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JESUS CRISTO
NUNCA EXISTIU
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P UBLICADO ORIGINALMENTE COM O
PSEUDÔNIMO “M ILESBO ”
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* EMÍLIO BOSSI *
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JESUS CRISTO
NUNCA EXISTIU
***
P UBLICADO ORIGINALMENTE COM O
PSEUDÔNIMO “M ILESBO ”
***
(T R A D U Ç Ã O D E A U G U S T O D E C A S T R O – 1900)
E DI T O R A J O Ã O C A R NE I R O - L I S B OA
(T R A D U ÇÃ O D E T H O M A Z D A F O N S E C A – 1909)
A L M AN A C H E N C YC L O P E DI C O I L US T RA D O - L I SB O A
3
E MÍLIO BOSSI
(1870 - 1920)
4
TEMA
6
PERFIL DO AUTOR
8
INTRODUÇÃO
13
Primeira Parte
Cristo na
História
14
CAPÍTULO I
O SILÊNCIO DA HISTÓRIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE CRISTO
10
Emilio Ferriére, no seu excelente livro
Os apóstolos demonstra a impossibili-
dade de S. Pedro ter estado em Roma,
impossibilidade esta confirmada pelo si-
lêncio dos mais antigos escritores da
Igreja, até á segunda metade do século
IV. Porém, o autor comete o equívoco
de tomar como fonte histórica os Atos
dos Apóstolos, escolhendo as poucas
notas que estes nos deixaram, como se
fossem notícias verdadeiras. A simples
consideração de que nada do que nar-
ram os Atos está conforme com qual-
quer dos autores profanos deveria bastar
para nos pôr em guarda a respeito desta
fonte, que não pertence de modo algum
à Bíblia porque, até na compilação dos
livros canônicos da Bíblia, a Igreja teve
o astucioso cuidado de se descartar de
todos os documentos que falavam de
Cristo, Maria ou dos Apóstolos que pu-
dessem ser facilmente impugnados pela
crítica histórica, evitando, assim, o peri-
go de se pô-lo a descoberto desde o seu
princípio.
20
CAPÍTULO II
AS SUPOSTAS PROVAS HISTÓRICAS DA EXISTÊNCIA DE CRISTO
A história não só ignora Cris- não ser correta mas somente pro-
to, não só prova que os autores vável, muito provável, mesmo
profanos que dele falaram foram porque, Serápis é certamente o
neste ponto falsificados, mas até, deus que tem mais analogias
existem outras provas históricas com Cristo.
que demonstram a sua não exis- No nosso entender, Ganeval
tência. não desenvolveu adequadamente
Chamamos de históricas a es- a sua tese. Foi infeliz ao lhe in-
tas provas porque são fatos verí- troduzir elementos análogos aos
dicos, certos e positivos, porque da mitologia dos outros povos
são testemunhos concretos e vá- orientais. Deveria ter percebido
lidos de escritores e de determi- que, apesar de certas expressões
nadas escolas, ao passo que as simbólicas referentes à cópula,
provas que apresentaremos a se- como Serápis, Cristo não é tanto
guir, ainda que valiosas, não têm a encarnação alegórica do Phal-
o mesmo valor histórico por se- lus como o é do Sol.
rem deduções exegéticas da bí- Entretanto, façamos-lhe a de-
blia e da mitologia comparada, vida justiça, reconhecendo que
extraídas de documentos própri- descobriu a verdade da lenda de
os da fé cristã e da história das Cristo e dos relatos da história,
crenças humanas. quando é certo que, antes dele,
Ganeval reuniu grande núme- só Dupuis e Volney abordaram a
ro dessas provas na sua obra Je- tese da mitologia comparada.
sus, Perante a História, Nunca Existiu, Entretanto, as provas se acumu-
excelente pela sua convicção e lam, e os recentes trabalhos con-
séria pelo seu propósito, obra vergem todos para a demonstra-
que merecia melhor sorte apesar ção definitiva desta verdade.
das suas repetições provenientes As provas históricas contra a
da falta de sistematização e da existência de Cristo provém dos
unilateralidade da tese que vê em hebreus, dos pagãos e até de al-
Cristo uma transformação pura e guns cristãos primitivos e padres
simples de Serápis, tese que po- da Igreja. Parecerá estranho, mas
derá ser justa mas, por falta de é assim, como veremos.
documentação suficiente, pode
27
O hebreu alexandrino Fílon, duas vezes no tempo de Augusto
no seu livro sobre os terapeutas, e uma terceira no tempo de Tibé-
relata que estes viviam como rio, no ano 19 da nossa era.
verdadeiros cristãos, que abando- Estas expulsões desmentem
naram bens e família para se de- implicitamente a existência de
dicarem ao ascetismo, que ti- Jesus, pois tiveram lugar antes de
nham livros religiosos e seguiam se falar do nome cristão, referin-
as máximas de seus pais. do-se evidentemente à supersti-
Eusébio, na sua História, (liv. ção judaico egípcia - que se con-
II, cap. X e XVII) confirma isso funde com o cristianismo - nas-
afirmando que os livros de que cido da fusão do judaísmo com o
fala Fílon eram os Evangelhos e orientalismo egípcio, com vestí-
os escritos dos Apóstolos, e de- gios muito próximos do neopla-
clara que os terapeutas citados tonismo alexandrino 23.
por Fílon são os cristãos solitári- Outro padre da Igreja, S.
os.22 Epifânio, confirma as palavras
O que se conclui destes docu- de Fílon e de Eusébio. Segundo
mentos é que o cristianismo é ele, os terapeutas do Egito cita-
muito anterior a Fílon. Portanto, dos por Fílon, que habitavam
se os Evangelhos e os escritos junto do lago Mareótides, são os
dos Apóstolos já existiam antes cristãos24 que tinham o seu Evan-
de Fílon, e se Fílon nasceu 25 ou gelho e os seus Apóstolos.
30 anos antes de Cristo, vê-se Fílon falou dos cristãos, como
logo que a existência dos cristãos sendo muito anteriores a si pró-
é anterior a Cristo. prio, atribuindo-lhes um Evange-
E isto se confirma pelo fato lho e vários Apóstolos.
dos judeus e egípcios, que for- Isto exclui absolutamente a
mavam uma única superstição – existência de Cristo, pois este te-
os cristãos, no dizer de Tácito – ria nascido quando Fílon já con-
terem sido expulsos de Roma
23
Não é exagero dizer que não existia
22
Alfred Maury, no estudo da história do ainda a palavra cristão quando já existia
começo do cristianismo contido em seu a superstição judaico cristã. De fato, o
livro Crenças e Lendas da Antiguidade, cristianismo existiu algum tempo antes
chama isso de uma má interpretação de do seu nome. Este só foi elaborado e cri-
Eusébio. Mas não explica as razões. ado muito depois, pelo processo de dife-
Enquanto que ele próprio, algumas renciação.
24
linhas antes, cita Filon entre aqueles que S. Epifânio, Cont. er., p.120. In Gane-
têm servido de guia para Eusebio. val.
28
tava 25 a 30 anos, e Fílon não Evangelhos que logo se atribuí-
poderia esquecê-lo já que se ocu- ram a Cristo.
pava dos cristãos. Não faltou também um falsifi-
Além disso, sabe-se que os cador cristão que ousou dizer a
Evangelhos atuais não aparece- Orígenes que, no seu Evangelho
ram senão muito tempo depois sobre o Deus Bom, Fílon falara
de Cristo, de modo que não pode de Jesus sem escrever o seu
ser a eles que Fílon alude falando nome 26.
dos livros (os Evangelhos, se- E se este Evangelho de Fílon
gundo Eusébio) e dos terapeutas acerca do Deus Serápis, Evange-
(os cristãos, segundo Epifânio). lho um século anterior ao dos
O testemunho de Fílon contra a cristãos, era essencialmente se-
existência de Cristo é tanto mais melhante aos que depois vieram
formidável quanto o mesmo Fí- a ser os Evangelhos cristãos, fi-
lon contribuiu intensamente para camos na dúvida sobre se ele
a formação do cristianismo25. quis fazer crer, falando de Será-
Fócio opina que é dele que pis, o Deus morto e ressuscitado
procede a linguagem histórica da do Egito, que se referira a Cristo
Escritura. Ainda mais: Fílon es- (ainda que o falsificador diga:
crevera um tratado, um verdadei- sem o nomeá-lo).
ro Evangelho acerca do Deus Logo, temos de reconhecer
Bom (Serápis) – livro que foi que Fílon foi um dos fundadores
destruído – e cujas alegorias de- dessa crença que depois se con-
viam ser tão semelhantes às dos verteu em cristianismo, que es-
25
Nota da segunda edição. Parece haver creveu um Evangelho mais tarde
aqui uma contradição, visto termos afir- atribuído a Jesus, que Fílon não
mado que o Cristianismo é anterior a Fí-
26
lon, e dizermos mais adiante que foi ele Eis a passagem de Orígenes interpola-
o seu principal fundador. Se entender- da: "No livro III de sua obra Sobre o
mos que a multiplicidade de crenças que Deus Bom, Filon escreve um episódio
formam uma doutrina, uma fé, um siste- alegórico sobre Jesus, ainda que não
ma complexo de dogmas, máximas e ri- citando seu nome” (Contra Celso). Ga-
tos é produto da colaboração de varias neval demonstra que o nome de Jesus
gerações, de vários séculos e de muitos foi interpolado na obra de Orígenes. Se
sábios, até que encontre o seu precípuo Fílon tivesse escrito sobre Jesus, citaria
expositor, este tem direito a ser conside- a ele e não a Ágatos, que era o deus Se-
rado o seu fundador. Assim, pode dizer- rápis. A falsificação é tanto mais eviden-
se que Marx é o fundador do socialismo, te quanto é certo que Fílon e Orígenes
embora. este já existisse séculos antes, nem conheceram nem nunca falaram de
em vias de formação. Jesus.
29
conheceu e nem citou em seus seus Evangelhos e os seus Após-
trabalhos. tolos; que estes Terapeutas eram
Posto isto, o silêncio de Fílon os cristãos primitivos, e segundo
acerca de Jesus não só prova que Eusébio e Epifânio, existiram
este nunca existiu, como autoriza muito antes de Cristo e, enfim,
e legitima a hipótese – que no que o mesmo Cristo nunca exis-
desenvolver deste trabalho será tiu.
corroborada por outras provas 27 – Pondo de lado as inúmeras
de que Fílon foi o principal fun- provas que Fílon nos fornece29,
dador do cristianismo. vejamos as que nos dão cristãos
Os seus copiadores não fize- autênticos e de valor perante a
ram mais do que introduzir o Igreja – S. Clemente Alexandri-
nome de Jesus em lugar do de no e Orígenes – cujos testemu-
Serápis, substituindo o Deus nhos são tanto mais concluden-
Bom dos egípcios por outro Deus tes, quanto é certo terem contri-
morto e ressuscitado, que é Je- buído poderosamente para a di-
sus28. fusão do cristianismo.
Em qualquer dos casos, fica S. Clemente Alexandrino e
evidente que Fílon escreveu um Orígenes, este último falecido no
Evangelho sobre Serápis, o qual ano 254, negam a encarnação, e,
logo pôde adaptar-se a Jesus, por conseguinte, a existência de
donde, segundo Fócio, se deriva- Cristo.
ram os Evangelhos posteriores. É Assim se depreende da análise
igualmente certo que Fílon des- feita pelo patriarca Fócio que, fa-
creveu os Terapeutas como mui- lando do livro das Disputas de S.
to anteriores a Cristo, tendo já os
29
Dide, na obra já citada, põe em desta-
27
Veja-se, Parte IV, Cap. II. que um diálogo com Trifon, de Justino
28
Um eloquente testemunho citado por mártir, no qual o hebreu Trifon nega a
Ganeval para denunciar a origem egíp- existência e a aparição de Cristo sobre a
cia dos Evangelhos está nas alegorias do terra, dizendo: se Jesus nasceu, em al-
jumento e dos porcos. Especialmente gum ponto da terra, esse ponto é com-
deve se notar a parábola do filho pródi- pletamente desconhecido. Faz notar que
go, que se faz guardador de porcos, e o Celso, cuja obra foi destruída, não nega
milagre dos demônios arrojados dos a existência de Cristo. Celso, porém, que
possessos para os porcos. Tanto um viveu no século II não cuidou de tal as-
como o outro destes episódios estão to- sunto, visto que a sua tese era outra, e
talmente deslocados na Judeia, mas não que esta se limitou a refutar o cristianis-
no Egito, onde o porco era a imagem da mo, valendo-se para isso dos próprios li-
dissolução e símbolo do demônio. vros da nova religião.
30
Clemente, afirma que nele o au- zida como as projeções dos raios
tor declarara que Logos, o Verbo, do Sol.
nunca encarnara (p. 286, in Ga- Como se vê, as três opiniões
neval, c. II e III) e, analisando os concordam em negar a existência
quatro livros dos Princípios, de de Cristo. E trata-se de santos e
Orígenes, mostra-nos que este teólogos célebres, insuspeitos de
falava de Cristo segundo a lenda aversão contra o cristianismo, do
e que, a respeito da encarnação qual foram os principais e mais
do Salvador, opinava que o mes- autorizados propagadores.
mo Espírito se encontrava em
Cita ainda Ganeval, apoiando-
Moisés, nos profetas e nos após-
se em Fócio, as opiniões de
tolos, o que leva Fócio a declarar
Eunomius, Agápio, Carmim, Eu-
escandalizado que neste livro
lógio e outros cristãos primiti-
Orígenes escreveu muitas blasfê-
vos, que todos eles formaram do
mias30.
Cresto um conceito que exclui a
A nós só importa constatar que sua existência material e corpó-
a forma pela qual se exprimem rea.
S. Clemente e Orígenes, falando
E finalmente lembra o juízo
do Verbo, do Cresto e do Salva-
do S. Epifânio acerca das mais
dor, exclui absolutamente a exis-
antigas seitas heréticas dos Mar-
tência de Cristo, pois nenhum
cinitas, Valentinianos, Gnósticos,
deles assim falaria se Cristo ti-
Simonianos, Saturnilianos, Basi-
vesse sido um homem real e ver-
lidianos, Nicolasianos e outros,
dadeiro. E nem nós poderíamos
dos quais deduz que o Deus Re-
pormenorizar mais, visto que es-
dentor dos cristãos é Horus, filho
ses livros foram todos destruí-
da Trindade egípcia, convertido
dos.
mais tarde em Serápis.
Ganeval cita ainda os testemu-
A estas seitas mencionadas por
nhos de S. Irineu, Papias e S.
Ganeval, que negavam a existên-
Justino, o primeiro dos quais
cia do Verbo, deve juntar-se es-
afirma que o Deus cristão não é
pecialmente a dos Docetistas,
homem nem mulher; o segundo
impugnadores da realidade de
cita fragmentos do antigo Evan-
Cristo, que Salvador31 refuta no
gelho egípcio, e o último, falan-
livro Jesus Cristo E A Sua
do do Logos (Cristo), afirma que
Doutrina, citando o quarto Evan-
é uma emanação de Deus produ-
31
Salvador, Jesus Cristo E A Sua
30
Fócio, in Ganeval Doutrina, livro II, cap. II.
31
gelho que destaca o golpe de lan- acordo com todos os documentos
ça que fez manar sangue e água conhecidos daquela época.
do corpo de Cristo, e que isto Época em que não existiam
provaria a sua realidade. ainda os atuais Evangelhos, em
A existência desta seita é par- que Tácito nos revela que os he-
ticularmente importante, porque breus e os egípcios formavam
no dizer de S. Jerônimo 32, foi uma única superstição, em que
contemporânea dos Apóstolos. Fílon tinha já escrito sobre o
E, caso não fosse bastante o Deus Serápis, de tal fôrma que
que já foi dito, tínhamos Cerinto, facilitava a qualquer falsificador
Cerdon, Taciano, e os Ebionitas, cristão o ensejo de fazer crer que
todos eles impugnadores da exis- se referia a Cristo, e em que ha-
tência de Cristo, e, sobretudo, via já falado acerca dos cristãos
Saturnino, que segundo o abade primitivos – os Terapeutas – se-
Pluquet, viveu nos tempos e nas gundo a confissão de Eusébio e
paragens onde Cristo realizou os Epifânio, apresentando-os como
seus milagres, apesar de ter-lhe muito anteriores a ele, que por
negado, ele também, um corpo sua vez, era anterior a Cristo.
natural. Época em que, segundo S.
A negação da existência de Epifânio e Fócio, muitas seitas
Cristo por parte dos primeiros cristãs continuavam adorando a
heréticos, alguns dos quais vive- Horus como Deus Redentor, Fi-
ram no tempo e no lugar onde te- lho da Trindade egípcia. Época
riam residido Cristo e os Apósto- em que S. Clemente de Alexan-
los, é prova histórica evidente de dria e Orígenes escreveram ne-
que eles nunca existiram. Um gando Jesus e falando de Cristo –
testemunho valiosíssimo, apre- nesse tempo Cresto, segundo a
sentado também por Ganeval, é o lenda – tudo isto por confissão
do imperador Adriano que tendo do próprio Fócio33.
feito uma viagem a Alexandria
33
no ano 131 declarou que o Deus Ganeval cita, entre as provas Históri-
dos cristãos era Serápis e que os cas contra a existência de Cristo, a lin-
guagem de S. Paulo e daquele apóstolo
devotos de Serápis eram aqueles Apolo chamado também Cresto, que nos
a quem chamavam bispos dos Atos dos Apóstolos prega o cristianismo
cristãos. Sua opinião está de sem ser cristão. Provas graves, sem dú-
vida, por emanarem dos próprios docu-
32
Contra os luciferianos, cap. 8, in Es- mentos da fé, e de que falaremos, quan-
tefânio, Dicionário Filosófico. do tratarmos da Bíblia.
32
CAPÍTULO IV
JESUS CRISTO NÃO É PESSOA HISTÓRICA
Cristo
na Névoa *
56
CAPÍTULO III
A PRÓPRIA BÍBLIA FALA DE CRISTO APENAS SIMBOLICAMENTE
57
Antigo Testamento (Mat. IV, I- zendo: Como poderiam cumprir-
10). se as Escrituras, que dizem ser
Se Jesus vai a Cafarnaum, é conveniente que assim suceda?
para cumprir uma profecia de (Mat. XXVI, 54).
Isaías (Mat. IV, 14). Jesus diz que não foi preso
Se prega que não façamos aos pelas multidões quando se senta-
outros o que não queremos que va junto delas para ensinar no
nos façam , é porque assim esta templo, a fim de se cumprirem
escrito na lei e nos profetas as Escrituras (Mat. XXVI, 56).
(Mat. IV, 12). Se Judas o atraiçoa e recebe
Se cura os endemoninhados, é em paga trinta dinheiros, é para
em cumprimento do que lhe diz que se cumpra o que disse o
o profeta Isaías (Mat. VII, 17). profeta (Mat. XXVII, 9).
Se fala de João Batista, é para Se, após crucificado, os solda-
dizer que é aquele de quem está dos dividem a túnica, isso suce-
escrito: É Elias que devia vir de em cumprimento do que pre-
(Mat. XI, 10, 14) . dissera o profeta (Mat. XXVII,
35).
Se cura as multidões e lhes
proíbe que o divulguem, cum- Se manda comprar uma espa-
pre-se o que predisse o profeta da, é para que se cumpra tam-
Isaías (Mat. XII, 17). bém a profecia, segundo a qual
seria confundido com os malfei-
Se tem de permanecer sepul-
tores (Luc. XXII, 36, 37).
tado três dias, é porque Jonas
esteve três dias no ventre da ba- Cingindo-nos aos seus Após-
leia (Mat. XII, 40). tolos, Jesus demonstra que tudo
o que lhe sucede é por que con-
Se fala em forma de parábolas
vém que todas as coisas escritas
para não ser compreendido,
acerca dele na lei de Moisés, nos
cumpre-se a profecia de Isaías
Profetas e nos Salmos sejam
(Mat. XIII, 14).
cumpridas. E acrescenta: Como
Se manda buscar um jumento também era mister que o Cristo
e um jumentinho, fá-lo para padecesse e ressuscitasse dentre
cumprir o que lhe, diz o profeta os mortos ao terceiro dia. (Luc.
(Mat. XXI, 4). XXIV, 44, 46) .
Quando Jesus está a ponto de Até na Cruz, se Jesus pede de
ser preso no horto de Getsemani, beber, é para que se cumpra a
recusa-se a que o defendam, di-
58
Escritura (João. XIX, 27) . cunstância essencialíssima ?
E, bebido que foi o vinagre, Não significará isto, clara-
disse: Tudo se cumpriu. E só en- mente, que Cristo nunca existiu,
tão, quando viu que nele se ti- tendo-o inventado os Evange-
nha realizado a Escritura, incli- lhos para cumprimento das Es-
nou a cabeça e entregou o espí- crituras?
rito (João. XIX, 30). Pode-se volver e revolver a
Enfim, se não lhe quebram as questão, mas a única conclusão
pernas na mesma cruz, e se lhe plausível a que se chega é a que
abrem o peito com a lança, é, nós acabamos de indicar.
disse João, em cumprimento da Despojai Cristo da sua reali-
Escritura (João. XIX, 32 – 37). dade histórica, e tereis explicada
E basta de exemplos, que não a questão das profecias: deixai-a
são os únicos em que os Evange- subsistente, e a questão das pro-
lhos obrigam a fazer e dizer a fecias será humanamente insolú-
Cristo apenas o que estava escri- vel.
to no Antigo Testamento. Pois bem: como hoje é sim-
Mais adiante, demonstraremos plesmente absurdo pensar que
que tudo é símbolo em Cristo, possam existir profetas e profe-
ainda mesmo que os Evangelhos cias e que possam realizar-se
o não digam explicitamente, e ponto por ponto, minuciosamen-
ainda que não citem as respecti- te e a distância como devia ter
vas passagens do Antigo Testa- ocorrido com Cristo, havemos
mento, e que não veio ao mundo de concluir que: ou as profecias
e não procedeu senão para exe- foram inventadas, ou Cristo foi
cutar o plano teológico precon- inventado para o relacionarem
cebido no Antigo Testamento. com as profecias.
Neste ponto da nossa obra, Estando a primeira hipótese
apenas quisemos deduzir da lin- desmentida pela história e pela
guagem dos Evangelistas a con- circunstância indeclinável de
fissão de uma circunstância ca- que, em tal caso, as profecias e a
pitalíssima: Cristo não disse nem sua realização não tivessem dei-
foi ele próprio mais do que aqui- xado nada a desejar, resta-nos
lo mesmo que Escritura ordenou somente a segunda, a de que
que fosse e que fizesse. Cristo foi inventado para a reali-
Não nos dirá nada esta cir- zação em si das profecias, hipó-
59
tese que resolve toda a dificulda- fato dos evangelistas, preocupa-
de inerente a tal assunto, porque dos em escrever acerca de um
nos fornece a chave para expli- Cristo imaginário, estudarem so-
car o fato de tantas profecias se- mente a forma de o pôr em har-
rem sofísticas a fim de poderem monia com as exigências dog-
aplicar-se a Jesus, pois não esta- máticas do assunto, descuidando
vam devidamente relacionadas de adaptá-lo à circunstância da
para se conciliarem numa só narração e do meio ambiente.
pessoa. Os positivistas e os racionalis-
A mesma hipótese explica o tas, não podendo aceitar a pre-
fato, que tantos trabalhos custou tensão teológica de que Cristo
aos críticos, das faltas e inexati- fosse Deus, e que, portanto, a
dões de não poucas profecias, sua vida tivesse sido profetizada
cuja realização os Evangelhos por homens inspirados pela von-
anunciaram pois pode acontecer tade divina, mas, não chegando a
que existissem ao princípio e negar a existência humana de
logo fossem extraviadas nas nu- Cristo, esbarravam ainda com o
merosas vicissitudes da Bíblia, insuperável obstáculo de expli-
ou antes fossem alteradas de- car esse Jesus-Homem, sem o
pois. Fora disso, bastaria que concurso das causas sobrenatu-
houvesse sido essa a crença dos rais que negavam. Ante este pro-
evangelistas, quer dizer, que ti- blema tão heterogêneo, tiveram
vessem acreditado que as referi- de submeter os seus neurônios a
das profecias, imaginárias ou verdadeiras torturas, como acon-
exatas, existiram e foram tal teceu com Míron, ou de realizar
qual eles pensavam, para justifi- um tours de force, como aconte-
car o seu trabalho de adaptação a ceu com Larroque, ou ainda de
Cristo de tão decantadas profeci- serem ilógicos, como aconteceu
as. com Salvador, Strauss e Havet,
Esta solução elimina também explicando complicadamente
radicalmente uma série de outros uma parte do problema sob o
absurdos encontrados na Bíblia, ponto de vista da concepção
devido a este plano armado para simbólica e dogmática, e aban-
aplicar Cristo às profecias, por- donando a outra ao caos em que
que demonstra que a causa de se envolveu a pessoa humana de
tantas discordâncias e de tantos Cristo.
contrassensos se fundamenta no Não se atrevendo a saltar o
60
fosso, caíram nos contrassensos se esquecer.
da própria Bíblia ao passar da te- Salvador combate a opinião
ologia para o naturalismo,. dos filósofos, que fazem de Cris-
Por exemplo: Renan vê nas to um reformador religioso e so-
profecias de Isaías um raio do cial, dizendo que, para que esta
olhar de Jesus58 e pensa que este opinião fosse fundada, seria pre-
se julgava o espelho no qual ciso que a sua morte fosse unia
todo o espírito profético de Isra- consequência involuntário e qua-
el tinha lido o futuro59. Só em se acidental dos seus esforços,
um ponto adverte que nas últi- enquanto que esta formava, pelo
mas palavras de Jesus se nota a contrário, o seu princípio e o seu
intenção de manifestar clara- fim confessados, os quais ele
mente o cumprimento das profe- procurava com ardor, em um in-
cias60. teresse dogmático e místico.
Nem vale a pena discutir a hi- Salvador esteve aqui verda-
pótese de que Cristo acomodasse deiramente inspirado e poderia
a sua própria vida às prédicas e ter conhecido toda a verdade se
se exaltasse a ponto de realizar o não perdesse o caminho que se-
profetismo hebraico. Não só guia, terminando no lugar co-
concorre contra semelhante hi- mum de que a vontade de mor-
pótese o fato, já por outros nota- rer, firme em Cristo, provinha de
do, de que, para proceder assim, uma ordem de convicções e de
Cristo deveria ter vivido com o um entusiasmo conforme com as
Antigo Testamento na mão, mas ideias da sua época e com a in-
também a circunstância da sua terpretação oriental dos livros
adaptação às profecias começar sagrados dos hebreus.
com o seu nascimento e não aca- Já vimos contra que obstácu-
bar senão com a sua morte. los vão bater este lugar comum.
Fica excluído completamente Mas permanece de pé a preciosa
neste caso, qualquer fenômeno confissão de Salvador, que segue
de autossugestão, tanto mais que imediatamente, depois da passa-
se trata de uma vida em absoluto gem citada, e onde diz que, a
milagrosa, o que nunca deverá não ser pela morte que deseja-
va, nada ficaria de Cristo, por-
58
Vita di Gesù , vol. I, c. IV, trad. it. di que nem os seus dogmas nem a
De Boni, Milano, Daelli, 1863. sua moral são frutos da sua ins-
59
Id., vol. I, c. XVI.
60
Id., vol. IV, c. XXV.
piração.
61
Não há termo médio: ou acei- Este testemunho da missão de
tamos a revelação, em conjunto, Cristo com relação às profecias é
ou repelimos a natureza humana a própria razão de ser de Cristo
do Cristo, entregando-o inteira- pois, caso contrário, este já não
mente à teologia. Esta está no seria o Messias que os crentes
seu papel, quando diz que as pretendem, por não corresponder
profecias provam a existência de exatamente aos vaticínios.
Cristo, o qual se converte, em Realmente, esta maneira de
virtude desta afirmativa, em uma ser de Jesus - assim o diz Dide,
personificação mais ou menos com exata ponderação dos tex-
completa daquelas. tos, ainda que não chegue a con-
Assim o compreendeu Scherer sequências lógicas - torna o mes-
sem que por isso chegasse à con- mo Jesus e os seus apóstolos in-
sequência lógica que o fato diferentes á Humanidade.
supõe, quando escreve que Jesus Quando lemos com imparcial
nem é um filósofo, nem o funda- atenção o Novo Testamento, não
dor de uma nova religião, mas podemos deixar de reconhecer
sim o Messias; que a chave da que o sistema narrativo dos es-
vida de Jesus é o cumprimento critores apostólicos exclui todo o
das profecias messiânicas; e que interesse e toda a emoção. A
esta ideia messiânica é o centro vida de Jesus e as aventuras dos
dos fatos evangélicos, a razão Apóstolos desenrolam-se como
de ser histórica de Jesus61. se fossem uma cena teatral, em
Cristo, portanto, não veio ao que tudo está apontado, previsto
mundo senão para cumprir as e indicado, antecipadamente.
profecias, e, como isto não é Não é a Humanidade vivendo,
uma ação humana, equivale a di- pensando, sofrendo, agitando-se.
zer que Cristo veio ao mundo Se Cristo e os seus realizam
apenas como um símbolo, isto é, isto ou aquilo, executam este ou
que Cristo nunca existiu. aquele ato, é porque era preciso
Hoje não precisamos mais que se cumprisse esta ou aquela
negar que o Antigo Testamento profecia62.
revela o Cristo. O sobrenatural Por isso, temos de escolher,
já nos não preocupa. definitivamente: Ou Cristo exis-
61
tiu, e então é Deus, ou não é
Mélanges d'histoire religieuse. La vie
62
de Jésus, pp. 99 e seg. (in Vacherot, La A. Dide, La fin des religions, p. 370,
Religion ). Paris, Flammarion, 1902
62
Deus, e então nunca existiu, por- lhos, em breve veremos que, do
que o Cristo da Bíblia é o único naufrágio de Cristo nada de hu-
Cristo conhecido, e porque na mano pôde se salvar. Veremos
própria Bíblia ele não é mais do que não é possível escrever a bi-
que um personagem sobrenatural ografia de Cristo, que ele não
e simbólico. Impõe-nos a lógica pode ter biografia, já que não
que o aceitemos tal qual ele é na teve existência humana. É claro
Bíblia, isto é, como Deus, a não que não seguiremos passo a pas-
ser que se ponha de parte, sem so a narração bíblica e nem a li-
mais considerações, a sua pre- nha dos doutos especialistas na
tendida realidade histórica, da matéria.
qual não se escapa. Reuniremos alguns dos ele-
Quando se reconhece que Je- mentos essenciais que concor-
sus era o Messias e que não tem rem para que qualquer existência
nenhum outro caráter, não se humana seja real e vital, elemen-
pode humanizá-lo conservando a tos esses que faltam a Cristo de
humanidade e deixando que a di- modo tão contraditório e absur-
vindade se volatilize: um Messi- do que excluem toda a possibili-
as profetizado e um Deus Re- dade de ter existido um homem
dentor não é e não pode ser um em tais condições pela
homem. contradição que não o permite.
Não é licito dividir-lhe a sua No entanto, completaremos a
natureza em divina e humana e demonstração de que Cristo está
reduzir à expressão mais simples na Bíblia, apesar desta o não di-
a sua figura humana para o sal- zer explicitamente, apenas como
var do exílio a que os Deuses, sendo um personagem puramen-
hoje mais do que nunca, estão te e completamente simbólico,
confinados, segundo afirmou o elaborado com os dados submi-
grande profetizador de Epicuro. nistrados pelo Antigo Testamen-
Do contrário, violentaríamos o to: verdadeiro ídolo, combinação
bom senso, atentando contra ele, de materiais preexistentes nas
e atormentaríamos nossa mente tradições e nos textos religiosos
sem resultado algum, por maior do hebraísmo, modificado e ali-
que fosse o valor de quem tal fi- mentado com a concepção mito-
zesse, como sucedeu com lógica do Oriente como se fora
Strauss. E nós, atacando cada um mosaico.
vez de mais perto os Evange-
63
CAPÍTULO IV
CRISTO É UM MITO ADAPTADO DAS ALEGORIAS DO ANTIGO
TESTAMENTO
76
CAPÍTULO V
CONTRADIÇÕES ESSENCIAIS DA BÍBLIA A CERCA DE CRISTO
110
Mat. I, 1-17; Lucas III, 23-38. de Lucas sobre o censo do Cirino, vid.
111
Mat. I,20-23. Strauss, obr. Cit. II. 48.
112 113
Ferrière, Paganismo dos hebreus, Mat. II, 13, 16.
114
apêndice nº 2. Quanto ao erro histórico Lucas, II, 22, 39.
77
A infância de Jesus é comple- jetivo das suas pregações é que
tamente ignorada por Marcos e vai a Jerusalém, onde é quase in-
João, a quem só põem em cena teiramente desconhecido, a pon-
aos trinta anos, fazendo-o, por to dos habitantes perguntarem
assim dizer, cair do céu nas mar- uns aos outros quem ele era. Já o
gens do rio Jordão, onde recebe quarto Evangelho o faz viver
o batismo pelas mãos de João quase só na Judeia mas ir várias
Batista. Mateus, depois de o fa- vezes a Jerusalém, onde realiza
zer nascer milagrosamente, fugir os principais atos da sua vida.
para o Egito e regressar a Nazaré Segundo João116, João Batista
nunca mais fala dele, até á idade declara formalmente não conhe-
de trinta anos. Só Lucas fala da cer Jesus quando este se lhe
discussão que Jesus aos 12 anos apresenta para receber o batis-
de idade teve no Templo com os mo. Mas segundo Lucas117, João
doutores da lei115. Lucas, narran- Batista conhecia Jesus desde o
do este episódio cai em contradi- ventre de sua mãe Isabel, onde
ção consigo mesmo, porque diz saltou de prazer quando Maria a
que os pais de Jesus, tendo-lhe visitou. E, segundo Mateus118,
perguntado quando o encontra- tanto Batista conhecia Jesus
ram no Templo, por que os aban- quando o batizou, que até recu-
donara, e ele lhes respondera sou fazê-1o, a princípio, cedendo
que fora para ocupar-se das coi- apenas às repetidas instâncias de
sas de seu Pai, não o compreen- Jesus. Entretanto, Batista, que
deram. É absurdo que os pais de segundo todos os evangelistas,
Jesus não compreendessem a se dera a conhecer como precur-
resposta, desde que, segundo o sor de Jesus, batizando-o com o
mesmo Lucas, Jesus tinha nasci- concurso da pomba celestial e da
do milagrosamente como, tam- voz do Eterno, reconhecendo-lhe
bém, pelo mesmo motivo, se não explicitamente o caráter de Mes-
deviam inquietar com o extravio sias119, não se faz cristão e conti-
de Jesus. nua a pregar por conta própria.
Cingindo-nos agora aos três Depois, quando é preso e encar-
Evangelhos sinópticos, vemos cerado, envia da prisão a Jesus
que Jesus começa e continua a 116
João, I. 33.
sua missão na Galileia, e só para 117
Lucas, I, 41-44.
a realizar, só para cumprir o ob- 118
Mateus, III,14.
119
Mat, III-13-17; Marc. I-7-11; Luc.III-
115
Lucas, II, 41-50. 16, 21, 22; João, I, 29-34.
78
dois dos seus discípulos, encar- Da citação dessas contradi-
regando-os de lhe perguntarem: ções, como em geral de tudo o
És tu, porventura, o que há de que se refere aos milagres, fare-
vir, ou temos ainda de esperar mos graça para nossos leitores,
por outro?120. Jesus declara que por que não é necessária sequer
João batista é o profeta Elias121, para nossa demonstração.
mas este mesmo João Batista de- Lucas faz-nos saber que os sa-
clara que não é tal o profeta Eli- maritanos acolheram Jesus com
as122. hostilidade e que João, que o
As tentações de Satanás con- acompanhava, vendo isto, se en-
tra Jesus não vêm mencionadas colerizou sobremaneira123. Por
no quarto Evangelho, que as ex- sua vez, o mesmo João, que esta-
cluiu sistematicamente, encade- va com Jesus e que tanto se re-
ando os novos detalhes da vida voltou com a ação dos samarita-
de Jesus - desde o batismo até ao nos, no seu Evangelho conta que
primeiro milagre - com as mais quando Jesus passou por Sama-
rigorosas indicações do tempo ria os samaritanos lhe fizeram
(ao segundo dia, ao terceiro dia, uma excelente recepção, pedin-
etc.) de modo que não passaria do-lhe que ficasse com eles e
por alto os quarenta dias que ele proclamando-o Salvador do
permaneceu no deserto e as res- Mundo124.
pectivas tentações. Igualmente Sobre o episódio da mulher
João, que era o discípulo amado que unge Cristo, todos os evan-
de Cristo e que, portanto, não gelistas relatam o caso diversa-
podia ignorar os detalhes da vida mente, sendo portanto, contradi-
dele, nada nos diz acerca das tórios125.
coisas praticadas pelo Mestre
Quanto à ultima ceia, que
com os endemoninhados.
constituiu um fato capitalíssimo
Demonstrado está assim que, para o cristianismo porque nela
excetuando o quarto evangelista teria Jesus instituído o mistério
os outros três se contradizem a da Eucaristia, nem mesmo aí os
cada a linha, quer relatando a Evangelhos se harmonizam. Os
história das tentações quer con- três primeiros colocam a última
tando os exorcismos de Jesus.
123
Lucas, IX-51-56
120 124
Mat. X, 2-3. João, IV-9, 39-42
121 125
Mat. XI-14. Mat. XXVI, 2-13 Marcos, XIV, 1-9;
122
João I-21. Luc. VII, 36-40; João XII, 1-8.
79
ceia no dia de Páscoa126, enquan- pelo seu próprio sacrifício.
to João a coloca antes da Pás- Estas contradições dos Evan-
coa127. Além disso, os primeiros gelhos mais uma vez confirmam
fazem Jesus instituir nesta ceia o o nosso modo de ver, pois só
mistério da Eucaristia128 ao passo considerando Cristo como um
que João, absorto pela ideia eu- mito, precisamente o mito do
carística (CapítuloVI) narra a úl- Cordeiro Pascal, qui toilit peca-
tima ceia com inúmeros porme- ta mundi, se pode resolver esta
nores, mas sem dizer uma única complicação.
palavra acerca dessa mesma
Durante a última noite, passa-
ideia eucarística, sendo ele de
da no horto de Getsemani, Jesus
resto, o único que teria valor tes-
afastou-se dos seus discípulos, a
temunhal, pois assistiu a ela des-
pouca distância, segundo os si-
de o princípio.
nópticos. Os discípulos dormi-
Repitamos aqui, pois vale a am, Jesus levou consigo apenas
pena, que essa contradição, na Cefas e os dois filhos de Zebe-
qual muita tinta tem sido gasta deu. Chegado ali, Cristo cai por
inutilmente pelos estudiosos, terra, com o rosto unido ao chão,
não pode ser explicada exceto e assim ora por largo tempo, per-
pela nossa dedução na qual, manecendo triste até à morte e
Cristo sendo um mito, e exata- conformando-se, enfim, com a
mente o mito do cordeiro pascal vontade divina129.
qui tollit peccata mundi é ele
Pela sua parte, o quarto evan-
mesmo o alimento da ceia pas-
gelista, que deveria ser a teste-
cal.
munha íntima desse episódio tão
Só que nos três Evangelhos comovedor, nada diz a tal respei-
Sinópticos, mais antropomórfi- to, apesar das minúcias com que
cos, ele precisa dizê-lo explicita- relata os episódios dessa noite.
mente, enquanto que no quarto, Além disso, enquanto os três pri-
ao invés da instituição do sacra- meiros nos apresentam Jesus no
mento ser feita pela boca do Ag- Monte das Oliveiras, em estado
nus Dei, o mistério se cumpre de profundo abatimento, a ponto
de suar sangue130, o quarto põe
126
Mat. XXVI, 17-20; Marc, XIV, 12-8;
Luc. XXII, 7-15. 129
Matt. XXVI, 36 ss.; Marco XIV, 32
127
João XIII, 1. ss.; Luca XII, 39 ss.
128 130
Matt. XXVI, 26-28; Marco XIV, 22- Matt. XXVI, 36-39; Marco XIV, 32-
24; Luca XXII, 19-21. 36; Luca XXII, 41-44.
80
na boca de Jesus discursos chei- mente.
os de tranquilidade131; e ao passo Repararemos apenas nas con-
que nos primeiros evangelistas o tradições mais graves que acom-
beijo de Judas denuncia Jesus panharam a sua morte.
aos seus inimigos,132 no quarto é
Segundo Mateus (XXVII, 45)
o próprio Jesus que vai ao en-
Marcos (XV, 33) e Lucas (XXI-
contro dos seus inimigos, com
II, 44) desde a hora sexta até
tranquilidade e segurança, dizen-
àquela em que, Jesus devia ter
do aos soldados que o rodeiam:
exalado o último suspiro, isto é,
Eu sou o Cristo133!
do meio dia às três da tarde, toda
Passemos por alto as contradi- a terra se cobriu de trevas. Além
ções relativas à hora em que Je- disso, segundo Marcos (XV, 25)
sus foi julgado pelos sacerdotes Jesus teria sido crucificado, à
na presença do povo, ao seu in- hora terceira do dia, ou fosse às
terrogatório, ao momento em nove.
que é maltratado e injuriado, ao
Pelo seu lado, João (XIX, 14)
episódio da devolução de Pilatos
diz que, à hora sexta, ou fosse ao
para Herodes só conhecida por
meio dia, não só Jesus não esta-
Lucas, ao depoimento das teste-
va ainda na cruz, mas nem mes-
munhas, ao Cirineu, que João
mo o tinham ainda condenado à
não cita, à beberagem dada a Je-
morte. A essa hora, Pilatos mos-
sus, à altivez dos dois ladrões, à
trava-o aos hebreus, dizendo:
inscrição colocada na cruz (dife-
Eis aqui o vosso Rei.
rente em cada um dos quatro
evangelistas), à exclamação e Pois bem: se no dizer dos pri-
palavras ditas antes de morrer, meiros, desde o meio dia até às
ao golpe de lança no peito, à três, toda a terra se cobriu de tre-
quebra das pernas, ao embalsa- vas, ao passo que, segundo João,
mamento, à natureza do sepulcro precisamente neste tempo, tive-
e ao tempo em que esteve sepul- ram lugar a saída para o Gólgota
tado, contradições estas de deta- e a crucificação, devemos con-
lhes, mas tão numerosas, que cluir que João faz desenrolar to-
preciso se torna citá-las sumaria- dos os sucessos na mais densa
escuridão, circunstância esta que
131
não o impede de ver tudo o que
João, Cap. 14, 15, 16, 17 e 18. se vai passando, assim como su-
132
Matt. XXVI, 47-50; Marco XIV, 43-
46; Luca XXII, 47. cedia aos demais espectadores.
133
João, XVIII, 2-8.
81
As contradições, que se se- cidas pelos homens.
guem à ressurreição não nos Em conformidade com o pri-
prenderão muito a atenção, por- meiro modo de ver, ordena ao
que saem do campo da razão endemoninhado de Gheraseni,
para entrarem no do sobrenatu- curado por ele, que divulgue o
ral, que é por outro lado, um dos milagre140 e de acordo com o se-
critérios de condenação da vera- gundo ponto de vista recusa ter-
cidade da Bíblia. minantemente fazer milagres, in-
Pelo contrário, interessam-nos sulta quem lhes pedem141 e orde-
sobremaneira as contradições na àqueles a quem cura e aos
que a mesma Bíblia põe na boca que assistem, que não divulguem
e no procedimento de Cristo, en- nada142 .
quanto fala e procede como ho- No que diz respeito ao uso da
mem. força física, da resistência, em
Na célebre sentença, em que suma, da violência, Cristo não só
glorifica a pobreza, Jesus fala, as recomenda como as pratica143,
na opinião de Lucas, dos pobres, e ainda aconselha o seu empre-
em sentido concreto, ou seja da- go144.
queles que sofrem materialmente Quem não é por mim é contra
fome e, sede134, ao passo que, se- mim, diz Cristo em Mateus145 e
gundo Mateus, falava indistinta- em Lucas146. Em Marcos, porém,
mente dos pobres de espírito e diz: Quem não é contra nós, co-
dos que têm fome e sede justi- nosco está147. A contradição não
ça135. pode ser mais grave.
Quanto aos publicanos, Jesus Segundo Mateus148 Marcos149
os trata ora com afeto136, ora
com ódio e desprezo137. 140
Marco V, 19.
141
Acerca das boas obras, Cristo Matt. XIII, 28-41; XVI, 1-4;Marco
VIII, 11-12; Luca, XXIII, 7-9.
diz ao mesmo tempo que de- 142
Matt. VIII, 2-4; IX, 27-30; XIII, 15;
vem138 e não devem139 ser conhe- XVIII, 9; Marco I, 40-44; VIII, 22-26;
134 IX, 8; Luca IX, 36.
Lucas, VI, 20 ss. 143
Lucas XXII, 36; João, II, 15.
135
Mateus, V, 3-10. 144
Mat. V, 39; XXVI, 52.
136
Matt. XVIII, 17. 145
137 Mateus XI, 30.
Mat. IX, 10-12; XI, 19; Marcos II, 146
15-17; Lucas V, 29-31; VI, 34; XVIII, Lucas X, 23.
147
9-14; XIX, 2-10. Marcos IX, 38, 39, 40.
148
138
Matt. V, 16. Mateus V, 25; VIII, 49.
139 149
Matt. VII, 1, 2. Marcos I, 44.
82
e Lucas150 Jesus ordena os sacri-
fícios, mas em parte alguma da
Bíblia se vê que ele tome parte
em qualquer desses sacrifícios.
A principal, a mais irrespondí-
vel das contradições, é a que se
refere á missão de Cristo. Se-
gundo Mateus151, Jesus diz que
não veio para abolir a lei nem os
profetas, e segundo Lucas152 diz
que, tanto estes como aquela, ti-
veram já o Seu tempo!
À vista de tão extraordinárias
contradições, quem se atreverá a
dizer que Cristo seja um perso-
nagem histórico e real? Mesmo
sem levar em conta o anterior-
mente exposto?
Quem não vê aí a mão criado-
ra das diversas escolas metafísi-
cas e teológicas, denunciadas
pela diversidade de planos e de
doutrinas na composição de um
mesmo mito?
150
Lucas V, 14.
151
Mateus, V, 17, 18, 19.
152
Lucas, XVI, 16.
83
CAPÍTULO VI
ABSURDOS ESSENCIAIS DA BIBLIA ACERCA DE CRISTO
91
CAPÍTULO VII
A MORAL SECTÁRIA DOS EVANGELHOS NÃO É OBRA DE UM
HOMEM, MAS SIM , DA TEOLOGIA
104
Terceira Parte
Cristo na
Mitologia
105
CAPÍTULO I
CRISTO ANTES DE CRISTO
106
Deus222. Isto teve lugar uns 3500 espírito de Deus que queria en-
anos antes da era vulgar e no pa- carnar-se, e concebeu.
lácio do rajá de Madura, peque- Na noite do parto e enquanto
na província da Índia oriental. o recém-nascido exalava os pri-
A menina recebe ao nascer o meiros vagidos, um vento fortís-
nome de Devanaguy, conforme o simo desmoronou o muro da pri-
que estava escrito. O rajá teve são e a Virgem foi transportada
um sonho em que se viu expulso com o filho, por um mensageiro
do trono pelo filho que nasceria de Vischnú, à uma cabana de
de Devanaguy. Por esta razão, o pastores pertencente a Nanda. O
tirano de Madura faz encerrar recém-nascido foi chamado
Devanaguy numa torre e soldar a Cristna.
porta para evitar toda a possibili- Quando os pastores souberam
dade de fuga, colocando ainda do depósito que tinha-lhes sido
um valente guarda à vista da pri- confiado prostraram-se diante do
são. filho da Virgem e adoraram-no.
Tudo porém foi inútil. A pro- O tirano de Madura, sabedor
fecia de Poulastya, não podia ser do parto e da fuga de Devanaguy
impedida: E o espírito divino de encolerizou-se em extremo e or-
Vischnú atravessou as paredes denou uma matança geral de to-
para se unir a sua amada. Certa dos os meninos, nascidos nos
noite, enquanto a virgem orava, seus Estados durante a noite em
uma celeste música veio de im- que Cristna tinha vindo ao mun-
proviso deleitar os seus ouvidos, do.
iluminou-se a prisão e Vischnú
Um pelotão de soldados sai
apareceu diante dela com todo o
imediatamente para o aprisco de
esplendor da sua divina majesta-
Nanda, mas Cristna escapa mila-
de. Devanaguy foi ofuscada pelo
grosamente daquele ameaça.
222
São quase inenarráveis os epi-
No poema hindu Maha Bhárata en-
contra-se outra anunciação, que parece
sódios dos primeiros anos de
ter servido do modelo à do Batista, tão Cristna, que saia sempre vitorio-
semelhante ela é. A deusa solar Sâvitri so dos perigos e ciladas que lhe
deu um filho a Asvapatis, piedoso rei armavam os que queriam a sua
de Masdras, velho e sem prole que se morte, fossem homens ou dia-
lamentava de não ter descendência e se
entregara por 18 anos a contínuas peni- bos.
tências e frequentes exercícios de pieda- Aos dezesseis anos, Cristna
de.
107
abandona os seus parentes e co- nem os discípulos puderam re-
meça a percorrer a Índia, pre- sistir a tanta luz.
gando a sua doutrina. Em seguida a esta transfigura-
É o tempo dos seus grandes ção, os discípulos chamaram-lhe
milagres: ressuscita mortos, cura Jezeus, que quer dizer nascido
leprosos, restitui a audição aos da pura essência divina.
surdos e a vista aos cegos. De outra vez em que se en-
Proclama-se a segunda pessoa contrava com os discípulos,
da Trindade, isto é, Vischnú, acercaram-se dele duas mulheres
descido à terra para salvar o ho- da pior condição que lhe derra-
mem do pecado original. maram perfumes sobre a cabeça
Os povos acudiam em massa e o adoraram.
avidamente para o ver e ouvir os Quando Cristna compreendeu
seus ensinamentos, adorando-o que tinha chegado a hora de
como a um Deus e dizendo: Este abandonar a terra e voltar ao seio
é realmente o Redentor prometi- de quem o tinha enviado sepa-
do a nossos pais. rou-se dos discípulos proibindo-
A sua moral é pura, elevada e lhes que o seguissem e, transpor-
completamente altruísta. tando-se às margens do Ganges
mergulhou no rio sagrado.
Rodeia-se de discípulos que
devem continuar a sua obra. Em seguida ajoelhou-se, e
orando esperou a morte. Nesta
Ensina por meio de parábolas.
posição foi atingido por uma fle-
Um dia, em que o tirano de cha e pregado a uma árvore.
Madura enviara muitos soldados
O que o matou foi condenado
contra ele e seus discípulos, es-
a vaguear eternamente sobre a
tes, tomados de pânico, quise-
terra.
ram fugir, especialmente Ardju-
na, chefe dos discípulos, que pa- Quando se espalhou a notícia
recia abalado na sua fé. da morte do Redentor, os seus
discípulos correram a recolher os
Cristna, que estava orando
sagrados despojos; estes porém,
perto, ouvindo os seus lamentos
tinham já desaparecido, porque
foi ter com eles, repreenden-
ele ressuscitara e subira ao céu.
do-os pela sua pouca fé, apare-
cendo-lhes com todo o esplendor A nona encarnação de Visch-
da divina majestade e com o ros- nú é aquela em que aparece
to de tal modo iluminado que
108
como Buda223. Foi revelada em mens maravilhados, aparece no
sonhos à sua mãe a grandeza do céu uma estrela brilhante, aco-
filho e o ascendente que teria so- dem reis a adorá-lo, e da terra,
bre todos os seus semelhantes. surge a famosa árvore Bo, sob
Escolhe, para nela nascer, cuja sombra deveria transfor-
uma casta principesca, assim mar-se em Buda: Aquela árvore
como Cristo escolheu a de Davi, tem as folhas continuamente em
e desce à terra. Isto acontecia movimento, com o que se quer
628 anos antes de Cristo. significar o estremecimento co-
memorativo da sagrada cena de
Por ocasião do seu nascimen-
que foram testemunho, à seme-
to, sucedem coisas maravilho-
lhança do que dizem os sírios,
sas: uma luz deslumbrante ilu-
acerca das folhas da trêmula, que
minou dezesseis mil mundos, os
incessantemente se agitam em
cegos viram, falaram os mudos,
memória da crucificação de
andaram os paralíticos, os prisio-
Cristo, de cuja árvore se diz ter
neiros recuperaram a liberdade;
sido feita a cruz.
uma doce brisa refrescou e ani-
mou a terra, mananciais fres- Entre os que cheios de gozo
quíssimos rebentaram do seu vão visitar a maravilhosa criatu-
seio, as florestas abriram-se em ra, fala-se principalmente de um
corolas multicores e dos céus velho, muito semelhante ao nos-
choveram lírios de aromas ine- so Simeão, que em troca da sua
briantes. vida devota recebeu o dom das
profecias. E, embora o seu espí-
De suas altíssimas moradas,
rito se alegrasse pelo futuro re-
saíram espíritos para vigiar o pa-
servado a esse menino, não po-
lácio onde devia nascer a criatu-
dia deixar de chorar pensando
ra e desviar dele e de sua mãe
que, em virtude dos seus anos
todos os males.
não poderia assistir aos triunfos
Tão logo nasceu, pôs-se de pé, dele.
e diante dos espíritos e dos ho-
A mãe de Buda chama-se
223
Ao nascer, foi chamado de Guatama, Maya ou Maïa, e concebera-o de
nome da tribo a que pertencia sua famí- um modo maravilhoso, fora de
lia; Sâkya-Muni, o mentor espiritual dos
Sâkya; Siddârtha, nome imposto por toda a relação conjugal.
seu pai e significa Aquele no qual se Quando morreu, foi por suas
cumpriram os desejos, e, posteriormen- virtudes, recebida no céu, onde
te, Budda, que significa O iluminado,
palavra derivada do radical budh (saber)
habitam os Nat.
109
Buda era belo e dotado de ex- de Buda. O mesmo que Pedro e
traordinária inteligência, maravi- João, discípulos de Cristo.
lhando os doutores pela sua sa- Buda, como Cristo, revoltou-
bedoria. Por fim, abandonou o se contra o poder soberano dos
teto paterno para levar a cabo a sacerdotes.
sua missão.
Como os cristãos, os budistas
Enquanto jejuava no deserto, estão divididos em varias seitas.
à sombra da árvore, por um perí- No budismo encontram-se todas
odo de 49 dias (7x7) foi tentado as práticas religiosas do cristia-
várias vezes pelo demônio, sem- nismo. E tanto é assim que,
pre saindo vitorioso. quando os missionários católicos
Pregou pela primeira vez em se encontraram pela primeira vez
Benares, convertendo à fé gran- com os monges budistas, acredi-
des e pequenos. A sua moral, taram numa tentação do diabo, o
como veremos, é muito superior qual teria sugerido a esses mon-
à de Cristo. ges as práticas católicas, sem
O mais célebre dos seus dis- pensarem que os imitadores não
cursos ficou sendo chamado, em podiam ter sido os budistas,
virtude do local onde foi pronun- muito mais antigos que os cris-
ciado, de o Sermão da Monta- tãos.
nha, precisamente como o de Até no seu Papa (Dalai Lama)
Cristo. Depois da morte, aparece e na sua infalibilidade, os budis-
aos discípulos, em forma lumi- tas precederam os cristãos.
nosa, com a cabeça circundada Mas, não antecipemos o plano
de uma auréola. da nossa obra e continuemos
Buda teve também um discí- narrando a história dos Deuses
pulo traidor, Devadatta. Não dei- Redentores, precursores de Cris-
xou nada escrito. Os seus discí- to.
pulos, porém reunidos em conse- Do pouco que já dissemos se
lho geral recolheram todas as depreende, com evidência que
suas doutrinas. não pode ser maior, que na Índia
Entre esses discípulos, houve houve uma encarnação do Deus
dois de natureza diametralmente Redentor, 3.500 anos antes de
oposta: um sério e crente em ab- Cristo, e outra seis séculos ante-
soluto e cheio de zelo; outro dul- riores, também, e que em seu Je-
císsimo por natureza e predileto zéus Cristna e em seu Buda exis-
110
tem já quase todos os elementos Maury225, em Mitra realiza-se a
do mito cristão, aos quais se as- união da ideia física da passa-
semelham extraordinariamente. gem das trevas para a luz, com a
Quanto mais avançarmos na ideia moral da união do homem
breve resenha dos Deuses Re- com Deus.
dentores que precederam Cristo, Mitra, chamado também Se-
mais claramente veremos que na nhor, nasce de uma virgem,
época em que foi concebido este numa gruta. Como Cristo, que
mito (de Cristo), não foi preciso nasce num estábulo, também de
inventar nada para conformá-lo uma virgem. O dia em que nasce
tão bem quanto foi configurado. Mitra é o mesmo em que, de-
Vejamos agora Mitra, o Deus pois, nasce Cristo: em 25 de de-
Redentor da Pérsia, que como zembro, isto é, no solstício do
observa Stefanoni, é um ponto inverno.
de passagem entre o avatar, en- Este dia era o da festa princi-
carnação hindu, e a encarnação pal da religião dos Magos, se-
cristã. A diferença característica gundo Freret e Hyde.
entre os dois antropomorfismos A mãe de Mitra continua vir-
não é, na realidade, muito sensí- gem depois do parto.
vel. Ocorre porém, considerar
Na esfera dos magos e dos
que na encarnação hindu é a di-
caldeus, o signo zodiacal da Vir-
vindade única e absoluta que
gem, tem junto desta um menino
toma da forma humana, sem vín-
e um homem, que parece ser o
culo algum de inferioridade com
suposto pai da criatura.
o pai celestial, ao passo que a
encarnação cristã se distingue O nascimento de Mitra anun-
pela procedência do filho do pai. cia-se astrologicamente por uma
E nos livros sagrados da Pérsia, estrela, que aparece do Oriente,
o Deus Redentor transforma-se e pelos magos que lhe levam
em patrono de Ormuz, quase perfumes, ouro e mirra.
igual a Deus. Mitra é precisa- Mitra, que nasce em 25 de de-
mente o intermediário entre zembro, como Cristo, morre
Deus e os homens, como diz como ele, no equinócio da pri-
Plutarco224. mavera. E, como ele também,
Além disso, como nota teve o seu sepulcro, ao qual iam
225
Crenças e lendas da antiguidade, c.
224
Sobre Isis e Osiris, c. 46. Mitra.
111
os seus iniciados derramar lágri- mo, antes do nascimento de
mas. O escritor cristão Firmico Cristo.
conta que os sacerdotes levavam Continuemos com a resenha
ao túmulo, de noite num andor, a dos Deuses Salvadores.
imagem de Mitra, cerimônia que
Os egípcios tinham também o
eles acompanhavam com cânti-
seu Deus Salvador em Horus,
cos fúnebres. Acendia-se o círio
convertido depois em Osiris ou
sagrado (círio pascal), ungia-se
simplesmente Serápis226.
com perfumes a imagem do
Deus e um dos sacerdotes decla- Horus também nasceu de uma
rava solenemente que Mitra ti- virgem no solstício do inverno e
nha ressuscitado e que as suas morreu no equinócio da prima-
penas tinham remido a Humani- vera para depois ressuscitar
dade. como Cristo. Horus estava ex-
posto no solstício do inverno sob
Outra parte da vida de Cristo
a imagem de uma criatura à ado-
na mitologia persa, já tinha sido
ração dos fiéis, porque então, diz
aplicada a Zoroastro. O reveren-
Macróbio, o dia era mais curto
do dr. Mills, eminente teólogo e
e este Deus não passava de um
sábio cristão não pode deixar de
débil menino: o menino dos mis-
se render à evidência, declaran-
térios, cuja imagem os egípcios
do e reconhecendo que a tenta-
tiravam de seus santuários todos
ção de Cristo figurava já na mi-
os anos e em um dia determina-
tologia persa, como tentação de
do (25 de dezembro ). Deste me-
Zoroastro, e acrescenta: Nenhum
nino proclamava-se mãe a deusa
súdito persa, que passeasse pe-
de Sais, na famosa inscrição: O
las ruas de Jerusalém, poderia
Deus que pari é o Sol. O deus
deixar de reconhecer imediata-
Horus teve também a sua fuga,
mente este maravilhoso mito.
levado pela virgem Ísis, montada
Mais adiante veremos a sur- sobre um jumento.
preendente semelhança entre os
O mesmo mito foi aplicado no
mistérios persas e os cristãos, se-
Egito ao rei Amenófis III, que
melhança tão extraordinária, que
convém recordar aqui por ser um
S. Justino, não podendo negá-la
nem sabendo explicá-la com ra- 226
Segundo a lenda egípcia, no dia em que
zões favoráveis à ortodoxia, acu- nasceu Osiris uma voz gritou do alto do céu,
que tinha nascido o Senhor de todo o mundo.
sava o diabo de ter revelado aos (Plutarco, De Isis e Osiris, XIII O evangelis-
persas os mistérios do cristianis- ta Lucas (II, 11) apenas copiou a lenda egíp-
cia.
112
documento da maior importância templo de Baco operava-se o mi-
para demonstrar que, dezoito sé- lagre da mudança de água em vi-
culos antes de Cristo, os mistéri- nho, tal qual fez Jesus nas bodas
os que se encontram no Evange- de Canaã.
lho de Lucas (c. I e II) já eram Igualmente, Adônis, cujo
conhecidos. nome significa meu senhor, tinha
Trata-se de um quadro pintado as suas festas que duravam oito
numa das paredes do templo de dias (adonias), quatro de luto
Luxor, no qual se veem as cenas pela sua morte e quatro de ale-
da Anunciação, da Concepção, gria pela sua apoteótica ressur-
do Nascimento e da Adoração. reição. Uma verdadeira semana
Este quadro foi reproduzido por santa sem lhe faltar nem mesmo
G. Massey no seu livro Natural os santos sepulcros, onde as mu-
Genesis227. Na primeira cena, o lheres executavam lamentações
Deus Yath, o Mercúrio lunar fúnebres em torno do deus mor-
(anjo Gabriel) saúda a virgem e to. Apagavam-se todos os círios,
lhe anuncia que ela dará à luz menos um (o pascal) que se es-
um filho. Na cena seguinte, o condia no altar, para de novo ser
Deus Knept (o Espírito) produz mostrado no dia da ressurreição.
a concepção. Na cena da adora- Depois, o deus morto ressuscita-
ção, o menino recebe as home- va e o luto dava lugar à alegria.
nagens dos deuses e as oferendas Estas festas continuaram a ser
de três personagens (os Magos). celebradas no mundo antigo, es-
Também Baco nasceu no sols- pecialmente entre os fenícios,
tício do inverno, depois de mor- durante mais de cinco séculos,
to desceu aos infernos e ressus- antes de se transformarem nas da
citou, e a cada ano se celebra- paixão de Cristo.
vam os mistérios da sua paixão Um dos rasgos característicos
no equinócio da primavera. Cha- dos Deuses Redentores é a sua
mava-se Salvador, como Cristo, descida aos infernos, durante o
e como ele, realizava milagres tempo em que estão mortos.
curando enfermos e prevendo o Também antes de Cristo e em
futuro. Na sua infância, ameaça- idênticas condições, Baco, Osí-
ram matá-lo, como Herodes a ris, Cristna, Mitra e Adónis,
Jesus, em uma emboscada. No aproveitam o tempo em que es-
227
tavam mortos para fazer nova vi-
Citado por Malvert in Ciência e sita aos defuntos. (Dupuis, Ori-
Religião.
113
gem de Todos os Cultos, V, 204- Até agora temos demonstrado
348). suficientemente que, quando
Poderemos continuar a rese- Cristo foi concebido, já tinham
nha dos Deuses Redentores, de existido muitos Cristos antes
idênticos caracteres e notórios dele.
representantes do Sol: como Ati O leitor, neste ponto, deve por
na Frígia, Belenho entre os Cel- si próprio tirar suas conclusões e
tas, Joel entre os germanos, Fo deduzir consequências espontâ-
entre os chineses, etc. neas e naturais.
114
CAPÍTULO II
A MITOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É ORIGINAL
123
CAPÍTULO III
ORIGEM E SIGNIFICADO DOS DEUSES REDENTORES
129
CAPÍTULO IV
CRISTO É UM MITO SOLAR
138
Quarta Parte
Formação
Impessoal do
Cristianismo
139
CAPÍTULO I
A MORAL CRISTÃ SEM CRISTO
151
CAPÍTULO II
A DOUTRINA CRISTÃ SEM CRISTO
159
CAPÍTULO III
O CULTO CRISTÃO SEM CRISTO
260
Stephanoni, História Crítica das
Superstições, vol. 1, cap. XVI.
166
CAPÍTULO IV
FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO CRISTIANISMO
177
CAPÍTULO V
COMO ACONTECEU O TRIUNFO DO CRISTIANISMO
190
Conclusão
191
CONCLUSÃO