a parede, toca o chegada à noite, são iluminadas pela
fortune lhe reserva. força cheia, simples e suave das chão, Teatro de sombras: o negro da electricidade da galeria.
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Cinema
O “povo
de Trump”
O contacto com a respiração
específica de uma cidade do
interior americano. Luís
Miguel Oliveira
Monrovia, Indiana
De Frederick Wiseman
mmmmm
Nos últimos dez anos estrearam em
Portugal três filmes de Frederick
Wiseman, mas curiosamente todos
eles, filmados na Europa (La Danse
e Crazy Horse em Paris, National
Gallery em Londres), configuram
uma relativa “anomalia” na obra de
um cineasta que anda há meio
século a filmar a América, a Uma América rural, tradicionalista, maioritariamente branca, tendencialmente envelhecida
decompô-la em parcelas, a
observar o funcionamento das suas
instituições, no mais lato sentido senhoras, o veterinário, o bar e o momento temporal. Os habitantes das coisas mais brilhantes que
do termo. Nesse sentido, o restaurante, o armeiro (claro!) e, de Monrovia correspondem, bem Wiseman já filmou corresponde,
Monrovia, Indiana, que agora até, nas mais bizarras sequências ou mal, ao esteréotipo associado em pleno, ao seu método e às suas
estreia, está muito mais perto da (e também bastante divertidas, ao “povo de Trump”: uma preocupações.
“quintessência” wisemaniana do pelo aspecto deslocado de tudo América rural, tradicionalista,
que qualquer um desses. aquilo), as cerimónias da loja maioritariamente branca (é muito
E estamos, então, em plena maçónica local. Tudo raro ver um não-caucasiano nas Jacques
América rural, numa cidadezinha
do Indiana com pouco mais de
aparentemente anódino, ou tudo
realmente anódino, mas — e
imagens do filme),
tendencialmente envelhecida (a
Audiard tenta
mil habitantes. Os planos iniciais,
espécie de establishing shots
sempre sem qualquer espécie de
comentário ou voz off — um
maior parte das pessoas em quem
a câmara de Wiseman se foca têm
ser americano
perfeitamente típicos de mergulho eficaz no dia a dia de já uma certa idade). Mas, ao na América
Wiseman, dão o ambiente: uma cidade, uma familiarização mesmo tempo, e isso é quase o
campos de milho, tractores, com os rostos, as conversas, as outro leitmotiv para lá das O cineasta francês em estilo
vacas, porcos, e os homens e preocupações dos seus imagens da agricultura, Wiseman
“genérico”, sem nada a
mulheres que trabalham nessas habitantes. Não seremos os mais está sempre a voltar às reuniões
actividades agro-pecuárias. Só aptos a julgar o carácter do conselho municipal da cidade, acrescentar ao western. Luís
depois disso, que sugere “exemplar” da cidade escolhida onde se discutem os problemas Miguel Oliveira
explicitamente o fundamento por Wiseman, mas o certo é que o locais e se estabelecem projectos Os Irmãos Sisters
económico da cidade, se chega contacto com a respiração prioritários (instalação de bancos
The Sisters Brothers
aos primeiros planos urbanos — específica desta cidade nos de jardim públicos, abertura de
De Jacques Audiard
mas as imagens dessas fornece um retrato do interior estradas, planeamento urbano, Com Joaquin Phoenix, John C.
actividades voltarão americano que valerá por mais do etc). É um velho fascínio de Reilly, Jake Gyllenhaal
repetidamente, como pontuação que apenas o caso particular de Wiseman, que já o filmou de
entre sequências, mas também a Monrovia. diversas maneiras: a dinâmica do mmmmm
sugerirem fortemente uma rotina Filmado nos primeiros meses processo democrático, o diálogo,
imutável, um “tempo sem de 2017, portanto nos primeiros as negociações. A atenção a este Ver Jacques Audiard a filmar um
tempo”, que de algum modo se após a tomada de posse de Donald aspecto é tão central no filme que western na América é coisa que
liga ao tom geral, se não mesmo Trump, tem-se tido a tentação — não pode, obviamente, ser um teríamos como bastante
ao sentido geral, do filme. Depois, nada errónea, porque é o tipo de acaso — e por contraste com o improvável, mas o facto é que
Wiseman decompõe a vida da relação com a “actualidade” que estilo autocrático e fanfarrão de aconteceu, é este Os Irmãos Sisters.
cidade: reuniões na igreja, o Wiseman mais do que uma vez Trump, o “comentário” é claro e Talvez ainda mais estranho,
liceu, o supermercado, a praticou — de ver Monrovia, bastante irónico: é como se Audiard aparece aqui como
barbearia, o cabeleireiro de Indiana em relação com esse Wiseman usasse o “povo de realizador “sob contracto”, porque
Trump” para fazer o elogio das a alma mater do projecto é John C.
coisas que o novel presidente Reilly, que produz o filme, é um
AS ESTRELAS Jorge
Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara
mais abomina (democracia, dos seus protagonistas, e
A
televisão teve o seu um fraco impacto comparando
verdadeiro começo nos com o material empolgante e de
EUA no final da Segunda alta qualidade acumulado ao longo
Guerra Mundial, já que dos anos pela competitiva indústria
muitos jovens soldados se cinematográfica.
encontravam em Nova Ocorreu, todavia, uma mudança
Iorque, Chicago e noutras cidades no pensamento devido à chegada
de maiores dimensões. Muitos de novos talentos no período
destes militares que tinham pós-guerra. Os novos realizadores
participado nas unidades artísticas de televisão, como Arthur Penn,
do Exército, incluindo nas recentemente dispensado das
companhias de teatro itinerantes, e Forças Armadas, lembraram-se de
até nos corpos de transmissões, que haviam conhecido jovens
estavam ansiosos para encontrar escritores nos serviços que tinham
emprego na nova indústria. Os que integrado. Na nova indústria,
vieram para Nova Iorque muitos profissionais pensavam não
encontraram um lugar ter nada a perder ao deixar estes
especialmente fértil para iniciar a jovens dramaturgos
carreira. Também o teatro recém-dispensados tentarem a sua
nova-iorquino estava sorte e escreverem sobre o que
resplandecente, com ótimos atores lhes ocorresse. Destes grandes
que trabalhavam sobretudo à escritores em potência constavam
noite, estando, por isso, nomes como Paddy Chayefsky, JP
disponíveis para ensaiar de manhã Miller, Gore Vidal e Rod Serling.
e à tarde, guardando os domingos Contemporâneos e íntimos, os
livres para as rodagens. Havia resultados dos seus trabalhos
vários estúdios sediados na cidade, incendiaram este novo meio de
um deles, famoso, localizava-se no comunicação. Assim começa a Era
topo da Grand Central Station; Dourada da Televisão em Direto.
outro, o DuMont, no grande Sidney Lumet contou-me que
armazém da Wanamaker, na 9th quando foi recrutado do teatro
Street e na Broadway. para o programa Danger, da CBS,
No início, o trabalho dificilmente conheceu um realizador de
resultava em bom material. A televisão empolgante, de quem
poderosa indústria viria a ser assistente, tendo ele
cinematográfica, atenta a esta nova próprio como assistente um novato
forma de entretenimento, era chamado John Frankenheimer.
resistente a qualquer cooperação, Certo dia, o realizador do
a menos que lhe fosse permitida a programa, um profissional de
compra ou o controlo desta nova passagem pela televisão, disse-lhes:
forma artística. Durante mais de “Bem, rapazes, vou a uma audição
quarenta anos, os estúdios para o novo musical na Broadway.”
cinematográficos adaptaram e Esse homem era Yul Brynner, que
compraram todos os materiais viria a desempenhar um papel
literários disponíveis — romances, central em O Rei e Eu, permitindo
histórias e peças, bem como todos que Lumet fosse promovido a
NANCY MORAN/SYGMA VIA GETTY IMAGES
Cidade
Aberta
TUDO A POSTOS
PARA RECEBER
OS CONVIDADOS
NA BATCAVERNA:
BOB KANE,
FRANK MILLER,
GREG CAPULLO,
SCOTT SNYDER…
E D IÇ Ã O
E M C A PA D U R A
E IN É D ITA
E M P O RT U G U Ê S +1ÀS1,Q9UIN0TA€S
LICO
COM O PÚB
C OL EC ÇÃO BATM A N 8 0 A N O S
PARA COMEMORAR OS 80 ANOS DO MAIS MÍTICO SUPER-HERÓI DA BD DE TODOS OS TEMPOS, O MAYOR DE GOTHAM CITY,
O PÚBLICO E A LEVOIR TÊM A HONRA DE O CONVIDAR PARA UMA FESTA À ALTURA DAS TREVAS. SÃO 10 LIVROS INÉDITOS EM PORTUGUÊS,
EM CAPA DURA, QUE REÚNEM OS AUTORES DAS MAIS MEMORÁVEIS HISTÓRIAS DO HOMEM-MORCEGO. TODAS AS QUINTAS, COM O PÚBLICO.
Colecção de 10 títulos. PVP unitário 11,90€. Preço total da colecção 119€. Periodicidade semanal às quintas-feiras, entre 21 de Fevereiro e 25 de Abril de 2019. Limitado ao stock existente.
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