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* EMÍLIO BOSSI *

***
JESUS CRISTO
NUNCA EXISTIU

***
P UBLICADO ORIGINALMENTE COM O
PSEUDÔNIMO “M ILESBO ”

***
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* EMÍLIO BOSSI *
***
JESUS CRISTO
NUNCA EXISTIU
***
P UBLICADO ORIGINALMENTE COM O
PSEUDÔNIMO “M ILESBO ”

***
(T R A D U Ç Ã O D E A U G U S T O D E C A S T R O – 1900)
E DI T O R A J O Ã O C A R NE I R O - L I S B OA

(T R A D U ÇÃ O D E T H O M A Z D A F O N S E C A – 1909)
A L M AN A C H E N C YC L O P E DI C O I L US T RA D O - L I SB O A

3
E MÍLIO BOSSI
(1870 - 1920)

Estátua em Bruzella - Suíça

4
TEMA

“De Jesus Cristo, pessoa real, ser humano, a


história não nos conservou documento algum,
prova alguma, demonstração alguma”.
Assim começa um dos ensaios mais polêmicos
e surpreendentes dos anos 1900. O advogado Emí-
lio Bossi desmonta minuciosamente, ponto a pon-
to, com extrema habilidade e rigor, qualquer vaga
ideia que a nossa cultura possa ter a respeito de
um personagem chamado Jesus Cristo.
Seria ele filho de Deus? Este não é um argu-
mento de pesquisa histórica e, consequentemente,
nem deste ensaio.
Viveu ele realmente, ainda que somente como
pessoa física?
Bossi declara um categórico NÃO demostrando
taxativamente, com provas e mais provas, que não
há nenhum traço de evidência ou sequer sombra
de suspeita da possível existência deste homem
chamado Jesus.
Este ensaio mordaz de 1900 (Raramente reim-
presso) é uma viagem através dos mecanismos
meméticos da evolução cultural; mostra como as
religiões mais primitivas e os rituais mais antigos
evoluíram para o que hoje se chama "verdade re-
velada".
5
SUMÁRIO
TEMA...........................................................................................................................................5
PERFIL DO AUTOR..................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................9
PRIMEIRA PARTE – CRISTO NA HISTÓRIA...................................................................14
CAPÍTULO I..................................................................................................................................
O SILÊNCIO DA HISTÓRIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE CRISTO.......................15
CAPÍTULO II................................................................................................................................
AS SUPOSTAS PROVAS HISTÓRICAS DA EXISTÊNCIA DE CRISTO.......................21
CAPÍTULO III................................................................................................................................
PROVAS HISTÓRICAS CONTRA A EXISTÊNCIA DE CRISTO....................................27
CAPÍTULO IV................................................................................................................................
JESUS CRISTO NÃO É PESSOA HISTÓRICA..................................................................33
SEGUNDA PARTE – CRISTO NA NÉVOA.........................................................................42
CAPÍTULO I.................................................................................................................................
A BÍBLIA NÃO TEM VALOR DE PROVA..........................................................................43
CAPÍTULO II.................................................................................................................................
JESUS CRISTO É PESSOA ABSOLUTAMENTE SOBRENATURAL...............................49
CAPÍTULO III...............................................................................................................................
A PRÓPRIA BÍBLIA FALA DE CRISTO APENAS SIMBOLICAMENTE......................57
CAPÍTULO IV...............................................................................................................................
CRISTO É UM MITO ADAPTADO DAS ALEGORIAS DO ANTIGO
TESTAMENTO..........................................................................................................................64
CAPÍTULO V................................................................................................................................
CONTRADIÇÕES ESSENCIAIS DA BÍBLIA A CERCA DE CRISTO............................77
CAPÍTULO VI................................................................................................................................
ABSURDOS ESSENCIAIS DA BIBLIA ACERCA DE CRISTO.......................................84
CAPÍTULO VII.............................................................................................................................
A MORAL SECTÁRIA DOS EVANGELHOS NÃO É OBRA DE UM
HOMEM, MAS SIM , DA TEOLOGIA..................................................................................92
TERCEIRA PARTE – CRISTO NA MITOLOGIA............................................................105
CAPÍTULO I.................................................................................................................................
CRISTO ANTES DE CRISTO..............................................................................................106
CAPÍTULO II................................................................................................................................
A MITOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É ORIGINAL..............................115
CAPÍTULO III...............................................................................................................................
ORIGEM E SIGNIFICADO DOS DEUSES REDENTORES............................................124
CAPÍTULO IV...............................................................................................................................
CRISTO É UM MITO SOLAR............................................................................................130
QUARTA PARTE – FORMAÇÃO IMPESSOAL DO CRISTIANISMO ........................139
CAPÍTULO I.................................................................................................................................
A MORAL CRISTÃ SEM CRISTO.....................................................................................140
CAPÍTULO II................................................................................................................................
A DOUTRINA CRISTÃ SEM CRISTO...............................................................................152
CAPÍTULO III...............................................................................................................................
O CULTO CRISTÃO SEM CRISTO...................................................................................160
CAPÍTULO IV...............................................................................................................................
FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO CRISTIANISMO.........................................................167
CAPÍTULO V................................................................................................................................
COMO ACONTECEU O TRIUNFO DO CRISTIANISMO..............................................178
CONCLUSÃO.........................................................................................................................191

6
PERFIL DO AUTOR

Emilio Bossi nasceu em Bru- Departamento do Interior (1910-


zella (cidade do Cantão suíço de 14). De 1905 a 1910, ocupou o
Ticino) em 31 de dezembro de cargo de juiz de instrução substi-
1870, filho de um arquiteto, tuto.
Francisco, e de Emilia Contesta- Liberal radical, foi com Ro-
bile. meo Manzoni, o flagelo impla-
Iniciou seus estudos no Liceu cável da política "oportunista" e
de Lugano e bacharelou-se em das "transações" de Rinaldo Si-
direito na cidade de Genebra. men.
Empreendeu carreira no jorna- Em 1897 foi um dos fundado-
lismo e ganhou fama como um res da União Social Radical Tici-
grande polemista com o pseudô- nense, uma associação que, além
nimo de Milesbo. das reformas sociais defendia,
Foi adversário inflexível do propugnava a escola neutra e a
clericalismo e defensor acérrimo separação entre Igreja e Estado.
da italianidade de Ticino. Travou Com Manzoni foi o líder ca-
duras batalhas contra os "mena- rismático da Extrema Radical,
torroni" (desonestos) da vida pú- fundada em 1902 após uma vio-
blica. lenta polêmica com a corrente de
Colaborou com o jornal "O Simen.
Dever" desde 1891 e foi seu di- Em seguida à sua entrada no
retor em 1920 e editor de 1896 a Conselho de Estado, Bossi foi
1902. De 1915 a 1920 dirigiu A forçado a se adequar à lógica das
Gazeta Ticinense. Foi diretor do negociações. Em consequência,
semanário Nova Vida em 1893 e a Radical Extrema desaparece
fundou o jornal Ideia Moderna como grupo autônomo.
em 1895. Em 1906 fundou e edi- Morreu 27 de novembro de
tou A Ação, órgão do Extrema 1920, em Lugano.
Radical.
Jesus Cristo Nunca Existiu foi
Foi deputado do Grande Con- publicado simultaneamente em
selho (1905-1910, 1914-1920), 1904 em Milão (Milan Editorial
do Conselho Nacional (1914- da Companhia) e em Bellinzona,
1920) e do Conselho dos Esta- Suíça (El. elm. Colombi e C.).
dos (1920). Como tal, dirigiu o
Também em Milão foi reedita-
7
do em 1905 e 1906. Bibliografia
Revê a luz em 1951 em Bolo- 1899 - Sobre a Separação Entre
nha, pela Lida, com um apêndice o Estado e a Igreja.
de Andre Lorulot. Finalmente, 1900 - Jesus Cristo Nunca Exis-
em 1976, se encontra publicado tiu
em Ragusa pela La Fiaccola.
1909 - A Clerezia e a Liberdade
Não se conhece outras edi-
1916 - Vinte Meses de História
ções.
Suíça

8
INTRODUÇÃO

Uma nova primavera agita a que é relativo e progressivo aqui,


vida humana: é a primavera da continua absoluto, necessário e
idade positiva, que se inaugura imóvel ali; o que constitui aqui a
sob um duplo aspecto. base do progresso e do conheci-
De um lado, o aspecto moral, mento, ali está excluído, porque
que jaz sob uma forte camada de é a fé que reina soberana; o que
gelo e trevas invernais. As novas aqui alenta os ânimos para o pro-
ideias, fecundadas pelo saber po- gresso e a liberdade, ali está es-
sitivo, encontram obstáculo fatal magado, porque é a autoridade
ao seu desenvolvimento no con- que domina.
junto das falsos conceitos forma- Já é tempo de restabelecer a
dos pela educação religiosa, que unidade do mundo moral e do
sobrevive na forma inercial, mundo material, do pensamento
como muito bem diz Haeckel, e e da ação, do ideal e da realida-
está em contraste com tudo que à de, porque a vida é una, e as leis
ciência vem descobrindo, con- que governam o mundo físico e o
traste que se manifesta nas Men- mundo moral são idênticas. Bas-
tiras Convencionais da Nossa ta, para isso, aplicar à ciência
Civilização descritas por Max moral, ainda na infância, os mé-
Nordau, e no Século Hipócrita, todos que fizeram triunfar a ciên-
descrito por Mantegazza. cia positiva, isto é, a liberdade na
E de outro lado, no campo da investigação, o experimentalis-
ciência positiva, que demoliu e mo como instrumento e o racio-
desfez para sempre a bagagem nalismo como sistema.
da superstição, do dogma e do É preciso desconsiderar todas
apriorismo escolástico, para fe- as crenças tradicionais e abando-
cundar com a potente energia do ná-las ao seu destino, conservan-
progresso material as veias do do somente as que resistam à crí-
corpo social, o pensamento liber- tica; aquelas que, apenas com a
tado, a autonomia da razão hu- experiência e o exame, traba-
mana, a ciência positiva armada lhem na construção de um novo
do método experimental. edifício moral, com atividade e
O que é verdade aqui é erro voz cada vez mais intensa e fe-
ali; é bem aqui, o que é mal ali; o bril, e que deve coroar o soberbo,
o esplêndido e imortal edifício
9
das descobertas positivas de útil lógica, ajudada pela filosofia,
aplicação que a ciência vem le- pela arqueologia e pelas desco-
vantando, para que, da união bertas dos viajantes, tinha afir-
desses dois monumentos, nasça mado que as lendas, os mitos, as
um novo templo: o Templo da narrações e os preceitos do Anti-
Humanidade. go e do Novo Testamento não
Animados por essas ideias, di- são mais do que variações feitas
recionamos esta nossa modestís- sobre as lendas, mitos, narrações
sima obra ao exame dos dois mil e preceitos da mesma natureza,
anos de crença em Jesus Cristo, anteriores ao Cristianismo, so-
partindo do ponto em que já che- bretudo da China, Judeia, Pérsia,
garam a crítica histórica, a exe- Mesopotâmia e do Egito.
gese bíblica, a ciência mitológica Estas investigações e esta crí-
e a teoria da evolução aplicada à tica, para não citar as primeiras
investigação das origens naturais seitas heréticas nem os protestos
do Cristianismo. Deste exame, da filosofia pagã, especialmente
empreendido unicamente por de Celso, que, em parte, abala-
amor à Verdade e sem qualquer ram a Igreja Triunfante, começa-
inclinação teológica ou antiteoló- ram com a Renascença italiana,
gica, conclui-se que Cristo nunca continuaram com a Reforma e
existiu. chegaram ao seu apogeu na
A crítica histórica já tinha no- França com os filósofos do sécu-
tado o silêncio da História sobre lo XVII e na Alemanha com os
Cristo, e assinalava como suspei- críticos e os sábios do século
tas as passagens dos poucos his- XIX.
toriadores profanos daquele tem- O estudo acerca do Cristianis-
po sobre a sua existência históri- mo tinha chegado a este ponto
ca, enquanto que a exegese bíbli- quando a Inglaterra aperfeiçoou
ca já tinha reduzido o Antigo e estabeleceu cientificamente,
Testamento a uma obra apócrifa com Darwin e Spencer, a Teoria
composta pela casta dos sacerdo- da Evolução, que, levando em
tes para edificação dos fieis. Ou- conta a evidência das leis da Na-
tro tanto vinha fazendo a respeito tureza, do pensamento e da histó-
do Novo Testamento, ratificando ria, se apresentava como o gran-
muito pouco do que se quer fazer de argumento, a lanterna mágica
passar por histórico. que explica e interpreta o curso
Por outro lado, a ciência mito- das relações humanas e nos faz
10
compreender o progressivo de- fetichista veneração ao Sagrado
senvolvimento das instituições e entre os Sagrados, ao Cristianis-
da sociedade. E mesmo quando mo. Foi então que os espíritos
não tinha ainda sido reduzida a positivos, não podendo mais ad-
sistema científico, a Teoria da mitir nada de sobrenatural na ci-
Evolução foi aplicada com muita ência moral, como tampouco se
antecedência por Vico, Leibnitz e admitiu nas ciências físicas, se
Condorcet, à historia em geral, e, dedicaram a explicar natural-
especialmente por Tindall, ao mente a origem e o desenvolvi-
próprio Cristianismo. mento do Cristianismo. Esta foi a
Tindall, há dois séculos no seu obra primordial de Ernesto Ha-
Cristianismo Antigo Como o vet.
Mundo, tinha precedido já os O resultado da crítica históri-
mais avançados entre os moder- ca, bíblica e mitológica, e o da
nos, demonstrando que o Cristia- aplicação da teoria da evolução
nismo não era produto de nenhu- ao Cristianismo, foi reduzir-se ou
ma revelação, mas apenas o re- inutilizar-se a pessoa de Cristo,
sultado necessário da influência enquanto, pelos fins do século
de um conjunto indecifrável de XVIII, Dupuis e Volney, funda-
fatores diversos na determinação mentados na teologia comparada
da essência, extensão e eficácia e na explicação solar do mito dos
do sistema religioso cristão; que Deuses Redentores, negavam
este era consequência dos fatos com poderosas razões, revelado-
que o precederam e do ambiente ras de uma grande cultura, a
em que nasceu, quando a huma- existência humana de Cristo.
nidade estava ainda subjugada Essas razões, porém, não fo-
em suas dores, juízos, aspirações ram aceitas pela crítica, não por-
e esperanças mais ou menos qui- que não fossem justas, mas por-
méricas; que ele, enfim, desapa- que esta não estava ainda sufici-
receria, quando todas as circuns- entemente amadurecida. O mes-
tâncias a que devia a existência mo sucede com os mitólogos que
fossem totalmente transforma- vieram, depois, com todas as
das. provas, acumuladas, da identida-
Porém, só quando a Teoria da de mitológica de Cristo com
Evolução dominou efetivamente Cristna, Buda, Mitra, Horus, etc.,
no campo da natureza, é que ou seja, com os Deuses Redento-
conseguiu vencer a tradicional e res da antiguidade. Esses mitólo-
11
gos não ousaram negar em abso- Como conciliar, dada a sua
luto a pessoa de um Jesus he- existência, a missão de conservar
breu, contentando-se uns com ro- o mosaísmo, que ele se atribui -
deá-lo com um engrandecimento ainda que o mosaísmo fosse apó-
lendário e uma divinização mito- crifo, bastava que Jesus acredi-
lógica, e outros com ambas. E tasse nele para que se arrogasse
como nesse exame todos parti- tal missão - com a missão opos-
ram de um ou vários pontos de ta, de o destruir, o que, por outro
vista parciais e unilaterais, em lado, se lhe atribui?
vez de se apoiarem e completa- Como explicar o fato de Jesus,
rem reciprocamente, destruíram nascido e criado entre hebreus,
a obra comum, criticando-se uns filho de um obscuro artista, igno-
aos outros nos pontos controver- rando a literatura grega, segundo
sos, e acabando por se elimina- atestam mesmo os seus pretendi-
rem mutuamente. dos discípulos, conhecer os li-
Enquanto que a interpretação vros de Platão, conforme o pre-
evolucionista baste para explicar tende Celso, em resposta a igual
a origem e a formação do Cristi- pergunta de Orígenes, que, por
anismo, com o aditamento das outro lado, não pensa sequer em
preciosas informações postas à conciliar o fato da ignorância he-
sua disposição pela mitologia lênica de Cristo com o fato de
comparada, a presença de Jesus ele, no quarto Evangelho especi-
continua como um último obstá- almente, falar como um discípu-
culo à completa explicação do lo de Platão, como se fosse um
cristianismo segundo o método Fílon?
científico, mesmo que excluindo Ernesto Renan, o grande ro-
a sua presença e considerando mancista de Cristo porém, infun-
que a crítica bíblica e histórica damentado, perante a observação
tenham reduzido as fontes da de Celso, não responde melhor
crença em Jesus à sua mais ínfi- do que Orígenes: Reconhecemos
ma expressão. no cristianismo - diz ele - uma
Posto isto, os últimos mistéri- obra excessivamente complexa
os, únicos pontos obscuros que para que possa ser trabalho de
permanecem sem explicação no um só homem. Acreditamos, pelo
cristianismo - e não são poucos - contrário, que nela tenha cola-
são os que derivam da pretendida borado a humanidade inteira...
existência do Cristo. Jesus ignorava o nome de Buda,
12
de Zoroastro, de Platão. Não leu cluir pela sua negativa.
nenhum livro grego, nenhum su- Tal é o fruto da presente obra
tra búdico, e, não obstante, reu- que oferecemos a público sem
nia em si mais de um elemento, nenhuma pretensão literária, com
que, sem que ele próprio o sus- o único fim de contribuir para di-
peitasse, procedia do budismo, vulgar o racionalismo entre o
do parsismo e da sabedoria gre- povo em lugar de fazer uma obra
ga - intervenções que se realiza- de grande erudição. Além disso,
vam por canais secretos, por es- este livro não vem dizer nada de
sas simpatias existentes entre as novo. É apenas um trabalho de
diversas partes da humanidade. síntese, de integração e de lógi-
Quando homens do valor e da ca, no qual organizamos os resul-
inteligência de Renan se veem tados obtidos pela crítica e pela
obrigados, ante a incompatibili- erudição.
dade de Jesus com a explicação E, assim, como os resultados
do Cristianismo, a recorrer aos de uma ciência ou, de uma deter-
citados argumentos só cabíveis minada ordem do investigações
num faquir hindu, num astrólogo completam os resultados obtidos
medieval ou num médium do es- por outra ciência ou por outra or-
piritismo ilusionista, e quando se dem de investigações, aqui tam-
pensa no amor infinito que Re- bém, do concurso dos diversos
nan põe no seu personagem, é elementos da verdade, surge a
permitido duvidar de que a pes- conclusão lógica de que Cristo
soa de Cristo seja histórica. nunca existiu.
Esta dúvida que em nós surge, Esta conclusão é, por outro
em virtude da absoluta impossi- lado, o ponto de partida necessá-
bilidade de se explicar satisfato- rio para os futuros progressos da
riamente o Cristianismo e os pró- ciência, neste campo.
prios Evangelhos, sem lhes tirar
Seja qual for o juízo emitido
a pessoa de Cristo - desde que
sobre o presente trabalho, tenha-
não se creia na sua divindade,
se sempre em conta que é obra
pois à fé nada pode parecer estra-
de um profano que se propôs
nho ou impossível - reforça a
aplicar o bom senso natural à crí-
suspeita que nos levou a exami-
tica do Cristianismo.
nar de perto a questão da existên-
cia histórica do Cristo e a con- Emílio Bossi - Milesbo

13
Primeira Parte

Cristo na
História

14
CAPÍTULO I
O SILÊNCIO DA HISTÓRIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE CRISTO

De Jesus Cristo, pessoa real, existência é notória, como Xeno-


ser humano, a história não nos fonte, Aristipo, Euclides, Fédon,
conservou documento algum, Ésquilo e o divino Platão, ao
prova alguma, demonstração al- passo que, dos discípulos de
guma. Cristo nada escreveu1. Cristo nenhum é conhecido, a
É certo que Sócrates também não ser se dermos crédito a do-
nada escreveu, limitando- se ao cumentos de pura fé, totalmente
ensino oral. Mas, entre o Cristo suspeitos.
e Sócrates, há três diferenças ca- De sorte que, pelo fato de Só-
pitais: a primeira consiste no crates nada escrever, não se pode
fato de Sócrates não ensinar concluir que ele não existiu, ao
nada que não fosse racional, hu- passo que é permitido admitir le-
mana, ao passo que Cristo pouco gitimamente, pelo menos a título
tem de humano, e esse pouco de probabilidade, que Cristo, que
ainda misturado com muita coisa teria vivido cinco séculos mais
milagrosa; a segunda diferença tarde, nada deixou escrito. Cristo
deduz-se da circunstância de Só- não só nada escreveu, como ne-
crates ter passado à história só nhuma linha foi escrita a seu res-
como personagem natural, en- peito.
quanto Cristo nasceu e foi co- Sem levar em conta a Bíblia
nhecido apenas como pessoa so- que, além de não dar nenhuma
brenatural; a terceira, enfim, ba- prova sobre a personalidade real
seia-se em Sócrates ter por discí- do Cristo, ainda demonstra o
pulos pessoas históricas, cuja contrário. Dos muitos autores
1
A pretensa carta ao rei Abgaro provou- profanos que foram contemporâ-
se que foi uma piedosa fraude. Orígenes neos de Cristo, nenhum nos dei-
e Santo Agostinho, para não irmos mais xou o menor vestígio acerca
longe, excluem-na, declarando, por um
modo formal, que Cristo nunca escreve-
dele.
ra coisa alguma. Além disso, a própria Os únicos autores leigos que
Igreja em tal ponto concorda, pois não a lhe mencionaram o nome – Flá-
inclui entre os documentos canônicos,
como teria feito, se, porventura, ela ti-
vio Josefo,Tácito, Suetônio e
vesse alguma aparência de autenticida- Plínio – ou foram interpolados e
de. O mesmo pode dizer-se da carta de falsificados, como aconteceu aos
Pilatos a Tibério.
15
dois primeiros, ou, como os dois passant e, ao enumerar as seitas
restantes, falaram de Cristo ape- do seu tempo, não cita a dos
nas etimologicamente para de- cristãos.
signarem seus seguidores e a su- A Mishná, diz ainda Renan,
perstição que tomou o seu nome. nada fala sobre a nova doutrina;
Escreveram muito tempo depois, os personagens dos dois Gema-
sem o terem conhecido, sem da- ros, como se qualifica o funda-
rem provas da sua existência, e dor do Cristianismo, não nos le-
em termos tais que só servem vam além do quarto ou quinto
para comprovar que ele nunca século3.
existiu.
Um escritor hebreu, Justo de
Ernesto Renan, o mais célebre Tiberíades, que narrou a história
dos cristólogos, que cometeu o dos hebreus desde Moisés até
erro de fazer da Vida de Jesus fins do ano 50 da era cristã, não
uma biografia quando não passa cita sequer o nome de Cristo, se-
de uma engenhosa lenda, vê-se gundo atesta Fócio.
obrigado a reconhecer o silêncio
Juvenal, que fustigou com a
da história em volta do seu he-
sátira as crenças do seu tempo,
rói. Ele escreve que os países
fala extensamente dos hebreus,
gregos e romanos nunca ouvi-
mas não dedica uma única pala-
ram falar de Cristo. Mesmo com
vra aos cristãos como se eles não
os movimentos sediciosos pro-
existissem4.
vocados pela sua doutrina e as
perseguições de que foram alvo Plutarco, nascido 50 anos de-
os seus discípulos, ainda assim o pois de Cristo, historiador emi-
seu nome não aparece nos auto- nente e consciencioso, que de-
res profanos durante o primeiro certo não poderia ignorar a exis-
século depois da sua morte, se- tência de Cristo e dos seus pro-
quer indiretamente. dígios, nem uma só vez alude,
em suas numerosas obras, quer
No judaísmo, Jesus não dei-
ao chefe da nova fé, quer a seus
xou impressão duradoura. Fílon,
que morreu no ano 50, nada sabe
acerca dele. Josefo, nascido no tir que a passagem de Josefo foi alterada
por mão cristã. Porque, só alterada?
ano 37 e que escreveu até fins do Como veremos, foi interpolada.
primeiro século, narra a sua con- 3
Renan, Vida de Jesus, vol. IV, cap. XX-
denação em algumas linhas2 en VIII
4
Stefanoni, Dicionário Filosófico, a voz
2
Que o próprio Renan anota para adver- de Jesus
16
discípulos. que morreu alguns anos depois
Cesare Cantù, a quem a cren- deste, nada sabe ou diz acerca
ça mais cega e indigna de um dele.
historiador vedou os olhos, mis- Como escritor distintíssimo
tura fatos históricos com as in- que foi, ocupou-se especialmen-
venções mais absurdas do cristi- te de estudos sobre filosofia e re-
anismo. Desiludido da sua fé ligião, e, por certo, não esquece-
pelo silêncio de Plutarco, conso- ria Cristo, seu compatriota de
la-se dizendo que Plutarco é sin- origem, se Cristo realmente ti-
cero na crença das suas divinda- vesse aparecido sobre a face da
des e que por isso, em nenhuma terra e levado a cabo uma tão
das obras que escreveu sobre grande revolução do espírito hu-
moral se refere aos cristãos5. mano.
Sêneca, que por seus escritos Uma circunstância de grande
cheios de máximas perfeitamen- relevo torna mais eloquente o si-
te cristãs faz duvidar se foi cris- lêncio de Fílon em torno de
tão ou teve relações com os dis- Cristo: é que todos os ensina-
cípulos de Cristo, no seu livro mentos de Fílon podem passar
sobre as crenças, extraviado ou por cristãos, de tal sorte que Ha-
destruído, dado a conhecer por vet não hesitou em chamar a Fí-
Santo Agostinho, não diz uma lon um verdadeiro Padre da Igre-
única palavra acerca de Cristo, e, ja.
falando dos cristãos, aparecidos Por outro lado, Fílon se preo-
já em muitos pontos da terra, cupou especialmente em conju-
não os distingue dos hebreus, a gar o judaísmo com o helenismo
quem chama de um povo abomi- tomando do Antigo Testamento
nável6. as partes mais edificantes, de-
Mas sobretudo expressivo e pois de distinguir o sentido ale-
decisivo é o silencio de Fílon górico do literal, enxertando na
acerca de Cristo. árvore da religião hebraica o
Fílon, que contaria de 25 a 30 misticismo dos neoplatônicos
anos, quando apareceu Cristo, e alexandrinos. Deste modo, che-
gou a formar uma doutrina pla-
5
C. Cantù, História Universal, Época tônica do Verbo ou Logos, que
VI, Parte II tem muita afinidade com a do IV
6
Ernest Havet, O Cristianismo e suas Evangelho, na qual o Logos é
Origens. O Helenismo, tomo II, Ch.
XIV
precisamente o Cristo. Pois bem:
17
não é isto uma grande pessoa humana, da existência
revelação? material e histórica de Cristo?
Fílon, que vive no tempo de Em suma: se Cristo um dia
Cristo, que já é célebre antes do existiu, como explicar a incom-
nascimento dele, e que morre preensível anomalia de que Fílon
ainda alguns anos depois; Fílon, não fale dele?
que realiza com o Judaísmo a Por outro lado, Fílon, o Platão
mesma transformação, heleniza- hebreu, alexandrino, contem-
ção e platonização idêntica à que porâneo de Cristo fala de todos
os Evangelhos promovem, so- os acontecimentos e de todos os
bretudo o IV; Fílon, que fala do personagens principais do seu
Logos ou do Verbo do mesmo tempo e do seu país, sem esque-
modo que o IV Evangelho, por- cer Pilatos. Conhece e descreve
que não cita Cristo uma única os essênios estabelecidos junto
vez sequer em suas numerosas de Jerusalém nas ribeiras do Jor-
obras? dão. Foi como delegado a Roma
Porventura, não prova este para defender os hebreus no rei-
fato eloquentíssimo que Cristo nado de Calígula, o que faz su-
nunca foi pessoa histórica e real, por nele um profundo conhece-
mas sim pura invenção ou cria- dor das coisas e nomes da sua
ção mitológica e metafísica, para terra. Se Cristo tivesse existido,
o que contribuiu mais do que Fílon certamente ver-se-ia obri-
ninguém o próprio Fílon, que es- gado a, no mínimo, a referir-se a
creveu, como se fosse um cris- ele.
tão, sem saber nada de tal nome, O silêncio de todos os escrito-
que fala do Verbo sem conhecer res contemporâneos acerca de
o Cristo, e que ensina a mesma Cristo tem sido, nestes últimos
doutrina atribuída Cristo? tempos, objeto da mais atenta
Se Fílon pôde falar do Verbo e consideração por parte da verda-
escrever como se fosse um cris- de histórica, embora alguns es-
tão, antes de Cristo, sem nada critores liberais tenham-no avali-
saber e nada dizer acerca dele, ado de maneira leviana e super-
não indica isto que o Cristianis- ficial.
mo se elaborou sem Jesus e por Salvador explica o fenômeno
obra precisamente e principal- apoiando-se em débil vestígio
mente do mesmo Fílon, que não deixado em Jerusalém pelo filho
diz uma única palavra acerca da
18
de Maria7. O próprio Stefanoni sustentou aos doze anos com os
não pode explicar o fenômeno doutores; desde a multiplicação
sem reduzir o nascimento de do número e a transformação da
Cristo e toda a sua vida a pro- natureza dos elementos à cura
porções demasiadamente mes- dos enfermos e à ressurreição
quinhas, circunscritas aos limites dos mortos; desde. a dominação
de uma ocorrência comum8. Mas dos elementos às trevas e terre-
esta explicação é inadequada. motos, que assinalaram a sua
Nós não conhecemos mais do morte até à sua própria ressurrei-
que um único Jesus: o dos Evan- ção.
gelhos e dos Atos dos Apóstolos. Ora, perante um personagem
Este personagem não deixou ne- tão extraordinário e aconteci-
nhum vestígio em Jerusalém, mentos tais que atrairia a aten-
contra o que pretende Salvador; ção das pessoas mais indiferen-
sua vida não foi mesquinha, em tes e excitaria a curiosidade dos
oposição ao que supõe Stefano- cronistas, analistas e historiógra-
ni, ao contrário, a vida de Cristo, fos, o silêncio da história é abso-
segundo a Bíblia, foi de tal for- lutamente inexplicável. Inveros-
ma rumorosa e extraordinária símil e singularíssimo, como
que nenhum outro Ser Humano acertadamente notou Dide9. Este
viveu algo semelhante. silêncio constitui, por irrespon-
Jesus deu causa a alvoroços dível, uma grande presunção
públicos, a prisão, a um proces- contra a existência histórica e
so, a um drama judicial seguido real de Cristo. Outros elementos
de morte trágica. Realizou prodí- críticos nos provam que só a ine-
gios maravilhosos, desde a visita xistência de Cristo pode explicar
dos anjos até as estrelas que o silêncio da história em volta
marchavam para indicar o lugar dele, e que, por sua vez, este si-
do seu nascimento aos soberanos lêncio demonstra aquela não
vindos da Ásia expressamente existência.
para o visitar; desde a degolação O mesmo silêncio da História
dos inocentes às discussões que acerca de Jesus revela-se tam-
bém a respeito dos apóstolos, so-
7
J. Salvador, Jesus Cristo e sua Doutri- bre os quais não existem outros
na, tomo I, livro II. documentos senão os eclesiásti-
8
Luigi Stefanoni, lugar mencionado
também na Histótia Crítica das 9
A. Dide, O fim das Religiões, Paris,
Superstições, Vol II , Cap. I. Flamarion, pag. 55.
19
cos, destituídos de todo o valor rados apócrifos pela própria
provativo, pois que nô-los apre- Igreja. Outro tanto pode afirmar-
sentam, não como homens natu- se de José e de Maria, progenito-
rais, mas como personagens so- res de Cristo, e bem assim de
brenaturais, ou pelo menos, tau- seus irmãos e de toda a sua famí-
maturgos, o que vem a dar na lia.
mesma10. Todas estas circunstâncias au-
Os únicos fatos históricos que mentam a significação do silên-
se atribuem aos apóstolos, tais cio da história em volta de Cris-
como a viagem de S. Pedro a to, circunstâncias que adquirem
Roma e as suas disputas com Si- maior valor quando se vê que
mão Mago, o encontro de S. Pe- Cristo, Maria e os Apóstolos são
dro com Jesus e o famoso Quo puras criações místicas.
vadis, Domine?, morte de S. Pe-
dro e outros fatos, são narrados
exclusivamente em livros decla-

10
Emilio Ferriére, no seu excelente livro
Os apóstolos demonstra a impossibili-
dade de S. Pedro ter estado em Roma,
impossibilidade esta confirmada pelo si-
lêncio dos mais antigos escritores da
Igreja, até á segunda metade do século
IV. Porém, o autor comete o equívoco
de tomar como fonte histórica os Atos
dos Apóstolos, escolhendo as poucas
notas que estes nos deixaram, como se
fossem notícias verdadeiras. A simples
consideração de que nada do que nar-
ram os Atos está conforme com qual-
quer dos autores profanos deveria bastar
para nos pôr em guarda a respeito desta
fonte, que não pertence de modo algum
à Bíblia porque, até na compilação dos
livros canônicos da Bíblia, a Igreja teve
o astucioso cuidado de se descartar de
todos os documentos que falavam de
Cristo, Maria ou dos Apóstolos que pu-
dessem ser facilmente impugnados pela
crítica histórica, evitando, assim, o peri-
go de se pô-lo a descoberto desde o seu
princípio.
20
CAPÍTULO II
AS SUPOSTAS PROVAS HISTÓRICAS DA EXISTÊNCIA DE CRISTO

Os únicos autores profanos não o abandonaram nem mesmo


que falaram de Cristo reputados depois de morto. Vivo e ressusci-
como testemunhas da sua exis- tado, reapareceu no terceiro dia
tência foram Tácito, Suetônio e da sua morte como o haviam
o historiador hebreu Josefo. predito os santos profetas, e rea-
Vamos, pois, examinar um a lizou muitas outras coisas mila-
um estes testemunhos para ver- grosas. A sociedade cristã que
mos que, não só não constituem ainda hoje subsiste, tomou dele
prova da existência de Cristo, o seu nome11.
como também são novas de- Salvador, Renan, Stefanoni e
monstrações do contrário. vários outros escritores nada di-
De todos os historiadores cita- zem acerca da possibilidade de
dos, o único que poderia ter va- terem sido alteradas as palavras
lor de prova pela sua qualidade de Josefo, o que se compreende
de historiador hebreu é Josefo, em autores que, embora não
ainda que tenha vivido e escrito creiam na divindade de Jesus,
muitos anos depois do período abrigam em si a crença nesse
que se considera como sendo o Cristo Homem, mais ou menos
da vida de Cristo. extraordinário, do qual se origi-
nou o Cristianismo.
Josefo fala de Cristo apenas
casualmente nestas poucas li- Porém, uma análise criteriosa
nhas: Naquele mesmo tempo, levará à convicção de que a pas-
nasceu Jesus, homem sábio, se é sagem de Josefo relativa a Jesus
que pode se chamar de homem foi interpolada. O texto está per-
pois realizou obras admiráveis, dido no meio de um capítulo,
ensinando aqueles que queriam sem conexão alguma com o as-
inspirar-se na Verdade. Não só sunto que o precede e o que lhe
foi seguido por muitos hebreus, sucede, intercalado nos relatos
como também por alguns gre- de um castigo militar infligido
gos. Era o Cristo. E, tendo sido ao populacho de Jerusalém e dos
denunciado a Pilatos pelos prin- amores de uma matrona romana
cipais da nossa nação, este fê-lo
crucificar. Os seus partidários 11
Josefo, Antiguidades Judaicas, Livro
XVIII, cap. III
21
com um cavalheiro que obtém os obrigado a reconhecer que Jose-
seus favores fazendo-se passar fo não pôde falar daquele modo,
por uma personificação do Deus como o faria um cristão, e que,
Anúbis. por conseguinte, deve ser consi-
Além do mais, estes dois derado apócrifo e intercalado o
eventos históricos são relacio- texto referido13
nados entre si. Estão interligados Além disso, constitui-se em
porque o historiador, ao relatar o prova direta e definitiva desta in-
segundo, chama-lhe de outro terpolação o fato de S. Justino,
acidente deplorável, donde se S. Cypriano, Tertuliano e Oríge-
depreende que esse outro aci- nes, em suas numerosas e arden-
dente deplorável só pode estar tes polêmicas contra os hebreus
relacionado com o primeiro, do e pagãos, não citarem esta passa-
motim popular e a consequente gem de Josefo.
repressão. Orígenes declara que Josefo
A passagem intercalada entre não reconhecia Cristo14 na pes-
esses dois acontecimentos não soa de Jesus, o que não diria se o
pode ser atribuída a Josefo por- personagem citado por Josefo
que rompe bruscamente o fio da fosse conhecido no seu tempo.
narração, e o autor revela-se, em Em suma: por consenso de to-
toda a sua obra, mestre na arte dos os críticos sensatos e compe-
de colocar cada coisa em seu lu- tentes, esta passagem de Josefo
gar12. foi julgada interpolada por uma
Além disso, na referida passa- piedosa fraude dos cristãos pri-
gem, Josefo fala de Cristo como mitivos.
o faria um bom cristão, pois con- Cita-se, ainda, outra passagem
sidera-o um ser sobrenatural e de Josefo (Livr. XX, cap. 9), na
relaciona-o com as predições qual, falando na condenação de
dos profetas. Thiago, acrescenta: Irmão de Je-
Como pôde Josefo empregar sus, chamado o Cristo. Aqui Jo-
semelhante linguagem, isto é, sefo se contradiz porque fala de
acreditar na divindade de Cristo Cristo como de um homem qual-
sem ser cristão e continuando quer, demonstrando que não crê
hebreu? É tanta a evidência que 13
Larroque, Exame crítico das doutri-
até o erudito padre Gillet se vê
nas da religião cristã. Prim. Part. cap.
12
A. Peyrat, História elementar e críti- IV.
14
ca de Jesus. Conclusão. Contra Celso, livro 1, § 47.
22
na sua divindade, ao passo que lada, nada mais nos resta do que
noutro lugar mostra acreditar ler Fócio, que declara formal-
nela. mente que nenhum hebreu ja-
Esta contradição se esclarece mais falou de Cristo.
ao se considerar interpolada ou Vejamos, agora, Tácito.
desfigurada a passagem anterior- A passagem deste historiador,
mente relatada. que pode apresentar-se como
Mas, na realidade, não há cri- testemunho a favor da existência
tério fixo para aceitar a primazia de Jesus, é a seguinte:
de uma ou de outra das duas pas- Nero, sem grande alarde, sub-
sagens contraditórias, de forma meteu a processo e a penas
que, não só uma exclui a outra, anormais aqueles que o vulgo
como as duas se excluem mutua- chamava cristãos, por causa do
mente. Apenas que na última, a ódio que lhes votava por suas
interpolação foi feita com maior feitiçarias. Quem lhes deu o
astúcia do que na primeira, pois nome foi Cristo, a quem Pôncio
nela Josefo fala como hebreu Pilatos, no reinado de Tibério,
que era, o que se explica por ser condenou ao suplício. Apenas
anterior à primeira, já que existia reprimida, esta perniciosa su-
no tempo de Orígenes e exigiu perstição (o cristianismo) fez
maior prudência. novamente das suas. Não na Ju-
A última passagem não é e deia, de onde provinha todo o
não pode ser considerada autên- mal, mas na própria Roma, para
tica pela simples, óbvia e inde- onde afluíam de toda a parte os
clinável razão de que, se Josefo sectários, cometendo as ações
houvesse tido efetivamente notí- mais audaciosas e vergonhosas.
cias de Jesus, chamado o Cristo, Por testemunho dos que os puni-
não teria deixado de se explanar am e pela opinião pública geral,
muito mais sobre a sua vida, tra- (os cristãos) eram incendiários e
tando-se de um homem que to- professavam ódio extremo ao
mara uma parte tão grande, tão gênero humano15.
notável, tão extraordinária, tão Nunca se cometeu uma falsifi-
original e culminante na história cação mais evidente em detri-
do seu país. Se alguma dúvida mento do grande historiador ro-
ainda restou sobre a prova defi- mano, falsificação esta que se
nitiva de que a passagem de Jo-
sefo acerca de Jesus foi interpo- 15
Tácito, Anais, livro 15, § 44.
23
estende a todo o texto. Outra circunstância, que prova
Enquanto Tácito afirma que o a interpolação, encontra-se na
vulgo chamava assim aos cris- passagem do mesmo Tácito,
tãos porque eram odiados por oportunamente revelada por Ga-
suas feitiçarias, o falsificador fá- neval17 e onde o eminente histo-
lo contradizer-se nas linhas que riador romano (Liv. II, § 85) diz
logo se seguem, e nas quais pre- que foram expulsos de Roma os
tende que os cristãos procediam hebreus e os egípcios, que for-
de Cristo. mavam uma única superstição.
Tal contradição é impossível Neste ponto, é evidente que Tá-
num escritor da envergadura de cito não faz proceder da Judeia
Tácito, e resulta da interpolação os cristãos, mas do Egito, destru-
das palavras que se referem a indo assim a pretendida origem
Cristo, porque a etimologia dada etimológica dos cristãos de Cris-
por Tácito ao nome dos cristãos to, origem essa que o obriga a
é somente a que corresponde à defender na passagem que vimos
sua opinião favorável dos cris- de examinar.
tãos, expressamente posta e deparamos sempre com o motivo pelo
mantida em todo o trecho em qual Tácito colocou naquela passagem o
per flagitia invisos, que não teria, em tal
que ele fala dos mesmos16.
caso, relação alguma com o resto do
texto, ao passo que estaria em seu lugar
16
Nota da segunda edição. “quos per na filípica que dedica, mais à frente, aos
flagitia invisos vulgus Christianos ap- cristãos. Pelo contrário, este trecho esta-
pellabat”. (que, odiados por seus cri- ria perfeitamente no seu lugar, mesmo
mes, eram popularmente conhecidos como está porque tem relação com o
como cristãos). Os nossos anticríticos trecho seguinte, em que Tácito fala dos
caíram sobre a tradução desta passagem cristãos, admitindo nós a interpolação
de Tácito com tanta disposição quanto é do período intermédio em que se faz di-
certo terem a insânia de crer que, enfra- zer a Tácito que o nome de Cristãos
quecido assim o nosso argumento, fica- vem de Cristo. Mas, deixemos na dúvi-
va comprometida a seriedade do livro. da essa questão etimológica: resultaria
À falta de melhor juízo, pensaram que, daí que Tácito deu testemunho histórico
atacando este argumento, feriam o pró- de Cristo? De modo algum. Ainda nesta
prio calcanhar de Aquiles. Pois bem: hipótese, não teria feito mais que citar o
queremos deixar na dúvida a questão de que os cristãos diziam, especialmente
saber se Tácito quis dar ao nome dos nos tribunais, para dar a conhecer a pre-
cristãos a origem da aversão que inspi- tendida origem histórica da sua supersti-
ravam com suas feitiçarias. Queremos ção.
17
admitir que não haja relação alguma eti- Ganeval, Luiz – Jesus, perante a
mológica, pelo menos aparente, entre o história, nunca existiu. Cap. IV – Gene-
homem e o assunto. Mas, nesse caso, bra. Livraria Veresoff etc... 1874
24
De maneira que os que falsifi- A passagem de Suetônio é
caram esta passagem esquece- ainda mais breve e mais contra-
ram-se de falsificar aquela onde ditória.
Tácito ignora Cristo, absoluta- Roma – diz ele, falando do
mente, e onde afirma, como em reinado de Cláudio – expulsou
seu lugar demonstraremos, que o os judeus que, instigados por
Cristianismo não procede de Cresto, promoviam contínuos tu-
Cristo, mas sim da fusão do he- multos19.
braísmo, do orientalismo e do
Ponhamos de lado a diferença
helenismo, realizada no Egito.
entre Cresto e Cristo20 para ana-
Mesmo que não se quisesse lisarmos a dificuldade a que dá
admitir esta fraude, o testemu- origem a pessoa aludida por Su-
nho de Tácito não provaria de etônio.
modo algum a existência de
Se era Cristo, como acreditar
Cristo, visto que ele o cita unica-
que tenha sido expulso de Roma
mente para dar a origem etimo-
onde nunca esteve? E, se esteve
lógica do nome dos cristãos.
em Roma, como podia ele viver
Não se pode admitir que Táci- ainda no tempo de Cláudio, se
to tenha escrito acerca de Cristo Tácito nos diz que foi crucifica-
da forma enganosa com que o fi- do no reinado de Tibério, que
zeram escrever, pois se Cristo ti- precedera o de Calígula e este o
vesse realmente existido, saben- de Cláudio? Em vista disto, for-
do-o ou conhecendo-o, o histori- çoso é reconhecer que os dois
ador teria falado certamente testemunhos, de Tácito e Suetô-
muito mais a respeito dele, nun-
ca limitando-se a falar de um ho- do caminho e que outros, mais compe-
mem extraordinário, em poucas tentes do que nós, têm apoiado a inter-
palavras, ditas a correr e entre polação de Tácito.
19
Suetônio, Vida de Cláudio, cap. 25.
incidentes ocasionais18 . 20
Esta questão etimológica não é tão
desprezível assim, como Larroque e ou-
18
Alfredo Taglialatela, no Rinnovamen- tros consideraram. Ganeval pretende
to di Roma de 23 de julho de 1904, n. que o nome de Cristo,empregado pelos
30, faz saber que Hochart sustentou a cristãos nos séculos I e II em Roma, e
interpolação de Tácito com muito mais nos livros sybillinos no Egito seja uma
veemência do que nós o fizemos. Igno- derivação do nome de Cresto, aplicado
ramos a crítica de Hochart e lamenta- a Serápis, Bom e Agathos. Ainda, se-
mos muito. Mas somos gratos ao sr. Ta- gundo ele, Cristo é uma pura e simples
glialatela, pela, sua informação, que transformação do Deus morto e ressus-
vem a confirmar que não estamos fora citado do Egito.
25
nio, a respeito de Cristo, se ex- tas para ocultar verdade. E como
cluem e se eliminam mutuamen- as falsificações deviam ter sido
te. praticadas para fazer crer na
O testemunho de Plínio, o existência de Cristo, temos de
Moço, então é quase estranho ao deduzir, logicamente, que ele
debate. Numa carta enviada a nunca existiu, pois não seria ne-
Trajano, fala em Cristo21, não cessário falsificar a história para
como pessoa de quem se preten- nos provarem a sua existência.
de demonstrar existência histó-
ria, mas como divindade simbo-
lizadora da adoração dos cris-
tãos. Pela mesma razão, teria
aludido a Brahma, falando dos
brahmanes, para indicar o objeto
do seu culto, sem com isto que-
rer demonstrar a existência de
Brahma. Em suma: Plínio falou
de Cristo só etimologicamente,
sem emitir opinião alguma sobre
a sua existência.
Portanto, fora os testemunhos
de Suetônio e de Plínio por im-
pertinentes à questão, e demons-
trada a falsificação do que se
atribui a Josefo e a Tácito, o que
fica das pretendidas provas his-
tóricas da existência de Cristo?
Nada, absolutamente: apenas
a prova do contrário. Teriam
sido necessárias as falsificações
para provar a existência de Cris-
to se esta fosse real?
As falsificações só foram fei-
21
Todos comigo invocaram os Deuses e
ofereceram incenso e vinho à tua ima-
gem, maldizendo o Cristo. (Plinio Epist.
97, liv. X.
26
CAPÍTULO III
PROVAS HISTÓRICAS CONTRA A EXISTÊNCIA DE CRISTO

A história não só ignora Cris- não ser correta mas somente pro-
to, não só prova que os autores vável, muito provável, mesmo
profanos que dele falaram foram porque, Serápis é certamente o
neste ponto falsificados, mas até, deus que tem mais analogias
existem outras provas históricas com Cristo.
que demonstram a sua não exis- No nosso entender, Ganeval
tência. não desenvolveu adequadamente
Chamamos de históricas a es- a sua tese. Foi infeliz ao lhe in-
tas provas porque são fatos verí- troduzir elementos análogos aos
dicos, certos e positivos, porque da mitologia dos outros povos
são testemunhos concretos e vá- orientais. Deveria ter percebido
lidos de escritores e de determi- que, apesar de certas expressões
nadas escolas, ao passo que as simbólicas referentes à cópula,
provas que apresentaremos a se- como Serápis, Cristo não é tanto
guir, ainda que valiosas, não têm a encarnação alegórica do Phal-
o mesmo valor histórico por se- lus como o é do Sol.
rem deduções exegéticas da bí- Entretanto, façamos-lhe a de-
blia e da mitologia comparada, vida justiça, reconhecendo que
extraídas de documentos própri- descobriu a verdade da lenda de
os da fé cristã e da história das Cristo e dos relatos da história,
crenças humanas. quando é certo que, antes dele,
Ganeval reuniu grande núme- só Dupuis e Volney abordaram a
ro dessas provas na sua obra Je- tese da mitologia comparada.
sus, Perante a História, Nunca Existiu, Entretanto, as provas se acumu-
excelente pela sua convicção e lam, e os recentes trabalhos con-
séria pelo seu propósito, obra vergem todos para a demonstra-
que merecia melhor sorte apesar ção definitiva desta verdade.
das suas repetições provenientes As provas históricas contra a
da falta de sistematização e da existência de Cristo provém dos
unilateralidade da tese que vê em hebreus, dos pagãos e até de al-
Cristo uma transformação pura e guns cristãos primitivos e padres
simples de Serápis, tese que po- da Igreja. Parecerá estranho, mas
derá ser justa mas, por falta de é assim, como veremos.
documentação suficiente, pode
27
O hebreu alexandrino Fílon, duas vezes no tempo de Augusto
no seu livro sobre os terapeutas, e uma terceira no tempo de Tibé-
relata que estes viviam como rio, no ano 19 da nossa era.
verdadeiros cristãos, que abando- Estas expulsões desmentem
naram bens e família para se de- implicitamente a existência de
dicarem ao ascetismo, que ti- Jesus, pois tiveram lugar antes de
nham livros religiosos e seguiam se falar do nome cristão, referin-
as máximas de seus pais. do-se evidentemente à supersti-
Eusébio, na sua História, (liv. ção judaico egípcia - que se con-
II, cap. X e XVII) confirma isso funde com o cristianismo - nas-
afirmando que os livros de que cido da fusão do judaísmo com o
fala Fílon eram os Evangelhos e orientalismo egípcio, com vestí-
os escritos dos Apóstolos, e de- gios muito próximos do neopla-
clara que os terapeutas citados tonismo alexandrino 23.
por Fílon são os cristãos solitári- Outro padre da Igreja, S.
os.22 Epifânio, confirma as palavras
O que se conclui destes docu- de Fílon e de Eusébio. Segundo
mentos é que o cristianismo é ele, os terapeutas do Egito cita-
muito anterior a Fílon. Portanto, dos por Fílon, que habitavam
se os Evangelhos e os escritos junto do lago Mareótides, são os
dos Apóstolos já existiam antes cristãos24 que tinham o seu Evan-
de Fílon, e se Fílon nasceu 25 ou gelho e os seus Apóstolos.
30 anos antes de Cristo, vê-se Fílon falou dos cristãos, como
logo que a existência dos cristãos sendo muito anteriores a si pró-
é anterior a Cristo. prio, atribuindo-lhes um Evange-
E isto se confirma pelo fato lho e vários Apóstolos.
dos judeus e egípcios, que for- Isto exclui absolutamente a
mavam uma única superstição – existência de Cristo, pois este te-
os cristãos, no dizer de Tácito – ria nascido quando Fílon já con-
terem sido expulsos de Roma
23
Não é exagero dizer que não existia
22
Alfred Maury, no estudo da história do ainda a palavra cristão quando já existia
começo do cristianismo contido em seu a superstição judaico cristã. De fato, o
livro Crenças e Lendas da Antiguidade, cristianismo existiu algum tempo antes
chama isso de uma má interpretação de do seu nome. Este só foi elaborado e cri-
Eusébio. Mas não explica as razões. ado muito depois, pelo processo de dife-
Enquanto que ele próprio, algumas renciação.
24
linhas antes, cita Filon entre aqueles que S. Epifânio, Cont. er., p.120. In Gane-
têm servido de guia para Eusebio. val.
28
tava 25 a 30 anos, e Fílon não Evangelhos que logo se atribuí-
poderia esquecê-lo já que se ocu- ram a Cristo.
pava dos cristãos. Não faltou também um falsifi-
Além disso, sabe-se que os cador cristão que ousou dizer a
Evangelhos atuais não aparece- Orígenes que, no seu Evangelho
ram senão muito tempo depois sobre o Deus Bom, Fílon falara
de Cristo, de modo que não pode de Jesus sem escrever o seu
ser a eles que Fílon alude falando nome 26.
dos livros (os Evangelhos, se- E se este Evangelho de Fílon
gundo Eusébio) e dos terapeutas acerca do Deus Serápis, Evange-
(os cristãos, segundo Epifânio). lho um século anterior ao dos
O testemunho de Fílon contra a cristãos, era essencialmente se-
existência de Cristo é tanto mais melhante aos que depois vieram
formidável quanto o mesmo Fí- a ser os Evangelhos cristãos, fi-
lon contribuiu intensamente para camos na dúvida sobre se ele
a formação do cristianismo25. quis fazer crer, falando de Será-
Fócio opina que é dele que pis, o Deus morto e ressuscitado
procede a linguagem histórica da do Egito, que se referira a Cristo
Escritura. Ainda mais: Fílon es- (ainda que o falsificador diga:
crevera um tratado, um verdadei- sem o nomeá-lo).
ro Evangelho acerca do Deus Logo, temos de reconhecer
Bom (Serápis) – livro que foi que Fílon foi um dos fundadores
destruído – e cujas alegorias de- dessa crença que depois se con-
viam ser tão semelhantes às dos verteu em cristianismo, que es-
25
Nota da segunda edição. Parece haver creveu um Evangelho mais tarde
aqui uma contradição, visto termos afir- atribuído a Jesus, que Fílon não
mado que o Cristianismo é anterior a Fí-
26
lon, e dizermos mais adiante que foi ele Eis a passagem de Orígenes interpola-
o seu principal fundador. Se entender- da: "No livro III de sua obra Sobre o
mos que a multiplicidade de crenças que Deus Bom, Filon escreve um episódio
formam uma doutrina, uma fé, um siste- alegórico sobre Jesus, ainda que não
ma complexo de dogmas, máximas e ri- citando seu nome” (Contra Celso). Ga-
tos é produto da colaboração de varias neval demonstra que o nome de Jesus
gerações, de vários séculos e de muitos foi interpolado na obra de Orígenes. Se
sábios, até que encontre o seu precípuo Fílon tivesse escrito sobre Jesus, citaria
expositor, este tem direito a ser conside- a ele e não a Ágatos, que era o deus Se-
rado o seu fundador. Assim, pode dizer- rápis. A falsificação é tanto mais eviden-
se que Marx é o fundador do socialismo, te quanto é certo que Fílon e Orígenes
embora. este já existisse séculos antes, nem conheceram nem nunca falaram de
em vias de formação. Jesus.
29
conheceu e nem citou em seus seus Evangelhos e os seus Após-
trabalhos. tolos; que estes Terapeutas eram
Posto isto, o silêncio de Fílon os cristãos primitivos, e segundo
acerca de Jesus não só prova que Eusébio e Epifânio, existiram
este nunca existiu, como autoriza muito antes de Cristo e, enfim,
e legitima a hipótese – que no que o mesmo Cristo nunca exis-
desenvolver deste trabalho será tiu.
corroborada por outras provas 27 – Pondo de lado as inúmeras
de que Fílon foi o principal fun- provas que Fílon nos fornece29,
dador do cristianismo. vejamos as que nos dão cristãos
Os seus copiadores não fize- autênticos e de valor perante a
ram mais do que introduzir o Igreja – S. Clemente Alexandri-
nome de Jesus em lugar do de no e Orígenes – cujos testemu-
Serápis, substituindo o Deus nhos são tanto mais concluden-
Bom dos egípcios por outro Deus tes, quanto é certo terem contri-
morto e ressuscitado, que é Je- buído poderosamente para a di-
sus28. fusão do cristianismo.
Em qualquer dos casos, fica S. Clemente Alexandrino e
evidente que Fílon escreveu um Orígenes, este último falecido no
Evangelho sobre Serápis, o qual ano 254, negam a encarnação, e,
logo pôde adaptar-se a Jesus, por conseguinte, a existência de
donde, segundo Fócio, se deriva- Cristo.
ram os Evangelhos posteriores. É Assim se depreende da análise
igualmente certo que Fílon des- feita pelo patriarca Fócio que, fa-
creveu os Terapeutas como mui- lando do livro das Disputas de S.
to anteriores a Cristo, tendo já os
29
Dide, na obra já citada, põe em desta-
27
Veja-se, Parte IV, Cap. II. que um diálogo com Trifon, de Justino
28
Um eloquente testemunho citado por mártir, no qual o hebreu Trifon nega a
Ganeval para denunciar a origem egíp- existência e a aparição de Cristo sobre a
cia dos Evangelhos está nas alegorias do terra, dizendo: se Jesus nasceu, em al-
jumento e dos porcos. Especialmente gum ponto da terra, esse ponto é com-
deve se notar a parábola do filho pródi- pletamente desconhecido. Faz notar que
go, que se faz guardador de porcos, e o Celso, cuja obra foi destruída, não nega
milagre dos demônios arrojados dos a existência de Cristo. Celso, porém, que
possessos para os porcos. Tanto um viveu no século II não cuidou de tal as-
como o outro destes episódios estão to- sunto, visto que a sua tese era outra, e
talmente deslocados na Judeia, mas não que esta se limitou a refutar o cristianis-
no Egito, onde o porco era a imagem da mo, valendo-se para isso dos próprios li-
dissolução e símbolo do demônio. vros da nova religião.
30
Clemente, afirma que nele o au- zida como as projeções dos raios
tor declarara que Logos, o Verbo, do Sol.
nunca encarnara (p. 286, in Ga- Como se vê, as três opiniões
neval, c. II e III) e, analisando os concordam em negar a existência
quatro livros dos Princípios, de de Cristo. E trata-se de santos e
Orígenes, mostra-nos que este teólogos célebres, insuspeitos de
falava de Cristo segundo a lenda aversão contra o cristianismo, do
e que, a respeito da encarnação qual foram os principais e mais
do Salvador, opinava que o mes- autorizados propagadores.
mo Espírito se encontrava em
Cita ainda Ganeval, apoiando-
Moisés, nos profetas e nos após-
se em Fócio, as opiniões de
tolos, o que leva Fócio a declarar
Eunomius, Agápio, Carmim, Eu-
escandalizado que neste livro
lógio e outros cristãos primiti-
Orígenes escreveu muitas blasfê-
vos, que todos eles formaram do
mias30.
Cresto um conceito que exclui a
A nós só importa constatar que sua existência material e corpó-
a forma pela qual se exprimem rea.
S. Clemente e Orígenes, falando
E finalmente lembra o juízo
do Verbo, do Cresto e do Salva-
do S. Epifânio acerca das mais
dor, exclui absolutamente a exis-
antigas seitas heréticas dos Mar-
tência de Cristo, pois nenhum
cinitas, Valentinianos, Gnósticos,
deles assim falaria se Cristo ti-
Simonianos, Saturnilianos, Basi-
vesse sido um homem real e ver-
lidianos, Nicolasianos e outros,
dadeiro. E nem nós poderíamos
dos quais deduz que o Deus Re-
pormenorizar mais, visto que es-
dentor dos cristãos é Horus, filho
ses livros foram todos destruí-
da Trindade egípcia, convertido
dos.
mais tarde em Serápis.
Ganeval cita ainda os testemu-
A estas seitas mencionadas por
nhos de S. Irineu, Papias e S.
Ganeval, que negavam a existên-
Justino, o primeiro dos quais
cia do Verbo, deve juntar-se es-
afirma que o Deus cristão não é
pecialmente a dos Docetistas,
homem nem mulher; o segundo
impugnadores da realidade de
cita fragmentos do antigo Evan-
Cristo, que Salvador31 refuta no
gelho egípcio, e o último, falan-
livro Jesus Cristo E A Sua
do do Logos (Cristo), afirma que
Doutrina, citando o quarto Evan-
é uma emanação de Deus produ-
31
Salvador, Jesus Cristo E A Sua
30
Fócio, in Ganeval Doutrina, livro II, cap. II.
31
gelho que destaca o golpe de lan- acordo com todos os documentos
ça que fez manar sangue e água conhecidos daquela época.
do corpo de Cristo, e que isto Época em que não existiam
provaria a sua realidade. ainda os atuais Evangelhos, em
A existência desta seita é par- que Tácito nos revela que os he-
ticularmente importante, porque breus e os egípcios formavam
no dizer de S. Jerônimo 32, foi uma única superstição, em que
contemporânea dos Apóstolos. Fílon tinha já escrito sobre o
E, caso não fosse bastante o Deus Serápis, de tal fôrma que
que já foi dito, tínhamos Cerinto, facilitava a qualquer falsificador
Cerdon, Taciano, e os Ebionitas, cristão o ensejo de fazer crer que
todos eles impugnadores da exis- se referia a Cristo, e em que ha-
tência de Cristo, e, sobretudo, via já falado acerca dos cristãos
Saturnino, que segundo o abade primitivos – os Terapeutas – se-
Pluquet, viveu nos tempos e nas gundo a confissão de Eusébio e
paragens onde Cristo realizou os Epifânio, apresentando-os como
seus milagres, apesar de ter-lhe muito anteriores a ele, que por
negado, ele também, um corpo sua vez, era anterior a Cristo.
natural. Época em que, segundo S.
A negação da existência de Epifânio e Fócio, muitas seitas
Cristo por parte dos primeiros cristãs continuavam adorando a
heréticos, alguns dos quais vive- Horus como Deus Redentor, Fi-
ram no tempo e no lugar onde te- lho da Trindade egípcia. Época
riam residido Cristo e os Apósto- em que S. Clemente de Alexan-
los, é prova histórica evidente de dria e Orígenes escreveram ne-
que eles nunca existiram. Um gando Jesus e falando de Cristo –
testemunho valiosíssimo, apre- nesse tempo Cresto, segundo a
sentado também por Ganeval, é o lenda – tudo isto por confissão
do imperador Adriano que tendo do próprio Fócio33.
feito uma viagem a Alexandria
33
no ano 131 declarou que o Deus Ganeval cita, entre as provas Históri-
dos cristãos era Serápis e que os cas contra a existência de Cristo, a lin-
guagem de S. Paulo e daquele apóstolo
devotos de Serápis eram aqueles Apolo chamado também Cresto, que nos
a quem chamavam bispos dos Atos dos Apóstolos prega o cristianismo
cristãos. Sua opinião está de sem ser cristão. Provas graves, sem dú-
vida, por emanarem dos próprios docu-
32
Contra os luciferianos, cap. 8, in Es- mentos da fé, e de que falaremos, quan-
tefânio, Dicionário Filosófico. do tratarmos da Bíblia.
32
CAPÍTULO IV
JESUS CRISTO NÃO É PESSOA HISTÓRICA

Não só a história permanece Quase todos os que dela têm se


muda a respeito da pessoa de ocupado concordam em que o
Cristo; não só se demonstrou seu nascimento não coincide
que os autores históricos que com a era vulgar.
dele falam foram nesse ponto Durante os primeiros seis sé-
falsificados; não só existem pro- culos, depois da sua pretendida
vas históricas contra a existência existência, um monge, Dionísio
de Cristo, mas até se prova que a o Pequeno, não alude à era cris-
História nunca o conheceu, não tã, fixando o seu princípio, ou
podendo sequer conservar-nos a seja o nascimento de Cristo, no
sua fisionomia humana. ano 753 da fundação de Roma,
Cristo não é pessoa histórica; data julgada errada em pelo me-
é Deus, somente Deus, mais ou nos 6 anos, ainda que este erro
menos antropomorfizado. A pró- não possa ser facilmente de-
pria etimologia nos indica: Jesus monstrado. E é compreensível:
significa Salvador, Cristo signi- nada é mais difícil de ser de-
fica Ungido. monstrado do que aquilo que
Na própria Bíblia e no Antigo não existe. Calvisio e Moestlin
Testamento, o nome de Messias contam até 132 variantes e Fa-
ou de Cristo aplica-se a certos brício cerca de 200.
reis pagãos: a Cyro, segundo Nada há que demonstre exata-
Isaías (XLV, 1) e ao rei de Tyro, mente o dia do seu nascimento.
segundo Ezequiel (XXVIII, 14). Uns falam em 6 ou 10 de janei-
Aplica-se, também, a todo o ro; outros dizem 19 ou 20 de
povo e a todos os seus membros, abril, 20 ou 25 de março, e al-
como se vê nos Salmos. guns optam por dias e meses in-
Jesus Cristo quer dizer, pois: teiramente diversos. No Oriente
O que foi ungido Salvador. celebrou-se o nascimento de 1o a
8 de janeiro e no Ocidente, no
A própria etimologia demons-
dia 6 do mesmo mês.
tra que se não trata de uma pes-
soa histórica. João Crisóstomo, no ano 375,
falava em 25 de dezembro como
Em que ano, nasceu Cristo?
um uso introduzido no Oriente.
Difícil e tenebrosa questão!
33
Em Roma, fixou-se o nasci- toda a suspeita de um novo mito
mento de Cristo em 25 de de- em nada diferente do dos Deuses
zembro. Isto antes do ano 354, Redentores que nasciam somen-
segundo se vê num calendário de te em 25 de dezembro.
Bucer, daquela época34. E não só se ignora o dia e ano
Estas mudanças de datas fo- em que Cristo nasceu, como
ram interpretadas no sentido de também o lugar onde nasceu.
querer a Igreja colocar o nasci- Segundo algumas profecias,
mento do novo Deus em relação deviam ser em Nazaré, e, segun-
com os dos Deuses Salvadores e do outras, em Belém, visto que
especialmente com o do Deus devia descender de Davi. O se-
Invicto, ou seja Mitra, que em gundo e o quarto evangelistas
Roma se solenizava com grande nada dizem a tal respeito. O pri-
pompa, espetáculos e luminárias meiro e o terceiro, se bem que
no dia 25 de dezembro, tendo os falem dele, todavia contradizem-
cristãos conferido ao seu Cristo se, visto que um faz de Belém a
os atributos místicos daquele sua residência habitual, ao passo
deus Sol, cuja ressurreição os que o último, só por casualidade,
pagãos celebravam. numa narração de viagem inve-
Esta hipótese não excluiria a rossímil e impossível, o faz pas-
existência de Cristo, mas deporia sar por Belém. Além disso, fa-
muito em favor da sua diviniza- lam do assunto, relacionando-o
ção. Não obstante, fica destruída com as profecias, o que lhes tira
pelo fato de estar em relação todo o interesse e seriedade his-
com outras tantas datas mitoló- tórica, convertendo-se em fontes
gicas: por exemplo, a festa do suspeitas pela sua preocupação
achado de Osíris, que tinha lugar apologética que os desqualifica
a 6 de janeiro (Creuzer, Symbo- perante a crítica.
lik und Mithologie). Mas, a História, que não co-
Por aqui se vê que a formação nhece o nascimento de Cristo,
do mito foi laboriosa e longa, nem a data e nem o local, tam-
pois a Igreja primitiva fez todo o bém desconhece em absoluto a
possível para colocar o nasci- sua vida, a sua morte e todas as
mento de Cristo além do solstí- demais circunstâncias que, se-
cio do inverno, a fim de afastar gundo os Evangelhos, acompa-
34 nharam uma e outra.
Bianchi-Giovini, Crítica do Evan-
gelho, livro II. Assim também a famosa de-
34
golação dos inocentes, a não me- relações.35
nos famosa Estrela dos Magos e Enfim, não há uma única notí-
os próprios Magos, a morte trá- cia acerca da sua pessoa física.
gica do Cristo e os terremotos e
Cristo foi alto ou baixo? Bar-
trevas que a acompanharam que,
bado ou imberbe? Moreno ou
apesar de serem acontecimentos
loiro? Feio ou formoso? Nin-
de excepcional importância, nem
guém o disse, jamais, de um
sequer foram notados pelos con-
modo fixo e positivo, porque
temporâneos, nem ainda por
ninguém nunca o viu.
aqueles que deviam ter sido tes-
temunhas oculares dos mesmos Tertuliano o descreve como
fatos. feio, conforme uma profecia de
Isaías, estando nesse ponto de
O silêncio da história sobre
acordo com a Igreja do Oriente.
tais acontecimentos supõe algum
Santo Agostinho, porém, e com
motivo mais grave e significati-
ele a Igreja Latina, querem que
vo que um simples desconheci-
Jesus tenha sido formoso. Estas
mento histórico: supõe a invali-
duas opiniões foram a origem
dação da veracidade dos únicos
das diversas imagens de Cristo,
livros que narram tais coisas,
barbado ou imberbe. As disputas
isto é, dos Evangelhos.
Mas, há mais: Cristo, ainda 35
Anatole France, em sua pequena obra
que relatado pelos Evangelhos, prima O Procurador da Judeia, imagi-
nunca realizou qualquer ato pe- na, ao tempo de Vitélio, um encontro às
queno ou grande, desses que to- margens do golfo de Baia entre Lélio
Lâmia, patrício romano exilado por Ti-
dos os Homens fazem durante a bério, e Pôncio Pilatos. Lâmia pergun-
vida. Por exemplo: não tomou tou a Pôncio, a quem conhecera em Je-
parte na Política do seu país e do rusalém quando era procurador na Ju-
seu tempo; nem uma única vez deia, se ele se lembrava de um tauma-
turgo da Galileia chamado Jesus. “Pon-
foi importunado pela justiça ape-
tius Pilatus fronça les sourcils et porta la
sar da sua vida de vagabundo; main à son front comme quelqu'un qui
não levou a cabo ato ou sacrifí- cherche dans sa mémoire. Puis, après
cio algum do culto. quelques instants de silence: Jésus?
murmu-t-il, Jésus de Nazareth? Je ne
Nenhum dos homens históri- me rappelle pas”... "Pôncio Pilatos
cos, como Pilatos, Hannaz, Cai- franziu as sobrancelhas e levou a mão à
faz e outros, que deviam ter tido fronte como alguém que busca em sua
relações com Jesus, deixou al- memória. Então, após alguns instantes
de silêncio, murmurou: Jesus? Jesus de
gum vestígio dessas pretendidas Nazaré? Não me recordo” ...
35
duraram até ao século XVII, de- de Cristo, e não é pouco, provém
pois do que, prevaleceu o mode- das fontes cristãs, isto é, dos
lo atual de Cristo com cabeleira Evangelhos que não só não nos
espessa e barba farta. fornecem prova alguma da exis-
O sudário, que deveria ser um tência histórica de Cristo, como
retrato da face de Cristo, pois foi até nos confirmam a sua não
estampado pelo contato direto existência.
com o seu rosto, representa-o de Do tudo o que anteriormente
barba abundante. O sudário, po- se disse deduz-se que nada, ab-
rém, não é documento fidedigno, solutamente nada se sabe do
ou porque existem outros igual- Cristo Homem por meio da His-
mente autênticos, ou porque os tória, que é a única fonte incon-
evangelistas não estão de acordo testável em que devemos acredi-
sobre este ponto, e mesmo por- tar, sempre confirmada pelos
que há estátuas e afrescos de monumentos arqueológicos.
Cristo em que ele aparece, até Neste ponto, os que escreve-
fins do ano 326, completamente ram sobre a Vida de Jesus fra-
imberbe. cassaram inteiramente. Apenas
Por isso, o escritor Moy, que um ou dois, como Strauss e Re-
tratou este assunto com muito nan, conseguiram salvar o seu
interesse e consciência, conclui, nome, graças ao seu talento e en-
e com razão: Desde que se quei- genho.
ra tocar em alguma coisa real Os cristólogos, ou não fizeram
na vida de Jesus, não se encon- mais do que escrever romances,
tra mais do que contradição e como Renan, ou se fizeram tra-
incoerência. Se porém, alguma balhos sérios, foi apenas na parte
coisa há de indiscutível é essa crítica, como Strauss. Estes pu-
do aspecto físico de Jesus... deram salvar um fragmento, um
Para nós, a ausência total de in- traço da pessoa histórica de Cris-
formações precisas sobre sua to sem que, todavia, critério al-
aparência é uma prova certa de gum de demarcação os fizesse
que ninguém jamais o viu36. separar o real do fantástico, e
E, se ninguém o viu, claro sem perceberem que essa preten-
está que ele nunca existiu. dida realidade tinha o mesmo as-
Tudo o que se pretende saber pecto evangélico de tudo quanto
eles reconheceram antes como
36
Moy, Adoradores do Sol. fantástico.
36
Por conseguinte, não perdere- pende da fé em coisas, das quais
mos mais tempo com os cristólo- uma parte é absolutamente fictí-
gos e nem com os críticos que, cia, a outra incerta e somente
embora eliminando uma ou ou- uma parte mínima verdadeira (e
tra parte do Novo Testamento, veremos ainda que essa parte
pretendem conservar a pessoa mínima não existe) essa preten-
histórica de Cristo. são, dizia, é tão absurda que
O nosso trabalho consistirá, hoje nem vale a pena refutá-la37.
pois, cingindo-nos à lógica, e Poucas páginas antes, o mes-
indo até as últimas consequênci- mo Strauss dizia: Há quem não
as, em refutar indiretamente o o queira ouvir nem acreditar,
sistema ilógico dos cristólogos. mas todo aquele que se ocupar
Antes, porém, de prosseguir, sincera e seriamente deste as-
recolhamos algumas das con- sunto saberá tão bem como nós
clusões a que chegaram os críti- que na História, poucos grandes
cos mais autorizados, que tenta- homens há sobre os quais este-
ram a impossível tarefa de escre- jamos tão mal informados como
ver a vida de Jesus. a respeito de Jesus38.
Strauss, depois de ter dito que Ernesto Havet, confrontando a
tudo pode admitir-se como pro- certeza que se tem da existência
vável na vida de Cristo – coisa de Sócrates com a incerteza da
impossível, como veremos – existência de Cristo, diz: Sócra-
conclui sua obra colossal sobre a tes é uma pessoa real, Cristo é
Vida de Jesus: dizendo – Mas um personagem ideal. Conhece-
esta verossimilhança, vizinha da mos Sócrates por Xenofonte e
certeza (tão pouco deixou de Platão, que o conheceram e es-
subsistente, da história de Jesus, creveram sobre ele, na própria
e mesmo esse pouco se reduz a Atenas, entre os atenienses com
uma verossimilhança vizinha da os quais vivera, e logo após a
certeza) não vai até muito lon- sua morte. Ver-se-á pelo contrá-
ge... Poucas coisas são devida- rio, que todos os que falaram de
mente averiguadas e mesmo Jesus não o conheceram (Havet
aquelas a que de preferência se poderia ter acrescentado que
aferra a ortodoxia – as milagro- 37
Strauss, Nouvelle vie de Jésus , trad.
sas e sobre humanas – nunca franc. de Nefftzer e Dolfuss, v. 2, p. 418
aconteceram. A pretensão de e 419.
38
Strauss, Nouvelle vie de Jésus , trad.
que a salvação dos homens de- franc., v. 2, p. 415 e 416.
37
nem mesmo estes foram conhe- res dos Evangelhos e os primei-
cidos...), dirigindo-se a homens ros autores eclesiásticos, reco-
que ainda o conheciam menos; lhendo as tradições correntes na
que escreveram meio século de- comunidade cristã, poderiam
pois (esta versão é a ortodoxa, adquirir algum fragmento da
porém, nada garante que os verdade; porém, como assegu-
Evangelhos não sejam muito rá-lo ante tantos elementos mi-
posteriores à data fixada pela tológicos e legendários? Uma
tradição) em países que não vida de Jesus é, por conseguin-
eram o seu e em língua que não te, impossível40 .
era a sua. Esses não escreveram Enfim, Renan, o próprio autor
mais que uma lenda: Jesus é um da Vida de Jesus, mesmo sob a
personagem que não tem histó- impressão de fantasia do seu ro-
ria, não tem biografia. Não se mance e depois de reconhecer
fala de seu aspecto nem se indi- que há bem pouco o que dizer da
ca a sua idade. Sem dúvida que vida de Cristo, acrescenta: Jesus
não era casado, porquanto per- foi realmente um homem celesti-
tença àqueles que se faziam eu- al e original, ou um sectário he-
nucos para reino dos céus, o que breu parecido com João
não tiveram o cuidado de nos Batista? Queremos acreditar
fazer saber em termos bem ex- que o personagem real oferece
plícitos. Nada se diz acerca dos em si algum traço do persona-
seus costumes nem dos detalhes gem ideal. A nossa admiração
da sua vida. Dele só se contam não desapareceria, ainda mes-
as suas aparições, em sua boca mo quando a ciência nada pu-
só se põem oráculos. Tudo o desse dizer de certo e chegasse
mais fica envolto em trevas, tre- forçosamente às negações.
vas que são precisamente a Quem sabe se Jesus aparece à
substância das coisas divinas... nossa vista disfarçado com hu-
Numa palavra, os que os falam manas fraquezas somente por-
de Sócrates são testemunhas; os que o vemos de muito longe,
que nos falam de Jesus não o através da névoa da lenda?
conhecem, imaginam-no39. Quem sabe se aparece na histó-
Miron nos, diz, nada conhece- ria como o único homem irre-
mos da vida de Jesus. Os redato- preensível só porque faltam os
39 40
Ernest Havet, Le Christianisme et ses Miron, Jésus réduit à sa juste valeur,
origines, tom. I, p. 166-168. Genève, 1864, p. XIII.
38
meios para o criticar? Ai de mem ideal, personificado em
mim! Creio, com sinceridade Cristo, à humanidade e não a
que, se o tocássemos, como no Cristo, visto ser um ideal huma-
caso de Sócrates, encontraría- no a criação e personificação do
mos também a seus pés um pou- mesmo. Este ideal, porém, não
co do lodo terrestre. Quem sabe se encontra na Bíblia, onde de-
se, neste caso, como nas demais veria estar, se Cristo tivesse
criações do espírito humano, o existido. Pelo contrário, se Cris-
admirável, o divino, o celestial to aparece em nossa cultura, ino-
não seriam reivindicados com cente e limpo de toda a mancha,
iguais e legítimos direitos pela não é por obra da Bíblia nem de
humanidade? Em geral, a boa Cristo, criação humana, impes-
crítica deve desconfiar dos indi- soal, coletiva, mas pela fantasia
víduos, evitando entregar-se a da coletividade e do espírito
eles. Quem cria é a massa, por- dogmático dos que o criaram42.
que a massa possui, num grau Das palavras de Renan deduz-
de espontaneidade eminente- se, além disso, outra consequên-
mente superior, os instintos mo- cia, que ninguém ainda notou.
rais da natureza humana. A be- Se a beleza de Cristo é criação
leza de Beatriz pertence a Dante do espírito humano, como clara-
e não a Beatriz; a beleza de mente ele o deixa compreender,
Cristna corresponde ao gênio também a sua própria pessoa,
hindu e não a Cristna, assim pela mesma lógica e pelo mesmo
como a beleza de Jesus e de Ma- critério, poderia ser, como efeti-
ria é obra do cristianismo e não vamente é, uma criação do espí-
de Jesus e de Maria41. rito humano.
Renan não precisava ter dado Dide, no seu louvável livro
mais do que um passo para es- acerca do fim das religiões, aten-
clarecer a sua dúvida. De Cristo
só se disse bem porque, como 42
Aqueles que, tirando de Cristo a quali-
afirma Havet, não foi pessoa his- dade sobrenatural que nele é tudo, pre-
tórica, mas ideal. Mais adiante tendem conservá-lo ainda como pessoa
veremos que Renan foi bem su- humana, fato absolutamente incom-
cedido ao revelar uma intuição preensível, não só o expõem a um ames-
quinhamento histórico, como o levam a
admirável: atribuir o tipo do ho- absorver pechas que o tornariam indig-
no. Nós, se lhe executamos os funerais,
41
La liberté de discussion , tomo III, p. salvamo-lo ao menos da crítica huma-
468-469. nista fazendo-o subir da terra ao céu.
39
do-se às tentativas de Channing Jean Jaurés44. E assim, podería-
e dos unitários que negam abso- mos continuar aduzindo citações
lutamente todo o caráter sobre- da mesma natureza, até encher
natural a Cristo, mas se obsti- pelo menos todo um volume; po-
nam em considerá-lo como ho- rém, é melhor repetir com Virgí-
mem, exclama: Mas quem é este lio: ab uno disce onmes – por
Cristo? De que Cristo se trata? umas coisas tiramos as outras
Onde se encontra? Sucede com (Em bom português: Uma coisa
ele o mesmo que com todos os pucha outra).
entes legendários: quanto mais Não podemos,contudo, esque-
se procura, menos se encontra. cer Labanca, cuja obra – Jesus
A tentativa de lançar à historia Cristo – tem o mérito de reunir
e arrancar das trevas da teolo- todos os resultados até agora ob-
gia uma personalidade que, até tidos pela crítica a propósito des-
a idade de trinta anos, é absolu- te assunto. Labanca impugna a
tamente desconhecida, e que de- possibilidade de uma biografia
pois dessa idade só nos aparece científica de Jesus, quer pelas
em milagres, ora absurdos, ora múltiplas questões contra a au-
ridículos, é uma pretensão tão tenticidade de todos os pontos
difícil que, à priori, pode se di- dos Evangelhos, quer pela evi-
zer impossível43. dência que se observa na falta de
E, mais adiante, o mesmo au- um fim qualquer biográfico, mas
tor, falando da Vida de Jesus, do simplesmente de propaganda. A
padre Didon, faz ver que este au- respeito da vida de Jesus, Laban-
tor ortodoxo, para escrever a bi- ca, omitindo o sobrenatural, ob-
ografia de Jesus, se vê constran- serva que nada mais fica do que
gido a preencher com hipóteses um resíduo pequeníssimo, quase
a enorme lacuna da vida do seu reduzido a zero45.
Deus, provocando, desse modo 44
Jean Jaurès, L'action socialiste , p.
aos seus leitores esta reflexão: 122.
Então, quase nada se sabe sobre 45
Labanca queria se colocar entre os
a vida de Cristo? Pergunta que que clamaram pelo fracasso da
também se fez um dos mais no- interpretação lógica do mito de Strauss,
táveis leitores do livro do padre mas, adverte Dide, a Vida de Jesus de
Strauss, é e continua sendo o livro mais
Didon, o líder socialista francês, completo, o mais arguto e o mais
consistente dentre todos os que foram
publicados sobre o mesmo tema que,
43
Dide, La fin des religions, p. 316. sem ele não existiria ... E ao mesmo
40
Breve demonstraremos que
nem mesmo esse resíduo peque-
níssimo fica, e que, se alguma
coisa resta de Cristo, mesmo na
própria Bíblia, é a prova de que
jamais existiu um homem que se
chamasse Jesus Cristo. Entretan-
to, fechemos esta primeira parte,
com a confissão dos próprios
cristólogos: Cristo não é pessoa
histórica46.

tempo, acrescentamos nós, a


interpretação mitológica de Strauss será
a única parte duradoura de sua obra.
46
O último momento da crítica alemã
foi marcada pelo livro de Harnack: A
Essência do Cristianismo. Mas, além
dele não dizer nada de essencialmente
novo, comete o erro de fazer uso da
apologia e da teologia em seu trabalho,
o que tira a objetividade histórica e raci-
onalista necessárias numa obra séria de
crítica. T. Armani, ocupando-se do livro
de Harnac, publicou um opúsculo pela
Cooperativa Tipográfica Parmense, no
qual distingue com perspicácia, a pessoa
de Cristo da sua personalidade preexis-
tente nas profecias, o que seria suficien-
te para explicar o cristianismo sem a
pessoa mais ou menos histórica de Cris-
to.
41
Segunda Parte

Cristo
na Névoa *

*(As edições antigas citam “nebbia”; as mais recentes, “bibbia”.)


42
CAPÍTULO I
A BÍBLIA NÃO TEM VALOR DE PROVA

Demonstramos que Cristo não que transtornaram o Olimpo, o


é pessoa histórica, porque a His- despojam dos atributos divinos
tória, a verdadeira, não o conhe- para o conservarem ao menos
ce nem dele fala. como homem – um homem qua-
Vamos demonstrar, agora, que se divino que justifique o culto
a própria Bíblia, única fonte que que lhe tributa a Humanidade.
dele nos fala, nada prova a seu Iremos mais além do que os
favor, antes confirma a nossa críticos que nos precederam, não
tese. Cristo nunca existiu! porque tenhamos mais talentos,
Para o nosso propósito, não é mas porque a lógica tem, antes
preciso refazer a crítica bíblica que a crítica, as suas justas con-
nem repetir os profundos e in- sequências e conclusões a fim de
vencíveis argumentos de um que a verdade triunfe e brilhe.
Strauss e de toda a rica constela- E, se bem que seja pequeníssi-
ção de teólogos e de sábios, ver- ma a parte do Cristo histórico
dadeiros especialistas na maté- que quiseram salvar depois de
ria! terem destruído a rica cultura
Bastar-nos-á fazer coisa diver- mitológica e lendária47, demons-
sa de uma inútil repetição, de- traremos que Cristo não podia
monstrar que o exame, mesmo ter existido, porque a sua exis-
superficial, da Bíblia ou só do tência seria a negação da própria
Novo Testamento, que se ocupa humanidade.
de Jesus, não descobre a fisiono- Por conseguinte, dos Evange-
mia de um homem, mas sim de
47
um Deus. Para uns, Cristo foi pessoa histórica,
mas ampliada até as proporções de len-
Não nos ocuparemos do Deus: da. Para outros, a lenda foi substituida
esse abandonamos aos piedosos por uma pessoa mitológica justaposta à
cuidados dos seus ministros ca- pessoa histórica. Para nós, ele é inteira-
tólicos, que o crucificaram e mente mítico. A propósito, lenda e mito
são coisas diferentes. A lenda tem sem-
nele martelam a toda a hora. pre um fundamento verdadeiro e huma-
Abandonamo-lo aos cuidados no, mas exagerado até ao inverossímil,
dos seus ministros protestantes ao sobrenatural. O mito, pelo contrário,
que, para o salvarem das ruínas não tem origem em fatos verdadeiros: é
apenas criado pela imaginação humana.
43
lhos, dos Atos e das Epístolas tigo Testamento, lógico é que tal
dos Apóstolos escolheremos consequência se aplique também
apenas o que nos for preciso ao Novo Testamento, pois este,
para demonstrar a inconsistência do princípio ao fim se apoia na-
histórica de Cristo. Deveríamos quele.
talvez começar por pesar a auto- Estamos convencidos de que a
ridade do Novo Testamento, para crítica chegará um dia a confir-
ver qual valor de prova tem a mar esta hipótese, porque é den-
respeito das coisas que narra. tre todas, a mais racional.
Veremos porém que a Bíblia, an-
Por agora, basta saber que o
tes de provar o que nos conta, a
edifício bíblico se fundamenta
si própria deve provar.
todo em terreno duvidoso, incer-
Não é nosso objetivo recom- to e vago.
pilar do princípio ao fim tudo
De qualquer dos modos, a crí-
quanto a crítica histórica tem es-
tica já demonstrou o Novo Testa-
tabelecido a respeito da autenti-
mento não apresenta os requisi-
cidade dos referidos livros sa-
tos necessários para autenticar a
grados do cristianismo.
veracidade do que diz.
Quanto ao Antigo Testamento,
Todos os livros do Novo Tes-
basta observar que é tão pouco
tamento são anônimos. Cingin-
verídico e autorizado que tornou
do-nos aos Evangelhos, as pala-
legítima a hipótese de ter sido
vras precedidas pelas frases con-
alguns século anterior à época
sagradas, segundo Mateus, se-
assinalada para o aparecimento
gundo Marcos, etc., não só não
do cristianismo.
provam que foram realmente dos
Maurice Vernès, numa antevi- Apóstolos ali citados, mas até
são genial e muito convincente indicam que foram redigidos por
assegura que aquilo que os livros outros.
do Antigo Testamento narram
Ignora-se, em absoluto, a épo-
são, em geral, de feitura sacerdo-
ca precisa em que os Evangelhos
tal e profética, sem caráter al-
foram escritos. A referência mais
gum histórico, mas apenas sim-
antiga que temos sobre este pon-
bólico e teológico48.
to é de Papias, bispo de Yerápo-
Se tal é o resultado da exegese lis, que se supunha martirizado
bíblica, pelo que respeita ao An- no tempo de Marco Aurélio (161
48
Maurice Vernès, Les résultats de l'e- - 180). O seu livro, porém, não
xégèse biblique, Paris, Leroux, 1890.
44
chegou até nós49 De seu testemu- E como sabemos que as seitas
nho relativo a Marcos e a Ma- nasceram com o cristianismo,
teus, conserva-se apenas alguns que todas elas se esforçavam
fragmentos em Irineu e Eusébio, para que prevalecessem os seus
que demonstram não se referir respectivos pontos de vista, e
aos atuais Evangelhos. que, desde o século II, as obras
Os testemunhos dos Evange- abundam e com elas as falsifica-
lhos, que datam do III e IV sécu- ções mais audaciosas50, é lógico
lo, que fé podem eles merecer? supor-se que todas aquelas que
andaram errantes até se perde-
O que é indiscutível, é que ne-
rem, representaram opiniões
nhum dos Evangelhos foi escrito
contrárias às que mais tarde
no tempo em que Jesus Cristo
triunfaram no concílio de Niceia
viveu; e que nunca se tiveram à
(325) e que, convertida em sobe-
mão os pretendidos originais,
ranas e despóticas, fizeram desa-
mas sim e apenas, cópias dos
parecer os documentos contrári-
mesmos e cópias das cópias.
os. De sorte que os documentos
Quem nos garante, pois, que cristãos que prevaleceram em
tais originais tenham existido? Niceia têm autoridade desde o
Tudo são trevas nos dois primei- IV e quando muito desde o III
ros séculos do cristianismo. século.
Maury, em presença de uma É evidente que, se não a pre-
tão grave circunstância, emite judicassem, a Igreja não teria
duas opiniões: a primeira diz que destruído os livros nos quais se
os cristãos primitivos escreve- consignavam as controvérsias
ram muito pouco; a segunda, das seitas primitivas e que tão
que os documentos escritos na- bom serviço podiam prestar à
quele tempo se perderam, por crítica, quando já Celso no II sé-
uma deplorável fatalidade. E culo se vangloriava de haver re-
supõe mais verossímil esta se- futado o cristianismo, servindo-
gunda hipótese. E nós também se unicamente dos próprios li-
vros cristãos.
49
Seria casualidade? Seria estratégia? Em tudo vemos, neste ponto,
Ganeval insiste tratar-se de uma das
muitas fraudes habitualmente usadas na 50
formação do cristianismo, de acordo Não é injúria que se faz, é confis-
com a sua hipótese a que Pápias aludiu são do próprio S. Jerônimo. Veja-se
referindo-se às origens egípcias do cris- Peyrat na sua História Elementar E
tianismo Crítica De Jesus.
45
o anonimato e a falta de certeza, ais – eis aí ao que se reduz a au-
principais características dos li- toridade do Novo Testamento!
vros do Novo Testamento, que Como se tudo isto fosse pou-
bastariam para lhes tirar toda a co, outras circunstâncias a dimi-
autoridade. nuem ainda mais. Entre elas, as
Mas, há mais. Os Evangelhos numerosas alterações a que esti-
atuais não foram escolhidos pela veram sujeitos os Evangelhos
Igreja com critério que revelasse atuais, devido à inépcia dos co-
maior autoridade nesses que em pistas, e especialmente à falsifi-
outros muitos Evangelhos que cação das diversas seitas. Isto
então andavam em voga: destes nos explica, como diz Baur, a
foram escolhidos quatro ao aca- manifesta contradição das dou-
so, diz Santo Irineu, porque qua- trinas englobadas no Novo Tes-
tro eram as regiões do mundo e tamento, em luta contínua entre
quatro os ventos. si.
E não é tudo. Antes do concí- Temos, por outro lado, a di-
lio de Niceia, a Igreja e os pró- versidade dos exemplares sobre
prios Santos Padres serviam-se os quais se fez a tradução do
indiferentemente dos Evange- Novo Testamento em língua lati-
lhos, que mais tarde foram de- na – diversidade tão grande e tão
clarados apócrifos, porque era grave, que S. Jerônimo temia
igual a autoridade de todos. passar por falsário ao constituir-
E mais ainda. A Igreja conser- se em árbitro para escolher entre
vou muitas lendas que se encon- a profusão de tantos e tão diver-
tram apenas nos Evangelhos sos exemplares dispersos pelo
apócrifos. mundo. E declarava ter-se visto
obrigado a acrescentar, trocar e
No Novo Testamento acham-
corrigir.51
se mesmo passagens que se refe-
rem a lendas contidas unicamen- Juntemos ainda a demonstra-
te nos referidos Evangelhos apó- ção feita já pela crítica, relativa à
crifos. falta específica de autenticidade
em não poucas partes do Novo
Resumindo: anonimato, incer-
Testamento.
teza nos originais, seleção ao
acaso e falta de critério na pre- O último argumento contra a
tensa autenticidade conferida validade dos livros do Novo Tes-
pela Igreja aos Evangelhos atu-
51
Praef. In Evang. Ad Damas.
46
tamento está no fato das irrepa- matéria tão excepcional que, as-
ráveis contradições e das dis- sim como na crítica normal po-
cordâncias numerosíssimas que deria optar-se pelo partido mais
ainda hoje contém, para não fa- sensato, isto é, pela dúvida, na
lar nos seus erros, na sua imora- questão que debatemos é preciso
lidade e absurda puerilidade, ir até ao fundo, até a negação de
apesar de a Igreja ter declarado tudo quanto afirmam e impõem
que foram inspirados, palavra como divino, livros que, tais
por palavra, pelo Espírito Santo! como os Evangelhos, são desti-
Isto posto, pode, acaso, uma tuídos do todo o fundamento.
pessoa séria, não obcecada pela Além disso, os Evangelhos
fé, admitir, não já a autenticida- são um milagre contínuo, tanto
de, mas ao menos a veracidade e na ordem física, como na ordem
seriedade do Novo Testamento moral, e, tratando-se de coisa so-
como argumento de prova acerca brenatural, parece lógico que
do que ele narra? concorram provas pelo menos
Stefanoni, contudo opina que tão certas autênticas como as
a crítica os deve ter em conta, ao que acompanham os fatos co-
menos porque representam tradi- muns. Porém, nada disso aconte-
ções dos tempos em que foram ce e, em parte alguma deles sur-
produzidos, porém admite que, ge a menor prova.
sobre a base de tais livros não se E, ao passo que estes livros do
pode reconstituir a vida nem a Novo Testamento nada demons-
doutrina de Jesus sem se escreva tram do que afirmam, na história
um romance, enquanto declara profana não ha um único sinal,
que os escritos revelados não po- um único documento que apoie
dem fazer fé na história, nem ou venha em auxílio dessas nar-
esta pode, em nossos dias, expli- rações evangélicas.
car com verdadeiro critério os Em tais circunstâncias, quem
primeiros rudimentos da origem não verá que tudo quanto ali se
da nossa idade. Observamos, conta é filho da imaginação, para
pelo que a nós se refere, que em não dizer da impostura sacerdo-
primeiro lugar, este não é mais tal, e que nada, absolutamente
que um dos muitos argumentos nada, pode salvar-se do que por
que concorrem em favor da nos- tantos séculos nos impuseram
sa tese e, em segundo lugar, que por modo extraordinário e sem
nos achamos em face de uma autoridade alguma?
47
Não censuremos os críticos com a autoridade de Santo Agos-
positivos e os autores que nos tinho, que, discutindo com Os
precederam e nos desbravaram o Maniqueus, faz esta confissão
terreno, por não terem chegado à capital: Não acreditaria nos
conclusão a que nós chegamos: Evangelhos se a isso não me vis-
o preconceito duas vezes mile- se obrigado pela autoridade da
nar que tem maltratado nossas Igreja52.
mentes, arrastando-as para esse
erro com tal força inercial que
nem os mais destemidos pude-
ram se libertar dele de um só
golpe. Aqui, mais do que em ne-
nhum outro campo, comprova-se
que natura non facit saltus (a
natureza não dá saltos).
Não devemos, porém, negar à
critica o direito de chegar a con-
clusões que não são mais do que
consequências necessárias das
próprias premissas.
Portanto, se o fato de serem
clandestinos os livros do Novo
Testamento não pode bastar, por
si só, para legitimar a conclusão
da não existência de Cristo, a
crítica deve, dada a natureza teo-
lógica e sobrenatural dos referi-
dos livros, ter muita cautela no
aceitar qualquer parte, por míni-
ma que seja, do que neles se
conta.
Em todo o caso, o certo e in-
discutível é que a Bíblia, em lu-
gar de servir de prova do que re-
lata, tem necessidade de com- 52
provar-se a si própria. Esta afir- Citação da Peyrat, História E Crítica
Elementar De Jesus, pag. 70, 3a edição,
mação está, de resto, reforçada Paris, Levy Frères, 1864.
48
CAPÍTULO II
JESUS CRISTO É PESSOA ABSOLUTAMENTE SOBRENATURAL

Os milagres de Cristo – eis a de salvar a divindade de Cristo,


pedra de toque de todos os teólo- da crítica dos pagãos, divindade
gos. Se Cristo existiu realmente, comprometida com as incongru-
se foi pessoa humana, como se ências dos Evangelhos Sinópti-
explicam esses milagres? cos em certas passagens em que
Ainda que hoje os milagres, o elemento humano sobrepuja o
contanto que não sejam fenôme- divino.
nos psicológicos, e a maior parte Assim, abandonaram à crítica
dos de Cristo não o são nem po- o quarto Evangelho, agarrando-
dem sê-lo, se negam facilmen- se aos três primeiros para salva-
te53. rem ao menos o homem.
Ora, na vida de Jesus, tudo Esta tentativa não é mais do
são milagres, a ponto de o não que uma concessão que, desde
conhecermos senão através do logo, se viu ser de mau gosto,
milagre. A este respeito, os teó- pois que se encaminha a um fim
logos e críticos, especialmente mais teológico do que à primeira
os da sábia Alemanha, começa- vista parecia. O protestantismo
ram a fazer distinção entre os liberal e o racionalismo espiritu-
três primeiros Evangelhos, cha- alista viram a tempo o perigo da
mados sinópticos, e o quarto, de crítica naturalista, isto é, viram
João. que, caídos os milagres, caída
Dizem que este último fala de estava toda a concepção divina
Cristo, como Platão falou do Lo- de Cristo, visto serem os mila-
gos, deduzindo-se daí que a con- gres a única prova da sua exis-
cepção de Cristo, segundo o tência.
quarto Evangelho, é puramente Eis como se explica a tentati-
metafísica. De modo que se che- va de despojar Cristo da divinda-
gou a supor tal Evangelho como de e dos milagres para poder sal-
uma tentativa feita, muito tempo vá-lo como homem. Salvar a
depois dos três primeiros, a fim Cristo como homem é o mesmo
53
Gaetano Negri, com sua pena
que salvar o cristianismo, como
magistral, corta fundo na questão dos disse Hartman, pois que, admi-
milagres. Veja sua Crise Religiosa, pp tindo que Cristo haja realmente
77-83, Milão, Dumolard, 1878.
49
existido, o cristianismo deve personagem real e histórico, de
proceder dele. E esta seria a pro- uma grandeza sobre-humana.
va do cristianismo, como cristia- Para Renan, Cristo não é já o
nismo seria a prova de Cristo. Deus que desce à terra para se
Um salvaria o outro. fazer homem, mas simplesmente
Na verdade, que homem po- um homem que da terra sobe ao
deria criar toda uma nova civili- céu para se endeusar. Em cada
zação, a não ser que fosse, em passagem do seu romance, apa-
todos os aspectos um homem ex- rece esta metamorfose do ho-
traordinário? mem em Deus. As suas próprias
Lançado o divino pela porta palavras - chamado por Deus -
afora, ei-lo que entraria renova- indicam claramente.
do pela janela a fim de envolver Se Cristo, segundo Renan, al-
com a sua auréola a loira cabeça cança o ideal da humanidade,
tradicional do Nazareno. que importa que seja a conse-
Assim o compreendeu Renan quência direta de Deus, à manei-
que, no seu sentimentalismo ra de uma encarnação, ou que
místico e transcendental pôs a seja um enviado extraordinário
Bíblia à prova para dela arrancar de Deus, um homem tão elevado
uma biografia fantástica de Je- que até do céu abre as suas por-
sus, que é um verdadeiro roman- tas à humanidade ?
ce, e ainda que ele tenha fugido Com as concepções dos teólo-
da teologia, restituindo Cristo à gos, Cristo-Deus não podia viver
humanidade, no fundo não faz nem reinar nesta idade positiva,
mais do que prolongar a vida do mas Renan fez mais e melhor
cristianismo. que todos eles: tentou salvar
De sorte que, em vez da exco- Cristo como homem. Mas salvar
munhão e do vitupério dos cren- o homem, e um homem de tal
tes, merecia ser colocado entre natureza, era salvar cristianismo,
os Padres da Igreja. O sobrena- era personalizar a adoração da
tural e divino, que na Bíblia ro- Humanidade por um homem ide-
deia Jesus em meio dos milagres al, era manter o culto da humani-
e que atualmente se reduzem a dade pelo Cristo, quer descendo
nada assim como Cristo e o do céu à terra, quer subindo da
Cristianismo, foram restituídos a terra ao céu .
Cristo pelo grande professor da “Fazer do Cristo um sábio,
Sourbonne, fazendo dele um fora de todas as proporções que
50
a história fornece, não será isso, siderando-o um simples simbo-
de algum modo, substituir um lismo, e separar os Testamentos,
milagre por outro?54” conservando só a moral cristã,
Camilie Mauclair, em uma para não andar mais em choque
correspondência de Paris para o constantes com o espírito cientí-
jornal italiano Avanti, em 7 de fico, apresentando-se, no mun-
setembro de 1903, escrevia o se- do, como sendo a depositária de
guinte, que confirma a nossa uma moral de justiça.
tese: “Renan intentou prestar à Não se tratava de um suicídio
Igreja um serviço capital. Creio da Igreja, nem de urna negação
que o teria pensado de antemão, pública da revelação que equi-
e só pela estupidez crassa da valesse a uma bancarrota. Tra-
mesma Igreja, esse serviço não tava-se apenas de uma transfor-
foi agradecido ao escritor. mação hábil, que permitiria a
Não considero a Vida de Je- Igreja o esquivar-se a um confli-
sus, de Renan, uma obra perfei- to direto com, a ciência.
ta. Creio mesmo que não é gran- Para esta inteligente transfor-
de coisa. Mas, seja corno for, é mação, Renan apresentava a
impossível concluir pela não re- fórmula conveniente, com a sua
velação, e portanto, pela não di- fina inteligência, astuta e insi-
vindade de um homem sublime. nuante. Estava embebido do ca-
Qual foi, de resto, o intento tolicismo e era um conciliador,
do escritor? Destruir o dogma, é infinitamente diplomático entre
certo, mas conservar a moral o dogma e a crítica.
evangélica, que ele considerava Certamente, Renan esperava
a melhor e a mais conforme com que a Igreja aceitasse esta solu-
a evolução social de um século ção elegante do problema de an-
em que a ciência, segundo a ex- tinomia entre a ciência e a Fé.
pressão do seu amigo Berthelot, Toda a vida deplorou que não o
aspira à direção material e mo- quisessem compreender.
ral da sociedade. Se a Igreja a tivesse o aceito,
Qual era o serviço que Renan teria adquirido uma força enor-
pretendia prestar à Igreja Cató- me. Teria podido conservar as
lica? Convencê-la de que devia suas cerimônias, com um sorri-
abandonar o dogma divino, con- so significativo, como quem lhes
não desse senão o mero valor
54
Vacherot, A Religião, pag. 100. histórico e alegórico.
51
Teria podido aceitar a ciência grande veneração por Jesus, dis-
e ficar com a moral publica.. E, se o seguinte: Para dizer a ver-
assim, que grandeza para a mo- dade, se a Igreja não tivesse co-
ral de Cristo, de quem os mo- metido a imprudência de protes-
dernos anarquistas se dizem tar com uma indignação ultra-
continuadores, se se tivesse ad- jante, e este foi um erro fatal, a
mitido realmente o seu martírio piedosa exegese de Renan pode-
de homem, desembaraçando o ria servir prodigiosamente aos
catolicismo de toda o estorvo ju- interesses do cristianismo. O ve-
daico do Antigo Testamento e de tusto poeta soube polir a velha
toda a insustentável metafísica imagem do Nazareno, escureci-
dos livros sagrados. da e manchada por dezoito sé-
A Igreja inimiga de Cristo, a culos de ignorância, erros e
Igreja politiqueira não com- mentiras, além de livrá-la dos
preendeu a ocasião que Renan ritos e catecismos, das fórmulas
lhe oferecia. No seu empenho de e teologia. Ele lavou Jesus das
repelir todos os escritores que injúrias e sujeiras católicas; E
podiam servi-la com fé e enge- num lance genial, fez o homem
nhosidade como Lammenais, sem diminui-lo, uma vez que já
Vil-liers de l'Isle-Adam, Ernesto o tinha engrandecido como ente
Hello, Barbey d'Eurevilly e Ver- sobrenatural. Ao escrever A
laine, a Igreja repeliu também Vida de Jesus Renan devolveu-
Renan. Preferiu as banais ima- lhe a vida e o fez descer uma se-
gens policrômicas às obras pri- gunda vez sobre terra ...
mas da arte religiosa. O protestantismo liberal, que
A Vida de Jesus colocava-a pretendeu seguir o mesmo cami-
em um dilema difícil, em urna nho, não faz obra de destruição,
escabrosa encruzilhada: a Igre- mas sim de conservação religio-
ja negou-se a caminhar pela sa.
senda do futuro encerrando-se Faz o mesmo que o aeronauta,
no dogmatismo. Perdeu, assim, quando arroja o lastro da nacela
o último ensejo que teve de se para que esta não caia e o arraste
modernizar. em sua queda.
E. Gustave Tery, no Ação, de Só que esses salvadores do
6 de agosto de 1903, depois de Cristo Homem não estão de
citar várias passagens de Renan acordo com a lógica, nem com a
nas quais ele demonstra sua verdade histórica,.
52
Não estão com a lógica por- Não repetiu o erro de quebrar
que, como justamente observa a cabeça e violentar o bom senso
Vacherot, a ultima fórmula à para explicar racionalmente os
qual se agarrou o protestantismo milagres de Cristo, irremediavel-
liberal, e nós acrescentaremos o mente condenados pela ciência,
racionalismo espiritualista, é a limitando-se simplesmente a eli-
supressão da personalidade his- miná-los da parte histórica, con-
tórica de Cristo e de tudo quanto siderando-os como mitos justa-
dele se conhece, porque é a úni- postos, não contrários, porém, à
ca que não pode ser demonstrada pessoa histórica de Cristo, para
nem pela filosofia, nem pela crí- conservar, este à humanidade e à
tica moderna55. história.
Não estão de acordo com a Isto, porém, era faltar aberta-
verdade histórica, porque o Cris- mente à logica e à verdade histó-
to da Bíblia, de toda a Bíblia, é rica, como o próprio Strauss
uma pessoa inteiramente sobre- confessa, sem disso dar conta, ao
natural. deixar escapar da sua escrita es-
O próprio Strauss, o maior tas palavras, que dizem mais do
dos críticos desta escola, vê-se que um livro inteiro: - Sob este
obrigado a reconhecer que, a in- ponto de vista, pode se dizer que
trusão do princípio sobrenatural a ideia de uma Vida ou de uma
e a concepção dogmática do Biografia de Jesus foi a fatali-
Cristo tornam impossível uma dade de toda a teologia moder-
biografia de Jesus. Procurou eli- na. Esta continha em gérmen
minar todo o sobrenatural da todo o destino e a contradição
vida de Jesus, sacrificando o que lhe pressagiava o resultado
Cristo dogmático para salvar o negativo. Ela era a ratoeira em
Cristo histórico, partindo do que a teologia do nosso tempo
conceito de que, se os antigos tinha necessariamente de cair e
encontraram digno do homem perder-se56.
não considerar como estranho à Esta fatalidade da teologia -
humanidade tudo quanto é hu- devida, como vimos, à preocupa-
mano, a divisa dos modernos ção de salvar o cristianismo, à
deve ser eliminar como estranho qual ele mesmo se mostrou obe-
tudo o que não é humano e natu- diente, não o salvou da contradi-
ral. ção e do resultado negativo. Ain-
55 56
Obr. cit., pp. 382-383. Op.cit., tom. I, p. 4.
53
da que a única base para falar de nópticos está mais afirmado o
Cristo esteja nos Evangelhos e elemento humano de Cristo, este
estes, além de serem uma base elemento não é menos fabuloso
suspeita por emanarem da fé, do que os seus milagres porque
quando não das imposturas sa- não se referem a um homem de-
cerdotais, nos representam Cris- terminado mas ao Redentor, a
to apenas como pessoa sobrena- um determinado Redentor. A
tural. pessoa de Cristo, nos primeiros,
Além disso, se vão despojar é a mesma que nos dão os livros
parte do Evangelho do seu cará- hindus sagrados falando de
ter histórico para o converter em Cristna e de Buda, os persas de
puro mito, porque não aplicar e Mitra, os egípcios de Horus e
estender então o mesmo critério mais tarde de Serápis.
à interpretação de todo o livro? Há sempre, em todos eles, um
Como distinguir o que deve se Redentor.
tomar ao pé da letra, do que A única diferença entre os
deve ser tomado no sentido figu- Evangelhos sinópticos e o de
rado? João está em que a concepção de
O real, nesse caso, torna-se in- Cristo nos três primeiros é uma
sustentável, e o livro perde todo cópia mais genuína dos Deuses
o seu valor histórico 57 porque, Redentores das religiões orien-
quem quer raciocinar sem pre- tais, onde o elemento antropo-
conceitos e de boa fé vê-se obri- morfo é mais engenhoso, en-
gado a reconhecer que os Evan- quanto que o quarto Evangelho
gelhos só nos mostram Cristo se ressente da influência dogmá-
pelo sobrenatural. E, em Cristo, tica e metafísica do helenismo,
tudo é sobrenatural: milagres e antes do neoplatonismo alexan-
potência milagrosa, a sua própria drino.
pessoa, a sua missão e ainda a Mas, tanto nos sinópticos cor-
natureza e o propósito dos livros no em João, Cristo é sobrenatu-
que dele falam. ral, não já por seus milagres,
Os Evangelhos sinópticos e o mas também pela sua mesma es-
quarto Evangelho não são de na- sência.
tureza diferente senão no seu Assim como Cristo, também
grau maior ou menor. Se nos si- Maria, sua mãe é sobrenatural e
57
Mirou, Jesus Reduzido Ao Seu Justo está, portanto, fora da Humani-
Valor, pag. 233. dade, pois o concebeu de modo
54
milagroso e o deu à luz, ficando Não! Em Cristo nada há de
sempre virgem. Têm querido ver humano, excetuando o seu antro-
nos dogmas, relativos à mariola- pomorfismo, que não é próprio
tria, superstições católicas. E de dele mas de todos os Deuses Re-
fato, assim é. dentores.
O catolicismo - dizemos de Em todos os Evangelhos,
uma vez para sempre - não fez Cristo não só faz milagres, mas
mais do que desenvolver logica- ele próprio é um milagre.
mente o Cristianismo, inclusos, Nasce por milagre e morre
claro está, os autos de fé. A vir- para poder realizar o último mi-
gindade de Maria não é tão es- lagre, ressuscitando.
tranha ao cristianismo como a
Veio ao mundo para salvar os
sua concepção milagrosa.
homens: a sua missão é sobrena-
Maria é a mãe de um Deus, e tural. Assim, e não de outra ma-
a mãe de um Deus não pode ser neira, falam de Jesus os Evange-
manchada com as fraquezas da lhos. Estes não só se não pres-
natureza humana. Não podia, tam à biografia, como reconhece
portanto, ficar grávida de Cristo, Strauss, mas nem sequer à elimi-
por obra de um homem, assim nação do elemento sobrenatural,
como não podia morrer. As ou- que cerca a divina pessoa de
tras virgens, mães dos Deuses Cristo.
Redentores, tinham-na já prece-
Cristo não é uma pessoa indi-
dido e prefigurado. O sobrenatu-
vidual; é uma encarnação divina.
ralismo de Maria confirma, por
Todos os seus feitos são dogmá-
sua vez, o sobrenaturalismo do
ticos. Todas as suas palavras ti-
Cristo.
nham já sido escritas antes dele
Todos os Evangelhos dão a as pronunciar. Não podemos ex-
conhecer um Cristo, e esse Cris- plicar humanamente o sobrena-
to é um Deus, mais antropomor- tural dos Evangelhos, coisa ab-
fo nos sinópticos, menos antro- solutamente impossível, nem eli-
pomorfo em João. miná-lo, coisa não menos impos-
Não é licito escolher dos sível, sem eliminar os próprios
Evangelhos apenas a parte mila- Evangelhos, o próprio Cristo e
grosa, para reduzir à sua mais ín- até o cristianismo.
fima expressão a parte que con- Limitar-nos-emos, apenas, a
tém os elementos humanos e bi- reconhecer a existência deste so-
ográficos.
55
brenatural, inseparável da pessoa Não nos ocuparemos, pois,
do Redentor. dos seus milagres, nem sequer
Isto basta para a nossa tese. para os enviar à mitologia.
Cristo pertence ao céu. E ao Faremos alguma coisa mais
céu o restituímos. do que até agora se tem feito:de-
monstraremos que nada de hu-
Se Cristo, porém, é pessoa ab-
mano se pode referir a Cristo.
solutamente sobrenatural, se é
Deus, claro está que não é, não E demonstrá-lo-emos com, a
foi, nem pode ser homem, evi- própria Bíblia na mão.
dentemente.

56
CAPÍTULO III
A PRÓPRIA BÍBLIA FALA DE CRISTO APENAS SIMBOLICAMENTE

O que deveria ter aberto os se cumprisse a Escritura.


olhosaos mais precavidos, e de- A começar pelo seu nascimen-
monstrar a todo o mundo a enor- to milagroso. Os Evangelhos di-
me mistificação de que a huma- zem-nos que tal acontecimento
nidade tem sido vítima, durante teve lugar em virtude das pala-
vinte séculos, julgando que Cris- vras do profeta (Mat. I, 22).
to realmente existiu, é a lingua-
Se nasce em Belém, é porque
gem que emprega a Bíblia, fa-
está também escrito pelo profeta
lando do seu protagonista.
(Mat. II, 5).
A Bíblia, esta Bíblia, que é o
Se foge para o Egito, é porque
único livro que fala de Cristo,
se cumprem as palavras do pro-
pode pretender fazer-nos crer
feta: Chamei meu filho para o
que Jesus tenha existido como
Egito. (Mat. II, 14).
homem, nem mais nem menos
que os demais homens? De ne- Se Herodes ordena a degola-
nhum modo! ção dos inocentes, é para que se
cumpram as palavras do profeta
A vida, o pensamento, a ação,
Jeremias (Mat. II, 17).
a palavra, a doutrina de Cristo,
não existem sequer nos Evange- Se volta à Galileia e vive em
lhos, a não ser enquanto são pre- Nazaré, é para que se cumpram
ditos pelos profetas, previstos as profecias, segundo as quais
pelo Antigo Testamento e prega- devia chamar-se Nazareno:
dos pela lei antiga. (Mat. II, 23).
Nem um gesto, nem um dito, Se Jesus encontra em seu ca-
nem um fato de Cristo se narra minho a João Batista, é porque o
nos Evangelhos, que não estejam profeta Isaías o havia predito.
em relação com a Escritura. (Mat. III, 3).
De maneira que as próprias Se o diabo o tenta, e se Jesus
palavras dos Evangelhos o di- vence a tentação, é porque as Es-
zem, com uma ingenuidade ex- crituras o haviam predito. Do
tremamente infantil que Cristo mesmo modo, o diálogo entre
fez isto porque tal profeta o pre- Satanás e Cristo se funda nas
disse; Cristo fez aquilo para que próprias palavras dos livros do

57
Antigo Testamento (Mat. IV, I- zendo: Como poderiam cumprir-
10). se as Escrituras, que dizem ser
Se Jesus vai a Cafarnaum, é conveniente que assim suceda?
para cumprir uma profecia de (Mat. XXVI, 54).
Isaías (Mat. IV, 14). Jesus diz que não foi preso
Se prega que não façamos aos pelas multidões quando se senta-
outros o que não queremos que va junto delas para ensinar no
nos façam , é porque assim esta templo, a fim de se cumprirem
escrito na lei e nos profetas as Escrituras (Mat. XXVI, 56).
(Mat. IV, 12). Se Judas o atraiçoa e recebe
Se cura os endemoninhados, é em paga trinta dinheiros, é para
em cumprimento do que lhe diz que se cumpra o que disse o
o profeta Isaías (Mat. VII, 17). profeta (Mat. XXVII, 9).
Se fala de João Batista, é para Se, após crucificado, os solda-
dizer que é aquele de quem está dos dividem a túnica, isso suce-
escrito: É Elias que devia vir de em cumprimento do que pre-
(Mat. XI, 10, 14) . dissera o profeta (Mat. XXVII,
35).
Se cura as multidões e lhes
proíbe que o divulguem, cum- Se manda comprar uma espa-
pre-se o que predisse o profeta da, é para que se cumpra tam-
Isaías (Mat. XII, 17). bém a profecia, segundo a qual
seria confundido com os malfei-
Se tem de permanecer sepul-
tores (Luc. XXII, 36, 37).
tado três dias, é porque Jonas
esteve três dias no ventre da ba- Cingindo-nos aos seus Após-
leia (Mat. XII, 40). tolos, Jesus demonstra que tudo
o que lhe sucede é por que con-
Se fala em forma de parábolas
vém que todas as coisas escritas
para não ser compreendido,
acerca dele na lei de Moisés, nos
cumpre-se a profecia de Isaías
Profetas e nos Salmos sejam
(Mat. XIII, 14).
cumpridas. E acrescenta: Como
Se manda buscar um jumento também era mister que o Cristo
e um jumentinho, fá-lo para padecesse e ressuscitasse dentre
cumprir o que lhe, diz o profeta os mortos ao terceiro dia. (Luc.
(Mat. XXI, 4). XXIV, 44, 46) .
Quando Jesus está a ponto de Até na Cruz, se Jesus pede de
ser preso no horto de Getsemani, beber, é para que se cumpra a
recusa-se a que o defendam, di-
58
Escritura (João. XIX, 27) . cunstância essencialíssima ?
E, bebido que foi o vinagre, Não significará isto, clara-
disse: Tudo se cumpriu. E só en- mente, que Cristo nunca existiu,
tão, quando viu que nele se ti- tendo-o inventado os Evange-
nha realizado a Escritura, incli- lhos para cumprimento das Es-
nou a cabeça e entregou o espí- crituras?
rito (João. XIX, 30). Pode-se volver e revolver a
Enfim, se não lhe quebram as questão, mas a única conclusão
pernas na mesma cruz, e se lhe plausível a que se chega é a que
abrem o peito com a lança, é, nós acabamos de indicar.
disse João, em cumprimento da Despojai Cristo da sua reali-
Escritura (João. XIX, 32 – 37). dade histórica, e tereis explicada
E basta de exemplos, que não a questão das profecias: deixai-a
são os únicos em que os Evange- subsistente, e a questão das pro-
lhos obrigam a fazer e dizer a fecias será humanamente insolú-
Cristo apenas o que estava escri- vel.
to no Antigo Testamento. Pois bem: como hoje é sim-
Mais adiante, demonstraremos plesmente absurdo pensar que
que tudo é símbolo em Cristo, possam existir profetas e profe-
ainda mesmo que os Evangelhos cias e que possam realizar-se
o não digam explicitamente, e ponto por ponto, minuciosamen-
ainda que não citem as respecti- te e a distância como devia ter
vas passagens do Antigo Testa- ocorrido com Cristo, havemos
mento, e que não veio ao mundo de concluir que: ou as profecias
e não procedeu senão para exe- foram inventadas, ou Cristo foi
cutar o plano teológico precon- inventado para o relacionarem
cebido no Antigo Testamento. com as profecias.
Neste ponto da nossa obra, Estando a primeira hipótese
apenas quisemos deduzir da lin- desmentida pela história e pela
guagem dos Evangelistas a con- circunstância indeclinável de
fissão de uma circunstância ca- que, em tal caso, as profecias e a
pitalíssima: Cristo não disse nem sua realização não tivessem dei-
foi ele próprio mais do que aqui- xado nada a desejar, resta-nos
lo mesmo que Escritura ordenou somente a segunda, a de que
que fosse e que fizesse. Cristo foi inventado para a reali-
Não nos dirá nada esta cir- zação em si das profecias, hipó-
59
tese que resolve toda a dificulda- fato dos evangelistas, preocupa-
de inerente a tal assunto, porque dos em escrever acerca de um
nos fornece a chave para expli- Cristo imaginário, estudarem so-
car o fato de tantas profecias se- mente a forma de o pôr em har-
rem sofísticas a fim de poderem monia com as exigências dog-
aplicar-se a Jesus, pois não esta- máticas do assunto, descuidando
vam devidamente relacionadas de adaptá-lo à circunstância da
para se conciliarem numa só narração e do meio ambiente.
pessoa. Os positivistas e os racionalis-
A mesma hipótese explica o tas, não podendo aceitar a pre-
fato, que tantos trabalhos custou tensão teológica de que Cristo
aos críticos, das faltas e inexati- fosse Deus, e que, portanto, a
dões de não poucas profecias, sua vida tivesse sido profetizada
cuja realização os Evangelhos por homens inspirados pela von-
anunciaram pois pode acontecer tade divina, mas, não chegando a
que existissem ao princípio e negar a existência humana de
logo fossem extraviadas nas nu- Cristo, esbarravam ainda com o
merosas vicissitudes da Bíblia, insuperável obstáculo de expli-
ou antes fossem alteradas de- car esse Jesus-Homem, sem o
pois. Fora disso, bastaria que concurso das causas sobrenatu-
houvesse sido essa a crença dos rais que negavam. Ante este pro-
evangelistas, quer dizer, que ti- blema tão heterogêneo, tiveram
vessem acreditado que as referi- de submeter os seus neurônios a
das profecias, imaginárias ou verdadeiras torturas, como acon-
exatas, existiram e foram tal teceu com Míron, ou de realizar
qual eles pensavam, para justifi- um tours de force, como aconte-
car o seu trabalho de adaptação a ceu com Larroque, ou ainda de
Cristo de tão decantadas profeci- serem ilógicos, como aconteceu
as. com Salvador, Strauss e Havet,
Esta solução elimina também explicando complicadamente
radicalmente uma série de outros uma parte do problema sob o
absurdos encontrados na Bíblia, ponto de vista da concepção
devido a este plano armado para simbólica e dogmática, e aban-
aplicar Cristo às profecias, por- donando a outra ao caos em que
que demonstra que a causa de se envolveu a pessoa humana de
tantas discordâncias e de tantos Cristo.
contrassensos se fundamenta no Não se atrevendo a saltar o
60
fosso, caíram nos contrassensos se esquecer.
da própria Bíblia ao passar da te- Salvador combate a opinião
ologia para o naturalismo,. dos filósofos, que fazem de Cris-
Por exemplo: Renan vê nas to um reformador religioso e so-
profecias de Isaías um raio do cial, dizendo que, para que esta
olhar de Jesus58 e pensa que este opinião fosse fundada, seria pre-
se julgava o espelho no qual ciso que a sua morte fosse unia
todo o espírito profético de Isra- consequência involuntário e qua-
el tinha lido o futuro59. Só em se acidental dos seus esforços,
um ponto adverte que nas últi- enquanto que esta formava, pelo
mas palavras de Jesus se nota a contrário, o seu princípio e o seu
intenção de manifestar clara- fim confessados, os quais ele
mente o cumprimento das profe- procurava com ardor, em um in-
cias60. teresse dogmático e místico.
Nem vale a pena discutir a hi- Salvador esteve aqui verda-
pótese de que Cristo acomodasse deiramente inspirado e poderia
a sua própria vida às prédicas e ter conhecido toda a verdade se
se exaltasse a ponto de realizar o não perdesse o caminho que se-
profetismo hebraico. Não só guia, terminando no lugar co-
concorre contra semelhante hi- mum de que a vontade de mor-
pótese o fato, já por outros nota- rer, firme em Cristo, provinha de
do, de que, para proceder assim, uma ordem de convicções e de
Cristo deveria ter vivido com o um entusiasmo conforme com as
Antigo Testamento na mão, mas ideias da sua época e com a in-
também a circunstância da sua terpretação oriental dos livros
adaptação às profecias começar sagrados dos hebreus.
com o seu nascimento e não aca- Já vimos contra que obstácu-
bar senão com a sua morte. los vão bater este lugar comum.
Fica excluído completamente Mas permanece de pé a preciosa
neste caso, qualquer fenômeno confissão de Salvador, que segue
de autossugestão, tanto mais que imediatamente, depois da passa-
se trata de uma vida em absoluto gem citada, e onde diz que, a
milagrosa, o que nunca deverá não ser pela morte que deseja-
va, nada ficaria de Cristo, por-
58
Vita di Gesù , vol. I, c. IV, trad. it. di que nem os seus dogmas nem a
De Boni, Milano, Daelli, 1863. sua moral são frutos da sua ins-
59
Id., vol. I, c. XVI.
60
Id., vol. IV, c. XXV.
piração.
61
Não há termo médio: ou acei- Este testemunho da missão de
tamos a revelação, em conjunto, Cristo com relação às profecias é
ou repelimos a natureza humana a própria razão de ser de Cristo
do Cristo, entregando-o inteira- pois, caso contrário, este já não
mente à teologia. Esta está no seria o Messias que os crentes
seu papel, quando diz que as pretendem, por não corresponder
profecias provam a existência de exatamente aos vaticínios.
Cristo, o qual se converte, em Realmente, esta maneira de
virtude desta afirmativa, em uma ser de Jesus - assim o diz Dide,
personificação mais ou menos com exata ponderação dos tex-
completa daquelas. tos, ainda que não chegue a con-
Assim o compreendeu Scherer sequências lógicas - torna o mes-
sem que por isso chegasse à con- mo Jesus e os seus apóstolos in-
sequência lógica que o fato diferentes á Humanidade.
supõe, quando escreve que Jesus Quando lemos com imparcial
nem é um filósofo, nem o funda- atenção o Novo Testamento, não
dor de uma nova religião, mas podemos deixar de reconhecer
sim o Messias; que a chave da que o sistema narrativo dos es-
vida de Jesus é o cumprimento critores apostólicos exclui todo o
das profecias messiânicas; e que interesse e toda a emoção. A
esta ideia messiânica é o centro vida de Jesus e as aventuras dos
dos fatos evangélicos, a razão Apóstolos desenrolam-se como
de ser histórica de Jesus61. se fossem uma cena teatral, em
Cristo, portanto, não veio ao que tudo está apontado, previsto
mundo senão para cumprir as e indicado, antecipadamente.
profecias, e, como isto não é Não é a Humanidade vivendo,
uma ação humana, equivale a di- pensando, sofrendo, agitando-se.
zer que Cristo veio ao mundo Se Cristo e os seus realizam
apenas como um símbolo, isto é, isto ou aquilo, executam este ou
que Cristo nunca existiu. aquele ato, é porque era preciso
Hoje não precisamos mais que se cumprisse esta ou aquela
negar que o Antigo Testamento profecia62.
revela o Cristo. O sobrenatural Por isso, temos de escolher,
já nos não preocupa. definitivamente: Ou Cristo exis-
61
tiu, e então é Deus, ou não é
Mélanges d'histoire religieuse. La vie
62
de Jésus, pp. 99 e seg. (in Vacherot, La A. Dide, La fin des religions, p. 370,
Religion ). Paris, Flammarion, 1902
62
Deus, e então nunca existiu, por- lhos, em breve veremos que, do
que o Cristo da Bíblia é o único naufrágio de Cristo nada de hu-
Cristo conhecido, e porque na mano pôde se salvar. Veremos
própria Bíblia ele não é mais do que não é possível escrever a bi-
que um personagem sobrenatural ografia de Cristo, que ele não
e simbólico. Impõe-nos a lógica pode ter biografia, já que não
que o aceitemos tal qual ele é na teve existência humana. É claro
Bíblia, isto é, como Deus, a não que não seguiremos passo a pas-
ser que se ponha de parte, sem so a narração bíblica e nem a li-
mais considerações, a sua pre- nha dos doutos especialistas na
tendida realidade histórica, da matéria.
qual não se escapa. Reuniremos alguns dos ele-
Quando se reconhece que Je- mentos essenciais que concor-
sus era o Messias e que não tem rem para que qualquer existência
nenhum outro caráter, não se humana seja real e vital, elemen-
pode humanizá-lo conservando a tos esses que faltam a Cristo de
humanidade e deixando que a di- modo tão contraditório e absur-
vindade se volatilize: um Messi- do que excluem toda a possibili-
as profetizado e um Deus Re- dade de ter existido um homem
dentor não é e não pode ser um em tais condições pela
homem. contradição que não o permite.
Não é licito dividir-lhe a sua No entanto, completaremos a
natureza em divina e humana e demonstração de que Cristo está
reduzir à expressão mais simples na Bíblia, apesar desta o não di-
a sua figura humana para o sal- zer explicitamente, apenas como
var do exílio a que os Deuses, sendo um personagem puramen-
hoje mais do que nunca, estão te e completamente simbólico,
confinados, segundo afirmou o elaborado com os dados submi-
grande profetizador de Epicuro. nistrados pelo Antigo Testamen-
Do contrário, violentaríamos o to: verdadeiro ídolo, combinação
bom senso, atentando contra ele, de materiais preexistentes nas
e atormentaríamos nossa mente tradições e nos textos religiosos
sem resultado algum, por maior do hebraísmo, modificado e ali-
que fosse o valor de quem tal fi- mentado com a concepção mito-
zesse, como sucedeu com lógica do Oriente como se fora
Strauss. E nós, atacando cada um mosaico.
vez de mais perto os Evange-
63
CAPÍTULO IV
CRISTO É UM MITO ADAPTADO DAS ALEGORIAS DO ANTIGO
TESTAMENTO

Do exame bíblico que em- também simbólica, porque alude


preendemos, resultará que Cristo à realização das esperanças do
é um mito, como já resulta, im- Israel.
plicitamente, a demonstração de O numero dos livros do Novo
que é estranho à história. Este Testamento, junto ao dos livros
resultado, porém, mais evidente do Antigo forma segundo afirma
se torna na parte que consagrare- seriamente Cantu, sem atentar à
mos à mitologia. Aqui em pleno consequência, o número místico
campo bíblico, provaremos que de setenta e dois64.
o mito Cristo foi adaptado, mais
Jesus nasce de uma virgem,
ou menos felizmente, das alego-
porque este caso se encontra já
rias do Antigo Testamento.
em Isaías (VII, 14), e é prenunci-
O próprio Evangelho, como ado por Isaac, José e Sansão. O
acabamos de ver no capítulo pre- anjo Gabriel é já conhecido no
cedente, oferece-nos, a esse res- Antigo Testamento.
peito, uma prova evidente, com
Cristo nasce em Belém, por-
a linguagem simbólica que em-
que isso foi profetizado por Mi-
prega para pôr em relação as pa-
queias (V, 2) em virtude de ter
lavras e os feitos de Cristo com
sido aquela terra o berço de
o Antigo Testamento.
Davi.
Vamos ver agora que, mesmo
As genealogias atribuídas a
que os Evangelhos não digam
Jesus são inteiramente simbóli-
com toda a clareza, nada há ne-
cas. Não reproduziremos aqui a
les, e portanto em Cristo, que
demonstração de Strauss, mas
não seja decalcado do Antigo
para ela remetemos os leitores
Testamento.
que queiram se informar. (Nova
Até a denominação de Evan- Vida de Jesus, vol. II, pag. 8 e
gelhos é tirada de lá, precisa- seg.).
mente de uma palavra do profeta
O anjo, que aparece aos pasto-
Isaías, traduzida em grego63. A
res, anunciando-lhes o nasci-
sua significação de boa nova é
mento do Salvador é tirado de
63 64
Salvador, op. cit., lib. II. C. Cantu Hist. Univ. Ep. VI, cap. 33.
64
Isaías (IX, 2 e VII, 14). Cristo fazia parte do plano divi-
A divina sabedoria, o Verbo no (Strauss, ob. cit. 84, 85): Je-
divino que se encarna em Jesus, sus de volta do Egito, habitou
encontra-se nos Provérbios e em em Nazaré, para que pudesse
Siraco. As próprias palavras dos chamar-se o Nazareno, conforme
Evangelhos são tiradas destes li- tinham vaticinado os profetas.
vros do Antigo Testamento A cena do menino Jesus, dis-
(Strauss, obr. cit. II. 53 e seg.) putando no templo com os dou-
A estrela, que dirige os Reis tores, foi criada por analogia
Magos, vindos para adorar Je- com Moisés e Samuel, assim
sus, corresponde à estrela alegó- como o restante da adolescência
rica, mencionada nos livros de de Jesus. A propósito das pala-
Moisés (Num. XXIV, 17.) vras deste a sua mãe, ditadas
pelo coração, Strauss observa
Os Reis ou Magos que vêm da
outra reminiscência do Antigo
Ásia, trazendo ouro e incenso, a
Testamento, como a do cap. II, v.
glorificar o Eterno, encontram-
19 de Lucas; o mesmo fizera Ja-
se também em Isaías (LX, 1-6).
cob com José (Strauss, obr. cit.
A degolação dos inocentes, Pag. 90 e seg.).
absolutamente fantástica, foi
João Batista foi criado segun-
imaginada para justificar a fuga
do as profecias de Malaquias
da Sagrada Família para o Egito,
(III,1,5, 18 e IV, 2, 5) e de Isaías
lendo-se no profeta Oseias que o
(XL, 1,10, 27, 31 e XLI, 1).
menino Jesus devia ser chamado
por Deus ao Egito (XI-1) e por A anunciação e o nascimento
outro lado, a fim de que se veri- do precursor, João Batista, foi
ficasse a profecia de Jeremias copiado do Antigo Testamento
sobre o pranto de Raquel, pelo (Strauss, obr. cit. vol. II pag. 43).
assassínio de seus filhos (Jer. A natureza simbólica de Cris-
XXX11-15, 16, 4, 10, 28). to provém também de João Ba-
A presença de Jesus no tem- tista, que o apresenta como um
plo, a cena de Simeão e Ana e a cordeiro que assume os pecados
circuncisão têm por objeto de- do mundo65 e afirma que Jesus,
monstrar o cumprimento das leis vindo depois dele, existia já an-
de Jeová em Cristo e a profecia tes dele (João, I, 29, 26, 15, 30).
de Simeão, segundo a qual a Já vimos que a história das
oposição dos hebreus contra
65
Isaia LIII, 4 e seg.
65
tentações de Jesus remete expli- dizem que Jesus escolheu doze
citamente ao Antigo Testamento. apóstolos não fazem mais do que
Também o número de dias (40), cumprir à risca o consignado no
que Jesus passou no deserto era livro dos Números (I, 4,16), cor-
tradicional e sagrado entre os he- respondendo os doze apóstolos
breus. Assim: o dilúvio durou 40 às cabeças das doze tribos.
dias; empregaram-se 40 dias E quando atribuem aos doze
para embalsamar o corpo de Ja- apóstolos outros 72 discípulos,
cob; Moisés viveu 40 anos na não fazem senão copiar a sele-
corte de Faraó, 40 anos no deser- ção de 72 homens, feita por
to de Madian e 40 anos gover- Moisés entre os anciãos do
nou o povo de Israel; os ninivi- povo.
tas jejuaram 40 dias e os hebreus
O modo por que os apóstolos
andaram 40 anos errantes no de-
seguem Jesus imediatamente e
serto; Moisés e Elias tinham je-
sem o conhecerem é por demais
juado 40 dias. Além disso, Elias
simbólico, e a sua significação
tinha viajado pelo espaço e o Es-
explica-se desde logo. O mesmo
pírito transportara Ezequiel de
numero de 153 peixes, tirados
um ponto para outro. Temos,
milagrosamente da água pelos
portanto, que à maneira deles,
apóstolos, pode entender-se, se-
obrigaram Jesus a jejuar 40 dias;
gundo S. Jerônimo, em relação
como a Abraão, fizeram-no ten-
com as 153 espécies de peixes
tar no deserto e, como a Elias e a
que então conhecidas, e signifi-
Ezequiel, obrigaram-no a andar
ca, segundo este padre da Igreja,
pelo espaço.
que todas as classes de homens
Abandonado Jesus em Naza- são pescados para a sua salva-
ré, ei-lo que parte para Cafar- ção66.
naum, a fim de cumprir o anun-
O nome de Pedro, dado ao
ciado pelo profeta (Mat. IV, 13,
chefe dos Apóstolos, simboliza-
14) e (Luc. IV, 23, 31).
va no hebraísmo a fé inabalável
Cafarnaum ficava na Galileia, e indestrutível, tanto que Moisés
cuja região o evangelista descre- havia feito da pedra o sinal ale-
ve com as mesmas palavras do górico de Jeová67.
profeta Isaías: Como um país
A mesma ideia simbólica, re-
que jazia nas trevas (Mat. IV,
66
16). Com. in Ezequiel, 47.
67
Deut. XXXII, 4, 15, 18, 30, 31. Samu-
Quando os Evangelistas nos el e II Reis XXII, 2, 3; XXIII, 3.
66
presentada pelas chaves confia- mesmo Jesus cita a cura de Naa-
das ao chefe dos Apóstolos, se mã, realizada por Eliseu (Lucas
encontra no Antigo Testamen- IV, 27). A cura da mão dissecada
to68. é tirada literalmente do Antigo
Finalmente, a companhia de Testamento (Livro 1 dos Reis,
pessoas de má fama que rodeiam XIII, 4 e seg.).
Jesus para escândalo dos Escri- A piscina de Betesda, que a
bas e Fariseus, (Marc. II, 16) foi História não conhece, com os
copiada da figura de Davi que ti- seus cinco pórticos, simboliza os
nha se colocado à frente de uma cinco livros de Moisés.
turba de 400 desgraçados (I A cena do endemoninhado
Reis, cap. XXII, 2). que, não podendo ser curado pe-
Os milagres de Cristo fazem los Discípulos, melhora nas
parte do programa profético: mãos de Jesus72, é igual a cena
Então, serão abertos os olhos de Geazi, servo de Eliseu,73 que
aos cegos e abertos os ouvidos não tinha sabido fazer voltar à
dos surdo. Então, o coxo 69 salta- vida o filho de Sumanita, ressus-
rá como um cervo e a língua dos citando-o o próprio Elias.
mudos cantará 70. Em ambos estes casos, Strauss
É verdade que em Isaías não faz notar a diferença de poder,
figuram as narrações dos lepro- que existia entre os Discípulos e
sos nem as ressurreições dos o Mestre.
mortos, mas esses dois gêneros A cura do filho do Centurião,
de milagres acham-se nas lendas realizada por Jesus à distância74,
dos profetas. Eliseu curara um é parecida com a cura de Naamã,
leproso, e junto com Elias, res- operada também de longe por
suscitam um morto cada um71. O Eliseu: o Messias não podia ser
68
.. “et dabo clavem domus David super inferior em poder ao profeta do
humerum ejus: et aperiet et non erit qui
claudiat, et claudet, et non erit qui aperi- 10 e seg. As palavras de Jesus após res-
et” (Isaia XXII, 22). Porei sobre o seu suscitar o rapaz de Nain, são reprodução
ombro a chave da casa de Davi; ele a textual do Antigo Testamento, quando
abrirá e ninguém a fechará, ele a fe- Elias ressuscita o filho da viúva de Sa-
chará e ninguém a abrirá. reta.
69 72
A figura dos coxos que saltam, repete- Mat. XVII, 14-29; Mar. IX, 14-29;
se literalmente nos Atos dos Apóstolos Luca XI, 37-43.
73
(III, 7 e seg.) II Re IV, 8 ss. 29-37.
70 74
Isaia XXXV, 5 ss. Mat. VIII, 5-13; Luca VII, 1-40; Giov.
71
I dos Reis, XVII, 17; II dos Reis, IV, IV, 46-54.
67
Antigo Testamento. breus recebem no deserto e por
Jesus acalmando os ventos e outra, no que diz respeito aos
as ondas é uma imitação de Jeo- milagres, perfeitamente análo-
vá ordenando ao Mar Vermelho gos, de Elias e de Eliseu76.
que se afaste para dar passagem O milagre da transformação
ao Povo Escolhido. da água em vinho tem seus pre-
Melhor ainda: Hengstenberg cedentes no Antigo Testamento:
achou uma outra figura idêntica Moisés fizera brotar água da ro-
à de Jesus que também acalma a cha e transformara em sangue
tempestade para salvar os Após- toda a água do Egito. Se em Je-
tolos que corriam perigo na sua sus a água se muda em vinho e
barca. Trata-se do Salmo CVII não em sangue, é porque no An-
(v. 25, 28-30). Jesus que cami- tigo Testamento aquele é o sím-
nha sobre as águas imita Jeová, bolo deste e ainda do próprio
que no Antigo Testamento está sangue expiatório do Messias.
poeticamente representado, via- A maldição da figueira que
jando sobre elas75. Pedro, que não produzia frutos precoces é
pretendendo andar sobre as tirada de Oséas77 e de Miqueias.
águas está prestes a se afogar, A cena da Samaritana, junto
merecendo de Cristo o famoso - do poço, é uma imitação poética
Homem de pouca fé, porque du- das cenas de Jacó e Raquel, de
vidaste? - sendo por ele salvo, Eleazar e Rebeca na fonte.
revela a mais perfeita semelhan-
Nem mesmo a cena dos ven-
ça com outro episódio do Antigo
dilhões expulsos do templo é
Testamento onde se diz, na Epís-
original: Jesus não faz senão
tola aos Hebreus (XI, 29), que
transportar duas sentenças do
se os israelitas passaram o Mar
Antigo Testamento, uma de Jere-
Vermelho, foi por terem fé, ao
mias (VII, 11) que diz que o
passo que os egípcios se afoga-
templo não se há de converter
ram.
em covil de bandidos, e outra de
O milagre da multiplicação Isaías (LVI, 7) em que se chama
dos pães e dos peixes é decalca- ao templo casa de oração.
do igualmente sobre o Antigo
A cena da transfiguração é co-
Testamento por uma parte, quan-
do se refere ao maná que os he-
76
Salmo CVII, 4-9; I Re XVII, 7 ss.; II
75
Isaia XLIII, 16; Salmos LXXVII, 20; Re XXXVIII, 42-44.
77
Giob. IX, 8. IX, 10.
68
piada do Antigo Testamento. tanha da transfiguração, quem
Moisés subira ao Monte Sinai, fala é a nuvem; no Êxodo é o
levando consigo, além dos 72 mandato de Moisés; no Evange-
anciãos, Aarão, Nadab e Abim; lho, segundo o sentido modifica-
uma nuvem cobre a montanha do, é testemunho de Deus aos
durante seis dias, e por fim, no discípulos acerca de Jesus. Mais
sétimo, Jeová aparece em meio ainda: estas palavras estão copia-
da nuvem e chama Moisés, a das do Antigo Testamento,78 aca-
quem chegam os resplendores da bando a frase com o mesmo vo-
divina auréola. De volta da mon- cábulo que serve de conclusão à
tanha, encontra o povo adorando passagem do Deuteronômio,
o bezerro de ouro e encoleriza- onde o legislador promete a Isra-
se. Jesus sobe também a uma el um profeta semelhante a si
montanha anônima em compa- próprio, dizendo-lhe: Escutai-
nhia de três pessoas, que são por o79.
assim dizer, o comitê diretor dos A entrada de Jesus em Jerusa-
Apóstolos; lá torna- se resplan- lém foi adaptada às profecias de
decente como Moisés; a mesma Isaías80 e de Zacarias81.
nuvem luminosa entra em cena.
E para que a adaptação a este
Descendo do monte Jesus en-
último fosse literal, o evangelista
contra o jovem possesso, que os
fez viajar Jesus ao mesmo tempo
seus discípulos não puderam cu-
sobre uma burra e um jumenti-
rar, e o seu primeiro sentimento
nho, no curto espaço que vai de
é de cólera pela impotência con-
Betfagia a Jerusalém. Tendo sido
tra o demônio.
mal interpretada a passagem do
Com Jesus no monte, compa- profeta e havendo-se repetido
ram-se Moisés e Elias: o primei- duas vezes a palavra jumento, o
ro para tornar mais evidente a
78
relação que vai do primeiro ao Is. XLII, 1; Salmo II, 7.
79
segundo salvador; o segundo em Matt. XVII, 5.
80
LXII, 11.
virtude da profecia de Malaqui- 81
Zac. IX, 9. - Salvador, citando textual-
as, segundo a qual Elias deveria mente uma passagem de Zacarias na
voltar em pessoa antes do Messi- qual a entrada de Cristo em Jerusalém é
as, uma vez que a sua antecipada e minuciosamente descrita,
astutamente observa que todas as ima-
substituição por João Batista gens relativas à sua entrada em Jerusa-
deixaria uma lacuna. . lém não custaram nada para a imagina-
Tanto no Sinai como na mon- ção da tão grande e rica nova escola (a
cristã).
69
evangelista julga que o referido as85.
fragmento se deve entender Quando porém, lhe perguntam
como se os jumentos fossem se ele é o Messias, já se não cala,
dois. proclamando que o é, para que
A traição de Judas foi adapta- se realize aqui o Antigo Testa-
da do episódio da traição de cer- mento86.
to comensal de Davi, e a decla- Os ultrajes e maus tratos infli-
ração de Jesus, durante a ceia, gidos a Jesus, foram previsto ex-
corresponde a idêntica revelação pressamente por Isaías87
do rei salmista82.
Os trinta dinheiros da traição
As palavras Sou eu que o de Judas e o seu gesto de atirá-
quarto evangelista, mais teológi- los fora no Templo são tomados
co do que os sinópticos, põe na à letra do oráculo de Zacarias88.
boca de Jesus no momento em
A compra do campo de san-
que este avança para os soldados
gue com os dinheiros da traição,
que o vêm prender - palavras
o remorso e o arrependimento de
que os fazem cair por terra - são
Judas, a sua morte prematura e o
as mesmas que pronunciou Jeo-
gênero dessa morte, a anasarca e
vá, e, por conseguinte, copiados
a cegueira, tudo isso se encontra
do Antigo Testamento83.
em vários textos do Antigo Tes-
A prisão de Cristo como de- tamento89.
linquente são relacionadas pelos
Todo o plano, e até mesmo os
próprios evangelistas Marcos e
detalhes da história da crucifica-
Mateus com as predições dos
ção foram copiados pelos evan-
profetas. A fuga dos Apóstolos
gelistas do capitulo LIII de Isaí-
equivale ao cumprimento da
as e dos Salmos XXII e LXIX.
profecia de Zacarias84.
Além disso, João preocupado a
Se Jesus não responde à per- mostrar em como Jesus é o ver-
gunta do sumo sacerdote, relati- dadeiro Cordeiro, acrescenta o
va ao depoimento das testemu- hissope, que no Êxodo90 se em-
nhas, é para que se veja nele o prega no sacrifício do cordeiro
cordeiro conduzido ao suplício
sem lamentações, em cumpri- 85
LIII, 7.
86
mento literal da profecia de Isaí- 87
Salmo CX, 1; Daniele VII, 13.
L, 6.
82 88
Salmo XLI, 10. XI, 13.
83 89
Deuter. XXXII, 39; Isaia XLIII, 10 ss. Strauss, op. cit., II, XC.
84 90
XIII, 7. Êxodo, XII – 21, 22.
70
pascal. versículo 2, lê-se textualmente:
Se Cristo escolhe a Páscoa Meu Deus, meu Deus, por que
para ser crucificado, é porque a me abandonaste?
sua missão é exatamente a do As palavras Pai, perdoa-lhes
cordeiro pascal, sacrificando-se porque não sabem o que fazem,
na dita época para salvar a hu- são postas na boca de Jesus para
manidade do pecado original. realizar o que Isaías tinha dito do
Seja-nos permitido lastimar enviado de Deus, que colocado
aqui a grande soma de energia entre malfeitores e carregado
empregada por todos aqueles com os pecados de todos, supor-
que, querendo defender a exis- ta ainda o peso da sua iniquida-
tência humana de Cristo, quebra- de92.
ram a cabeça para explicar aqui- O profeta Zacarias dissera que
lo que se vê ser totalmente inad- os habitantes de Jerusalém veri-
missível, a não ser que despojas- am Jeová trespassado por uma
sem Cristo de toda a realidade lança. Dali a necessidade de ferir
histórica, isto é, a mudança do Jesus com a lança, para que,
dia do seu sacrifício, como se quando ele regressasse às nuvens
esse dia fosse histórico e não do céu, fosse possível ver-lhe a
simbólico, e ainda como se tal ferida (Daniel, VII, 13).
mudança houvesse tido outro Mas Jesus não era só aquele a
fim que não fosse o de mudar o quem feriram. Era também o
dia da Páscoa hebraica, assim cordeiro de Deus, e, precisamen-
como já tinham mudado o sím- te, o cordeiro pascal, de quem se
bolo, substituindo o cordeiro tinha escrito: Não se quebrará
material pelo cordeiro simbóli- nenhum dos seus ossos. Daqui
co. também a necessidade de não
Os dois ladrões entre os quais lhe quebrarem as pernas, como
Jesus é crucificado relacionam- aos dois ladrões.
se, segundo o próprio Marcos, Isaías dissera que o servo de
com a profecia de Isaías91. Jeová morreria entre ricos e mal-
Mateus e Marcos põem na feitores93.
boca de Jesus as palavras: - Meu Quanto aos malfeitores, lá es-
Deus, meu Deus, por que me tão os dois ladrões, que os evan-
abandonaste? No Salmo XXII,
92
Isaías (LIII - 12).
91 93
Isaías (LIII - 12). Isaias, LIII, 9.
71
gelistas fazem morrer a seu lado; na luta de Moisés contra os tau-
quanto aos ricos, fizeram com maturgos egípcios. Salvador
que o rico José de Arimateia en- prova que o Apocalipse é uma
terrasse Jesus. Isaías dissera pura cópia dos profetas, princi-
também: Que fazes aqui? Para palmente de Ezequiel e Daniel.
que fizeste abrir aqui um sepul- Os evangelistas falam de Je-
cro para ti? Porque se abriu um sus, dando-lhe três denomina-
sepulcro num lugar alto, desig- ções sobrenaturais ou metafóri-
nando uma morada na pedra? 94. ca, além de Cristo e Messias, Fi-
Isto é o que o evangelista faz di- lho de Davi, Filho do Homem e
zer a Jesus junto ao sepulcro de Filho de Deus. Pois bem: tudo
José de Arimateia, aberto na ro- isso não faz mais que confirmar
cha. o seu caráter simbólico. Filho e
Jesus ressuscita porque isso descendente de Davi, devia ser o
está previsto no Salmo XVI (9 Messias, segundo a teologia he-
ss.) e em Isaías (LIII, 10-12). braica. A expressão - Filho de
Finalmente, sobe ao céu onde Deus - já era usada no Antigo
está sentado à direita de Deus, Testamento para designar, não
em cumprimento do versículo 1 tanto ao povo de Israel95 , mas
do salmo CX: O Senhor diz ao aos reis do mesmo, como Davi e
meu Senhor: senta-te à minha Salomão96 e aos seus mais dig-
direita, até que eu ponha os teus nos sucessores97.
inimigos como um escabelo a A expressão Filho do Homem
teus pés. se encontra em Ezequiel, que lhe
Se quiséssemos continuar em dá a significação de homem hon-
citações, reconstituiríamos, pon- rado com as mais altas revela-
to por ponto, o Novo Testamento ções de Deus98 e em Daniel,
sobre o Velho. Para o nosso fim, onde significa, precisamente, o
porém, bastam os pontos capi- Messias que virá nas nuvens do
tais. Acrescentaremos, no entan- céu, segundo se lê em Mateus
to, que a festa do Pentecostes (XXIV, 30, XXVI, 64).99
esta tomada à letra do Antigo
Testamento (Deut. XVI, 9-11; 95
Ezequiel IV, 22; Oséas XI,1; Salmo
Num. XXVIII, 26). A luta de Pe- LXXX, 16.
96
dro e Paulo contra Simão o II Salmo VII,14, Sal. 89, 27).
97
Mago tem seu motivo simbólico Salmo II, 7.
98
II, 1, 3, 6, 8; III, 1, 3, 4, 10, 17, etc.
94 99
Isaias, XXII, 16. VII, 13
72
Não há, pois, nos Evangelhos, A pergunta não é sem sentido
nada que já não estivesse no An- porque, mesmo no caso de ne-
tigo Testamento: nada há de nhuma das duas ser verdadeira,
novo debaixo do Sol, como dizia haveria um meio de se sustentar
Salomão. a tese de que Cristo poderia ter
Todos as designações de Cris- existido, pois se os evangelistas
to tinham já sido usados no Anti- lhe aplicassem por equívoco ale-
go Testamento, mais ou menos gorias indevidas, ainda assim,
metaforicamente, enquanto que nada disso se oporia à realidade
no Novo Testamento adquiriram da existência de Jesus.
o carácter sobrenatural próprio Por outras palavras: mesmo
de um mito. quando se objetasse que Cristo
Para aqueles que acreditam não foi mal imaginado para ser
que Cristo era um homem a difi- mal adaptado às pretendidas ale-
culdade é insolúvel, porque, gorias do Antigo Testamento,
queiramos ou não, Cristo está fa- que então não seriam alegorias,
lando apenas de si mesmo como estas foram mal imaginadas para
o Messias que havia de vir, mes- serem mal adaptadas a este per-
mo nos sinóticos e precisamente sonagem que, não obstante, não
nessa passagem de Mateus deixaria de ser histórico.
(XXII, 41). A única solução raci- Enfim! Já não precisamos de
onal é que Strauss dá: Jesus quis cansar-nos muito para demons-
mostrar a superioridade de Davi, trar que efetivamente as alegori-
do qual era descendente de acor- as do Antigo Testamento prece-
do com a carne ou a lei, enquan- deram a Cristo, se não cronolo-
to procedia de Deus como espíri- gicamente, pelo menos na men-
to. talidade daquele meio em que
Essa dificuldade sempre foi o ele foi criado.
tropeço da cristologia que queria Porque, ainda mesmo que o
o impossível: Fazer de Cristo um Antigo Testamento, nas passa-
ser humano inconsistente com as gens de onde saiu a concepção
leis da natureza e da história. do Cristo, não contivesse verda-
Assim sendo, surge a seguinte deiras alegorias mas unicamente
pergunta: Qual das alegorias expressões poéticas, imagens e
aplicadas a Cristo no Antigo figuras retóricas, coloridas com
Testamento e nos próprios Evan- a ardente fantasia oriental dos
gelhos era verdadeira profetas, isto não desmentiria o
73
fato indiscutível de que os he- época assinalada à vida de Cris-
breus tinham costume, desde to. Basta que essa fosse a ideia e
tempos imemoriais, de explicar o espírito dominante daquela
o Antigo Testamento por meio época para aplicar a adaptação
de alegorias, antes que em suas do mito do novo Redentor, ima-
mentes nascesse a ideia do Cris- ginado pelo exemplo dos outros
to. Em breve, faremos esta de- Deuses Redentores, às alegorias
monstração, que pertence à His- que se encontravam ou se julga-
tória100. va encontrar no Antigo Testa-
Notemos que Fílon - que não mento.
foi colocado entre os padres da E que tais foram a ideia e o
Igreja por não ter falado no Cris- espírito dominante naquela épo-
to, e a quem destruíram os livros ca - o que deu nascimento ao
porque demonstravam que o Cristianismo, entenda-se - isso
cristianismo nasceu sem Jesus - confirma-se, de um modo que
Fílon tinha já posto em alegoria não admite réplica, com os pri-
o Antigo Testamento. meiros padres da Igreja, princi-
Fócio, como já vimos101, opina palmente com os que nasceram e
que a linguagem alegórica da viveram no mesmo ambiente de
Escritura procede do próprio Fí- Fílon, do qual foram verdadeiros
lon. discípulos. Entre eles contam-se
Clemente d'Alexandria103 e Orí-
A nós, basta saber que o méto-
genes104 que, como vimos,105 são
do de interpretar o Antigo Testa-
discípulos e seguidores de Fílon,
mento estava já em uso entre os
até mesmo na negação da exis-
hebreus alexandrinos102, antes da
tência histórica de Cristo.
100
Ernest Havet, O Cristianismo E Suas Mas para o provar, não preci-
Origens - O Judaísmo, tomo III, 421 ss., samos sair da Bíblia. S. Paulo
Paris, Lèvy, 1878.
101 atribui constantemente um duplo
Primeira parte, cap. III
102
Não é irrelevante a circunstância de sentido à Escritura106, acompa-
que os simbolistas Hebreus fossem ale- nhando as opiniões de Santo
xandrinos. Porque esta condição explica
perfeitamente a passagem da doutrina, oplatônica, que inspirou a famosa Esco-
da moral e do culto do Antigo Testa- la alexandrina
mento, que no judaísmo é fechado e na- 103
Havet, op. cit., III, pp. 433-434.
cionalista, para o cristianismo do Novo 104
Peyrat, op. cit., pp. 183 ss.
Testamento, que é um judaísmo mais 105
Parte I, c. III.
suave e espiritualizado por influência do 106
I Cor., IX, 9; X, 1 e ss.; Gal. IV, 21 ss.;
helenismo e, sobretudo, da filosofia ne- Col. II, 16, 17; Eb. VIII, 5; IX, 1 ss.; X, 1.
74
Ambrósio, Santo Agostinho e S. trando o seu apogeu no Antigo
Gregório107. Testamento109, ao se adaptar ao
Além disso, a interpretação mito do Redentor, que morre e
alegórica foi obra dos mesmos ressuscita. Este é, como demons-
hebreus, do tempo em que a tramos com os próprios Evange-
ideia de Cristo tomou corpo. lhos, o plano dos cristãos: adap-
tar o novo mito às profecias do
Tem-se querido ver, nos qua-
Antigo Testamento.
dros proféticos, apenas a ima-
gem de um Messias régio e Todas as crenças do Evange-
guerreiro, que devia fazer renas- lho, como tão justamente obser-
cer o esplendor do reinado de va Havet, foram, portanto, so-
Davi, quando é precisamente o nhos hebraicos, antes de serem
contrário. Porque o verdadeiro dogmas cristãos. Mais certa e
plano da paixão de Cristo, está precisa é ainda a proposição in-
precisamente na imagem famosa versa, isto é, que não foi o Anti-
de Isaías108. Uma imagem não go Testamento que preparou o
exclui a outra; os hebreus porém Novo, mas sim este que se adap-
acabaram por confundi-las. As tou àquele. Está explicado como
provas dolorosas do cativeiro de puderam existir profetas e um
Babilônia e a dos romanos, aca- Messias vaticinado.
baram por lhes levar a persuasão Não pode ser doutra maneira,
de que a época sonhadora de a não ser que admitamos o so-
uma nova glória de Davi se afas- brenatural, mas, nesse caso, a fi-
tava cada vez mais, e só então losofia não tinha mais a fazer do
convieram que as dolorosas pro- que retirar-se.
vas de Cristo (personificação de Se Cristo foi adaptado ao An-
Israel) e a sua própria morte tigo Testamento, nada fez nem
(Daniel, IX,26) não eram outra disse que não estivesse já escrito
coisa mais do que o caminho na lei; se a sua própria vinda e a
para chegar à gloria, colocada sua morte tiveram lugar em
mais tarde no outro mundo. tudo, segundo as profecias; se os
De modo que a ideia da res- evangelhos faltaram a este plano
surreição, estranha primeiramen- preconcebido, tanto antes do seu
te ao judaísmo, confunde-se logo nascimento como antes da sua
com os povos orientais, encon- morte, excluindo toda a possibi-
107
lidade de autossugestão em Cris-
Peyrat, op. cit., pp. 184-188.
108 109
Isaias LII, 13 ss. S. Paulo, I Corintios , XV, 4 ss.
75
to; se enfim, Cristo nada fez que vida própria. Foi apenas uma cri-
não fosse sobrenatural ou prede- ação teológica, dogmática e mi-
terminado, mística e teologica- tológica.
mente, quem se atreverá a sus- Tal é o testemunho da Bíblia,
tentar ainda que ele foi pessoa única fonte que nos fala de Cris-
real e histórica, um homem, um to, e que, em lugar de nos sub-
ser limitado e terrestre? ministrar as provas da sua exis-
Não, Cristo não foi um ho- tência, apenas é uma demonstra-
mem. Foi um Deus. ção constante da sua inexistên-
Cristo não existiu, não viveu cia.

76
CAPÍTULO V
CONTRADIÇÕES ESSENCIAIS DA BÍBLIA A CERCA DE CRISTO

Mateus e Lucas dão a Jesus Em Mateus, José e Maria par-


duas genealogias diversas110. De- tem de Belém sem irem a Jerusa-
vendo Jesus nascer, segundo lém e fogem para o Egito preci-
muitas profecias, da estirpe de pitadamente depois da adoração
Davi, Mateus pretende demons- dos Magos, para salvarem Jesus
trar que se cumpre o vaticínio, da degolação dos inocentes, or-
fazendo descender José, pai de denada por Herodes113 Pelo con-
Jesus, da linha de Davi. Por ou- trário, em Lucas, José e Maria
tro lado, porém, o mesmo Ma- vão publicamente ao templo de
teus afirma que Jesus fora con- Jerusalém, onde tem lugar a cena
cebido por obra do Espírito San- de Simão e Ana, e depois, em
to111. Parece, pois, que se Jesus vez da fuga para o Egito, voltam
foi concebido desse modo, não tranquilamente para Nazaré114 É
podia descender de Davi, ao pas- assim que a narração de Lucas
so que, descendendo de Davi, não só contradiz materialmente a
por via de José, não podia de de Mateus, mas até exclui, im-
modo nenhum ser concebido por plicitamente, a famosa degola-
obra do Espírito Santo. ção dos inocentes, narrada por
Quanto ao ano em que Jesus aquele. O fato de levarem Jesus
nasceu, há contradição formal ao templo de Jerusalém, onde é
entre Mateus e Lucas, os únicos publicamente reconhecido por
evangelistas que dele falam. Simão como o Messias não se
Confrontando as circunstâncias harmoniza, em ponto algum, não
históricas com que os dois rela- digo já com a fuga para o Egito,
cionam o nascimento de Jesus, mas ainda mesmo com a matan-
depreende-se de um modo in- ça dos inocentes, pois que, em
controverso que o Cristo de Ma- tal caso, Herodes teria podido
teus devia ter pelo menos 11 apoderar-se dele, sem tocar em
anos quando veio ao mundo o um cabelo de nenhum outro me-
Cristo de Lucas112. nino.

110
Mat. I, 1-17; Lucas III, 23-38. de Lucas sobre o censo do Cirino, vid.
111
Mat. I,20-23. Strauss, obr. Cit. II. 48.
112 113
Ferrière, Paganismo dos hebreus, Mat. II, 13, 16.
114
apêndice nº 2. Quanto ao erro histórico Lucas, II, 22, 39.
77
A infância de Jesus é comple- jetivo das suas pregações é que
tamente ignorada por Marcos e vai a Jerusalém, onde é quase in-
João, a quem só põem em cena teiramente desconhecido, a pon-
aos trinta anos, fazendo-o, por to dos habitantes perguntarem
assim dizer, cair do céu nas mar- uns aos outros quem ele era. Já o
gens do rio Jordão, onde recebe quarto Evangelho o faz viver
o batismo pelas mãos de João quase só na Judeia mas ir várias
Batista. Mateus, depois de o fa- vezes a Jerusalém, onde realiza
zer nascer milagrosamente, fugir os principais atos da sua vida.
para o Egito e regressar a Nazaré Segundo João116, João Batista
nunca mais fala dele, até á idade declara formalmente não conhe-
de trinta anos. Só Lucas fala da cer Jesus quando este se lhe
discussão que Jesus aos 12 anos apresenta para receber o batis-
de idade teve no Templo com os mo. Mas segundo Lucas117, João
doutores da lei115. Lucas, narran- Batista conhecia Jesus desde o
do este episódio cai em contradi- ventre de sua mãe Isabel, onde
ção consigo mesmo, porque diz saltou de prazer quando Maria a
que os pais de Jesus, tendo-lhe visitou. E, segundo Mateus118,
perguntado quando o encontra- tanto Batista conhecia Jesus
ram no Templo, por que os aban- quando o batizou, que até recu-
donara, e ele lhes respondera sou fazê-1o, a princípio, cedendo
que fora para ocupar-se das coi- apenas às repetidas instâncias de
sas de seu Pai, não o compreen- Jesus. Entretanto, Batista, que
deram. É absurdo que os pais de segundo todos os evangelistas,
Jesus não compreendessem a se dera a conhecer como precur-
resposta, desde que, segundo o sor de Jesus, batizando-o com o
mesmo Lucas, Jesus tinha nasci- concurso da pomba celestial e da
do milagrosamente como, tam- voz do Eterno, reconhecendo-lhe
bém, pelo mesmo motivo, se não explicitamente o caráter de Mes-
deviam inquietar com o extravio sias119, não se faz cristão e conti-
de Jesus. nua a pregar por conta própria.
Cingindo-nos agora aos três Depois, quando é preso e encar-
Evangelhos sinópticos, vemos cerado, envia da prisão a Jesus
que Jesus começa e continua a 116
João, I. 33.
sua missão na Galileia, e só para 117
Lucas, I, 41-44.
a realizar, só para cumprir o ob- 118
Mateus, III,14.
119
Mat, III-13-17; Marc. I-7-11; Luc.III-
115
Lucas, II, 41-50. 16, 21, 22; João, I, 29-34.
78
dois dos seus discípulos, encar- Da citação dessas contradi-
regando-os de lhe perguntarem: ções, como em geral de tudo o
És tu, porventura, o que há de que se refere aos milagres, fare-
vir, ou temos ainda de esperar mos graça para nossos leitores,
por outro?120. Jesus declara que por que não é necessária sequer
João batista é o profeta Elias121, para nossa demonstração.
mas este mesmo João Batista de- Lucas faz-nos saber que os sa-
clara que não é tal o profeta Eli- maritanos acolheram Jesus com
as122. hostilidade e que João, que o
As tentações de Satanás con- acompanhava, vendo isto, se en-
tra Jesus não vêm mencionadas colerizou sobremaneira123. Por
no quarto Evangelho, que as ex- sua vez, o mesmo João, que esta-
cluiu sistematicamente, encade- va com Jesus e que tanto se re-
ando os novos detalhes da vida voltou com a ação dos samarita-
de Jesus - desde o batismo até ao nos, no seu Evangelho conta que
primeiro milagre - com as mais quando Jesus passou por Sama-
rigorosas indicações do tempo ria os samaritanos lhe fizeram
(ao segundo dia, ao terceiro dia, uma excelente recepção, pedin-
etc.) de modo que não passaria do-lhe que ficasse com eles e
por alto os quarenta dias que ele proclamando-o Salvador do
permaneceu no deserto e as res- Mundo124.
pectivas tentações. Igualmente Sobre o episódio da mulher
João, que era o discípulo amado que unge Cristo, todos os evan-
de Cristo e que, portanto, não gelistas relatam o caso diversa-
podia ignorar os detalhes da vida mente, sendo portanto, contradi-
dele, nada nos diz acerca das tórios125.
coisas praticadas pelo Mestre
Quanto à ultima ceia, que
com os endemoninhados.
constituiu um fato capitalíssimo
Demonstrado está assim que, para o cristianismo porque nela
excetuando o quarto evangelista teria Jesus instituído o mistério
os outros três se contradizem a da Eucaristia, nem mesmo aí os
cada a linha, quer relatando a Evangelhos se harmonizam. Os
história das tentações quer con- três primeiros colocam a última
tando os exorcismos de Jesus.
123
Lucas, IX-51-56
120 124
Mat. X, 2-3. João, IV-9, 39-42
121 125
Mat. XI-14. Mat. XXVI, 2-13 Marcos, XIV, 1-9;
122
João I-21. Luc. VII, 36-40; João XII, 1-8.
79
ceia no dia de Páscoa126, enquan- pelo seu próprio sacrifício.
to João a coloca antes da Pás- Estas contradições dos Evan-
coa127. Além disso, os primeiros gelhos mais uma vez confirmam
fazem Jesus instituir nesta ceia o o nosso modo de ver, pois só
mistério da Eucaristia128 ao passo considerando Cristo como um
que João, absorto pela ideia eu- mito, precisamente o mito do
carística (CapítuloVI) narra a úl- Cordeiro Pascal, qui toilit peca-
tima ceia com inúmeros porme- ta mundi, se pode resolver esta
nores, mas sem dizer uma única complicação.
palavra acerca dessa mesma
Durante a última noite, passa-
ideia eucarística, sendo ele de
da no horto de Getsemani, Jesus
resto, o único que teria valor tes-
afastou-se dos seus discípulos, a
temunhal, pois assistiu a ela des-
pouca distância, segundo os si-
de o princípio.
nópticos. Os discípulos dormi-
Repitamos aqui, pois vale a am, Jesus levou consigo apenas
pena, que essa contradição, na Cefas e os dois filhos de Zebe-
qual muita tinta tem sido gasta deu. Chegado ali, Cristo cai por
inutilmente pelos estudiosos, terra, com o rosto unido ao chão,
não pode ser explicada exceto e assim ora por largo tempo, per-
pela nossa dedução na qual, manecendo triste até à morte e
Cristo sendo um mito, e exata- conformando-se, enfim, com a
mente o mito do cordeiro pascal vontade divina129.
qui tollit peccata mundi é ele
Pela sua parte, o quarto evan-
mesmo o alimento da ceia pas-
gelista, que deveria ser a teste-
cal.
munha íntima desse episódio tão
Só que nos três Evangelhos comovedor, nada diz a tal respei-
Sinópticos, mais antropomórfi- to, apesar das minúcias com que
cos, ele precisa dizê-lo explicita- relata os episódios dessa noite.
mente, enquanto que no quarto, Além disso, enquanto os três pri-
ao invés da instituição do sacra- meiros nos apresentam Jesus no
mento ser feita pela boca do Ag- Monte das Oliveiras, em estado
nus Dei, o mistério se cumpre de profundo abatimento, a ponto
de suar sangue130, o quarto põe
126
Mat. XXVI, 17-20; Marc, XIV, 12-8;
Luc. XXII, 7-15. 129
Matt. XXVI, 36 ss.; Marco XIV, 32
127
João XIII, 1. ss.; Luca XII, 39 ss.
128 130
Matt. XXVI, 26-28; Marco XIV, 22- Matt. XXVI, 36-39; Marco XIV, 32-
24; Luca XXII, 19-21. 36; Luca XXII, 41-44.
80
na boca de Jesus discursos chei- mente.
os de tranquilidade131; e ao passo Repararemos apenas nas con-
que nos primeiros evangelistas o tradições mais graves que acom-
beijo de Judas denuncia Jesus panharam a sua morte.
aos seus inimigos,132 no quarto é
Segundo Mateus (XXVII, 45)
o próprio Jesus que vai ao en-
Marcos (XV, 33) e Lucas (XXI-
contro dos seus inimigos, com
II, 44) desde a hora sexta até
tranquilidade e segurança, dizen-
àquela em que, Jesus devia ter
do aos soldados que o rodeiam:
exalado o último suspiro, isto é,
Eu sou o Cristo133!
do meio dia às três da tarde, toda
Passemos por alto as contradi- a terra se cobriu de trevas. Além
ções relativas à hora em que Je- disso, segundo Marcos (XV, 25)
sus foi julgado pelos sacerdotes Jesus teria sido crucificado, à
na presença do povo, ao seu in- hora terceira do dia, ou fosse às
terrogatório, ao momento em nove.
que é maltratado e injuriado, ao
Pelo seu lado, João (XIX, 14)
episódio da devolução de Pilatos
diz que, à hora sexta, ou fosse ao
para Herodes só conhecida por
meio dia, não só Jesus não esta-
Lucas, ao depoimento das teste-
va ainda na cruz, mas nem mes-
munhas, ao Cirineu, que João
mo o tinham ainda condenado à
não cita, à beberagem dada a Je-
morte. A essa hora, Pilatos mos-
sus, à altivez dos dois ladrões, à
trava-o aos hebreus, dizendo:
inscrição colocada na cruz (dife-
Eis aqui o vosso Rei.
rente em cada um dos quatro
evangelistas), à exclamação e Pois bem: se no dizer dos pri-
palavras ditas antes de morrer, meiros, desde o meio dia até às
ao golpe de lança no peito, à três, toda a terra se cobriu de tre-
quebra das pernas, ao embalsa- vas, ao passo que, segundo João,
mamento, à natureza do sepulcro precisamente neste tempo, tive-
e ao tempo em que esteve sepul- ram lugar a saída para o Gólgota
tado, contradições estas de deta- e a crucificação, devemos con-
lhes, mas tão numerosas, que cluir que João faz desenrolar to-
preciso se torna citá-las sumaria- dos os sucessos na mais densa
escuridão, circunstância esta que
131
não o impede de ver tudo o que
João, Cap. 14, 15, 16, 17 e 18. se vai passando, assim como su-
132
Matt. XXVI, 47-50; Marco XIV, 43-
46; Luca XXII, 47. cedia aos demais espectadores.
133
João, XVIII, 2-8.
81
As contradições, que se se- cidas pelos homens.
guem à ressurreição não nos Em conformidade com o pri-
prenderão muito a atenção, por- meiro modo de ver, ordena ao
que saem do campo da razão endemoninhado de Gheraseni,
para entrarem no do sobrenatu- curado por ele, que divulgue o
ral, que é por outro lado, um dos milagre140 e de acordo com o se-
critérios de condenação da vera- gundo ponto de vista recusa ter-
cidade da Bíblia. minantemente fazer milagres, in-
Pelo contrário, interessam-nos sulta quem lhes pedem141 e orde-
sobremaneira as contradições na àqueles a quem cura e aos
que a mesma Bíblia põe na boca que assistem, que não divulguem
e no procedimento de Cristo, en- nada142 .
quanto fala e procede como ho- No que diz respeito ao uso da
mem. força física, da resistência, em
Na célebre sentença, em que suma, da violência, Cristo não só
glorifica a pobreza, Jesus fala, as recomenda como as pratica143,
na opinião de Lucas, dos pobres, e ainda aconselha o seu empre-
em sentido concreto, ou seja da- go144.
queles que sofrem materialmente Quem não é por mim é contra
fome e, sede134, ao passo que, se- mim, diz Cristo em Mateus145 e
gundo Mateus, falava indistinta- em Lucas146. Em Marcos, porém,
mente dos pobres de espírito e diz: Quem não é contra nós, co-
dos que têm fome e sede justi- nosco está147. A contradição não
ça135. pode ser mais grave.
Quanto aos publicanos, Jesus Segundo Mateus148 Marcos149
os trata ora com afeto136, ora
com ódio e desprezo137. 140
Marco V, 19.
141
Acerca das boas obras, Cristo Matt. XIII, 28-41; XVI, 1-4;Marco
VIII, 11-12; Luca, XXIII, 7-9.
diz ao mesmo tempo que de- 142
Matt. VIII, 2-4; IX, 27-30; XIII, 15;
vem138 e não devem139 ser conhe- XVIII, 9; Marco I, 40-44; VIII, 22-26;
134 IX, 8; Luca IX, 36.
Lucas, VI, 20 ss. 143
Lucas XXII, 36; João, II, 15.
135
Mateus, V, 3-10. 144
Mat. V, 39; XXVI, 52.
136
Matt. XVIII, 17. 145
137 Mateus XI, 30.
Mat. IX, 10-12; XI, 19; Marcos II, 146
15-17; Lucas V, 29-31; VI, 34; XVIII, Lucas X, 23.
147
9-14; XIX, 2-10. Marcos IX, 38, 39, 40.
148
138
Matt. V, 16. Mateus V, 25; VIII, 49.
139 149
Matt. VII, 1, 2. Marcos I, 44.
82
e Lucas150 Jesus ordena os sacri-
fícios, mas em parte alguma da
Bíblia se vê que ele tome parte
em qualquer desses sacrifícios.
A principal, a mais irrespondí-
vel das contradições, é a que se
refere á missão de Cristo. Se-
gundo Mateus151, Jesus diz que
não veio para abolir a lei nem os
profetas, e segundo Lucas152 diz
que, tanto estes como aquela, ti-
veram já o Seu tempo!
À vista de tão extraordinárias
contradições, quem se atreverá a
dizer que Cristo seja um perso-
nagem histórico e real? Mesmo
sem levar em conta o anterior-
mente exposto?
Quem não vê aí a mão criado-
ra das diversas escolas metafísi-
cas e teológicas, denunciadas
pela diversidade de planos e de
doutrinas na composição de um
mesmo mito?

150
Lucas V, 14.
151
Mateus, V, 17, 18, 19.
152
Lucas, XVI, 16.
83
CAPÍTULO VI
ABSURDOS ESSENCIAIS DA BIBLIA ACERCA DE CRISTO

Fiéis ao nosso propósito de Para salvar a Humanidade


não nos ocuparmos do elemento dessa pretendida falta, Deus re-
sobrenatural contido na Bíblia, corre a outra vítima, sendo certo
não faremos caso dos muitos ab- que, para isso, bastaria um ato
surdos ali disseminados no que simples da sua vontade. Esta ví-
se refere a Cristo-Deus e tauma- tima, também inocente, é o seu
turgo próprio Filho, o qual, se era
Se quiséssemos sair do nosso Deus, não podia morrer, e se era
tema, pouco nos custaria fazer homem, não podia ressuscitar.
ver o absurdo da religião cristã, Enfim, para cúmulo de imora-
examinada em seus delírios so- lidade, para que esse Deus fosse
brenaturais. morto, faltava quem o matasse.
Falta revelar o principal, onde Assim, obrigando um povo a um
se prova que esta religião é ex- deicídio, Deus condena este
clusivamente teológica e não povo à infâmia, tanto mais ime-
obra de um homem histórico. recida, quanto era uma necessi-
dade determinada pelo próprio
Eis as concepções fundamen-
Deus a fim de realizar o seu pla-
tais sobre as quais se funda o
no.
cristianismo: Um Deus proíbe ao
primeiro casal humano que E toda esta série de imoralida-
coma do fruto que lhes daria a des para salvar, não a Humani-
conhecer o bem e o mal. Eles dade inteira, mas apenas aqueles
porém desobedecem e são casti- que vierem ao mundo depois de
gados, embora nenhuma culpa Cristo, e ainda destes, só uma
tenham, visto que antes de co- pequena parcela, pois que o
merem esse fruto não sabiam mundo, passados vinte séculos,
distinguir entre o bem e o mal. ainda é bem pouco cristão.
Contudo, Deus não só castiga E mesmo dos que são cristãos,
os autores do fato, inocentes, só se salva uma pequeníssima
como se vê, mas todos os seus parte, aqueles predestinados por
descendentes, que em nada fo- Deus, como se ouve todos os
ram participantes desse mesmo dias pela voz autorizada da Igre-
fato. ja.
84
Isto tudo demonstra incontes- capítulo precedente, Jesus decla-
tavelmente que Cristo é, sim, ra que não veio para abolir a lei
uma invenção dos teólogos. de Moisés, mas sim para cum-
Queremos averiguar, serena e pri-la. Ora, que valor pôde ter
conscienciosamente, se existiu o semelhante declaração e, por
homem chamado Cristo, e para conseguinte, toda a obra de Je-
isso, nos cingiremos à Bíblia sus, se hoje é certo e sabido que
apenas enquanto fala humana- os livros atribuídos a Moisés são
mente, ou antes, naturalmente, apócrifos?
pondo em destaque os absurdos No capitulo XII de João, Jesus
acerca de Cristo-Homem, e ain- fala à multidão, que o recebe em
da dentre esses, analisaremos triunfo, em gritos de Hosana,
apenas os mais salientes. proclamando-o rei de Israel (V,
Comecemos pela forma como 13), atestando que ressuscitou
os apóstolos seguem a Jesus, Lázaro (V, 17) e julgando-o filho
forma que é de todo o ponto, in- de um anjo (V, 29). Pois bem:
verossímil. apesar do que essa multidão,
num entusiasmo que tocava as
Segundo Mateus153 e Mar-
raias da loucura fez, disse e viu,
cos154, quando Jesus convida aos
muito mais do que o suficiente
que desde logo são seus discípu-
não só para crer em Jesus mas
los para que o sigam, estes aban-
também para se converter, ape-
donam imediatamente o ofício e
sar disso, o evangelista diz que
a família sem refletirem, sem lhe
essa multidão não só não se con-
pedirem a menor explicação,
venceu (V, 37) como assim que
sem saberem quem era Jesus, ig-
o Mestre terminou de falar, foi
norando enfim, o que viria a ser
embora se esconder. (V, 36).
deles.
Larroque, perante tamanho
Aqui, a Bíblia quer evidente-
absurdo, diz que não se pode ex-
mente revelar a importância da
plicar senão como uma distração
vocação, cuja explicação será
do narrador. Esta é uma das pro-
muito teológica, mas tira ao fato
vas mais apreciadas do caráter
toda a importância e verossimi-
simbólico e de nenhum modo
lhança humana.
histórico, que a própria Bíblia
Em Mateus, como vimos no atribui a Cristo. Por isso, imedia-
153
tamente depois, o Evangelista
Mateus, IV, 18-22. explica os motivos de tal estra-
154
Marcos, I, 16-20.
85
nheza, dizendo que esses fatos E foi assim que ele pôde reali-
(V. 38) aconteceram para que se zar, sem que ninguém o estor-
cumprisse a palavra do profeta vasse, a façanha da expulsão dos
Isaías, que dissera: Senhor, vendilhões do templo.
quem acreditou no que disse- Pois bem: segundo Mateus e
mos? A quem foi revelado o bra- os outros evangelistas sinópti-
ço do Senhor? (V. 39) Por isso cos, Jerusalém não conhecia
não podiam crer, porque outra ainda então Jesus. Será preciso
vez dissera Isaías: (V. 40) Ce- repetir aqui novamente, que esta
gou-lhes os olhos e endureceu- contradição absurda não se ex-
lhes o coração, para que não plica senão recorrendo à necessi-
vejam com os olhos e não enten- dade de cumprir-se uma profecia
dam com o coração, e se con- (neste caso, a de Zacarias) que
vertam e eu os sare. (V. 41) Isto impunha ao evangelista a obriga-
disse Isaías... ção de dizer que Jesus fora aco-
Tudo isto confirma que a Bí- lhido pelos habitantes de Jerusa-
blia faz proceder Jesus só para lém com extraordinárias mani-
cumprir o prescrito no Antigo festações de alegria, sem reparar
Testamento. Ora, deste modo, que isto comprometia ou invali-
que ninguém me venha com afir- dava a sua narração? Será preci-
mação de que os livros bíblicos so concluir, de novo, que é aber-
são narrações históricas. tamente simbólico o sentido da
Segundo Mateus155 quando Je- narração bíblica?
sus entrou em Jerusalém, a mul- Segundo os quatro evangelis-
tidão procedeu como se o conhe- tas, da prisão de Jesus à sua res-
cesse e venerou-o como se tra- surreição, compreendendo neste
tasse-se de um grande persona- espaço de tempo o processo e a
gem, correndo ao seu encontro, devolução de Herodes a Pilatos,
festejando-o, adornando as ruas a saída para o Calvário, a cruci-
com bandeiras e palmas e excla- ficação, a morte, o enterro e o
mando: Hosana ao filho de tempo que permaneceu sepulta-
Davi! Bendito seja o que vem do (três dias, embora incomple-
em nome do Senhor! E aos que tos) não se passaram mais que
perguntavam quem era, respon- três dias incompletos!
dia a multidão: Este é Jesus, o É isto possível? Respondam
Profeta de Nazaré, de Galileia. os que tenham um pouco de bom
155
Mateus, XXI-8, 11.
senso.
86
A parte da Bíblia referente a atribuída a Pilatos pela Bíblia,
Pilatos é simplesmente impossí- senão recorrendo á invenção da
vel e inexplicável, a não ser que morte de Jesus. Só assim o ab-
se admita a nossa tese. Pilatos surdo em questão se explica sa-
estava convencido da inocência tisfatória e racionalmente, pois
de Jesus e até intentou salvá- para condenar e crucificar publi-
lo156, apesar de abandoná-lo aos camente a Jesus era preciso a
judeus, depois de consentir os aquiescência de uma autoridade
ultrajes dos soldados no Pretório competente.
e de o haver preterido a um pri- Mas, como atribuir a este ma-
sioneiro da pior fama. gistrado a responsabilidade pela
Como explicar uma tão grave condenação de um inocente? Daí
incoerência ? a necessidade, para os evangelis-
João faz supor que Pilatos te- tas, de não fazer depender direta-
meu um castigo de César por mente de Pilatos a responsabili-
não ter condenado à morte dade de um ato odioso, que sem
quem, proclamando-se Rei dos ele, não poderia acontecer
Judeus, devia necessariamente Haveria nos Evangelhos ab-
passar por sedicioso. Mas, neste surdos que seriam imorais, ou se
caso, não se explicaria a sua querem, imoralidades que seriam
consideração por Jesus, tanto absurdas, porque ofuscam e
mais que era um governador pre- mancham sem necessidade o ca-
varicador e tirano, segundo o ráter de Cristo, se não fosse evi-
testemunho do contemporâneo dente a sua razão de ser e a sua
Fílon. Outros supõem que esta origem simbólica e mitológica.
narrativa fora inventada quando Citemos, por exemplo, o conse-
o cristianismo se infiltrava no lho dado por Jesus aos seus
mundo romano, pela necessida- companheiros para que fugissem
de de agradar a Pilatos e de lan- ante os seus inimigos (Mateus,
çar sobre os Judeus toda a res- XXIV, 16, 17 Lucas, XXI, 20),
ponsabilidade da parte odiosa da no que ele imita a Jeremias. A
lenda. ordem, dada por Jesus aos seus
Mas, se por um lado, a res- apóstolos para que não saúdem a
ponsabilidade dos judeus estava ninguém quando viajar (Lucas,
predestinada pelo profetismo, X, 4) é copiada, grosseiramente
por outro não se pode explicar a da que Eliseu deu ao seu servo,
156
por determinados motivos que
Luc. XXIII; João, XIX.
87
não existiam aqui. E o conselho, do simbólico dos processos de
consignado no capítulo XIV de Cristo, dignos de um desequili-
Lucas, dado por Jesus aos co- brado, mas por outro lado, de-
mensais para que não se colo- monstra a Bíblia que Cristo não
quem nos primeiros lugares a é pessoa real que procedesse na-
fim de que o dono da casa os turalmente; pelo contrário, é um
não faça passar aos últimos, e ser fantástico, um verdadeiro
para que, pelo contrário, se colo- fantoche que se move só quando
quem nestes, a fim de que aquele e como o controlador quer.
os brinde com os primeiros são Não se diga, por favor, que
lições de hipocrisia e de orgulho faltamos ao respeito a um objeto
citadas para dar cumprimento a de grande veneração, pois mui-
esta máxima do Antigo Testa- tas outras palavras bem mais du-
mento: Aquele, que se exalta ras teremos de empregar para
será humilhado e o que se humi- definir semelhante maneira de
lha será exaltado. (Job, 22, 29; proceder, zombando do mundo,
Sal. 18, 27; Prov. 29, 23; 35, 67). se não fosse por nossa interpre-
Cristo falava em parábolas, tação simbólica e mitológica que
para que não o entendessem os desculpa de tais ações o objeto
que o ouviam, dirigindo-as não da adoração dos cristãos, de-
só aos inimigos e aos predestina- monstrando que não foram co-
dos, mas também, e em mais de metidas por ele, que nunca exis-
uma ocasião, aos seus discípu- tiu, mas inventadas por aqueles
los157. Este seria o maior absur- que o criaram, impelidos pela
do, porque os mais instruídos fi- necessidade de cumprir um pla-
cariam desorientados, incapazes no teológico.
de compreender a razão porque No versículo 35 do capítulo
se expressava de tal modo, se XXIII de Mateus, Jesus censura
não lhe explicassem os próprios os hebreus por terem derramado
evangelistas, advertindo que o sangue de Zacarias, filho de
Cristo o fazia para cumprir a Baraquias, a quem mataram en-
profecia de Isaías, segundo a tre o templo e o altar: a crítica
qual ouviriam e não entenderi- demonstrou que não existiu
am, olhariam e não veriam158. qualquer personagem com tal
Isto explica realmente o senti- nome e em tais circunstâncias.
Só existiu um Zacarias, filho de
157
Marco IV, 13, 18; VIII, 17, 18. Baruch, que se encontrava em
158
Marco IV, 13, 18; VIII, 17, 18.
88
idênticas circunstâncias ao cita- Jesus de noite159, que tem com
do por Jesus, menos a diferença ele uma entrevista, que mais tar-
do nome do pai, que é Baruch de defende Cristo das acusações
em lugar de Baraquias, diferença dos seus correligionários160 e
de resto fácil de explicar. que, morto Cristo, praticou pie-
Mas o caso é que o assassina- dosas curas sobre o cadáver do
to deste Zacarias foi cometido mestre161, este Nicodemos não se
no ano 67 da nossa era, segundo fez cristão.
o historiador Josefo, isto é, mui- De modo que se torna a dar o
to tempo depois da época em caso de João Batista (que tam-
que os cristãos colocam Jesus. bém não se fez cristão).
De sorte que, ou este falou por Mas, o golpe de misericórdia
falar ou se referiu, como tendo- na própria Bíblia, para literal-
se já realizado, a um sucesso que mente destruir, aniquilar e dissi-
deveria ocorrer muito tempo de- par em absoluto a pretendida
pois dele. O primeiro termo do existência de Cristo é dado -
dilema resolve já a questão, e o quem o diria! - por dois dos seus
segundo demonstra que os Evan- discípulos: Apolo e S. Paulo.
gelhos foram escritos muito tem- Apolo! Quem é este Apolo? –
po depois da época assinalada a indagaria Dom Abbondio (perso-
Cristo, e que os seus autores não nagem do romance Os Noivos,
foram muito escrupulosos em de Alessandro Manzoni) - que
respeitar a verdade histórica, an- não figura no número dos após-
tes muito pelo contrário, criaram tolos?
o mito, pondo-lhe na boca pala-
A própria Bíblia o vai dizer.
vras absurdas, sem se darem
Leiamos pois o capítulo XVIII
conta do que estas deveriam,
dos Atos dos Apóstolos:
numa época de menos credulida-
de, denunciar as suas imposturas - 24. E veio a Éfeso um Ju-
e invenções. deu de nome Apolo, natural de
Alexandria, homem eloquente e
Uma das figuras bíblicas que
muito douto nas Escrituras.
demonstra a inconsistência his-
tórica da narrativa é a de Nico- - 25. Era instruído no cami-
demos. Este rico fariseu, mem- nho do Senhor, falava com fer-
bro do Sinédrio, descrito pela
159
Bíblia como pessoa de bons cos- João III,1.
160
João VII, 50 ss.
tumes e boa fé, que vai procurar 161
João XIX, 39.
89
vor de espírito e ensinava com mens como encarnação de uma
diligência sobre Jesus, tendo so- divindade, para cumprir um
mente conhecimento do batismo grande sacrifício expiatório.
de João. Mas, como se realizou esta
- 28. Porque, com grande encarnação? O apóstolo não o
veemência, convencia publica- diz. Não fala nunca dos parentes
mente os judeus, mostrando- de Jesus, nem sequer de Maria.
lhes, pelas Escrituras, que Jesus Não nos diz quando veio ao
era o Cristo. mundo, o que fez e como o fez,
Não é estranho que um judeu quando e como foi crucifica-
falasse para converter os outros do165...
ao cristianismo, enquanto pela Mas, há mais. Segundo os
sua parte, se conservava judeu? Atos dos Apóstolos (XXXVIII,
E, como se isto ainda fosse 15 e ss.), quando Paulo e os seus
pouco, a Epístola I aos Coríntios companheiros chegaram a Paz-
diz-nos que este Apolo era igua- zuoli tiveram uma boa acolhida
lado a ninguém menos do que da parte dos seus irmãos ali esta-
a Cristo.162. belecidos, saindo muitos outros
a recebê-los em todo o percurso,
Vejamos S. Paulo. Este após-
de Pazzuoli a Roma. Chegado a
tolo, próximo já do final da sua
esta capital, Paulo convocou os
carreira, depois de ter exercitado
principais judeus que lá viviam,
o seu apostolado Cristão, com-
para, diante deles, se justificar
parece perante o rei Agripa, de-
da acusação que lhe faziam, de
clara-se Fariseu e sustenta que a
ter ofendido em Jerusalém o
seita dos Fariseus é a mais seve-
povo e os ritos dos padres.
ra do que a sua religião163.
E, na Epístola aos Romanos
Por consequência, S. Paulo
(1-8), Paulo escreve que a fé dos
não fala de Cristo como de uma
cristãos de Roma tinha adquirido
personalidade histórica, mas
grande fama em todo o mundo, e
como de uma tese teológica 164.
promete encerrar-se em seu seio
Para ele, Jesus é um ser misteri-
depois de cumprida a sua missão
oso, sem pai, sem mãe, sem ge-
de ir a Espanha saudar um gran-
nealogia, que se mostra aos ho-
de número de filiados.
162
Epístola I aos Coríntios, I, 12; III,4 - Como explicar-se o fato da-
5.
163
Atos, XXVI, 5
164 165
Dide, op.cit., p. 93. Peyrat, op. cit., p. 338.
90
queles hebreus da Itália, tão ínti- Fílon, dos Essênios e dos Tera-
mos de Paulo - fato relativo às peutas.
justificações da sua própria fé Naturalmente, só nos baseare-
hebraica - e a crença do mesmo mos nestas incongruências da
apóstolo acerca da sua obrigação Bíblia em razão da sua flagrante
de se justificar perante eles? evidência para deduzirmos uma
E como explicar o fato inegá- conclusão forçosa, de maior im-
vel segundo o próprio Paulo, da portância do que a que os textos
difusão do cristianismo por todo consentem.
o mundo, cuja pregação Paulo Por outras palavras: estes ab-
apenas começava agora? surdos, inconcebíveis em um li-
Evidentemente, não há expli- vro que se propõe proclamar a
cação possível, a não ser que ad- existência de Cristo bastam só
mitamos que a narrativa dos por si, para nos persuadirem do
Atos dos Apóstolos e da Epístola contrário.
aos Romanos é uma fábula, ou Estes fatos adquirem um valor
que os cristãos existiam já muito excepcional porque provam o
antes da época assinalada a Cris- contrário do que a Bíblia se
to. Ou seja: que o cristianismo já propõe a provar, ou pelo menos,
era um fato muito tempo antes invalidam o que ela pretende fa-
de Cristo, sem necessidade dele. zer crer, sem que possam passar
A primeira hipótese não será por exceções, pois originam-se
admitida pelos cristãos. Por isso, da própria Bíblia e nela se apoi-
deverão admitir forçosamente a am.
segunda, como nós a aceitamos, Isolados, estes fatos talvez
porque concorre para demonstrar tenham pouca credibilidade,
a nossa tese adaptando-se perfei- mas, no entanto, não podem ser
tamente aos resultados da crítica, ignorados diante do acúmulo de
como já vimos em Eusébio, que outros elementos de prova que
admite serem cristãos os tera- temos e daqueles que ainda
peutas do Egito de que Fílon já aduziremos contra a existência
tinha falado, e como vimos em de Cristo.
Tácito, que faz dos hebreus e
Como se vê, a mesma Bíblia,
dos egípcios uma única supersti-
proporciona ajuda e apôio à
ção, e como veremos ainda ao
nossa demonstração.
ocuparmo-nos das doutrinas de

91
CAPÍTULO VII
A MORAL SECTÁRIA DOS EVANGELHOS NÃO É OBRA DE UM
HOMEM, MAS SIM , DA TEOLOGIA

A Bíblia fornece-nos uma pro- As máximas - não faças a ou-


va ainda maior que todas as adu- trem o que não queres que te fa-
zidas até agora contra a existên- çam e faze aos outros o que de-
cia de Cristo. Esta prova está sejas que te façam - não são uma
precisamente na sua moral. Essa criação de Cristo ou dos Evange-
moral, que os apologistas ergue- lhos porque preexistiam já no
ram até aos céus e agora a crítica Antigo Testamento, onde esta-
vai ponto a ponto destruindo, ao vam desde a moral metafísica
desfazer as ilusões criadas em das religiões orientais, principal-
torno da lenda e da idealidade mente da búdica e da zêndica ou
humana - essa moral é a prova persa.
mais firme e segura de que Cris- Suprimindo todas estas máxi-
to não existiu, porque a moral mas que não pertencem ao cristi-
que os Evangelhos lhe atribuem anismo e são, além disso, prova
não pode ser obra de um ho- contrária à existência de Cristo,
mem, mas apenas a de uma teo- o resto da moral evangélica é
logia determinada, porque é ex- condenável sem remissão, e se-
cessivamente sectária e irrealizá- ria bastante para execrar o ho-
vel para que pudesse ser ensina- mem que a criasse, se fosse obra
da e praticada por um homem. É de um só homem. E vemos a
completamente oposta às preo- Humanidade, que cresceu nas
cupações teológicas e metafísi- doces ilusões de que o Cristo
cas de uma seita. fora a personificação de todas as
Há, por certo, máximas real- perfeições humanas, concentran-
mente morais o boas nos Evan- do nele toda a idealidade...
gelhos, mas que não podem en- A Humanidade, tornada adul-
tusiasmar um espírito positivo, ta, deve reconhecer que, na sua
por místico que seja, se bem que adolescência, foi vítima de uma
esta parte boa da moral cristã, enorme mistificação.
sem a qual o cristianismo não te-
Os que neste ponto se encon-
ria podido desenvolver-se não é
tram da verdade verão porque
cristã - como mais adiante vere-
motivo determinados cristãos da
mos.
92
nossa época, como Tolstoi e cer- Não se verá que semelhante mo-
tos reformadores alucinados pela ral não pode ser obra de um só
lenda, julgando-se talvez conti- homem ?
nuadores de Cristo se regozijam Mas, nem as classes dominan-
em manter as antigas ilusões, tes, nem a casta sacerdotal, que
opostas a toda a evidência, a além da ilusão, tem interesse em
todo o conhecimento sereno e perpetuar a mistificação de 2 mil
crítico do assunto. anos - nem elas sequer poderiam
Um dos fenômenos mais ex- impedir que a luz da razão ofus-
traordinários da nossa época, que a moral evangélica...
rico de ensinamento é o fato de Poucos séculos há que esta luz
apelarem para Cristo, tanto os começou a brotar das inteligên-
revolucionários como os déspo- cias e, a não ser pelo receio que
tas. E têm razão uns e outros. há em dizer à Humanidade ver-
Algumas vezes, Cristo prega a dades tão amargas, de a privar
resignação. São Paulo chega a tão bruscamente de uma ilusão
proibir que se reclame e faça que, por isso constitui uma gran-
justiça (I-Cor. VI-7) e declara de força moral - na hora presente
que, emanando de Deus todo o a crítica já teria, não só arrojado
poder, serão por ele condenados dos altares este último ídolo,
todos os que oponham resistên- mas até o teria já precipitado na
cia (Rom. XIII, 1-2). Isto é para Geena.
os déspotas. O que, porém, até hoje se não
Para os revolucionários e para fez, faz-se, deve fazer-se agora,
os próprios anarquistas, Cristo porque a Verdade não reconhece
não só exalta a pobreza, mas até compromissos nem fraquezas
considera o governo como um humanas e porque a lógica não
abuso, e todo o magistrado como se sente satisfeita se não chega
um natural inimigo dos homens até as últimas consequências. A
e de Deus (Mat. X, 17 e 18 Lu- ciência, de resto, não tem que se
cas XIII, 11). preocupar com consequências.
Não é porventura, edificante Pois bem: enquanto a crítica
essa duplicidade do cristianis- trabalhe na demolição do ídolo
mo? Não serão ingênuos os que cristão e das ilusões de uma mo-
baseiam as suas esperanças e os ral superior, que o torna respeitá-
seus privilégios numa moral tão vel mesmo a alguns incrédulos,
absolutamente contraditória? e enquanto destrua o velho erro
93
de acreditar na existência de corte pontifícia se fez cristão di-
Cristo, mudando em execração a zendo que se esta religião pôde
veneração, tantas vezes secular, triunfar e subsistir, apesar de
da Humanidade, por este ideal tanta corrupção é porque tinha a
de perfeição por ela mesma cria- proteção do céu.
do - nós, pelo contrário, poupe- Citemos, como exemplo, Ni-
mos à Humanidade a dor de lhe colau Tomásio, que disse: Solda-
destruirmos o objeto da sua mai- dos pagãos, contratistas gerais,
or veneração, demonstrando-lhe mulheres a quem o mundo cha-
que os defeitos da moral cristã ma perdidas, um homem que
não são imputados àquele Cristo, mente e atraiçoa o seu amigo,
que nunca existiu, mas sim à te- outro que protege os que se de-
ologia que o criou. dicam a lapidar inocentes. Eis
E entenda-se bem que, em nós os eleitos de Cristo! Esses que-
não influem preocupações de ne- rem que a história dos seus pro-
nhuma índole estranha à verda- dígios e das suas virtudes regis-
de: nem a finalista daquele que tre entre os antepassados do
crê, nem a utilitária do nosso sis- Salvador do mundo um fornica-
tema. dor, uma meretriz, uma adúltera,
Nada diremos da primeira, um rei traidor e homicida. Estes
porque não nos compete, e acer- pensamentos humilham o espíri-
ca da segunda, advertiremos que to mas abrem o coração à seve-
queremos aproveitar para a nos- ridade para nós mesmos e à ca-
sa tese os defeitos desumanos da ridade para com o próximo166.
moral cristã que entram a fazer Se os Evangelhos abundam
parte do nosso quadro, atraídos em máximas desumanas, tantas e
pela força irresistível da Verda- de tal calibre que, um homem
de. real desta terra não teria ousado
Os defeitos da moral cristã concebê-las e muito menos pre-
são tão evidentes que muitos ca- gá-las sem ir para um manicô-
tólicos eruditos, não podendo mio ou cárcere, não é evidente
negá-los e não querendo decidir- que tal circunstância depõe con-
se a abandonar a fé, colocam- tra o caráter histórico daquele
nos entre as provas da divindade homem e a favor da sua criação
desta religião, raciocinando puramente mitológica, simbólica
como o hebreu Abraão que, ten- 166
Nicolau Tomásio Roma e o Mundo,
do visto em Roma as torpezas da seç. V, cap. XVI.
94
e sobretudo teológica? Especial- Em Lucas168 exprime-se as-
mente se essa circunstância entra sim: se alguém vem a mim e não
coerentemente num processo de odeia seu pai e sua mãe, sua
provas análogas que se confir- mulher e seus filhos, seus ir-
mam umas às outras? mãos e irmãos e até a sua pró-
Vamos, porém a fatos, para pria vida, não pode ser meu dis-
nós mais eloquentes. cípulo.
A moral evangélica, tiradas al- Em Mateus169 (VIII, 21-22) a
gumas máximas boas que não alguém que lhe pedira autoriza-
são suas pode dividir-se em duas ção para sepultar seu pai Jesus
grandes categorias: a das máxi- diz-lhe: Segue-me e deixa que os
mas irrealizáveis ou desuma- mortos enterrem os seus mortos.
nas e a das máximas sectárias. Em Lucas170 lê-se - Eis aqui
E não se diga que tais máximas um que diz: Seguir-te-ei, senhor,
sejam puramente virtuais, por- mas primeiro, deixa-me ir dispôr
que tanto as humanas são sectá- do que tenho em minha casa.-
rias, como as sectárias são desu- Jesus lhe disse: Quem põe a mão
manas, pois umas e outras têm no arado e olha para trás, não é
por fundamento comum o cará- digno do reino de Deus.
ter teológico, que denuncia a sua Em Mateus171 Jesus aconselha
origem impessoal e a sua forma- os seus discípulos a praticarem a
ção sistemática e eclesiástica. castração voluntária, para que se
Comecemos pelas máximas façam dignos do reino dos céus.
irrealizáveis ou desumanas Quem não odeia a sua pró-
Em Mateus167 Cristo discorre pria vida, não pode salvar-se,
deste modo: Não julgueis que diz Jesus em Lucas172.
vim trazer a paz à terra; não E em João173: Quem amar a
vim trazer a paz, mas sim a es- sua vida, perde-la-á, e quem a
pada. Vim trazer a discórdia do odiar neste mundo, conserva-la-
filho contra o pai, da filha con- á na vida eterna.
tra a mãe, da nora contra a so-
Jesus aconselha também a que
gra. Quem ama seu pai ou sua
mãe mais do que a mim, e quem 168
Lucas, XIV, 26.
169
ama seu filho ou filha mais do 170
Mateus, VIII, 21-22.
que a mim, não é digno de mim. Lucas, IX, 61- 62.
171
Mateus, XIX, 12.
172
Lucas, XIV, 26.
167 173
Mateus, X, 34-37. João, XII, 25.
95
não trabalhem; a que se não pre- vel, por desumana, isto é por
ocupem com a comida, com a contrária às leis biológicas e so-
bebida, com os vestuários; a que ciológicas, incompatível com a
não pensem no dia de amanhã: conservação e progresso da es-
que imitem as aves do céu, que pécie humana. Basta expô-la que
não trabalham e os lírios do por si própria se condena.
campo, que não se cansam nem Passemos agora às máximas
fiam174. Prefere Maria, que troca sectárias da moral evangélica.
os labores domésticos pelo asce-
O amor pregado pelos Evan-
tismo, a Marta que por si só, há
gelhos não se dirige a todos os
de realizar todos os trabalhos da
homens, mas apenas aos he-
casa175.
breus. Jesus ordena aos seus dis-
Quer que o homem viva na cípulos que preguem o seu Ver-
mais absoluta pobreza, na indi- bo unicamente aos hebreus, e
gência mais miserável: Em Lu- proíbe-os de entrarem na cidade
cas,176 diz ele: Nenhum de vós dos gentios e dos samaritanos178.
que não renuncie a quanto tenha Diz que os doze apóstolos se
pode ser meu discípulo. sentarão em doze tronos para
A própria dignidade humana julgarem as doze tribos de Isra-
não lhe merece a mais insignifi- el179. Portanto, a sua missão limi-
cante consideração. Em Ma- ta-se única e exclusivamente aos
teus177 ele diz: Não resistas ao hebreus: é um mesquinho nacio-
mal. E se alguém te ferir na face nalista!
direita, apresenta-lhe a outra. E Tanto assim é, que ele próprio
aquele que quiser demandar-te responde à Cananeia, que lhe pe-
em juízo e tirar-te a túnica, dei- dia a cura de sua filha: que fora
xa-lhe também a capa. E ao que enviado só para Israel. Acrescen-
te obrigar a ir carregando mil tando não ser justo tirar o pão
passos, vai com ele outros dois aos filhos para o deitar aos
mil a mais. cães180. E, quando em João181
Não é mister grande engenho pronuncia a sua última prece, de-
nem muita eloquência para pro- clara que pede só pelos que nele
var que esta moral não é realizá- creem.
174 178
Mateus, VI, 24-34. Mateus, X, 5-7.
175 179
Lucas, X, 39-42. Mateus, XIX-28.
176 180
Lucas, XIV, 33. Mateus, XV, 22- 26.
177 181
Mateus, V, 39 - 4. João, XVII, 9-20.
96
Mais imoral e não menos sec- que não tem, até o que não tem
tário ainda é o dogma da predes- lhe será tirado186 que mandou
tinação. Ninguém pode vir a ceifar os que não lavraram, fa-
mim - diz Cristo - se o Pai, que zendo-lhes desfrutar do que ou-
me enviou, não o trouxer182. Por tros lavraram187; que dos pobres
isso, declara que adotará a pará- será o reino dos céus, sem outro
bola com os que não forem seus mérito mais do que a sua pobre-
discípulos, para que não com- za, ainda que sejam vagabundos;
preendam as suas palavras e não que os ricos serão castigados, só
possam se salvar183. por suas riquezas, embora sejam
Este dogma imoral, ou sectá- bons188. A mesma inspiração é
rio, se assim querem, foi posto reconhecida pelas parábolas do
de propósito na parábola do convidado castigado sem cul-
dono de casa, que representa pa189 e do filho pródigo190. O
Deus, o qual chama, ele, próprio, dogma da predestinação encon-
a diversas horas os operários da tra-se, pois, na Bíblia, erigido
sua vinha, pagando-lhes depois a em verdadeira doutrina de S.
todos por igual. E aos que censu- Paulo191 e se constitui num retro-
ram a sua parcialidade, respon- cesso em relação ao politeísmo
de, em Mateus:184 Não terei eu greco-romano, que punha a justi-
direito de fazer do que é meu o ça e a Humanidade acima dos
que entender? Os últimos serão próprios deuses, quando eles não
os primeiros e os primeiros os respeitavam as leis da natureza e
últimos; por isso, muitos serão da consciência.
os chamados e poucos os elei- O caráter, a origem, o próprio
tos. fim teológico da moral evangéli-
E sempre, deste modo, e se- ca estão comprometidos pela cir-
gundo esta preocupação teológi- 186
Mateus, XIII, 12; Marcos IV, 25; Lu-
ca, ensina que todo aquele que
cas VIII, 18.
se exalta será humilhado e o que 187
João, IV, 38.
se humilha será exaltado185; que 188
Lucas VI, 20; XVIII, 25; Mateus,
àquele que tem ser-lhe-á dado e XIX, 24, 25 e 26; Marcos X, 25.
189
terá em abundância, e àquele Mateus, XXII, 8-13.
190
Lucas, XV.
191
Gal. II, 16-21; III, 10-25; I Tim. I, 9;
182
João, VI, 44. Rom. III, 14-16; VIII, 29-30; IX, 11-12,
183
Lucas, VIII, 10. 47 ss.; XI, 6; Ef. II, 5, 8, 9; II Cor. IV, 3,
184
Mateus, XX, 1-6. 4; II Tes. II, 10-12; I Tim. II, 25; I, 9;
185
Lucas, XIV, 11. Filip . II, 13.
97
cunstância desta moral se basear, te teológica194 e em, muitos luga-
não nas boas obras, mas exclusi- res cita a máxima referida, trans-
vamente na crença e no culto. tornando toda a ordem moral e
Ensinava Cristo, além disso, baseando esta nas práticas do
que: Quem crer e for batizado culto e nas crenças.
será salvo, mas quem não crer Muitos são os exemplos do
será condenado192. Antigo Testamento que podemos
Esta máxima está em relação aduzir. Limitar-nos-emos a citar
com a outra, onde Jesus diz aos a instituição do bode expiatório
discípulos que os que não escu- (Levítico, XVI) e a da água de
tarem suas palavras serão trata- purificação.
dos no Dia de Juízo mais seve- Em geral, todo o espírito, que
ramente do que os habitantes de anima a Bíblia, se baseia na mo-
Sodoma e Gomorra193. ral religiosa. A Bíblia não mede
Donde se deduz que, para a o mérito ou demérito das pesso-
moral evangélica, são preferíveis as, sob o ponto de vista das boas
os delinquentes vulgares, con- ou más ações, mas apenas se-
tanto que sejam crentes, aos in- gundo a sua devoção.
crédulos, ainda que sejam honra- Aqui temos, entre muitos ou-
dos. tros, o exemplo de Achab. Nos
Esta moral só pode ser teoló- capítulos que lhe são consagra-
gica. Está relacionada com a dos no Antigo Testamento, este
moral de todo o Antigo Testa- rei de Israel é acusado de ímpio
mento, que como já demonstra- e tratado com a maior aspereza,
mos, é obra quase exclusivamen- apesar de não ter cometido as
iniquidades de Davi e de Salo-
192
mão, tão injustamente exaltadas
Marcos, XVI, 16. Em outros lugares
Cristo prega a moral independente do
pela Bíblia. Pelo contrário,
culto. Esta é outra das inúmeras contra- Achab é um bom rei, humanitá-
dições irreconciliáveis, que provam que rio, generoso, magnânimo. Mas
ele não é pessoa real, mas um objeto de poupou a vida ao rei da Síria,
especulações da mais disparatada das Benadad, que não acreditava no
escolas teológicas. Veremos ainda, no
tempo oportuno, que Cristo ou melhor, Deus da Bíblia, e por isso con-
o Evangelho, não era original, uma vez quistou o ódio da casta sacerdo-
que essa doutrina era proveniente do tal.
profetismo.
193
Mateu, X, 13-15; Marcos, VI, 8; Lu-
194
cas, IX, 3. Vernès, op. cit.
98
Temos porém, Davi e Salo- trare, Cristo, ou antes, os que es-
mão que cometeram toda a espé- creveram com a máscara do seu
cie de iniquidades, mas favore- nome, proclamaram a legitimi-
ceram a casta sacerdotal: logo a dade da perseguição religiosa195.
Bíblia os elevou até às nuvens. Até os Evangelhos propria-
Mais ainda: Ehu, o infame mente ditos são a pura expressão
Ehu, era dado à leitura dos sa- da evidência absoluta em prol
cerdotes. Bastou isso para que a desta perseguição. No capítulo
Bíblia o enaltecesse. XIX de Lucas, versículo 27, Je-
Veremos ainda mais tarde, sus põe na boca de um dos per-
dois imperadores, Juliano e sonagens das suas parábolas, que
Constantino: o primeiro foi um é ele próprio, as seguintes pala-
modelo de virtudes, mas nada vras: E quanto àqueles meus ini-
quis com o cristianismo. Foi o migos que não quiseram que eu
bastante para passar à história reinasse sobre eles, trazei-os
com um nome infamante. O se- aqui e tira-lhes a vida na minha
gundo, que foi um miserável, as- presença.
sassinando a própria família, é Segundo Mateus196 e Lucas197,
enaltecido pela Igreja, só por tê- Jesus disse que todos os que não
la favorecido. estavam com ele, estavam contra
Mas o coroamento deste siste- ele, palavras estas que querem
ma é a eternidade das penas pre- significar, necessariamente, que
gada pelo manso cordeiro de Na- o cristão deve ter por inimigo
zaré (Mateus, XXV, 41-46; XVI- aquele que não é cristão.
II, 8) e o aturar ao inimigo nesta No capítulo VII de Mateus,
vida: não vos vingueis do vosso Jesus adverte os seus discípulos
inimigo, mas dai lugar à ira; de que se guardem dos falsos
porque, fazendo isto, amontoa- profetas, que são semelhantes às
rás brasas vivas sobre a sua ca- arvores que dão maus. Frutos. E
beça. (Epístola aos Romanos acrescenta que toda a árvore que
XII, 20). não der bom fruto, deve ser cor-
Mas onde sobretudo se mani- tada e arremessada ao fogo198.
festa o caráter sectário, teológico No capítulo XV de João, Jesus
e verdadeiramente sacerdotal da 195
moral evangélica é na instigação Lucas, XIV, 16-24.
196
Mateus, XII, 30.
às perseguições religiosas. Não 197
Lucas, XI-23.
só com o famoso compelle in- 198
Mateus, 15-19
99
diz, textualmente: Eu sou a ver- de livros, cujo valor, segundo os
dadeira videira, e meu pai é o Atos dos Apóstolos, se elevava a
lavrador. Toda a vara que não 50000 dinheiros de prata200. E o
der fruto em mim, ele a tirará.. . apóstolo João testemunha que o
Eu sou a videira, vós outros as que se revolta e não permanece
varas. O que não permanecer na doutrina de Cristo não pos-
em mim, será arremessado fora, sui a Deus, e quem o não segue,
como a vara; e secará, e será não deve ser recebido em casa e
enfeixado e atirado ao fogo, e nem sequer saudado201.
arderá. Por fim, é ainda o mesmo
S. Paulo, repetindo a doutrina Cristo dos Evangelhos que leva
dos provérbios (XXIV, 17, 18; a cabo a instituição da excomu-
XXV 21-22) aconselha que se dê nhão, colocando entre o número
de comer ao inimigo que tenha de adversários da igreja aqueles
fome e de beber ao que tenha que com ela não se confor-
sede, para amontoar sobre a sua mam202. Aqui, Jesus, falando da
cabeça carvões acesos, isto é, Igreja, delata a fábula, porque a
para que Deus o possa castigar Igreja não podia ainda existir no
infinitamente199. (Epístola aos seu tempo, pois que só devia ter
Romanos XII, 20). vindo depois dele e por ele. Da-
As máximas da moral evangé- qui se depreende que os Evange-
lica explicam-se perfeitamente lhos foram escritos quando a
sob o ponto de vista teológico, Igreja estava já constituída, pon-
isto é, da intolerância irmanada do-se na boca de Jesus o que ele
com o preconceito religioso. A não pudera ter o dito, inventan-
Igreja Católica encoleriza-se do-se, por isso, sem o menor es-
contra os que lhe recriminam as crúpulo.
suas perseguições religiosas e Em tese geral, pode afirmar-
autos de fé, porque o fundamen- se que o Antigo Testamento não
to destes encontra-se na própria é mais do que a escola das perse-
moral evangélica. É na Bíblia guições religiosas. Citemos,
que se encontram as primeiras como exemplo, as perseguições
execuções e apologias da into- seguintes Moisés faz exterminar
lerância, com o auto de fé reali- por ordem de Deus 24.000 israe-
zado por S. Paulo em Éfeso,
onde queimou, grande numero 200
Atos, XIX, 19
201
João, II, Ep. 9, 10, 11.
199 202
Epístola aos Romanos XII, 20. Mateus, XVIII, 17.
100
litas, que tinham sacrificado pe- plos de violência e de intolerân-
rante o Deus Baalpeor, e ordena cia da Bíblia. Fazendo-se perse-
a carnificina de todos os moabi- guidora e inquisitorial seguiu
tas, incluindo mulheres e crian- apenas a Bíblia judaico cristã
ças, só porque tinham induzido tanto nas palavras quanto no es-
os israelitas à apostasia. pírito.
Bastava o fato de alguém ex- Pregando a intolerância e a
citar a que se adorassem deuses perseguição religiosas, Cristo,
estranhos para ser castigado com ou antes, a casta sacerdotal que o
a morte. E o excitador devia ser inventou, não faz mais do que
morto, precisamente, por seu manter a tradição do Antigo Tes-
pai, por seu irmão, por sua espo- tamento, onde as excitações ao
sa ou por um seu amigo. ódio teológico e às perseguições
O livro dos Judeus não é mais dos incrédulos, encontram se a
do que uma alternativa perpétua cada passo.
de apostasias por parte dos he- Mas, ao mesmo tempo, dei-
breus e de horríveis castigos por xou a descoberto a origem mera-
parte do Deus bíblico. mente teológica do mito que deu
Elias manda exterminar 850 lugar a Cristo, por mais que seja
profetas de Baal. O profeta Eli- próprio da casta sacerdotal minar
seu ordena atrozes perseguições as máximas fundamentais da
religiosas. Josias é bom visto por moral humana para impor o do-
Deus, em razão das suas perse- mínio daquela sobre esta, anima-
guições ferozes contra os outros da pelo preconceito religioso, ar-
cultos. vorando-se única e exclusiva de-
positária da verdade absoluta.
Nos Salmos, as perseguições
religiosas são exaltadas, invoca- A origem teológica da moral
das e abençoadas por Deus. Jere- evangélica se evidencia ainda
mias pede o extermínio dos infi- em outra passagem importante
éis. Outro tanto se lê em Isaías. dos livros do Antigo Testamento:
O Eclesiastes é do mesmo pare- a constante preocupação da Bí-
cer. Nos Macabeus, o sumo pon- blia a favor dos privilégios da
tífice Mattatias estrangula um casta sacerdotal da qual ela é,
herege sobre um altar. por assim dizer, a carta magna,
a lei fundamental.
De tudo isto se vê que a Igreja
Católica imitou bem os exem- Para se convencer, basta ler os
exemplos muito persuasivos da
101
Bíblia em favor desses Recusa-se Cristo a receber sua
privilégios sacerdotais: Levítico mãe e seus irmãos, que tinham
(VI, 26, 29; VIII, 31; X, 13, 14; ido procurá-lo, dizendo que os
XXV, 23; XXVII, 30-32) e seus únicos parentes são os seus
sobretudo, Números, XVIII. discípulos203.
Tendo os filisteus tomado a Arca Quando, aos doze anos, dei-
do Senhor, o deus da Bíblia ma- xou a casa de seus pais, estes,
ta-os como quem mata moscas, fartos de pesquisas e cheios de
pelo que eles resolvem devolvê- vivas inquietações, encontram-
la aos israelitas. Durante a via- no, ao cabo de três dias, em Je-
gem, a Arca Santa faz um parada rusalém, e Jesus responde seca-
entre os betsamitas, que a rece- mente às doces advertências de-
bem com alegria e holocaustos. les: Por que me procurais?204
Mas, em meio desta adoração, o Quando nas bodas de Canaã,
deus da Bíblia faz morrer 50.070 sua mãe lhe observa que os co-
pessoas, simplesmente porque se mensais já não têm vinho, res-
tinham atrevido a guardar a Arca ponde brutalmente: O que há de
(I Reis, VI, 13, 15, 19). Uza é comum entre mim e ti,
fulminado só porque ousou se- mulher?205.
gurá-la para não que ela não ca- Quando seus irmãos o convi-
ísse (Paral. XIII, 9, 10). dam a ir a Jerusalém, pela Festa
Estes e outros exemplos, como o do Tabernáculo, diz que não,
de Samuel que destrona o rei mas apenas eles partem, logo
Saul demonstram bem que a Bí- parte também, às ocultas206.
blia não é, de modo algum, uma Em muitos casos, entretém-se,
obra histórica, mas apenas uma enganando os que lhe falam, fa-
obra teológica da casta sacerdo- lando ele, por sua parte, para não
tal e que as teocracias da Idade ser compreendido207
Média são seus frutos genuínos.
Outras vezes, atribui a si pró-
As ações que os Evangelhos prio uma missão obscurantista208
atribuem a Cristo respondem
também, em parte, ao espírito 203
Mateus, XII, 46-50; Marcos II, 31-
sectário da teologia, e, por outra, 35; VIII, 20-21.
204
à preocupação constante da vida 205
Lucas, II, 41-49
pós-terrena que torturava cons- João II, 1-10.
206
João,VII-2-10.
tantemente o pensamento dos 207
João, II-21 III, IV, VI.
seus inventores. 208
João, IX-39.
102
Outras, enfim, insulta sem ra- Falando pacificamente ao
zão alguma, os escribas e fari- povo, encoleriza-se de improvi-
seus209, porque se fazem batizar so, chamando hipócritas aos ou-
embora reconheça que são parti- vintes, sem que motivo algum
dários da lei de Moisés, aconse- justifique tal mudança de senti-
lhando que se faça tudo o que mentos214.
ela ensina210. Declara que estes Faz-se manter pelas mulheres
estão irremissivelmente conde- dos outros215
nados ao inferno, a fim de que
Cerca-se de gente faminta216 e
todo o sangue inocente derrama-
vagueia com os seus discípulos
do sobre a terra, desde Abel a
sem respeitar a propriedades
Zacarias caia sobre eles211, sus-
alheias217
tentando assim a doutrina da re-
versão de penas, condenadas pe- Faz atirar ao mar uma manada
los próprios profetas212. de porcos, sem pensar no prejuí-
zo causado aos seus donos218.
Quando Pedro teve notícia do
Ordena aos apóstolos que não
fim que levava Jesus, fez voto de
saúdem ninguém quando em via-
que tal não sucedesse. Porém,
gem219.
Jesus o apostrofou, chamando-
lhe Satanás213. Ele prega, em suma, o egoís-
mo220, a hipocrisia e a vaidade221.
Na parábola do mordomo infi-
el, aprova o furto (Luc. XVI,1- Poderíamos continuar indefi-
9), apoiando-se S. Irineu no ver- nidamente, demonstrando que o
sículo 9 do capitulo XVI de Lu- caráter e a doutrina moral de
cas, para justificar aos Israelitas, Cristo são sempre conforme a
que no Antigo Testamento, por Bíblia, coisa bem diversa daque-
conselho do Deus da Bíblia e de le ideal de perfeição que a Hu-
Moisés (Êxodo III, 21-22) ti- manidade formou.
nham roubado aos egípcios os Mas, para que continuar?
seus vasos de ouro e prata e suas
vestimentas. 214
Lucas, XII, 56.
215
209
Lucas VIII, 1-3.
Mateus, III-7. 216
Marcos II, 16.
210
Mateus, XXIII, 2,3. 217
Marcos II, 23.
211
Mateus, XXIII, 13-36. 218
Mateus VIII, 28-34; Marcos V, 1-20;
212
Jeremias. XXXI, 29-30; Ezechiel Lucas VIII, 26-39.
XVIII, 19-20. 219
Lucas X, 4.
213
Mateus, XVI, 22, 23; Marcos 220
Lucas XIV, 12-14.
221
VIII, 32-33. Lucas XIV, 10.
103
Basta-nos ter provado que a tal preocupada, não com a Hu-
moral de Cristo não é, não pode manidade e com a realidade da
ser a moral de um homem, mas vida, mas sim de preferência,
sim a de uma seita teológica ou com o interesse da Igreja e com
precisamente, da casta sacerdo- a salvação da alma.

104
Terceira Parte

Cristo na
Mitologia

105
CAPÍTULO I
CRISTO ANTES DE CRISTO

Se Cristo nunca existiu, como A antiga Índia teve mais de


e por que foi inventado ou ima- um Deus Redentor. Porque nessa
ginado? A esta pergunta respon- região, onde o maravilhoso e o
derá o presente capítulo do nos- sobrenatural têm a sua origem, o
so trabalho, onde exporemos Deus Redentor Vischnú encar-
uma nova e luminosa prova con- nou nove vezes, tomando forma
tra a existência humana, real e humana para redimir a Humani-
objetiva de Cristo. dade do pecado original.
Além disso, se demonstrar- Para o nosso trabalho só é in-
mos que outros personagens teressante a oitava e nona avatar
análogos, senão idênticos a Cris- ou encarnação de Vischnú, que
to, o precederam na história das na oitava assume a pessoa de
ideias humanas ou nos tempos Cristna e na nona se encarna
dos conceitos representativos. Se como Buda.
provarmos que os predecessores Cristna, o Redentor hindu,
de Cristo, os mesmos que deram nasce de uma virgem, a virgem
a este todos os elementos da sua Devanaguy, e a sua vinda está
vida, do seu pensamento e da vaticinada nos livros sagrados
sua missão não foram mais do hindus (Atharva, Vedangas, Ve-
que simples mitos, teremos de- danta).
monstrado também que Cristo
O mesmo Vischnú, o Deus
não é apenas uma cópia, mas um
bom e conservador aparece a
mito igual, de onde se concluirá
Lakmi, mãe da virgem Devana-
logo que nunca existiu, a não ser
guy, para lhe revelar os futuros
na imaginação daqueles que têm
destinos daquela que estava para
acreditado nele.
nascer e para lhe indicar o nome
Começaremos por passar uma que devia impor à mãe do Re-
rápida vista sobre a vida e mila- dentor, recomendando-lhe, final-
gres dos Deuses Redentores, que mente, que não una sua futura fi-
precederam Cristo e da qual veio lha em matrimônio com pessoa
o mito cristão, pois Cristo não é alguma, atendendo a que se de-
mais que a repetição do mesmo viam cumprir os desígnios de
tema.

106
Deus222. Isto teve lugar uns 3500 espírito de Deus que queria en-
anos antes da era vulgar e no pa- carnar-se, e concebeu.
lácio do rajá de Madura, peque- Na noite do parto e enquanto
na província da Índia oriental. o recém-nascido exalava os pri-
A menina recebe ao nascer o meiros vagidos, um vento fortís-
nome de Devanaguy, conforme o simo desmoronou o muro da pri-
que estava escrito. O rajá teve são e a Virgem foi transportada
um sonho em que se viu expulso com o filho, por um mensageiro
do trono pelo filho que nasceria de Vischnú, à uma cabana de
de Devanaguy. Por esta razão, o pastores pertencente a Nanda. O
tirano de Madura faz encerrar recém-nascido foi chamado
Devanaguy numa torre e soldar a Cristna.
porta para evitar toda a possibili- Quando os pastores souberam
dade de fuga, colocando ainda do depósito que tinha-lhes sido
um valente guarda à vista da pri- confiado prostraram-se diante do
são. filho da Virgem e adoraram-no.
Tudo porém foi inútil. A pro- O tirano de Madura, sabedor
fecia de Poulastya, não podia ser do parto e da fuga de Devanaguy
impedida: E o espírito divino de encolerizou-se em extremo e or-
Vischnú atravessou as paredes denou uma matança geral de to-
para se unir a sua amada. Certa dos os meninos, nascidos nos
noite, enquanto a virgem orava, seus Estados durante a noite em
uma celeste música veio de im- que Cristna tinha vindo ao mun-
proviso deleitar os seus ouvidos, do.
iluminou-se a prisão e Vischnú
Um pelotão de soldados sai
apareceu diante dela com todo o
imediatamente para o aprisco de
esplendor da sua divina majesta-
Nanda, mas Cristna escapa mila-
de. Devanaguy foi ofuscada pelo
grosamente daquele ameaça.
222
São quase inenarráveis os epi-
No poema hindu Maha Bhárata en-
contra-se outra anunciação, que parece
sódios dos primeiros anos de
ter servido do modelo à do Batista, tão Cristna, que saia sempre vitorio-
semelhante ela é. A deusa solar Sâvitri so dos perigos e ciladas que lhe
deu um filho a Asvapatis, piedoso rei armavam os que queriam a sua
de Masdras, velho e sem prole que se morte, fossem homens ou dia-
lamentava de não ter descendência e se
entregara por 18 anos a contínuas peni- bos.
tências e frequentes exercícios de pieda- Aos dezesseis anos, Cristna
de.
107
abandona os seus parentes e co- nem os discípulos puderam re-
meça a percorrer a Índia, pre- sistir a tanta luz.
gando a sua doutrina. Em seguida a esta transfigura-
É o tempo dos seus grandes ção, os discípulos chamaram-lhe
milagres: ressuscita mortos, cura Jezeus, que quer dizer nascido
leprosos, restitui a audição aos da pura essência divina.
surdos e a vista aos cegos. De outra vez em que se en-
Proclama-se a segunda pessoa contrava com os discípulos,
da Trindade, isto é, Vischnú, acercaram-se dele duas mulheres
descido à terra para salvar o ho- da pior condição que lhe derra-
mem do pecado original. maram perfumes sobre a cabeça
Os povos acudiam em massa e o adoraram.
avidamente para o ver e ouvir os Quando Cristna compreendeu
seus ensinamentos, adorando-o que tinha chegado a hora de
como a um Deus e dizendo: Este abandonar a terra e voltar ao seio
é realmente o Redentor prometi- de quem o tinha enviado sepa-
do a nossos pais. rou-se dos discípulos proibindo-
A sua moral é pura, elevada e lhes que o seguissem e, transpor-
completamente altruísta. tando-se às margens do Ganges
mergulhou no rio sagrado.
Rodeia-se de discípulos que
devem continuar a sua obra. Em seguida ajoelhou-se, e
orando esperou a morte. Nesta
Ensina por meio de parábolas.
posição foi atingido por uma fle-
Um dia, em que o tirano de cha e pregado a uma árvore.
Madura enviara muitos soldados
O que o matou foi condenado
contra ele e seus discípulos, es-
a vaguear eternamente sobre a
tes, tomados de pânico, quise-
terra.
ram fugir, especialmente Ardju-
na, chefe dos discípulos, que pa- Quando se espalhou a notícia
recia abalado na sua fé. da morte do Redentor, os seus
discípulos correram a recolher os
Cristna, que estava orando
sagrados despojos; estes porém,
perto, ouvindo os seus lamentos
tinham já desaparecido, porque
foi ter com eles, repreenden-
ele ressuscitara e subira ao céu.
do-os pela sua pouca fé, apare-
cendo-lhes com todo o esplendor A nona encarnação de Visch-
da divina majestade e com o ros- nú é aquela em que aparece
to de tal modo iluminado que
108
como Buda223. Foi revelada em mens maravilhados, aparece no
sonhos à sua mãe a grandeza do céu uma estrela brilhante, aco-
filho e o ascendente que teria so- dem reis a adorá-lo, e da terra,
bre todos os seus semelhantes. surge a famosa árvore Bo, sob
Escolhe, para nela nascer, cuja sombra deveria transfor-
uma casta principesca, assim mar-se em Buda: Aquela árvore
como Cristo escolheu a de Davi, tem as folhas continuamente em
e desce à terra. Isto acontecia movimento, com o que se quer
628 anos antes de Cristo. significar o estremecimento co-
memorativo da sagrada cena de
Por ocasião do seu nascimen-
que foram testemunho, à seme-
to, sucedem coisas maravilho-
lhança do que dizem os sírios,
sas: uma luz deslumbrante ilu-
acerca das folhas da trêmula, que
minou dezesseis mil mundos, os
incessantemente se agitam em
cegos viram, falaram os mudos,
memória da crucificação de
andaram os paralíticos, os prisio-
Cristo, de cuja árvore se diz ter
neiros recuperaram a liberdade;
sido feita a cruz.
uma doce brisa refrescou e ani-
mou a terra, mananciais fres- Entre os que cheios de gozo
quíssimos rebentaram do seu vão visitar a maravilhosa criatu-
seio, as florestas abriram-se em ra, fala-se principalmente de um
corolas multicores e dos céus velho, muito semelhante ao nos-
choveram lírios de aromas ine- so Simeão, que em troca da sua
briantes. vida devota recebeu o dom das
profecias. E, embora o seu espí-
De suas altíssimas moradas,
rito se alegrasse pelo futuro re-
saíram espíritos para vigiar o pa-
servado a esse menino, não po-
lácio onde devia nascer a criatu-
dia deixar de chorar pensando
ra e desviar dele e de sua mãe
que, em virtude dos seus anos
todos os males.
não poderia assistir aos triunfos
Tão logo nasceu, pôs-se de pé, dele.
e diante dos espíritos e dos ho-
A mãe de Buda chama-se
223
Ao nascer, foi chamado de Guatama, Maya ou Maïa, e concebera-o de
nome da tribo a que pertencia sua famí- um modo maravilhoso, fora de
lia; Sâkya-Muni, o mentor espiritual dos
Sâkya; Siddârtha, nome imposto por toda a relação conjugal.
seu pai e significa Aquele no qual se Quando morreu, foi por suas
cumpriram os desejos, e, posteriormen- virtudes, recebida no céu, onde
te, Budda, que significa O iluminado,
palavra derivada do radical budh (saber)
habitam os Nat.
109
Buda era belo e dotado de ex- de Buda. O mesmo que Pedro e
traordinária inteligência, maravi- João, discípulos de Cristo.
lhando os doutores pela sua sa- Buda, como Cristo, revoltou-
bedoria. Por fim, abandonou o se contra o poder soberano dos
teto paterno para levar a cabo a sacerdotes.
sua missão.
Como os cristãos, os budistas
Enquanto jejuava no deserto, estão divididos em varias seitas.
à sombra da árvore, por um perí- No budismo encontram-se todas
odo de 49 dias (7x7) foi tentado as práticas religiosas do cristia-
várias vezes pelo demônio, sem- nismo. E tanto é assim que,
pre saindo vitorioso. quando os missionários católicos
Pregou pela primeira vez em se encontraram pela primeira vez
Benares, convertendo à fé gran- com os monges budistas, acredi-
des e pequenos. A sua moral, taram numa tentação do diabo, o
como veremos, é muito superior qual teria sugerido a esses mon-
à de Cristo. ges as práticas católicas, sem
O mais célebre dos seus dis- pensarem que os imitadores não
cursos ficou sendo chamado, em podiam ter sido os budistas,
virtude do local onde foi pronun- muito mais antigos que os cris-
ciado, de o Sermão da Monta- tãos.
nha, precisamente como o de Até no seu Papa (Dalai Lama)
Cristo. Depois da morte, aparece e na sua infalibilidade, os budis-
aos discípulos, em forma lumi- tas precederam os cristãos.
nosa, com a cabeça circundada Mas, não antecipemos o plano
de uma auréola. da nossa obra e continuemos
Buda teve também um discí- narrando a história dos Deuses
pulo traidor, Devadatta. Não dei- Redentores, precursores de Cris-
xou nada escrito. Os seus discí- to.
pulos, porém reunidos em conse- Do pouco que já dissemos se
lho geral recolheram todas as depreende, com evidência que
suas doutrinas. não pode ser maior, que na Índia
Entre esses discípulos, houve houve uma encarnação do Deus
dois de natureza diametralmente Redentor, 3.500 anos antes de
oposta: um sério e crente em ab- Cristo, e outra seis séculos ante-
soluto e cheio de zelo; outro dul- riores, também, e que em seu Je-
císsimo por natureza e predileto zéus Cristna e em seu Buda exis-
110
tem já quase todos os elementos Maury225, em Mitra realiza-se a
do mito cristão, aos quais se as- união da ideia física da passa-
semelham extraordinariamente. gem das trevas para a luz, com a
Quanto mais avançarmos na ideia moral da união do homem
breve resenha dos Deuses Re- com Deus.
dentores que precederam Cristo, Mitra, chamado também Se-
mais claramente veremos que na nhor, nasce de uma virgem,
época em que foi concebido este numa gruta. Como Cristo, que
mito (de Cristo), não foi preciso nasce num estábulo, também de
inventar nada para conformá-lo uma virgem. O dia em que nasce
tão bem quanto foi configurado. Mitra é o mesmo em que, de-
Vejamos agora Mitra, o Deus pois, nasce Cristo: em 25 de de-
Redentor da Pérsia, que como zembro, isto é, no solstício do
observa Stefanoni, é um ponto inverno.
de passagem entre o avatar, en- Este dia era o da festa princi-
carnação hindu, e a encarnação pal da religião dos Magos, se-
cristã. A diferença característica gundo Freret e Hyde.
entre os dois antropomorfismos A mãe de Mitra continua vir-
não é, na realidade, muito sensí- gem depois do parto.
vel. Ocorre porém, considerar
Na esfera dos magos e dos
que na encarnação hindu é a di-
caldeus, o signo zodiacal da Vir-
vindade única e absoluta que
gem, tem junto desta um menino
toma da forma humana, sem vín-
e um homem, que parece ser o
culo algum de inferioridade com
suposto pai da criatura.
o pai celestial, ao passo que a
encarnação cristã se distingue O nascimento de Mitra anun-
pela procedência do filho do pai. cia-se astrologicamente por uma
E nos livros sagrados da Pérsia, estrela, que aparece do Oriente,
o Deus Redentor transforma-se e pelos magos que lhe levam
em patrono de Ormuz, quase perfumes, ouro e mirra.
igual a Deus. Mitra é precisa- Mitra, que nasce em 25 de de-
mente o intermediário entre zembro, como Cristo, morre
Deus e os homens, como diz como ele, no equinócio da pri-
Plutarco224. mavera. E, como ele também,
Além disso, como nota teve o seu sepulcro, ao qual iam
225
Crenças e lendas da antiguidade, c.
224
Sobre Isis e Osiris, c. 46. Mitra.
111
os seus iniciados derramar lágri- mo, antes do nascimento de
mas. O escritor cristão Firmico Cristo.
conta que os sacerdotes levavam Continuemos com a resenha
ao túmulo, de noite num andor, a dos Deuses Salvadores.
imagem de Mitra, cerimônia que
Os egípcios tinham também o
eles acompanhavam com cânti-
seu Deus Salvador em Horus,
cos fúnebres. Acendia-se o círio
convertido depois em Osiris ou
sagrado (círio pascal), ungia-se
simplesmente Serápis226.
com perfumes a imagem do
Deus e um dos sacerdotes decla- Horus também nasceu de uma
rava solenemente que Mitra ti- virgem no solstício do inverno e
nha ressuscitado e que as suas morreu no equinócio da prima-
penas tinham remido a Humani- vera para depois ressuscitar
dade. como Cristo. Horus estava ex-
posto no solstício do inverno sob
Outra parte da vida de Cristo
a imagem de uma criatura à ado-
na mitologia persa, já tinha sido
ração dos fiéis, porque então, diz
aplicada a Zoroastro. O reveren-
Macróbio, o dia era mais curto
do dr. Mills, eminente teólogo e
e este Deus não passava de um
sábio cristão não pode deixar de
débil menino: o menino dos mis-
se render à evidência, declaran-
térios, cuja imagem os egípcios
do e reconhecendo que a tenta-
tiravam de seus santuários todos
ção de Cristo figurava já na mi-
os anos e em um dia determina-
tologia persa, como tentação de
do (25 de dezembro ). Deste me-
Zoroastro, e acrescenta: Nenhum
nino proclamava-se mãe a deusa
súdito persa, que passeasse pe-
de Sais, na famosa inscrição: O
las ruas de Jerusalém, poderia
Deus que pari é o Sol. O deus
deixar de reconhecer imediata-
Horus teve também a sua fuga,
mente este maravilhoso mito.
levado pela virgem Ísis, montada
Mais adiante veremos a sur- sobre um jumento.
preendente semelhança entre os
O mesmo mito foi aplicado no
mistérios persas e os cristãos, se-
Egito ao rei Amenófis III, que
melhança tão extraordinária, que
convém recordar aqui por ser um
S. Justino, não podendo negá-la
nem sabendo explicá-la com ra- 226
Segundo a lenda egípcia, no dia em que
zões favoráveis à ortodoxia, acu- nasceu Osiris uma voz gritou do alto do céu,
que tinha nascido o Senhor de todo o mundo.
sava o diabo de ter revelado aos (Plutarco, De Isis e Osiris, XIII O evangelis-
persas os mistérios do cristianis- ta Lucas (II, 11) apenas copiou a lenda egíp-
cia.
112
documento da maior importância templo de Baco operava-se o mi-
para demonstrar que, dezoito sé- lagre da mudança de água em vi-
culos antes de Cristo, os mistéri- nho, tal qual fez Jesus nas bodas
os que se encontram no Evange- de Canaã.
lho de Lucas (c. I e II) já eram Igualmente, Adônis, cujo
conhecidos. nome significa meu senhor, tinha
Trata-se de um quadro pintado as suas festas que duravam oito
numa das paredes do templo de dias (adonias), quatro de luto
Luxor, no qual se veem as cenas pela sua morte e quatro de ale-
da Anunciação, da Concepção, gria pela sua apoteótica ressur-
do Nascimento e da Adoração. reição. Uma verdadeira semana
Este quadro foi reproduzido por santa sem lhe faltar nem mesmo
G. Massey no seu livro Natural os santos sepulcros, onde as mu-
Genesis227. Na primeira cena, o lheres executavam lamentações
Deus Yath, o Mercúrio lunar fúnebres em torno do deus mor-
(anjo Gabriel) saúda a virgem e to. Apagavam-se todos os círios,
lhe anuncia que ela dará à luz menos um (o pascal) que se es-
um filho. Na cena seguinte, o condia no altar, para de novo ser
Deus Knept (o Espírito) produz mostrado no dia da ressurreição.
a concepção. Na cena da adora- Depois, o deus morto ressuscita-
ção, o menino recebe as home- va e o luto dava lugar à alegria.
nagens dos deuses e as oferendas Estas festas continuaram a ser
de três personagens (os Magos). celebradas no mundo antigo, es-
Também Baco nasceu no sols- pecialmente entre os fenícios,
tício do inverno, depois de mor- durante mais de cinco séculos,
to desceu aos infernos e ressus- antes de se transformarem nas da
citou, e a cada ano se celebra- paixão de Cristo.
vam os mistérios da sua paixão Um dos rasgos característicos
no equinócio da primavera. Cha- dos Deuses Redentores é a sua
mava-se Salvador, como Cristo, descida aos infernos, durante o
e como ele, realizava milagres tempo em que estão mortos.
curando enfermos e prevendo o Também antes de Cristo e em
futuro. Na sua infância, ameaça- idênticas condições, Baco, Osí-
ram matá-lo, como Herodes a ris, Cristna, Mitra e Adónis,
Jesus, em uma emboscada. No aproveitam o tempo em que es-
227
tavam mortos para fazer nova vi-
Citado por Malvert in Ciência e sita aos defuntos. (Dupuis, Ori-
Religião.
113
gem de Todos os Cultos, V, 204- Até agora temos demonstrado
348). suficientemente que, quando
Poderemos continuar a rese- Cristo foi concebido, já tinham
nha dos Deuses Redentores, de existido muitos Cristos antes
idênticos caracteres e notórios dele.
representantes do Sol: como Ati O leitor, neste ponto, deve por
na Frígia, Belenho entre os Cel- si próprio tirar suas conclusões e
tas, Joel entre os germanos, Fo deduzir consequências espontâ-
entre os chineses, etc. neas e naturais.

114
CAPÍTULO II
A MITOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É ORIGINAL

Neste ponto poder-se-ia obje- pecado original deriva das mito-


tar que Cristo não foi copiado logias orientais, com mais razão
dos Deuses Redentores dos ou- derivará Cristo, porque Cristo
tros povos, porque, como nós está para os Deuses Redentores,
próprios já admitimos228, Cristo assim como o Novo Testamento
é um mito adaptado às alegorias está para as mitologias orientais,
do Antigo Testamento. e por sua vez, Cristo está para o
Mas esta dificuldade logo de- Antigo Testamento assim como
saparecerá assim que se prove os Deuses Redentores do Oriente
que nem mesmo o Antigo Testa- estão para as mitologias orien-
mento é original, e que ele, ou tais.
antes a sua mitologia, se limita a Neste capitulo, demonstrare-
uma cópia das mitologias orien- mos que a mitologia do Antigo
tais. Testamento é uma imitação das
De sorte que, se por um lado, mitologias precedentes.
Cristo é uma cópia dos Deuses A mitologia do Antigo Testa-
Redentores do Oriente, e por ou- mento baseia-se nestes conceitos
tro, o mesmo Antigo Testamen- fundamentais: Deus, a Criação, a
to, do qual Cristo depende, é queda dos anjos, o Éden, Eva, a
pura cópia das mitologias orien- Serpente e o Pecado Original, o
tais, teremos que, enquanto Cris- Dilúvio, a Torre de Babel, os
to deriva dos Deuses Redento- Anjos e os Demônios, o Paraíso
res, o mesmo Antigo Testamen- e o Inferno, os Patriarcas, um le-
to, a que Cristo se adapta deriva gislador inspirado e os Profetas.
das mitologias orientais criado- Pois bem: esta mitologia não é
ras dos mitos dos Deuses Reden- original, porque outros povos a
tores. tiveram, muito antes dos he-
Em outras palavras: sem o pe- breus.
cado original, que serve de base As origens filosóficas do
ao Antigo Testamento não teria Deus hebreu são comuns com as
acontecido a Redenção, que ser- dos outros deuses semíticos: Ja-
ve de base ao Novo. Logo, se o hveh, Jahouh. Jeová nasce de
Eloa, Ilou, Jahouh, Jahoh, que
228
Segunda Parte, cap. III, IV.
115
são os nomes de Deus tirados de 12.000 revoluções (em torno do
vários povos semíticos. Sobre o Sol) divididas em duas revolu-
Deus hebraico tiveram incontes- ções parciais, das quais uma se-
tável influência os outros deuses ria a idade do bem, que termina-
alheios ao grupo semita, como ria após seis mil anos, e a outra,
Ahoura Mazda, persa, e Jeová, a idade do mal, que terminaria
hebraico, que é - Aquele que é. depois de outros seis mil anos.
A criação tem lugar no Gêne- Como se vê, fazem uma alu-
ses, como em todos os livros sa- são à revolução anual do planeta,
grados de todos os povos mais composta de 12 meses, cada um
antigos. No Zend-Avesta, dos dividido em 1.000 partes e os
persas, o Ser Eterno cria o Céu e dois períodos de inverno e verão,
a Terra, o Sol, a Lua e as Estre- cada um dividido em 6 meses,
las, em seis Períodos, e o ho- ou 6000 partes.
mem, como no Gêneses, aparece Esta divisão, inicialmente ape-
no último229. Contando o dia de nas astrológica, foi posterior-
repouso temos sete dias ou perí- mente tomada em sentido con-
odos, número tido por sagrado creto e interpretada como se o
nas nações antigas porque provi- mundo fosse durar 12.000 anos,
nha da primitiva adoração do divididos em 6.000 anos de feli-
Sol, da Lua e dos cinco planetas cidade e outros 6.000 de infelici-
e das fases lunares, que tinham dade.
lugar de sete em sete dias
Supondo que aqueles até en-
Assim como a lenda da cria- tão passados fossem os anos de
ção, a do fim do mundo também infelicidade, conforme cálculos
foi adaptada a partir das mitolo- atribuídos aos 70 eruditos ju-
gias orientais. Volney explica deus, os cristãos acreditavam
que isso aconteceu pela interpre- que o fim do mundo, ou dos
tação equivocada das tradições 6000 anos estava próximo, tanto
astronômicas persas e caldeias. que nos Evangelhos Cristo anun-
De acordo com estas, o mun- cia o iminente fim daquela gera-
do seria composto de um total de ção.
Sabe-se como essa crença
229
A ordem da criação persa é idêntica à abalou a autoridade da Igreja
do Gênesis (Hyde, Valney etc.) Notável cristã nos primeiros séculos, tan-
e a circunstância de que nos livros sa-
grados dos etruscos também se encontra to que, depois do ano mil, foi re-
a mesma tradição. legado o cumprimento da profe-
116
cia do Apocalipse, o que não Criou logo uma série de divin-
conseguiu salvar o prestígio dos dades subalternas, chamadas an-
livros sagrados cristãos quando jos, presididas por Mohassura.
se percebeu que a Profecia dos Este, movido por um desenfrea-
Evangelhos colocada na boca de do desejo de reinar induz os an-
Cristo não se concretizara. jos à rebelião contra o Criador,
A lenda do fim do mundo, de quem se afastara. Siva foi en-
como se encontra na Revelação carregado de os expulsar do céu
é uma cópia idêntica da lenda superior, e precipitá-los nos glo-
dos livros sagrados da Índia, que bos inferiores (inferno).
têm as mesmas imagens e os Brahma criou o homem e a
mesmos fenômenos que no do mulher, dando-lhes a consciên-
Apocalipse. cia e a palavra, tornando-os su-
Não é a toa que se imagina periores a tudo que tinha criado,
que o pretenso autor do Apoca- só inferiores aos Devas e a Deus.
lipse esteve na Ásia e o tenha es- Ao homem chamou Adima
crito após o seu retorno. A des- (Adão, o primeiro homem) e à
crição do fim dos tempos, tanto mulher Heva (Eva, a que com-
no cristianismo, como na religi- pleta a vida). Colocou-os em um
ão zêndica é que o mundo será paraíso terrestre em meio de
consumido pelo fogo, aceso por uma esplêndida vegetação;
um cometa. Em seguida, o zên- ordenou-lhes que se unissem,
dico Messias, precedido por dois procriassem e o adorassem por
profetas (Elias e Enoque, na mi- toda a vida, e proibiu-lhes de
tologia judaica), virá ao mundo deixar o paraíso terrestre
para destruir o império das tre- (Ceilão). Eles desobedeceram e
vas e julgar os vivos e os mor- logo o encanto da Natureza de-
tos. Apenas no mazdeísmo é que sapareceu. Brahma os perdoou,
mesmo os ímpios serão limpos e mas expulsa-os daquele lugar de
perdoados. delícias, e condena-lhes os filhos
Na criação hindu, segundo as a trabalhar, prevendo que se tor-
leis de Manu, o universo estava narão maus influenciados pelo
submerso nas trevas, como no espírito do mal que invadira a
Gêneses, quando o invisível Terra.
Brahma as dispersou e criou as Consola-os, porém dizendo
águas, imprimindo-lhes o movi- que lhes enviará Vischnú, que se
mento. encarnará no seio de uma mu-
117
lher, para redimir o gênero hu- durante o qual o Homem passa
mano do pecado. alternativamente por períodos de
Na mitologia persa, Ormuz bem e de mal, de luz e de trevas,
promete ao primeiro homem e à de calor e de frio. O Gêneses não
primeira mulher a felicidade faz menção deste número, mas
eterna, desde que se mantives- fala do Apocalipse.
sem bons. Mas um demônio com Para finalizar. No nome do
a forma de serpente é enviado anjo posto de guarda no jardim,
por Ariman. Nesse demônio vê-se a semelhança da cópia
acreditam, pois os persuade de com o original: No Zend-Avesta
que Ariman é o distribuidor de ele se chama Chelub enquanto
todos os bens, e começam a ado- que no Geneses é Cherub (Que-
rá-lo. rubim)
O demônio levou-lhes alguns Os hebreus tomaram igual-
frutos, que logo comeram, desa- mente, dos persas, durante o seu
parecendo imediatamente a feli- cativeiro nas margens do Tigre e
cidade de que gozavam. Expul- do Eufrates, a ideia da imortali-
sos desse lugar, começaram ma- dade da alma e da vida futura, e,
tando animais para se alimenta- consequentemente, a mitologia
rem, cobrindo-se com as peles dos anjos e demônios.
dos mesmos. E no coração des- Os próprios nomes dos anjos
tas infelizes criaturas humanas, (dividido em 7 ordens como as 7
nasceu o ódio e a inveja e foram órbitas dos planetas), - Gabriel,
malditos, eles e suas gerações. Miguel, Rafael, Querubins, Sera-
Uma particularidade digna de fins, Tronos (Ofanins) e Domi-
nota é a semelhança entre o pa- nações - foram copiados das reli-
raíso terrestre persa com o Éden giões persa e caldaica.
do Gêneses. O paraíso persa O vocábulo Satã significava
chama-se Eren, em vez de Éden, entre os hebreus, diz Bianchi-Gi-
tendo havido corrupção de uma ovini, um homem inimigo. Foi
letra na passagem da lenda persa só depois do desterro do Babilô-
para a hebraica. Em outros para- nia é que foi usado com o signi-
ísos terrestres há os mesmos ficado de anjo do mal.
rios.
Mesmo Asmodeu, que no An-
A árvore tem doze frutos, que tigo Testamento foi causa de per-
correspondem aos 12 signos do turbações histéricas em mulheres
zodíaco e aos 12 meses do ano
118
(Tobias, III,8; VI,14) foi copiado senhor mandou-o avisar do que
do Aeshmodaeva persa, o deus sucederia, que construísse um
da concupiscência. barco onde se encerraria com
O Paraíso e o Inferno provêm sua família, um casal de todas as
dos mitológicos orientais. Paraí- espécies animais e exemplares
so, em persa, significa jardim. O de todas as plantas. Quando o
Paraíso e o Inferno, já figuravam Dilúvio findou, Vaiwasvata de-
na mitologia dos hindus, persas, sembarcou no cimo do Himalaia.
egípcios, gregos (Elísio), roma- A narrativa caldaica é ainda
nos (Tártaro), gauleses e escan- mais importante porque explica
dinavos. Mas esses povos não melhor a origem do Gêneses.
conheceram a eternidade das pe- Essa lenda foi recentemente de-
nas. Isso estava reservado para cifrada nas tábuas encontradas
ser proclamado pelo manso cor- na ruína de Ninive, onde se en-
deiro de Nazaré. controu toda a mitologia, de que
Quanto ao Purgatório, a Bí- a hebraica não é senão cópia.
blia não o conhece, nem no Anti- O Deus Ilu adverte Xisultrus
go nem no Novo Testamento. A de que em breve um dilúvio des-
Gregório devem os cristãos as truirá todo o gênero humano, e
primeira menção do Purgatório, manda-lhe que escreva uma his-
cuja ideia foi talvez tirada de tória de todas as coisas, que en-
Platão, que dividiu as almas em terrará na cidade do Sol. Tam-
três classes: as puras, as curáveis bém lhe ordena que construa
e as incuráveis. uma embarcação na qual se re-
Os Vedas contam também a colherá com sua família e os
lenda do Dilúvio230. Os filhos de seus amigos, um casal de cada
Adima e Heva tornaram-se tão espécie animal com alimentos
numerosos e tão maus, que che- para todos.
garam a negar à Deus e suas pro- Para saber se as águas tinham
messas. Então, Deus resolveu já descido, fez sair do barco, por
castigá-los, mandando-lhes o Di- três vezes, algumas aves que à
lúvio. Só se salvou Vaiwasvata, terceira vez não voltaram, sinal
por causa das suas virtudes. O evidente de que encontraram ter-
ra seca, onde pousar. A nave dá
230
Regnaud no livro, Como Nascem os sobre a montanha e ele sai com
Mitos, demonstra a precedência da os seus.
lenda védica sobre a semítica (pp. 59 e
segs.). As memórias caldaicas das
119
Tábuas de Nínive, falam tam- ceber de um modo milagroso.
bém da lenda da construção da Um dia, Brahma ordena-lhe
torre de Babel. Os primeiros ha- que sacrifique o filho, e se bem
bitantes da terra, orgulhosos de que tal ordem lhe apunhale o co-
sua força e poder começaram a ração, dispõe-se a obedecer,
depreciar os deuses, levantando quando Brahma, tomando a for-
no lugar onde ficava Babilônia ma de pomba lhe aparece orde-
uma torre que chegasse até ao nando-lhe que guarde o filho e
céu. A certa altura, porém, os acrescentando que este viveria
deuses, auxiliados pelos Ventos, longo tempo, porque dele devia
derrubaram o edifício e confun- nascer a Virgem que conceberia
diram a linguagem dos homens, de gérmen divino.
que até então falavam uma só
As modernas investigações no
língua.
Egito vieram pôr a descoberto a
A Bíblia fala de dez patriarcas historieta de José e da mulher de
que viveram antes do dilúvio, e Putifar, que foi tirada do roman-
morreram com idade muito ce egípcio os Dois irmãos.
avançada; A tradição caldaica
O legislador da Bíblia é, en-
fala também de dez monarcas
fim, um copista fiel das antigas
que reinaram 432.000 anos; Nos
mitologias. Aqui, cedemos a pa-
contos árabes, chineses, hindus e
lavra a Jacolliot231:
germânicos fala-se de dez perso-
nagens igualmente míticos que Um homem chamado Manu
viveram antes do período histó- dá à Índia leis políticas e religi-
rico. Também foram dez os pri- osas. O legislador egípcio rece-
mitivos reis da tradição sagrada be o nome de Manes. Um cre-
persa e dez heróis da Armênia. tense vai ao Egito para estudar
as instituições que pretende im-
Dos dez patriarcas hebreus,
plantar em seu país, e a história
ressalta-se especialmente Abraão
confirma nos anais o seu nome:
pelo seu famoso sacrifício. Pois
Minos.
bem: não é mais do que uma có-
pia da lenda do patriarca Adgi- E finalmente, o libertador da
gatha que se lê em Rhamatsariar, casta dos escravos dos judeus
livro das profecias hindus. que fundou uma nova
comunidade se chama Moisés.
Adgigatha é um homem justo,
predileto de Brahma, sem filhos 231
La Bible dans l'Inde, Vie de Iezeus
até que este faz sua mulher con- Christna (1869)
120
"Manu, Manes, Minos, Moi- através dos tempos fizeram dar
sés, aqui estão quatro nomes ao legislador judeu que queria
que dominaram o mundo antigo. regenerar o mundo, um nome si-
Os quatro aparecem nos primór- milar ao de Jezeus Cristna que
dios de quatro povos diferentes tinha, de acordo com tradições
para representar o mesmo pa- indianas, regenerado o mundo
pel, cercados pela mesma aura antigo.
misteriosa de grandes sacerdo- O Egito, pela sua posição ge-
tes e legisladores, fundadores de ográfica, seria necessariamente
sociedades sacerdotais e teocrá- um dos primeiros países coloni-
ticas. zados pela emigração indiana a
Sabemos que um precedeu receber a influência desta anti-
aos demais. Manu foi o precur- ga civilização que chegou até
sor, disto não resta a menor dú- nós. Verdade evidente quando se
vida, vendo a semelhança de no- estudam as instituições do Egi-
mes e de identidade das institui- to, totalmente baseadas nas da
ções que eles criaram. Manu, Alta Ásia, e das quais não se
em sânscrito, significa o Homem tem como negar a procedência.
por excelência, o legislador. Jacolliot faz em seguida o pa-
Manes, Minos e Moisés, evi- ralelo entre as instituições do
dentemente vêm da mesma raiz Egito, do Antigo Testamento e
sânscrita. As variedades leves da Índia para demonstrar que as
de pronúncia são consequência primeiras são uma simples cópia
da diversidade de línguas que se da última e que Moisés e Manes
falava no Egito, na Grécia e na são plágios de Manu.
Judeia. Ao que acrescentaremos que
Será muito fácil provar que os também já está demonstrado e
três últimos são a continuação provado incontestavelmente pela
de Manu, e quando se averígua, exegese e a crítica literária da
como já se fez, que a Índia é a Bíblia que os livros atribuídos a
origem de todas as lendas da Moisés não podem ser de sua
antiguidade, não se estranhará autoria.
dizer que a Bíblia nasceu na Malvert afirma que Moisés é
Alta Ásia. o nome do Deus solar Masu.
Será mostrado que as influên- Esta etimologia concorda com a
cias e as memórias dos berços de Jacolliot. A origem do nome
da civilização, continuando pouco importa, de resto. O im-
121
portante é saber-se que Moisés Bown.
também é um mito. Nem mesmo o profetismo é
Pigault-Lebrun faz o seguinte invenção judaica. Aqui também
paralelo entre Baco e Moisés: o judaísmo copiou a Pérsia, que,
Os antigos poetas fazem nascer em tempos remotos supos que a
Baco no Egito; Moisés também; história do mundo era uma série
Baco é exposto ao Nilo, como de períodos cada qual presidido
Moisés; Baco é transportado ao por um profeta.
monte Nisa, Moisés ao Sinai Cada profeta tinha sua Kazar,
uma deusa ordena a Baco que que era um reinado de mil anos
destrua um povo bárbaro. Moi- (quialismo ou milênio). E no su-
sés recebe a mesma ordem. ceder destas períodos é compos-
Baco passa o Mar Vermelho a ta a trama dos acontecimentos
pé enxuto, Moisés também. O que prepararão o reino de Or-
rio Horusnte suspende o curso muzd. Ao final dos tempos, ter-
em homenagem a Baco, e o Jor- minada a época dos quialismos,
dão em favor de Josué; Baco or- virá o paraíso.
dena ao Sol que pare, Josué
Na Bíblia judaico cristã, os
igualmente. Dois raios lumino-
personagens correspondem tam-
sos surgem da cabeça de Baco,
bém a outros entes mitológicos,
o que também sucede a Moisés,
por exemplo Elias que, com sua
raios que as crianças confun-
carruagem de fogo e seus cava-
dem com cornos. Baco faz nas-
los flamejantes, reproduz o Apo-
cer da terra uma fonte de vinho
lo grego.
Moisés, tocando em uma rocha,
faz brotar água. Sansão e Jonas são cópia do
mito pagão de Hércules, que
Além disso, a assiriologia de-
também, como Jonas, permanece
monstrou que a história de Moi-
encerrado três dias no ventre de
sés foi copiada, em parte, da do
um monstro marinho e que,
rei arcadiano Sargon, que nas-
como Sansão, também significa
ceu em um lugar deserto, foi co-
pequeno sol.
locado por sua própria mãe
num cesto de vimes, lançado ao Assim provamos que a mito-
rio e recolhido e educado por logia do Antigo Testamento não
um estranho, depois do qual foi é original, mas uma cópia de mi-
rei mil e tantos anos antes de tologias anteriores. Tanto basta
Moisés, como diz o reverendo conhecer esta para conhecer
122
aquela. do rei Hamurabi, oito séculos
Poderíamos reforçar isso com anterior a Moisés. Na tábua re-
uma maior abundância de docu- centemente descoberta em Susa,
mentos de fontes mitológicas de pelo sábio assiriólogo Morgan, o
outros povos, mas seria uma ex- rei Hamurabi esta representado
cessiva preocupação erudita que no ato de receber das mãos de
nada acrescentaria à nossa de- Deus (o deus Sol) um livro das
monstração leis, cena que prova que a de
Moisés no Sinai é uma cópia.
Em conclusão: se o Antigo
Testamento não é original, quem As leis de Hamurabi contem,
não vê em Cristo, que está indis- além do decálogo que depois foi
soluvelmente ligado à mitologia copiado pelo legislador hebreu e
do Antigo Testamento, uma có- atribuído a Moisés, as ferozes
pia das antigas alegorias? prescrições penais do Deus Pai
dos cristãos, entre elas a pena de
Para mais completa persuasão
Talião.
do leitor, recordaremos que a
descoberta das inscrições cunei- Sobre as revelações devido a
formes feitas nas escavações de estas descobertas surgiu na Ale-
Babilônia, resolveram para sem- manha um debate significativo.
pre este ponto de história mitoló- O prof. Friedrich Delitzsch di-
gica, pondo acima e fora de toda vulgou que, numa sua conferên-
a discussão, o nosso ponto de cia pública a que assistiram o
vista. imperador Guilherme II e sua
consorte imperial, este o tinha
Quer dizer que a criação, a
cumprimentado. O mundo orto-
queda de Adão, o próprio decá-
doxo na Alemanha reprovou o
logo, o dilúvio, a semana de sete
imperador como um adesista a
dias o descanso dominical, o
um sistema que destrói a revela-
próprio descanso de sábado e um
ção, a divindade de Cristo, a reli-
grande número de prescrições ri-
gião e, consequentemente... os
tuais, morais e penais foram para
privilégios que a religião, a base
o Antigo Testamento depois da
do direito divino e força conser-
civilização caldaica.
vadora por excelência, desfruta-
O decálogo de Moisés foi co- va...
piado de uma recopilação de leis

123
CAPÍTULO III
ORIGEM E SIGNIFICADO DOS DEUSES REDENTORES

Passamos em revista vários de toda a beleza o movimento


Deuses Redentores anteriores a que origina é a causa de todo o
Cristo e dos quais ele é uma sim- bem. Ele e só ele é o verdadeiro,
ples cópia. Para que seja com- o Belo, e o Bom: é uno e trino. A
pleta a nossa demonstração e primeira adoração da Humanida-
persuada a todos é preciso de- de dirige-se ao ministro máximo
monstrar a origem e significado da Natureza, ao distribuidor de
destes Deuses que, de origem todo o bem, à luz incriada e eter-
humana e significação naturalis- na, à força fecundante do univer-
ta são a transfiguração de um so. Do Sol deriva a primitiva
mesmo mito, coisa que foi já ideia de Deus.
magistralmente demonstrada por As próprias investigações dos
Dupuis e Volney, cujos sistemas orientalistas estabeleceram que
podem ser atacados, mas não se- até mesmo a etimologia da pala-
riamente refutados e a cujas vra Deus procede de um atributo
obras remetemos os que quise- do Sol, de Devv e da raiz divv,
rem profundar o assunto232. que em sânscrito significa, preci-
Ainda que a primitiva huma- samente, o luminoso.
nidade tenha podido passar do Da raiz divv se derivam quase
fetichismo ao politeísmo e deste todos os nomes da suprema di-
ao monoteísmo, segundo a co- vindade dos povos europeus:
mum opinião dos mitólogos, es- desde o theos dos gregos ao dis-
pecialmente de Girard de Rialle, vas dos lituanos, do deus latino
encontramos ainda na época reli- ao dia irlandês, até ao dieu dos
giosa, que é a que mais nos inte- franceses, ao dio italiano, ao
ressa, que o culto da Humanida- dios dos espanhóis, etc.
de tem por origem principal o
A ideia de Deus é, pois, origi-
Sol.
nária do simples conceito do
O Sol é o manancial da vida Sol, este corpo luminoso que tão
do Universo; a sua luz é a fonte grande influência exerce na vida
232
Ciência e Religião de Malvert e Os
do homem e de toda a natureza.
Adoradores do Sol de Moy, que tratam a Por outro lado, como o Sol é
questão sob o ponto de vista mitológico inacessível aos homens, estes
e evolutivo.
124
não podem usufruir diretamente todos os anos o nascimento de
os seus benefícios, a não ser por Agni, no solstício do inverno,
meio do fogo ou seja a acumula- (25 de Dezembro) isto é, na épo-
ção do calor solar nas plantas, ca que coincide com o renasci-
não se remindo de seus males, mento anual do Sol.
até ao dia em que o Fogo foi Há os sacerdotes que sobre o
descoberto pela ação de dois le- altar derramam um licor sagra-
nhos cruzados. E, descendendo, do, o espirituoso soma. Há a un-
por assim dizer, do Pai Celestial, ção e Agni toma o nome de Unto
trouxe ao homem a sua proteção, (em grego Crisnos, Cristo).
dando-lhe alimentos, metais,
A oferta do pão e do vinho fa-
utensílios, armas, meios enfim,
zia-se ao fogo sagrado, sobre o
de defesa e de saúde.
altar. Agni é também o mediador
Eis aí a origem da antiquíssi- da oferta, o sacrificador que a si
ma veneração dos homens pela próprio se oferece como vítima.
cruz, desde que o Fogo, filho do
Os sacerdotes e os fiéis rece-
Sol e consubstancial com ele,
biam, cada um, uma partícula da
salvador da Humanidade que
oferta (hóstia) e a comiam como
tanto lhe deve, se produz por
um alimento onde estivera Agni,
meio de uma cruz de madeira,
obra de carpintaria, na qual se Esta antiga Trindade, compos-
realizava, ao contato do Espírito, ta do Sol (Savistri) o pai celeste;
ou do ar, o mistério do Salvador do Fogo (Agni) filho e encarna-
da Humanidade nascido de ção do Sol, e do Espírito (Vayú)
Maya. o sopro do ar, ficou como dogma
fundamental das religiões de ori-
Daí o mito de Perseu, que faz
gem ariana.
baixar o fogo do céu à terra; o de
Prometeu, que o rouba do céu Agni se transforma em Ag-
para salvação da Humanidade, nus. O Fogo é substituído pelo
sendo por isso condenado a per- Cordeiro, que também era ima-
manecer no Cáucaso com os bra- gem de Deus Redentor.
ços em cruz, e sobretudo, o mito No cristianismo, também o
hindu da Trindade primitiva de Cordeiro ocupou na cruz o lugar
Savistri, Agni e Vayu, que indica de Cristo durante seis séculos,
claramente a sua origem, isto é: até que o Concílio Quintesexto
o Sol, o Fogo e o Ar. de Constantinopla (692 dC.) o
No rito védico, celebrava-se mandou substituir pelo corpo de
125
Cristo.(cânone-82)233. É assim que, apesar do desen-
Naturalmente, com o tempo e volvimento que logo tomou a te-
o significado da linguagem, ao ologia, a origem do mito não de-
passar do próprio para o figura- sapareceu nunca de todo. Ainda
do, do físico para o moral - sábia mais: os próprios desenvolvi-
observação de Valney, que ser- mentos teológicos do tema, fize-
viu de base ao sistema de Muller ram-se sobre a base das revolu-
- a antiga fonte do mito foi se es- ções da Natureza, e especial-
gotando, ou melhor, foi se trans- mente do Sol.
formando. O gérmen primitivo, A vida dos Deuses Redentores
e ideia fundamental, essa, po- é a descrição da vida do Sol.
rém, fica sempre. Nascem todos no solstício de in-
Só esta chegou à compreensão verno, e precisamente, em 25 de
das outras forças físicas, remon- dezembro, quando o Sol, que pa-
tando- se à concepção das ideias rece próximo a extinguir-se, vol-
morais. ta a renascer. É a criatura, o in-
fante. E todos eles morrem para
Porém, ainda mesmo que pelo
ressuscitar na primavera, quando
processo do tempo e origem na-
o Sol recupera todo o seu poder
turalista do mito perdesse ou
e esplendor, triunfando das tre-
mudasse o significado, e ainda
vas do inverno, do mal, de Tif-
que se fizesse mais antropomor-
fon, de Siva, de Ariman, de Sata-
fo, se indianizasse - jamais se
nás.
perdeu o conceito fundamental
que, servindo de base às religi- Cristna, Mitra, Horus, Apollo,
ões, isto é, que o Deus criador Adonis, como Cristo, todos nas-
foi o Sol, e que o filho, em quem cem em 25 de dezembro e res-
tinha encarnado para salvar a suscitam no equinócio da prima-
Humanidade era ainda e sempre vera. O Deus do dia foi, pois,
o Sol, seja direta, seja indireta- personificado no Deus Criador,
mente, com o caráter de fogo. primeiro e Redentor depois, e
submetido a todas as peripécias
233
humanas. Que isto sucedera a
...para que a arte da pintura simbolize respeito dos Deuses Redentores
diante os olhos de todos, aquEle que é
perfeito, decretamos de agora em diante da antiguidade, não há a menor
se deve representar nos ícones ao cor- dúvida, porque a própria antigui-
deiro, Cristo Deus nosso, que tomou os dade o deixou escrito em carac-
pecados do mundo, em sua natureza hu- teres claros e com palavras ex-
mana no lugar do antigo cordeiro.
126
plícitas. da Mesopotâmia, na disputa que
Platão e Aristóteles admitiam sustentou até 277 com Maneton,
a adoração do Sol e dos astros, e identifica completamente Mitra
Anaxágoras testemunha a exis- com o Sol.
tência desta adoração, quando, O pretendido Dionísio, o Are-
para a demolir, dizia que o Sol opagita, vê em Mitra um deus de
não era mais do que urna pedra tríplice forma, isto é, concebido
inflamada. segundo as relações das esta-
Para Heródoto, como para Es- ções. O próprio S. Jerônimo quer
trabão, o mediador do mazdeís- encontrar no nome de Mitra um
mo, o Deus Redentor persa, Mi- anagrama do numero 365, que
tra, que tem por emblema a luz, tantos são os dias do ano.
não é outra coisa mais do que o S. Paulino, bispo de Nola, dei-
Sol, e Quinto Cúrcio diz que os xou-nos, nos seus versos, uma
persas invocavam Mitra ou o descrição dos mistérios de Mitra,
Sol, como a urna luz eterna. nos quais o esplendor deste Deus
Segundo Plutarco, os mistéri- solar se opõe às trevas da noite,
os Mitra foram levados ao Oci- durante a qual era adorado. Win-
dente, e em seguida a Roma, por dischmann reuniu outros teste-
piratas sicilianos, fato sucedido munhos, pelos quais se vê que
até o ano 68 da nossa era. Pois Mitra é, com efeito, o Sol.
bem: em Roma, Mitra era adora- Nas moedas de Karneki, rei
do pura e simplesmente como o indo-escita, que vivia no princí-
Sol, e a própria Roma nos dá pio da nossa era, Mitra aparece
disso uma prova na formula Deo como o Sol, circundado de um
Soli invicto Mitrac, usada sem- risco radiante. O Deus solar Mi-
pre nas inscrições latinas, consa- tra era representado com a cabe-
gradas ao deus redentor dos per- ça rodeado pelo disco solar, com
sas. Um escritor bizantino, Nice- a mão direita levantada ao alto e
to, diz-nos que Mitra era, por um globo na esquerda.
uns, considerado como sendo o Sob este aspecto se represen-
Sol e por outros, como sendo o tou sempre Cristo. Em Roma, o
Fogo. Deus Mitra acabou por conver-
Um padre da Igreja, Julio Fir- ter-se em divindade preponde-
mico Materno vê em Mitra a rante chamanda Senhor, como
personificação humana do Fogo. indica uma medalha cunhada no
Archelau, bispo de uma cidade reinado de Aureliano. O monote-
127
ísmo, ou melhor, o prototeísmo ças da Natureza, e sobretudo da
Cristão, pode dizer-se que tinha principal, o Sol.
já nascido, quando todos os po- O globo alado do Sol não era
vos do império romano designa- só dos egípcios, mas também
vam o Sol sob a denominação de dos persas e dos fenícios.
Dominus ou Senhor. Esta evolu-
O Sol está representado geral-
ção foi facilitada pelo culto de
mente nos monumentos assírios
Mitra, o Sol invencível, que o
e caldaicos, onde tinha altares
imperador Juliano chamava o
por toda a parte.
pai comum dos homens.
A cidade de Sipara era-lhe
Por isso, os Cristãos concen-
consagrada, e nos seus templos,
traram todos os seus esforços em
ardia continuamente fogo em sua
combater Mitra, que era o mais
honra. Na Síria, na cidade de
poderoso adversário da encarna-
Edessa, havia um templo consa-
ção Cristã do Deus Sol.
grado ao Deus Sol, assim como
No Egito, o Sol era gerador do em Palmira.
universo, o criador dos seres e
Na Grécia, achamos o globo
das coisas, e, como na índia,
alado sobre o Caduceu. Orfeu
chamava-se o Pai Celestial. Era
considerava o Sol como sendo o
o principio ativo e luminoso, que
maior dos Deuses. Em Homero,
a antiga inscrição de um dos
lê-se que Agamemon, apostro-
obeliscos egípcios, transportados
fando o Sol, lhe chamava o que
a Roma, ao Circo Máximo, defi-
tudo vê e ouve tudo. Belenho,
nia assim: O grande Deus, o jus-
dos gauleses, é uma personifica-
to Deus, o todo esplendente.
ção do Sol. Entre os romanos,
Era o princípio universal, o não só Apolo e Baco eram perso-
fluido luminoso, ígneo, sutilíssi- nificações do Sol, mas também
mo,que enche o universo. Os Júpiter, segundo Juliano.
seus monumentos eram repre-
Macróbio, na obra acerca das
sentados como um globo alado,
Saturnais, prova que os nomes
encimado com uma coroa ondu-
de Apolo, Baco, Adonis, etc.,
lada.
não eram senão as diversas de-
Em toda a América ficaram si- nominações do Sol entre várias
nais evidentes do antigo culto do nações, e reduz toda a antiga te-
Sol. Na Índia, na China, no Ja- ologia ao culto do Sol.
pão, toda a mitologia é a repre-
O Deus Redentor, portanto,
sentação antropomórfica das for-
128
era não só a personificação, o transmitiu os seus sinais, apesar
mito do Sol, mas era também o da sua transformação em mito
culto primitivo, direto e concreto antropomorfo e em símbolo teo-
do Sol, como também era o anti- lógico.
go sabismo ou heliosísmo, que

129
CAPÍTULO IV
CRISTO É UM MITO SOLAR

Agora, mais do que nunca, es- passar os homens sob o império


tamos no direito de concluir que da luz, não pode ser senão um
Cristo nunca existiu, sendo um Deus solar, copiado de tantos
puro mito solar. mitos heliostáticos em que abun-
O silêncio da história acerca davam as religiões do Oriente.
dele, a sua inexistência como No céu da esfera armilar dos
pessoa terrestre, o seu caráter Magos e dos caldeus, via-se um
exclusivamente sobrenatural, e, menino colocado entre os bra-
especialmente, a sua afinidade ços da Virgem celestial, a mes-
ou identidade com os mitos sola- ma a que Eratóstenes dá o nome
res que o precederam, autori- de Isis, mãe de Horus. A que
zam- nos a tirar esta conclusão. ponto do céu correspondia esta
Temos, porém, muito mais Virgem da esfera e o seu filho?
com que robustecer o argumen- Na meia noite de 25 de dezem-
to, porque existem provas ainda bro, quando nasce o Deus do
mais diretas e convincentes. ano, o novo Sol, o Cristo pela
parte do Oriente e no mesmo
- Um Deus nascido de uma
ponto onde se levantava o Sol
virgem - diz Dupuis - no solstí-
no primeiro dia.
cio do inverno e ressuscitado na
Páscoa, no equinócio da prima- É um fato independente de to-
vera, depois de ter descido aos das as hipóteses e de todas as
infernos; um Deus que leva consequências que possamos
atrás de si um cortejo de doze deduzir, que o 25 de dezembro,
apóstolos, correspondentes às na hora precisa da meia noite,
doze constelações234 e que faz no século em que aparece o
cristianismo, a constelação ce-
234
O número 12 é comum a todas as re- leste, que se erguia no Oriente,
ligiões de origem heliostática, dos ado-
radores do Sol. Os romanos tinham 12
e cuja ascensão marcava a
grandes deuses, cada um dos quais pre- abertura da nova revolução so-
sidia a um mês. Os gregos, os egípcios e lar, era a virgem das constela-
os persas também tinham 12 grandes ções zodiacais. E é também um
deuses, como os Cristãos 12 apóstolos. fato que o Sol, nascido no solstí-
O chefe destes deuses guardava a barca
e a chave do tempo, como Jano entre os cio do inverno entra nesta cons-
romanos e Pedro entre os Cristãos. telação e derrama os seus raios
130
de fogo na época da nossa festa triunfo sobre a noite. Durante
da Assunção, ou reunião da mãe este tempo, convém que esteja
com o filho. É indubitável que a exposto a todas as calamidades
virgem, que alegoricamente da sua vida mortal...
pode ser mãe sem deixar de ser A teoria de Cristo foi, como a
virgem, realiza as três grandes sua biografia, tirada inteiramente
funções da virgem mãe de Jesus, dos Vedas. É o Deus (o Sol), que
seja no nascimento de seu filho, oferece o seu único filho (o
no seu próprio ou na reunião de Fogo) para salvação dos ho-
ambos no céu. mens.
Que isto seja um fato positivo, Cristo repete todas as circuns-
prova-se depois com iguais cita- tâncias dos outros Deuses Re-
ções dos astrólogos antigos, a dentores que o precederam. Nem
quem devia ser mais familiar do mais nem menos235. Logo, estes
que a nós a ciência dos caldeus. Deuses Redentores, por confis-
Conta como nas tradições dos são dos escritores pagãos, dos
persas, dos caldeus, dos egípci- próprios padres da Igreja e dos
os, de Hermes e de Esculápio, primeiros escritores cristãos
aparece uma jovem chamada em como Heródoto, Plutarco, Ma-
persa Seclenidas de Darzama, e cróbio, Atanásio, Lactâncio e Ju-
que em árabe se escreve Adrene- lio Firmico, não representavam
defa, isto é, Virgem casta, pura e mais do que o Sol.
imaculada, de formosa aparên-
Impõe-se, pois, forçosamente,
cia, de longas tranças e ar mo-
a consequência lógica de que
desto. Tem entre as mãos duas
Cristo é também um mito solar.
espigas, está sentada num trono
e amamenta um menino a quem Este fato deduz-se, de maneira
alguns chamam Jesus é nós o evidentíssima, da própria Bíblia,
Cristo. de alguns autores cristãos que
têm expressões e conservam
O Sol, reparador dos males
que o inverno causa, nascendo 235
Segundo Bianchi-Giovini, (Crítica
no solstício, deve permanecer dos Evang. 1ibr.IV, cap. VII) na Pérsia
ainda três meses nos signos in- costumavam escolher, na festa chamada
em caldeu Suchaia, um condenado à
feriores, na região atribuída ao morte, vestiam-no de rei, colocavam-no
mal e às trevas, antes de rebai- no trono davam-lhe liberdade, em segui-
xar o limite do equinócio da pri- da, passados cinco dias, despojavam-no
mavera, que assegura o seu das vestes, açoitavam-no e crucifica-
vam-no.
131
usos, cuja significação tem ínti- do, mas nem por isso desapare-
ma relação com a adoração do ceu: subsiste nos escritos e nas
Sol e que denunciam, por conse- ladainhas eclesiásticas, bem
guinte, a origem e a natureza so- como na arte Cristã.
lar do mito cristão. Orígenes escreve que era ne-
Já no Antigo Testamento (Sal- cessário adorar os astros em ra-
mo IV e XVIII) encontramos o zão da sua luz espiritual e não da
Sol identificado com Deus. sua luz sensível.
Deus estabeleceu os seus arrai- Tertuliano tenta defender os
ais no Sol. Vai de um extremo ao cristãos da acusação que lhe fa-
outro do céu e nada se subtrai à ziam de adorarem o Sol, dizendo
sua vista. que, apesar das aparências em
Sobre vós, que temeis o meu contrário e dos sinais exteriores
nome, se levantará o Sol da Jus- da veneração pelo Sol, não é ao
tiça, e a vossa vida estará nos astro que se dirige o culto cris-
seus raios. tão: Outros, com maior razão ou
João diz no seu Evangelho verossimilhança, creem que o
que o Verbo era a lei, a luz e a nosso Deus é o Sol. Esta ideia
vida, a luz que ilumina os olhos provém, aparentemente, de que
de todos os mortais, a luz do nos dirigimos para o Oriente,
mundo. para orar. Se dedicamos à ale-
gria o dia do Sol é por urna
Onde, porém, a Bíblia revela
causa estranha ao culto deste
melhor a origem heliostática de
astro.
Cristo é quando lhe chama cor-
deiro, o Agnus Dei qui tollit pec- Não obstante, o próprio Tertu-
cata mundi. O Apocalipse, so- liano reconhece que o dogma da
bretudo deleita-se representando ressurreição do Deus cristão é
Cristo sob a forma de cordeiro. idêntica à da religião persa.
Do mesmo modo, a Igreja Ca- Clemente de Alexandria es-
tólica, até 680, venerou Cristo creve que o Verbo veio ao nosso
sob a figura simbólica de um conhecimento por meio da ma-
cordeiro. deira. (Evidentemente alude ao
fogo produzido pela madeira).
Foi no quintesexto Sinodo de
Constantinopla (Cânone 82) que João Crisóstomo, falando, nas
esse cordeiro foi substituído pela suas homilias, da descida de
figura de um homem crucifica- Cristo aos infernos, chama-lhe, o
132
sol da justiça, que leva a luz. Algumas das seitas primitivas,
Sinésio chama a Cristo o tipo que pelos conhecimentos cientí-
sensível do sol intelectual. Des- ficos têm o mesmo valor que o
creve-o saindo do inferno como tronco de onde provêm, conser-
um astro nascido das trevas no- varam a sua origem solar do cul-
turnas, precedido da lua, seguin- to Cristão. Os maniqueus, por
do o rasto luminoso do sol. exemplo, diziam que o Sol era o
próprio Cristo. Assim o atestam
Firmico Materno também o
Teodoro e Cirilo de Jerusalém.
descreve, na descida ao inferno,
Segundo S. Leão, os maniqueus
brilhando como o Sol.
colocavam Jesus na substância
O primeiro dia do calendário é luminosa do Sol e da Lua, a qual
ainda hoje, consagrado ao Sol, não faz mais do que refletir a luz
como o seu nome o indica. Do- daquele. Os saturninos acredita-
mingo vem de dominas, o Se- vam que a alma tinha a substân-
nhor, como se chamava o Sol na cia do Sol, do calor sideral, e
época em que nasceu o Cristia- portanto, que deixa o corpo na
nismo. terra, voltando a sua origem.
Além disso, outros dias do ca- A Igreja conserva-nos ainda,
lendário expõem em favor do no culto, várias provas de que
culto solar, porque conservam os Cristo é um mito solar.
nomes correspondentes à lua e
Por exemplo: a festa da Pás-
aos cinco planetas.
coa não cai nunca em dia certo,
Clemente de Alexandria con- variando, segundo as circunstân-
servou-nos um fragmento de S. cias e alternativas astronômicas,
Paulo, ou a ele atribuído, em que e isto não seria possível se Cris-
se aconselha a leitura de livros to fosse um personagem históri-
sibilianos, dos gregos e dos Is- co, pois em tal caso seria fixo e
taspes. A autoridade dos livros incontestável o dia da sua morte.
sibilianos ainda hoje é reconhe-
O Santo Sacramento tem a
cida pela própria Igreja no Dies
forma do disco luminoso do Sol,
irae, onde se cita a Sibila como
conforme as antigas tradições
testemunha de que o mundo será
das religiões heliostáticas. No
destruído pelo fogo. Estes mes-
ostensório católico, vê-se a Lua
mos livros eram frequentemente
representada no mesmo centro,
citados com a autoridade canôni-
que se chama precisamente a
ca dos antigos teólogos.
Lúnula: está rodeada de seis pla-
133
netas, representados também nos truírem as igrejas na mesma di-
seis círios, que no altar rodeiam reção, de modo que a luz do Sol
o Santo Sacramento. viesse ferir o disco de ouro do
O Santo Sacramento explica- Santo Sacramento, colocado em
se, no uso comum, do mesmo frente da porta do templo.
modo que o Sol. Todo ele é ex- O mesmo uso do culto solar
traordinariamente semelhante ao se encontra também no antigo
budismo. rito do batismo em que o catecú-
Malvert cita um curioso docu- meno se voltava primeiro para o
mento que, confundido com o ocidente, a fim de repelir de si
simbolismo cristão, não revela Satanás, símbolo das trevas, e
menos a sua verdadeira origem depois para o Oriente, jurando
solar. É o abanador. No simbo- então fidelidade ao seu novo Se-
lismo cristão, encontra-se o ber- nhor.
ço em que repousa o menino re- Uma congregação de irmãos
cém-nascido, sobre a palha, jun- adoradores do Santo Sacramento
to da virgem sua mãe, e em com- e que subsistiu até á revolução
panhia do boi, do jumento místi- francesa de 1789, tinha o nome
co dos Vedas e, finalmente, do de Irmãs do Sol.
abanador, verdadeiro contrassen- Por muito tempo, a Igreja re-
so numa cena que se passava em presentou o Padre Eterno, o
pleno inverno, se não fosse uma Deus Pai, sob a imagem do Sol.
reprodução inconsciente, porém Malvert demonstra as transfor-
exata, do primitivo mito védico, mações sucessivas destas repre-
onde cumpre uma função impor- sentações.
tante: a de manter viva, na palha,
As primeiras versões eslavas
a primeira chispa do Fogo. Este
dos Evangelhos, do século nono,
detalhe simbólico passou à litur-
traduziram a palavra ressurectio
gia primitiva, onde o abanador
por Veskres, que, literalmente
se agitava durante a missa, desde
significa ascensão do fogo.
a ablução à comunhão, prática
conservada na Igreja romana até Todas as nossas cerimônias do
o século XIV. sábado santo e especialmente, do
fogo novo, do famoso círio pas-
Também se observou, durante
cal, não tem outra significação,
largo tempo, o costume de se
nem outra origem que o triunfo
voltarem para o Oriente, durante
do Sol sobre as trevas, que têm
as preces, bem como o de cons-
134
lugar no equinócio da Primave- tência de Cristo, unidos às pro-
ra, pela Páscoa. vas precedentes adquirem valor
Em muitas orações deste ofí- de documento definitivo, como
cio reproduzem quase literal- provenientes que são, do mesmo
mente os hinos védicos. A pala- culto interessado em fazê-lo de-
vra Alelúia (de all (elevado) e saparecer. Crer, por conseguinte,
oulia (brilhante) era o grito de que Cristo existiu, equivale a
alegria que pronunciavam os an- crer que tenham existido Mitra,
tigos persas, adoradores do Sol, Adônis, Apolo, Baco, Jezéus
quando, pela Páscoa, celebravam Cristna e Horus, também conhe-
a sua volta. cido por Serápis. Este último, se-
gundo o imperador Adriano, se
Enfim, o barrete dos bispos
chamava Cristo e era adorado
católicos, que toma o nome do
pelos cristãos. E a todos estes se
Deus Sol dos persas - mitra, -
tinha dado existência humana,
usava-se já entre os magos ou
lugar de nascimento e morte,
sacerdotes de Mitra, o Deus Sol,
sendo adorados pelos respecti-
simbolizando, pela sua forma pi-
vos fieis.
ramidal, precisamente o Sol, ou
se assim querem, seu filho o O perspicaz Luciano riu, com
Fogo, que sobe aos céus para se grande fundamento, da pretensão
unir ao pai, como o prova a for- das diversas religiões em querer
ma dada às pirâmides do Egito, elas, unicamente, adorar o Sol,
aos obeliscos messiânicos e dando-lhe cada uma nome e
druidas e aos carros piramidais existência peculiares ao país res-
da Índia. pectivo, com caracteres especi-
ais, enquanto a divindade perma-
Pouco a pouco, com a com-
necia sempre a mesma e era co-
pleta personificação do símbolo,
mum a todos236.
nada mais fácil do que fazer de-
saparecer os vestígios da origem Não tem maior valor a opinião
heliostática de Cristo, a ponto de dos que creem na existência de
serem hoje bem poucos os sinais um hebreu chamado Jesus, de
que se conservam de tal origem. que logo brotou essa exuberante
vegetação do mito e da poesia
Mas os poucos que restam são
oriental, da alegoria e da rica
de uma eloquência tão extraordi-
nária, que não admite réplica, e 236
Segundo Justino mártir, o hebreu Tri-
se por si só não bastassem para fon tinha já negado Cristo. E como já
afirmar a conclusão da não exis- vimos, muitas seitas antigas o negaram.
135
imaginação da lenda, apoiando- como foram criados os mitos dos
se na razão de que o nome de Je- Deuses Redentores que precede-
sus era muito vulgar entre os he- ram Cristo e que, como ele, fo-
breus. Com igual motivo se po- ram acreditados, seguidos e ado-
deria dizer que existiram Hércu- rados por tantos milhões de seres
les, Apolos, e sobre todos, Josu- humanos e durante tantos sécu-
és e Jasones, nomes que têm a los?
mesma raiz de Jesus, só porque Em um tempo em que reinava
muitas pessoas se chamavam as- uma tão densa noite de ignorân-
sim237. cia, era de resto, bem fácil dar
Não, o Jesus da Bíblia surgiu corpo a todos os mitos e lendas.
da mitologia; nem sequer é le- Os tempos eram propícios para
gendário, é completamente mito- toda a criação mística, porque
lógico. Quem pretender susten- nunca época alguma foi mais
tar o contrário não o poderá pro- atacada pelo sobrenatural. Tudo
var, ao passo que nós, como já se então era Deus, tudo então era
viu, provamos que é mitológico celestial238.
por sua origem, natureza e signi- O politeísmo helênico tornara-
ficado. se muito humano, e muito aces-
É certo que não podemos ja- sível à critica e não contentava
mais provar de um modo positi- de modo algum os que busca-
vo, dada a distância e tenebrosi- vam a forma de resolver o gran-
dade dos tempos, como e por de problema da vida futura e so-
meio de quem se criou o mito de brenatural.
Cristo. Para isso concorreu, de Não só na mitologia assírio-
certo, a obra do cristianismo persa, mas em todas as divinda-
nascente, destruindo todos os des orientais que invadiram a
documentos que se opunham à Europa e que, por muito tempo
sua propagação.
Por outro lado, sabe-se tam- 238
Os jornais americanos trazem notíci-
bém, por ventura, por quem e as detalhadas acerca de um certo Dovie,
que tendo-se feito passar pelo próprio
profeta Elias ressuscitado, conseguiu
237
Segundo Volney, nos livros sagrados atrair crentes e fundar uma nova cidade,
persas e caldáicos, dava-se ao Sol o Sião, com 10.000 habitantes, todos seus
nome Jes ou Cris, representado por um sequazes, de quem ele é o papa rei. E
menino que nasce da virgem das conste- isto acontece perto de Chicago, em ple-
lações. De Cris fizeram os hindus Crist- no século XX. O que não seria antiga-
na e os cristãos Cristo. mente!
136
ainda, dominaram o império ro- pendos milagres daqueles tem-
mano, encontraram-se a nova pos tão supersticiosos e crédu-
linfa de que muito necessitavam los.
para alimentar o seu misticismo. Na Vida de Vespasiano, de um
Os tempos estavam realmente historiador sério, como é Suetô-
em sazão para que se realizasse nio, lê-se este fragmento: En-
uma nova encarnação da divin- quanto presidia o tribunal, um
dade. Nem o elemento milagroso indivíduo do povo cego e outro
podia prejudicar o crédito do paralítico acercaram-se dele,
novo Deus porque nunca, como rogando-lhe que os curasse,
então, o milagre esteve, tanto em pois Serápis lhes tinha prometi-
voga. do, em sonhos, ao cego, que re-
Sabe-se de um Dositeu, que cuperaria a vista se lhe cuspisse
por seus milagres e prodígios foi o imperador e ao paralítico, que
confundido com o Messias e andaria se ele lhe tocasse com
seus sequazes - entre os quais se um pé. Não crendo que tal pu-
contavam trinta discípulos, cor- desse realizar-se, não ousava
respondentes aos dias do mês - Vespasiano fazer a experiência,
julgando-o descido do céu. até que, tendo-o exortado os
amigos, este se decidiu, em pre-
Apolônio de Tianeo fez por si
sença de todos, a tentar a prova
próprio milagres atribuídos a
que teve o mais completo êxi-
Cristo e desapareceu também,
to240. Tácito241 e Dion242 confir-
deste baixo mundo de uma ma-
mam estes milagres de Vespasia-
neira milagrosa239.
no.
Simão, chamado o Mago, rea-
Mesmo na sociedade culta, a
lizou os mais espantosos mila-
incredulidade só era aparente: a
gres, sendo sempre seguido e
crença no sobrenatural tornava-
acreditado pelo populacho. He-
se, contudo, mais intensa pelo
ródoto, como hoje o nosso bom
fato de que, tendo-se afrouxado
Cantu, conta cheio de fé e com a
a fé nos deuses falsos, sem que a
maior seriedade os mais estu-
substituísse o conhecimento das
239
leis naturais, a incredulidade re-
A vida de Apolônio foi escrita por Fi-
lostrato até o ano 200 da nossa era e
240
ainda naquele tempo o autor acreditava Edição Teubneriana, Leipzig, 1893.
a sério em todos os milagres do seu he- pag. 229.
241
rói, o que prova as disposições dos espí- Histórias, IV, 81.
242
ritos de então. LXVI, 8.
137
dundou em crenças ainda mais ambiente, os uniram em corpo
estupendas, que impressionavam mais ou menos orgânico, dando
a imaginação em maior grau do vida, não ao fato novo - cristia-
que os milagres de que se riam nismo, mas à nova forma - cristi-
os augures. anismo.
Naquele tempo a loucura, o Por isso a grandeza histórica
escândalo da cruz, não podia do efeito cristianismo, se bem
deixar de assentar bem, de pro- que não é de valor intrínseco,
duzir os seus efeitos, no mundo servirá para demonstrar que
greco-romano, na positiva civili- Cristo não existiu, porque uma
zação Ocidental. só pessoa é causa muito inferior
Orgulhamo-nos, por conse- a um efeito tão grande.
guinte, de ter demonstrado aos Não, esse Cristo, seja qual for
espíritos apaixonados que Cristo o valor que lhe seja dado, não
nunca existiu e de ter introduzi- pode ter produzido, em contrário
do a dúvida no ânimo dos mais do que a Bíblia diz, um tão con-
crentes. siderável movimento na socieda-
Na parte que segue, demons- de humana.
traremos que o cristianismo não Por isso, o cristianismo foi
foi criado por Cristo, mas que já obra impessoal e criação coletiva
existia, em seus elementos cons- de vários séculos, de distintas
titutivos, na época em que deter- doutrinas, de muitos eruditos e
minadas condições psicológicas, de diversos povos.
políticas, históricas e do meio

138
Quarta Parte

Formação
Impessoal do
Cristianismo

139
CAPÍTULO I
A MORAL CRISTÃ SEM CRISTO

Se um ponto de apoio resta ao cestos e as poligamias, que


cristianismo, esse ponto é a abundam em todas as suas pági-
crença na originalidade e perfei- nas.
ção da moral, atribuída a Cristo. O Novo Testamento não a tra-
Acerca da sua pretendida per- ta melhor. S. Paulo, baseando- se
feição, já vimos a que se reduz; em que foi tirada do homem,
provaremos agora que, o que ela conclui que ela deve sujeitar-se
tem de bom, não é em nada ori- ao mesmo (I Ep. Cor. XI, 3, 7, 9)
ginal. A mesma ideia se repete em I
Uma das glórias usurpadas Tim. II, 18; Col. III, 18, Pedro
pelo cristianismo é a de ter redi- III, 1, 6).
mido a condição da mulher. É Os padres seguem a Bíblia.
completamente falso. Tertuliano chama-lhe a porta do
Eva, no Antigo Testamento é demônio, que quebrou o segredo
obra em segunda mão: foi tirada da árvore proibida, e outro de-
duma costela do homem. É ela clara-a mais amarga que a morte.
que introduz o mal no mundo, e O celibato e a virgindade são
o Deus Judeu-cristão condena-a, a condenação do amor e da ma-
por fim, a parir com dor e sujei- ternidade, isto é, das principais e
ta-a ao homem. (Gen. III 16). mais sagradas funções que a na-
Todo o Antigo Testamento é tureza confiou à mulher.
um contínuo envilecimento e Poderíamos intitular este capí-
servidão para a mulher. Quando tulo, mistificação cristã, porque,
esta tem uma filha sofrerá mais tendo de provar que a moral cris-
que quando tem um filho. O seu tã não é original no que tem de
voto é calculado em grau muitís- bom, forçoso será provarmos
simo inferior ao homem. (Levit. que é inferior, em muitos pontos,
XII, 2-5 XXVII, 1-7). à das religiões orientais, que a
Passagens que envilecem a precederam, inferior mesmo, sob
mulher são, entre outras da Bí- este aspecto, ao judaísmo, e es-
blia, as dos Num. V, XXI; Êxodo pecialmente, inferior à civiliza-
XXI, 4; Deut. V, 21; Ecles. VII; ção greco-romana.
etc., etc. Isto sem contar os in- Comecemos pelas religiões
140
orientais. buído mais tarde a Jesus, o pre-
Confúcio, 500 anos antes, pre- ceito da caridade positiva, isto é,
gava já o preceito de não fazer o de fazer ao próximo o que de-
aos outros o que não queremos sejaríamos que nos fizessem; e
que nos façam. ao passo que o cristianismo de-
via pregar depois, o dogma iní-
Mêncio, outro filósofo chinês,
quo da eternidade das penas, a
repetia o mesmo preceito 300
religião persa, pelo contrário, ad-
anos antes de Cristo.
mitia que os malvados, depois
O brahmanismo hindu prega- de certo período de expiação, se-
va também a mesma máxima. riam purificados e reabilitados,
Buda repete o mesmo conceito e desfrutando também a bem
sublima a moral até fazer dela aventurança dos bons. Ainda
uma caridade universal, que mais: enquanto o Cristo dos
abarca toda a Natureza e não Evangelhos condena o trabalho e
apenas a Humanidade. reserva a felicidade suprema
A moral budista é imensamen- para a mendicidade miserável,
te superior à cristã, porque o Zoroastro santifica o trabalho,
amor do próximo pregado por especialmente o dos campos,
esta não ultrapassa os confins do enaltecendo-o e dando-lhe muito
país nem as valas da seita. mais mérito do que aos rogos e
A moral budista tem ainda ou- orações.
tra vantagem sobre a do preten- A moral dos egípcios conti-
dido Cristo: a de admitir a livre nha, igualmente, além dos pre-
investigação da verdade, ao pas- ceitos de boa moral dos Evange-
so que, nos Evangelhos, em vão lhos, máximas mais elevadas e
se procuraria uma palavra em fa- mais práticas para bem viver. No
vor da ciência. famoso capítulo CXXV do Livro
Na índia, a caridade para com dos Mortos, o morto faz, perante
o próximo florescia e fecundava o tribunal de Osíris, uma dupla
as instituições de hospitalidade e confissão: negativa, de que não
casas de beneficência, cinco sé- fez mal a ninguém, e positiva, de
culos antes do advento do cristi- tudo quanto fez de bom. Não en-
anismo. ganei. Não menti no Tribunal.
Zoroastro, o fundador do maz- Não cometi fraudes contra os
deísmo ou religião persa, tinha homens. Não atormentei as viú-
já pregado o outro preceito, atri- vas. Não exigi aos trabalhado-
141
res mais trabalho do que o que aconselhando a maneira de fazer
podiam fazer. Não promovi ne- as pazes com eles. O Cristo dos
nhum desastre. Não fiz chorar Evangelhos nada forneceu à mo-
ninguém. Não fui preguiçoso. ral das religiões do Oriente: pelo
Não fui negligente. Não me em- contrário, delas tirou tudo, delas
briaguei. Não dei ordens injus- aprendeu tudo, e neste ponto,
tas. Nunca fui indiscreto. Nunca bem teriam andado aqueles que
abri a boca para intrigas. Não copiaram o seu mito, copiando
lancei mão de coisa alguma, em também os bons conceitos da-
prejuízo de outrem. Não matei quelas religiões. A moral do
nunca. Não mandei jamais as- Evangelho porém, reduz-se ape-
sassinar à traição. Não meti nas a uma cópia servil do Antigo
medo a ninguém. Não disso mal Testamento...
de ninguém. Não deixei que a A afirmação parecerá estranha
inveja roesse o meu coração. aos crentes, dada a mistificação
Não levantei falsos testemunhos. de vinte séculos que o cristianis-
Não tirei o leite da boca dos que mo arraigou nas mentes, mas a
mamavam. Não provoquei abor- verdade é que nem sequer tem o
tos. mérito da novidade.
E na segunda: Há muitos anos já que se pro-
Fiz aos Deuses as oferendas vou que o Evangelho era a re-
que lhes eram devidas. Reconci- produção da parte boa - e nem
liei-me amorosamente com a di- sempre - do Antigo Testamento.
vindade. Dei de comer ao famin- Salvador, Rodriguez, Dukes e
to, de beber ao sedento,vesti o Cohen demonstraram por forma
nu e dei barca ao que não podia que não admite réplica, que toda
continuar viagem. a pregação moral de Cristo, sem
Daqui se vê, pois, que no Egi- excluir o famoso Sermão da
to, muitos e muitos séculos antes Montanha se formou, palavra
do cristianismo, se pregava uma por palavra, com as citações do
moral caritativa e misericordio- Antigo Testamento.
sa, e não só isso, mas também a O preceito amarás ao próximo
justiça. como a ti mesmo, que caracteri-
Pitágoras, que sob muitos as- zou a doutrina moral e social de
pectos, pertence à civilização Cristo, achava-se já no Levítico
oriental, ensinara muito antes de (XIX, 18).
Cristo, a perdoar aos inimigos,
142
E o melhor é que os próprios Salmos tinham já preconizado
Evangelhos, pondo esse preceito uma religião menos formalista e
na boca de Jesus, indicam a sua menos hipócrita no que respeita-
procedência, que seja dito de va às práticas exteriores do cul-
passagem, devia ter já há séculos to: mais espiritual, numa pala-
aberto os olhos à Humanidade, vra.
se não o impedissem a escravi- Os ataques contra os potenta-
dão do pensamento e o precon- dos da terra e a defesa dos fra-
ceito teológico. cos, encontram-se em Isaías, Je-
O preceito que proíbe pagar o remias, Amós e Sofonias.
mal com o mal, encontra-se nos A pureza do pensamento e o
Provérbios (XX, 22; XXIV, 29). amor especial para com os po-
O preceito não faças aos ou- bres e os oprimidos, veem-se,
tros o que não queres que te fa- em termos comoventes, no livro
çam, lê-se já no livro de Tobias de Job.
(IV, 16). As bases da igualdade foram
Os profetas Jeremias e Eze- lançadas, em termos mais positi-
quiel tinham já condenado a par- vos que os do Evangelho, por Fí-
te do Antigo Testamento que lon, o hebreu alexandrino, filó-
castiga os filhos pelos pais, es- sofo e teólogo, racionalista e
tendendo o amor do próximo místico ao mesmo tempo.
mais além do que os confins da Os que, diz ele, exaltam a no-
Judeia. Nisto, é o cristianismo breza como sendo um grande
inferior ao judaísmo, pois, como bem, merecem ser duramente re-
já provamos, Cristo foi naciona- primidos. A verdadeira distinção
lista e não eximiu os filhos das não pertence senão aos homens
culpas dos pais. de inteligência e de justiça, ain-
Sábios hebreus, mais moder- da que sejam filhos do escravo,
nos ainda, como Antígono de nascido em nossa casa ou com-
Soco, Jesus filho de Sirach e prado com o nosso dinheiro
Hillet, tinham já aconselhado, (Tratado da nobreza). Porque és
antes do cristianismo, o perdão tão orgulhoso e te julgas superi-
das ofensas e a doçura de cará- or aos outros? Não são todos os
ter. Tinham também condenado teus parentes feitos do mesmo
a vingança. modo e não pertencem à mesma
Oséas, Isaías, Jeremias e os terra? Não bastaria a vida de
um homem para narrar os bene-
143
fícios da igualdade. Esta é a do medo do outro mundo243, e
fonte dos maiores bens que po- sobretudo, da preocupação na
dem existir: a boa vontade e a crença do fim próximo do mun-
amizade entre os homens. No do, fazendo desta sentença toda
Universo produz a unidade; na a sua moral: A vida não é mais
cidade a democracia bem regu- do que uma preparação para a
lada; no corpo a saúde; na alma morte.
a honestidade e a virtude (De A civilização greco-romana,
victim. Offer.; de creat. principi- que depois foi em parte assimila-
is). da pelos padres e doutores do
No que se refere ao desprezo cristianismo teve uma moral ela-
pelas riquezas, ao bem estar so- borada pelos seus sábios, pelos
cial e ao celibato, também o cris- seus literatos e filósofos, ao lado
tianismo é inferior ao judaísmo. da qual a cristã fica ofuscada.
Mais ainda: essa mesma inferio- A demonstração disso já a fi-
ridade não lhe pertence. zeram Denis (Histoire des theo-
Nem mesmo as virtudes nega- ries et des idées morales dans l
tivas são originais nos Evange- ´antiquitè) e Havet (obra citada):
lhos, pois provêm dos essênios. não faremos, por isso, senão re-
Outros pretendem que vêm dos cordar algumas das máximas
Terapeutas, não importa. O que é mais salientes daquela época de
positivo aqui é esta parte da mo- ouro do pensamento humano.
ral cristã ter já existido antes do Na Odisseia vemos a divinda-
cristianismo,. de protegendo o fraco e o des-
A parte boa do essenismo re- graçado; o pobre e o infeliz são
lativa ao cultivo da terra e à abo- recomendados ao respeito e à pi-
lição da escravatura não foi imi- edade do próximo, ainda que se-
tada por Jesus nos Evangelhos, jam culpados. Hiparco, filho de
pois condena o primeiro e passa Pisistrato, manda gravar pelos
em silêncio a segunda. caminhos públicos: Caminha na
Os essênios hebreus tiveram senda da justiça; não enganes o
outra superioridade sobre a mo- amigo.
ral evangélica: a de ser a sua
243
moral puramente humana, como Neste ponto, ainda o politeísmo gre-
a dos estoicos, enquanto que a co-romano é superior ao cristianismo.
Comparem-se os poemas de Homero e
parte boa da evangélica era tira- Virgílio com o tenebroso poema de
do do ascetismo, do misticismo, Dante.
144
No teatro de Atenas havia má- go.
ximas que sobrepujavam, em Xenofonte fala em favor dos
muito, as melhores do Evange- escravos, das mulheres e dos pri-
lho. sioneiros de guerra, da exaltação
E Sócrates? Havemos de falar dos humildes e da humilhação
dele? Apenas para inverter as pa- dos exaltados, etc.
lavras de Rousseau, segundo as Hisócrates promete, como os
quais se a vida e morte de Sócra- cristãos, aos que praticam a pie-
tes são de um sábio, a vida e dade e a justiça, não só a paz
morte de Cristo são de um Deus. nesta vida, mas esperanças me-
Sócrates não tremeu nem chorou lhores na outra.
diante da morte!
Em Platão, encontramos todo
Grande era a liberdade conce- um sistema de máximas cristãs.
dida aos escravos em Atenas, Condena o suicídio e a voluptuo-
onde eram tratados com doçura e sidade; recomenda a humildade,
humanidade244. a castidade, o pudor; detesta a ri-
A filantropia e a anistia são queza: Ser bom e rico ao mesmo
palavras que vieram de Atenas; a tempo, é impossível. Proíbe a
sociabilidade era ali viva e inten- vingança e proclama o desprezo
sa e a civilização ateniense, dos sentidos, ao passo que exalta
cheia de humanidade, de equida- a alma etc. Não está aqui, por
de, de costumes aprazíveis, de ventura, toda a moral cristã?
razão e de ciência, de letras e ar- Em Platão se encontra, final-
tes, era um verdadeiro foco de mente, o Pater Noster atribuído a
luz que iluminava o mundo anti- Cristo.
244
Diz-se geralmente que o cristianismo Aristóteles, espírito mais posi-
aboliu a escravatura. Nada menos ver- tivo, confunde a virtude com a
dadeiro. Para os que assim pensam ve- justiça e chega a dizer que a co-
jam a Bíblia Exod. XXI, 21, 24 e 27 Le- munidade repousa mais no amor
vit. XXV, 44 e 45 Proverb. XXIX; Ec-
cles. XXXIII, 28; XLIII,5. - S. Paulo,
do que na justiça, e enfim, ante-
epist. aos Epes. VI, 5,9 Fim. VI. 1,2. Os cipando-se a Dante, que a justiça
padres da igreja, S. Inácio, S. Isidoro, suprema é o amor. Recomenda
João, S. Crisóstomo, S. Agostinho, Bos- que se não exponham ao público
suet e Bouvier santificaram a escravidão imagens indecentes, em respeito
e a Igreja praticou-a e serviu-se dela. Os
últimos partidários da escravatura foram às crenças, e quanto a certos
os maçons católicos. E a sua abolição deuses obscenos, quer que só os
deve-se à obra do livre pensamento.
145
padres os adorem. para obter um prêmio na outra
É certo que admite a escrava- vida. Além disso, enquanto os
tura; mas se esta fraqueza é im- estoicos amavam a liberdade po-
putada ao filósofo, do homem lítica, os cristãos não se preocu-
sabe-se que deixou em testamen- pavam com ela.
to, a liberdade aos seus escravos. Aqui, evidentemente, os cris-
Ensinou também que a comu- tãos copiaram a parte pior do
nidade tem obrigação do instruir epicurismo, que ensinava a indi-
todos os seus filhos, e a este res- ferença para com a vida pública.
peito, o espírito positivo da mo- Mas Epicuro tinha também
ral aristotélica sobreleva em ensinado que o escravo é um
muito o espírito nulo e decaden- amigo de condição inferior, e re-
te da moral evangélica. comendava que não se lhe tocas-
Nem sequer o cinismo é estra- se.
nho à formação da moral cristã. A propósito da podridão que
Diógenes, que foi um ateu mo- assolava a sociedade antiga, e
derno em toda a acepção da pa- aos pretextos dos cristãos em
lavra condenou o matrimônio, a atribuir ao cristianismo, contra
família e a pátria, como depois todas as evidências, o mérito de
vieram a fazer os monges cris- tê-la erradicado, Ernest Havet
tãos. escreveu uma página maravilho-
Grande parte da moral cristã sa que, ao contrário do nosso
deve-se ao estoicismo, para o hábito, reproduzimos na língua
qual não ha mais que um bem, a original para que não se perca a
virtude, nem mais que um mal, o sua veemência.
pecado. Devemos especialmente C'est oublier bien facilement -
aos estoicos a concepção da fra- escreve ele então no prefácio de
ternidade humana universal, que sua obra imortal - que le monde
ultrapassa as fronteiras de cada d’après le Christ a conservé
pátria em nome da universalida- longtemps les mêmes misères;
de da raça, do Logos e do Verbo. que l’empire byzantin a au
Eis aqui a essência do cristia- moins égalé l'autre en scandales
nismo, mas com uma diferença: et en horreurs; que même sous
é que este não procura a perfei- la chrétienté moderne, la Rome
ção da alma pela própria virtude, des papes a été quelquefois aus-
mas unicamente para salvá-la, si impure et aussi sanglante que
celle des Césars; que la torture
146
a duré jusqu'à la Révolution coup”245.
française, et que l'esclavage O grego Gelon, na Sicília, tra-
dure encore. Car il n'y a pas de tando com os cartagineses, de-
plus grand exemple des illusions terminara que estes não imolas-
que peuvent se faire les sem mais vítimas humanas aos
croyants, que leur obstination à seus deuses.
faire honneur au christianisme
245
et à l'église de l'abolition de “É fácil esquecer que o mundo de-
pois de Cristo conservou durante muito
l'esclavage; quand il est certain tempo as mesmas misérias. Que o Impé-
que l'esclavage antique a subsis- rio Bizantino era, no mínimo, igual aos
té dans l'empire chrétien comme outros em escândalos e horrores. Que,
dans l'empire païen, qu'il a duré mesmo na cristandade moderna, a Roma
assez avant dans le moyen âge, dos papas foi tão impura e sangrenta
como a Roma dos Cesares. Que a tortu-
que le servage existait encore en ra durou até a Revolução Francesa, e
France à la veille de la Révolu- que a escravidão ainda existe. Porque
tion; que l'esclavage des noirs não há maior exemplo de ilusão possí-
s'est établi sous le règne de vel do que a determinação dos crentes
em atribuir ao cristianismo e à Igreja
l'Église, qu'il persiste encore au-
Católica a abolição da escravatura,
jourd'hui dans deux États, et que quando é certo que a escravidão antiga
ces États sont catholiques; qu'il sobreviveu no império cristão tal qual
n'a commencé à tomber que de- no império pagão, e que, subsistindo
puis le dix-huitième siècle, c'est- ainda na Idade Média, a servidão sobre-
vive na França até às vésperas da Revo-
à-dire depuis que les Églises lução. Que a escravidão negra foi criada
menacent ruine; et qu'à l'heure durante o reinado da Igreja e ainda per-
qu'il est, la Papauté, qui siste em dois estados, e que estes Esta-
condamne si facilement et si im- dos são católicos. Que ela só começou a
diminuir depois do século XVIII, o que
prudemment tant de choses, n'a
significa dizer, depois que a Igreja Cató-
pu encore se résoudre à le lica passou a perder força e começou a
condamner. L'Église a régné ruir. E que até o presente momento o
dix-huit cent ans, et l'esclavage, Papado, que condena tão facilmente e
la torture, l'éducation par les tão descuidadamente tantas coisas, ain-
da não teve a dignidade de a condenar.
coups, bien d'autres injustices O cristianismo tem reinado por mil e oi-
encore ont continué tout ce tocentos anos, e a tortura, a escravidão,
temps, de l'aveu de l'Église et a catequese forçada e muitas outras in-
dans l'Église; la philosophie justiças vigoraram durante todo esse
tempo por obra da Igreja e na Igreja. A
libre n'a régné qu'un jour, à la filosofia livre não reinou mais que um
fin du XVIII e siècle, et elle a dia, no final do século XVIII, e quase
tout emporté presque d'un seul levou tudo de um só golpe”.
147
Em Cícero, encontramos um O vitæ tuta facultas
verdadeiro sacerdote cristão. Pauperis, angustique lares, o
Muitas das suas sentenças, à munera nondum
parte da tão citada Charitas ge- Intellecta Deum!
neres humani, podiam ser reco-
A moral de Sêneca é por tudo
lhidas pelos livros cristãos para
e sobretudo cristã a ponto dele
edificação religiosa.
recomendar que sejamos
Basta recordar a importante superior às paixões, insensíveis à
carta de Santo Agostinho, na dor e ao prazer, e indulgente
qual este santo recomenda a lei- quanto à punição; Aconselha a
tura de Cícero, pela sua moral generosidade e a bondade para
pura, declarando que a da Igreja com os escravos e chega até a
não é diversa daquela. dizer que todos os homens são
Virgílio dizia: maxima debe- iguais. Fala do céu como os cris-
tur puero reverencia246. Lucrécio tãos e diz que todos somos filhos
ensinava que o fraco deve en- do mesmo pai. A sua pátria é a
contrar apoio em todos. mesma dos Cristãos: o mundo
Horácio mostra-se cheio de todo 247.
sentimentos viris e delicados, ao Mas a sua moral era superior
mesmo tempo. A dignidade hu- em muitos pontos à do cristianis-
mana, sobretudo, domina o seu mo, porque ele quer que o fim da
coração. nossa vida seja a felicidade de
A moral de Valério Máximo é todos, ao passo que o altruísmo
já de todo cristã: tem um livro cristão se limita aos eleitos sen-
sobre a continência, um sobre a do por isso discriminatório e tem
pobreza, um sobre a paciência e por fim o prêmio do céu, masca-
outro sobre a castidade. rando um egoísmo. Sêneca quer
suprimir a pena de morte, en-
A exaltação da pobreza prece-
quanto que o cristianismo a con-
deu o cristianismo na própria
serva. Finalmente, prega a to-
Roma, sendo a sua grandeza ob-
lerância até para com os culpa-
jeto da saeva paupertas, de Ho-
dos, que diz ele, em lugar de se-
rácio. Opes irritamenta malo-
rem perseguidos, devem ser con-
rum, pensava Ovídio.
E Lucano cantava: 247
Entendamo-nos. Foi só o cristianis-
mo de Paulo que tirou a pátria ao cris-
246
Deve-se à crença a máxima reverên- tão. Cristo, esse era um acérrimo judeu
cia. nacionalista.
148
vertidos248. visto já existir antes dele e sem
Não falamos já na admirável ele. Pelo contrário, o advento do
filosofia de Epiteto e de Marco cristianismo é até um princípio
Aurélio, tão cheias de caridade e de decadência, sobretudo moral,
fraternidade. Observa-se, geral- decadência que explicaremos
mente, como diz Havet, que os melhor, quando tratarmos da for-
filósofos do mundo greco- roma- mação psicológica do cristianis-
no foram mestres de moral, e mo.
consoladores, como deviam ser Apresentaremos agora, para
depois os sacerdotes cristãos, mostrar a completa inferioridade
com a diferença que aqueles não do cristianismo em face ao poli-
estavam constituídos em casta teísmo e ao judaísmo, o seu espí-
privilegiada, nem impunham o rito anticientífico e dogmático
seu dogma pela força. que, agregando o imobilismo aos
É tempo de concluir. Vimos erros de então, sufocou a liber-
que a moral cristã se formou in- dade de pensamento, fonte de
dependentemente do pretendido todo o progresso intelectual e
Cristo e que já existia, no que moral.
tem de bom, antes do cristianis- Na verdade, colocando a Bí-
mo. Isto é consolador para a Hu- blia, com a sua cosmologia erra-
manidade, pois demonstra que a da e pueril, e seus muitos erros
moral humana não é monopólio científicos como uma emanação
de uma seita, mas obra da mes- da verdade divina, não é de es-
ma Humanidade. E daqui pode tranhar que se repute infalível
concluir-se que ela é tão antiga tudo o quanto nela é dito, mes-
quanto a Humanidade racional. mo no domínio científico, por-
Por conseguinte, não só não é que Deus não pode errar e por-
precisa a presença de um Cristo tanto, a ciência não poderia
para explicar esta moral, mas até avançar para além das Colunas
a preexistência desta moral con- de Hércules da Bíblia.
tribui para excluir o Cristo. A liberdade de pensamento foi
Porque, em todo o caso, o que banida para plagas longinquas
fica claro é que a pretendida mo- porque é inadmissível o debate
ral cristã não foi inventada nem de ideias numa igreja que se ar-
revelada pelo suposto Cristo, vora depositária da verdade divi-
na absoluta, preocupada apenas
248
De ira, livr. I, cap. XIV.
com o zelo religioso.
149
Sabe-se quão funestos foram ainda que o Talmude reconheça
os efeitos que daí derivaram. a liberdade de opinião e de inter-
Citamos como exemplo, a pretações heterodoxas.
perseguição a Galileu, quando a Com tais princípios, o cristia-
mesma descoberta já havia sido nismo foi fatal para o progresso
anunciada na Grécia por Hiceta da , ao qual a liberdade de pen-
e Aristarco de Samos, (conforme samento é tão necessária quanto
Theophrastus) sem que eles ti- o oxigênio para os pulmões.
vessem sofrido qualquer tipo de Mas ainda mais fatal para o
constrangimento progresso e a ciência, foi o cris-
A grandeza principal da Gré- tianismo por seu ascetismo e seu
cia é devida à liberdade de pen- distanciamento deste mundo,
samento e de palavra que ali se que o fez negligenciar todas as
desfrutava, liberdade que foi a artes e estudos para melhorar a
causa do rico florescimento do vida presente, considerada como
gênio, teorias e sistemas, e por uma mera peregrinação para
isso foi tão produtiva. uma outra vida, verdadeira, eter-
Quando o cristianismo surgiu, na, a única importante para os
o mundo greco-romano já tinha alucinados crentes no além.
proclamado, especialmente pela Gaetano Negri sintetizou ad-
boca de Lucrécio, a inflexibili- miravelmente o imobilismo da
dade das leis naturais, e mesmo Igreja Católica com estas pala-
Hipócrates, quatro séculos e vras:
meio antes do tempo assinalado O cristianismo tomou, de um
para Cristo, já mostrava as cau- lado, o antropomorfismo da di-
sas naturais de fenômenos atri- vindade hebraica e o conceito
buídos à obsessão; de criação e de governo do uni-
Assim, o cristianismo repre- verso que encontrara nos textos
sentou um inegável retrocesso sagrados de Israel, e de outro, o
sobre os princípio científicos espiritualismo helênico, originá-
que já tinham sido reconhecidos rio da escola de Alexandria.
pelos pensadores gregos. Fundiu tudo, por obra do Concí-
No campo do conhecimento, o lio, num vasto sistema teológico
cristianismo infelizmente seguiu baseado inteiramente em entida-
o judaísmo do Eclesiastes, que des metafísicas, para em segui-
condena abertamente a ciência, da dizer: esta é a verdade, quem
duvidar será amaldiçoado e per-
150
seguido. Impôs à raça humana, invasões e posteriormente sufo-
como verdade absoluta, o que cada por completo, disseminou
não era nada senão um produto por toda extensão do mundo a
mutável e passageiro de um mo- mais intensa barbárie. O cristia-
mento da evolução intelectual. nismo quis e soube como imobi-
Pôs a ferros o pensamento e lizar a humanidade por muitos
condenou-o a viver por séculos séculos. (Negri G., A Crise Reli-
e séculos na falsidade. A antiga giosa, p. 64, Milão, Dumolard,
civilização, decadente desde as 1878).

151
CAPÍTULO II
A DOUTRINA CRISTÃ SEM CRISTO

Depois de concluirmos que a pédia (430 - 355aC): Disse Ciro


mitologia judaico-romana e o ao morrer: Eu nunca pude per-
mito de Cristo eram anteriores suadir-me de que a alma, que
ao cristianismo e ao judaísmo, vive enquanto está num corpo
provaremos em seguida que nem mortal se extinga desde que sai
sequer a doutrina cristã é origi- dele e que perca a faculdade de
nal, formando-se primeiro e fora raciocinar, abandonando o que
do pretendido Cristo. Veremos é incapaz de raciocínio.
pois de que modo se formou Outros povos, como o egíp-
aquela concepção metafísica e cio, o indiano, o escandinavo e o
teológica de Cristo, que obscure- gaulês, acreditavam já na imor-
ceu por tantos séculos a sua ori- talidade da alma. Os hebreus não
gem mitológica. adotaram esta crença senão de-
Três pontos, principalmente - pois que se desenvolveu o co-
e podemos até dizer unicamente mércio e relações que tiveram no
- nos restam ainda a analisar, desterro com as nações situadas
para completar os dogmas capi- além do Eufrates.
tais da doutrina cristã: a imorta- O dogma da ressurreição dos
lidade da alma, a ressurreição e corpos é um dos principais do
dogma do Verbo. Zend-Avesta, e segundo Zoroas-
O dogma da imortalidade da tro, o fim do mundo devia prece-
alma encontra-se na religião per- der aquele grande acontecimento
sa, tal como foi adaptado à reli- que seria anunciado pelos profe-
gião cristã. Os sequazes de Zo- tas Ascedermani e Ascedermat e
roastro (1700 a 1000 aC) acredi- realizado pelo Messias persa.
tavam que a alma se formava Os dois primeiros substituí-
pura e imortal com o livre arbí- ram-nos os judeus por Enoch e
trio e que devia ser recompensa- Elias e o terceiro pelo seu Mes-
da ou castigada, segundo os seus sias.
méritos ou deméritos. O dogma
A doutrina dos Evangelhos era
da imortalidade da alma era já
já, por conseguinte, um fato con-
conhecido dos persas, antes mes-
sumado antes do pretendido
mo de Zoroastro, segundo se vê
Cristo.
pelas seguintes palavras da Ciro-
152
E quanto à doutrina do Verbo, giões orientais nem para o mes-
encontramo-la no Egito, onde o mo politeísmo greco-romano,
Deus supremo gera Kneph, a pa- pois que, se tinham um grande
lavra semelhante a seu pai; e da numero de divindades inferiores,
união do Verbo com o seu divino rapidamente copiadas pelo cristi-
autor, nasce o Deus do fogo e da anismo, nos seus anjos e santos -
vida Fta, que vivifica todos os tinham a sua Trindade e os seus
seres. Porfírio cita um oráculo deuses redentores, como já vi-
de Serápis assim concebido: mos, e sobretudo, tinham um
Deus é antes, depois e ao mes- Deus supremo, que em nada era
mo tempo, o Verbo e o Espírito inferior ao que logo foi o Deus
com um e outro. Pai dos cristãos.
Isto prova que os elementos No mundo romano, o próprio
da doutrina cristã preexistiam Cantu admite (Hist. Univ. cap.
muito tempo antes daquele mo- VI) que o politeísmo se restrin-
vimento que lhes deu nova orga- gira quase à crença num Deus
nização, novo nome e nova for- único, a Júpiter e Apolo, sendo
ma. este, apenas um mediador entre
Para sermos mais completos, Deus e os homens, a fim de por
rebuscaremos as origens no pró- intermédio dos oráculos, revelar
prio judaísmo e helenismo 249. a sua vontade, e como salvador
Neles encontraremos ainda mais da Humanidade, que encarnou e
do que o que procuramos. viveu escravo na terra, submeti-
do aos padecimentos para expia-
Tem-se dito que o cristianis-
ção do gênero humano.
mo, apoiado no judaísmo, intro-
duzira, ele só e primeiro que Máximo de Tiro assegurava
tudo, a unidade de Deus. Nada que, fosse qual fosse a forma, to-
mais falho de provas. O judaís- dos os povos acreditavam num
mo conhece outros deuses. só Deus, pai de todas as coisas.
O mesmo dizia Prudêncio o
Além disso, ainda mesmo que
povo tinha sempre na boca as
Jeová fosse o único deus dos he-
expressões - Deus o sabe, Deus
breus, o cristianismo ajunta a
o abençoe, se Deus quiser. Os
Trindade, que decerto não era
próprios oráculos falavam de
uma novidade, nem para as reli-
Deus no singular.
249
Veja-se a tal respeito Salvador, obr. Eusébio, Agostinho, Lactân-
cit. Havet, obr. cit. e M. Nicolas - Dou-
trinas religiosas dos Judeus.
cio, Justino, Atenágoras e outros
153
apologistas do cristianismo, re- Porém, os elementos metafísi-
conheciam também que a unida- cos da doutrina cristã procedem
de de Deus era admitida pelos da filosofia grega, especialmente
antigos filósofos e formava a de Platão. Deste deriva igual-
base da religião de Orfeu e de mente a doutrina metafísica do
todos os mistérios gregos. Verbo, tendo-o Platão, por sua
Além disso, sabe-se que o que vez, tirado do Egito250.
produziu o êxito do Deus hebrai- Platão foi o verdadeiro propa-
co, fazendo-o comum a todos os gandista, - não dizemos criador
cultos, foi um puro acidente de porque a procedência é toda do
tradução, tendo a versão grega místico Oriente - da metafísica
da Bíblia substituído o nome de cristã. Foi ele que popularizou a
Deus hebraico pelo de Senhor Trindade e o Logos, que propa-
(em latim Dominus), que era o gou a distinção entre a alma e o
nome dado á divindade suprema corpo, subordinando este àquela,
(o Sol) por todos os cultos, na- que fez desta terra um deserto,
quela época de evolução religio- que reduziu, em suma, a sistema
sa em que nasceu e se propagou filosófico a decadência moral,
o cristianismo. que faz dos sentidos uma prisão
O amor de Deus não é inven- e do mundo um mal, fazendo
ção cristã encontra-se já no Anti- consistir a felicidade nos delírios
go Testamento, para não falar metafísicos. Também a into-
dos gregos, como atesta Planto, lerância religiosa, tirou-a o cris-
nem dos essênios, como observa tianismo das escolas místicas e
Fílon. E a invenção do Pai Ce- espiritualistas da Grécia.
leste, que se pretende achar em Cicero e Sêneca, no mundo
Jesus, pertence também ao Anti- romano, escrevem como perfei-
go Testamento, especialmente tos padres da Igreja. Tanto que o
em Isaías (LXIII, 15). primeiro converteu e inspirou S.
São de Ezequiel as palavras Agostinho na teologia, e o se-
em que Deus declara não querer gundo foi suspeito de haver tido
a morte do pecador, mas que se relações filosóficas com algum
converta e viva (XVIII, 23; XX- dos apóstolos. Seria supérfluo
XIII,11). O versículo de Paulo repetir aqui a demonstração, que
(Gal. III, 11 e seg.) segundo o
250
qual o justo viverá da fé, encon- Convém recordar que já antes de Pla-
tão, Heráclito falara do Verbo, do mes-
tra-se já em Habacuc (II, 4). mo modo por que o faz o Evangelho.
154
já é do domínio da filosofia e se Com os judeus alexandrinos
conta entre as verdades experi- cristaliza o Oriente o espiritua-
mentais adquiridas. lismo helênico de Platão e o ju-
De todo o modo, a Idade Mé- daísmo, criando não só a doutri-
dia, sinônimo de cristianismo, na cristã mas o mesmo Cristo,
oferece-nos dela uma prova ple- ou antes, o Cristo metafísico,
na, porque nos conservou as com o nome de Verbo. E de toda
obras daqueles autores, graças à a sua doutrina, só faremos refe-
afeição que por eles teve, exce- rência à parte relativa ao mesmo
tuando o Hortêncio, de Cícero, Verbo, única que importa a nossa
provavelmente suprimido para tese, acrescentando ainda aquele
evitar aos cristãos uma desairosa famoso ponto de intersecção ide-
situação, pois que com ele se po- ológica, de que nasceu a doutri-
deria provar que o cristianismo na do Verbo que se faz carne,
foi anterior a Cristo251. também sem que ainda existisse
o nome de Cristo.
Poremos também de lado as
provas que poderíamos tirar da Importa recordar aqui a seita
cultura helênica, em demonstra- dos terapeutas do Egito, que
ção de que o cristianismo, ao eram os israelitas descontentes
menos na sua parte filosófica, ou das práticas religiosas públicas
antes metafísica, procede da len- do seu povo, os quais tinham
ta elaboração dos materiais da- abandonado o culto nacional do
quela cultura, pois temos pressa templo e do sacrifício, retirando-
de chegar à parte culminante da se à vida contemplativa, longe
demonstração da nossa tese, que do comércio dos homens: que
é a filosofia dos judeus alexan- estabeleceram a comunidade de
drinos, os verdadeiros artífices bens, tendo o matrimônio como
do dogma cristão252. um impedimento, querendo li-
251
bertar a alma da tirania do corpo,
Havet prova que o cristianismo exis- obediente a uma severa discipli-
tia todo, pelo menos em gérmen, no he-
lenismo. Só lhe faltava a exaltação dos na, abolindo os prazeres dos sen-
humildes e infelizes, que foi buscar, tidos, aconselhando a caridade, a
como vimos, ao judaísmo profético.
252
Segundo Havet, as principais pala- na de ser notada, porque as palavras são
vras da doutrina cristã são de origem o símbolo da ideia, e por sua vez, influ-
grega: dogma, mistério, símbolo, cate- em sobre as ideias e estas sobre os cos-
cismo, presbítero, bispo, diácono, mon- tumes, sobre as religiões e sobre os
ge, teologia, invisível, criatura, corruptí- acontecimentos e porque em todo o caso
vel, afeição, etc. Esta observação é dig- provam a verdadeira origem das ideias.
155
beneficência e as preces em co- muito que pensar.
mum, condenando o juramento, Para os essênios e terapeutas
exaltando a pobreza e o celibato, praticarem toda a moral e doutri-
praticando a abstinência, etc. na cristã, só lhes faltava a doutri-
Eram semelhantes aos essênios na da encarnação do Verbo. Foi
da Palestina, outra seita análoga, esta a obra dos hebreus alexan-
mas não idêntica, pois esta ad- drinos.
mitia o trabalho na agricultura e
Os principais autores hebreus
nos diversos ofícios.
alexandrinos, de que nos ocupa-
Importa igualmente recordar remos neste lugar são Aristóbu-
aqui a opinião de Eusébio, se- lo253 e Fílon, principalmente Fí-
gundo a qual os terapeutas, de lon, aquele Fílon que deixamos
que falava Fílon, como se fos- noutro ponto do nosso trabalho,
sem há muito uma seita cristã, quando explicava, em alegoria o
eram os cristãos: opinião esta Antigo Testamento.
que demonstra, com uma evi-
Este Fílon, a quem Havet cha-
dência incontestável, que o cris-
ma o primeiro dos padres da
tianismo existia já antes do pre-
Igreja, nós o consideramos como
tendido Cristo.
o verdadeiro fundador do cristia-
É certo que a critica impugna nismo, o criador do Verbo, o cri-
a afirmação de Eusébio. Mas ador de Cristo, apesar de nunca
com que fundamento? Que razão ter falado em Cristo, e precisa-
ficará que justifique a objeção mente, por isso mesmo...
feita pela crítica à afirmação de
Fílon discorre acerca do Ver-
Eusébio, se suprimirmos a fonte
bo, não no sentido de Salomão
suspeita da Bíblia? A opinião de
ou do Livro da Sabedoria, não à
Eusébio é fundamentada em fa-
maneira de Heráclito, de Zenon
tos, e segundo eles, os terapeu-
e de Platão, mas sob o influxo da
tas eram já em ação, verdadeiros
mitologia egípcia, de tal modo
cristãos.
que devia servir, depois, de base
E tanto assim é, que o próprio ao cristianismo, não faltando se-
Strauss, um dos que combatem a não o nome de Cristo e a aplica-
opinião de Eusébio, se vê obri-
gado a confessar que a seme- 253
Que foi o primeiro hebreu alexandri-
lhança e o parentesco dos essêni- no que tentou a fusão do hebraísmo com
os e terapeutas com o cristianis- o helenismo. Vid. Vacherot, His. crit. da
escola de Alexandria. Introdução, libr.
mo primitivo, tem dado sempre II..
156
ção do antropomorfismo dos Fílon porém, dá o Verbo feito
Deuses Redentores orientais ao humano. Segundo ele, Deus é
seu Verbo, para completar a fu- inefável e inacessível à inteli-
são do Oriente (espécie egípcia) gência humana que, mesmo aju-
com a Judeia e a Grécia, e a dada pela graça divina não che-
transformação de tantos materi- garia até ele, se Deus não des-
ais, tantas vezes fundidos numa cesse até ela e se não se lhe reve-
nova religião254. lasse. Nesta revelação, Deus não
Já Salomão tinha distinguido se mostra aos homens na sua fi-
a sabedoria divina de Deus, fa- gura invisível, mas mostra a sua
zendo dela o instrumento da cri- imagem, o Verbo. Este Verbo,
ação. Por isso, o Livro da Sabe- em Fílon, é alguma coisa mais
doria define a natureza deste que em Platão.
princípio intermediário, transfor- Em Filon, dado o principio da
mando o pensamento vago de essência impenetrável de Deus,
Salomão sobre a sabedoria, na que não pode proceder à criação
doutrina do Verbo propriamente do mundo nem comunicar com
dito. os homens criados sem a obra de
No Eclesiastes, de Jesus de um mediador, o Verbo converte-
Sirac, a doutrina do Verbo é ain- se precisamente neste Mediador.
da mais precisa: A sabedoria Para Fílon, o Verbo não é só a
vem de Deus, e com ele esteve palavra, mas a imagem visível, a
sempre. Foi criada antes de to- figura de Deus.
das as coisas, e a voz da inteli- Ele é o ungido por Deus, o
gência existe desde o princípio. tipo ideal da natureza humana, o
O Verbo de Deus, no mais alto Adão celeste. Nesta última deno-
do céu, é a fonte da sabedoria. minação, que devia ser mais tar-
E aqui já nós estamos muito de empregada, no mesmo senti-
perto da linguagem do quarto do, por S. Paulo, crê Vacherot
Evangelho255. que está precisamente contido o
princípio de uma grande doutri-
254
Vacherot, na sua obra a Religião, no-
tando a perfeita identidade da teologia corpo, bem como o dogma da vida futu-
do quarto Evangelho com a do Verbo ra e imortalidade da alma. S. Jerônimo,
platoniano e alexandrino, deduz que não que traduziu do grego o livro da Sabe-
deve duvidar da origem grega do Verbo doria, declara que tal obra não existia
cristão. em hebraico e que os antigos escritores
255
No livro da Sabedoria, está já nitida- a atribuíam ao filosófo hebreu Fílon. É
mente professada a divisão da alma e do uma circunstância bem digna de reparo.
157
na - a da encarnação do Verbo de abandonará à sua fraqueza e
Deus sob a fôrma humana256... impotência.
O mesmo Fílon diz que, se Fílon faz mais ainda: oferece-
Deus criou o homem à sua ima- nos a eucaristia, a ceia, o que,
gem, não é a ele a quem pode em linguagem científica, chama-
comparar-se, mas ao Verbo de mos teofagia. Dá ao Verbo os
Deus. De modo que, observa Va- nomes de pão da vida, de pão
cherot, o Verbo de Fílon é parti- por excelência, indispensável
cularmente o tipo da natureza (aos fieis) para se alimenta-
humana. Com Fílon, pois, o Ver- rem257.
bo de Platão deixa de ser uma Poderíamos continuar o exa-
pura entidade abstrata para se me da doutrina de Fílon, que é
converter em princípio de vida, absolutamente cristã, tanto na te-
para se encarnar. oria do Verbo como na da Trin-
Mais ainda: em Fílon, o Verbo dade e no seu misticismo, de tal
converte-se em filho de Deus, modo que o cristianismo não
que, por sua vez, é pai de todos teve que acrescentar mais do que
os homens, que por isso são fi- palavras, deixando incólume a
lhos do mesmo pai. Porque, se o substância.
Verbo divino é o tipo da Huma- Ao nosso plano, porém, im-
nidade, também o pai o é, e to- porta que nos detenhamos aqui,
dos os homens são seus filhos: porque, buscando a formação da
filhos do Verbo, antes de serem doutrina Cristã antes do preten-
filhos de Deus... dido Cristo e sem ele, alguma
Melhor ainda: segundo Fílon, coisa mais encontramos: a dou-
o Verbo, mediador entre o cria- trina cristã de onde nasceu Cris-
dor e a criação intercede junto to. Não foi, pois, Cristo que cri-
do Eterno pela mísera Humani- ou o cristianismo. Foi o cristia-
dade, e além disso, interpreta as nismo que criou Cristo.
ordens de Deus aos homens... Este Fílon, que fala como
Assegura ao criador que a cria- 257
tura será fiel à lei suprema, fora Hic est panis, cibus quem doclit Deus
animibus ut se pascant. Verbo ipsius at-
da qual não será coisa alguma, que sermone. Nam hic est panis datus
e, por outro lado, assegura à nobis ad viscendum vedelecit verbum
criatura que o criador não a hoc... Audiat igitur anima vocem Dei,
quod um solo pane vivet homo fact us
256
Vacherot, Escola de Alexandria, ad unaginem, sed omni verbo quod pro-
Introd. livro II, Fílon. cedit ore Dei (Philo. Legis, alleg. III).
158
cristão, que funda o cristianismo maneira de Fílon; se acrescentar-
- embora o nome da nova seita mos o fato bem notório de que,
não apareça ainda em suas obras em geral, os primeiros padres da
- e que, além disso não conhece Igreja se não interessaram pela
Cristo, de quem forçosamente humanidade de Cristo, conside-
devia ser contemporâneo, não rando nele apenas o Verbo e o fi-
será, porventura, a mais formosa lho de Deus, estaremos autoriza-
e contundente prova de que Cris- dos a declarar que, mais do que
to nunca existiu? nunca, fica demonstrada inteira-
Numa palavra: se recordarmos mente a nossa tese, e a pedir à
o que escrevemos no princípio ciência que retifique as opiniões
deste trabalho, isto é, que os dis- seculares acerca de Cristo, e que,
cípulos imediatos de Fílon, Cle- de pessoa humana, como foi jul-
mente Alexandrino (depois colo- gado durante mais de quinze sé-
cado no número dos santos!) e culos, o faça voltar ao que foi
Orígenes não falavam de Cristo em suas origens: uma pura enti-
como homem; se recordarmos dade abstrata, uma criação mito-
que o próprio S. Paulo fala de lógica e metafísica da Humani-
Cristo como do Adão celeste, à dade.

159
CAPÍTULO III
O CULTO CRISTÃO SEM CRISTO

Em realidade, este capítulo O sumo sacerdote não pode


não era preciso ao nosso assun- casar-se e é venerado como um
to; mas, para que se veja que o Deus, podendo fazer cessar os
cristianismo não trouxe novida- açoites o as calamidades públi-
de alguma ao mundo e que não é cas.
necessária a presença de Cristo Na religião de Buda, os bon-
para explicar a religião cristã, zos devem ser bem tratados, pro-
lançaremos uma rápida vista às vidos dos respectivos mosteiros
práticas religiosas, às cerimonias e do necessário para viver. Tam-
e à parte exterior ou social das bém estes não se casam. O Da-
religiões que precederam a cris- lai-Lama é o seu papa, isto é, o
tã, as quais nos provam que tam- vigário de Deus e o sucessor de
bém o culto cristão antecedera o Fo, considerado infalível como o
cristianismo, salvo algumas le- católico. No budismo era anti-
ves modificações, de forma, que quíssima a prática de celebrar
a diversidade dos tempos e dos concílios, a fim de condenar e
povos explicam. Escusado é di- evitar os erros infiltrados na reli-
zer que nos limitaremos aos cul- gião, bem como a de enviar mis-
tos antigos que passaram para o sionários a outros países.
cristianismo.
Também o budismo, especial-
A tese, pois, e esta: as práticas mente no Tibete, abundava em
das antigas religiões foram copi- mosteiros, uns para homens, ou-
adas pela cristã. tros para mulheres, sendo nume-
A religião de Brahma coloca a rosíssimos os irmãos258.
casta sacerdotal acima da socie-
258
dade: só ela é que tem conheci- No livro célebre de Andrea Dickson
mento das coisas santas, só ela White, História da luta entre a ciência
e a teologia na cristandade, cap. XX,
pode ler os Vedas, oferecer sacri- vem descrita a missão que em 1839 o
fícios, ensinar a religião e apro- padre Huc, lazarista francês realizou na
priar-se das esmolas depositadas China. Por ela se vê que tudo quanto há
nos templos; as terras dos brah- no cristianismo - cerimonia, ritos, sím-
manes são as únicas isentas de bolos, moral, - tudo ali o encontrou ele,
realizado, prático, perfeito, superior. O
impostos. missionário, a vista disto, ficou confun-
dido, mas logo a sua fé encontrou uma
160
Na religião dos persas aparece não julgassem ter, algum poder
a divisão hierárquica do clero oculto sobre a Natureza, para in-
em várias ordens e a ele pertence teresse das necessidades huma-
a décima parte das rendas dos ci- nas.
dadãos. Os magos persas deviam Pois bem: os brahmanes indi-
ser puros e abster-se de todo o anos tinham o poder de paralisar,
trabalho manual. com maldições e malefícios, a
No Egito, os sacerdotes for- ação insidiosa de Mahadeva, e
mavam a primeira casta da na- possuíam certas plantas e lico-
ção tinham o poder de eleger os res, a que atribuíam virtudes mi-
reis e limitar a sua conduta; os lagrosas.
seus alimentos eram fornecidos As expiações são o alimento
pelas classes inferiores, a quem ordinário das religiões anteriores
arrendavam as terras dos tem- ao cristianismo, de modo que a
plos; só eles tinham o direito de cristã não faz mais do que copi-
instruir e oferecer sacrifícios. ar. As mortificações dos indianos
Nada de novo, pois, debaixo jamais foram excedidas, mesmo
do sol, como diria Salomão, no pelos mais ferozes ascetas da
que se refere ao sacerdócio cris- Idade Média.
tão: tudo estava já em prática Uns arrastam cadeias de ferro
nos povos mais antigos. por toda a vida; outros trazem
Inseparáveis dos sacerdotes sobre as carnes agudos espinhos
são as profecias, os oráculos, os de ferro; estes caminham sobre
sortilégios, os prodígios, os carvões acesos; aqueles passam
exorcismos, porque a sua missão a vida inteira imóveis; um peni-
seria inútil, se não tivessem, ou tente faz em dez anos a peregri-
nação de Benares, medindo com
explicação: que Satanás, antecipando-se
ao cristianismo, revelara ao budismo
o corpo o espaço que o separa...
essa ordem de coisas divinamente cons- E quantos se deixam despedaçar
tituída. A Igreja romana, porém, não debaixo das rodas dos carros que
aceitou tal explicação. O cardeal Anto- conduzem os deuses!
nelli e todas as autoridades da Roma pa-
pal, vendo o perigo que essas revelações No budismo, há certas épocas
traziam em pleno século XIX, proibiram do ano destinadas ao jejum, à
a circulação do livro do padre Huc, mas abstinência de carnes e a muitas
foi debalde, porque, a esse tempo, já ele práticas austeras, entre as quais a
se tinha espalhado em todo o mundo,
em diversas traduções. Padre Huc, nun- de se transportarem aos templos,
ca mais fui enviado a fazer missões. de joelhos.
161
E, como estes, os egípcios, os imolação da vítima que, com o
gregos e os romanos. tempo, foi substituída pela hós-
Os votos são comuns a todas tia259.
as religiões, exceto à de Confú- O sacerdote, antes de fazer a
cio. O voto de castidade, sobre- libação do vinho sagrado, (a pa-
tudo. Encontra-se na Índia, no lavra libação provém de ser o
Egito, na Grécia, em Roma, vinho oferecido a Líber, Baco)
onde o colégio das vestais era lavava as mãos.
um verdadeiro convento as jo- O Lavabo é uma oração anti-
vens romanas, que entravam aos ga, que remonta a Orfeu. As ga-
seis anos, para lá permanecerem lhetas para as libações, uma para
até aos quarenta, faziam voto de deitar a água nas mãos e outra
não deixar extinguir o fogo sa- para o vinho, já existiam tal
grado e de conservar a virginda- como hoje.
de. Se alguma delas violava este
O celebrante, ora ajoelhava,
último compromisso, era sepul-
ora se levantava, erguia as mãos
tada viva e o amante condenado
ao céu, estendia-as sobre a hós-
à morte.
tia, voltava-se para os circuns-
Acerca dos sacrifícios, já vi- tantes, queimava incenso, ofere-
mos como eles se usavam nas cia pão e vinho à divindade, in-
religiões antigas. Os budistas, vocando-a três vezes no Sanctus
por exemplo, oferecem a Deus e no Agnus dei. Por fim, despe-
pão e vinho, que representam o dia os assistentes. Em Roma era
corpo do Agni, e os bonzos, an- com as palavras - ite míssio est -
tes da cerimônia, abençoam o de onde veio, por corrupção, o
povo. ite missa est.
A missa é completamente A elevação do cálice é de ori-
pagã, até nos mais pequenos de- gem ariana.
talhes litúrgicos.
Os persas tinham a sua euca-
O sacerdote, vestido de bran-
co, purificava o templo e os fiéis 259
Pretende-se que a cristianismo aca-
com agua benta. A cerimônia era basse com os sacrifícios sangrentos.
acompanhada de hinos ao Sol e Nada menos verdadeiro. O uso de não
ao Fogo, de onde procedem os imolar homens estava já há muito em
nossos Kyrie-eleison, etc. prática, e até mesmo o de animais já ti-
nha acabado, quando triunfou o cristia-
Em seguida, tinha lugar a nismo. A hóstia de pão era já usada en-
tre egípcios e romanos.
162
ristia, tal como os católicos. confessores empregavam as
Pelo que se refere às orações, mesmíssimas formas dos atuais
o cristianismo está muito longe sacerdotes católicos. A confissão
das religiões que lhe serviram de era também usada pelos persas.
modelo. Os budistas tinham já a Os hábitos ou vestimentas sa-
sua coroa - convertida pelos cris- cerdotais são tirados das antigas
tãos no rosário - de que se servi- religiões, em todos os seus deta-
am colocando os dedos entre os lhes. A sotaina procede dos sa-
grãos e escrevendo num papel o cerdotes de Mitra, bem como a
número dos recitados. estola, onde estavam representa-
Na religião de Zoroastro é dos os signos do zodíaco.
prescrita a oração fervorosa, 0 uso de rapar toda a barba,
com pureza de pensamentos, pa- era próprio dos sacerdotes, desde
lavras e obras. A oração humil- a maior antiguidade, e significa-
de, acompanhada de sincero ar- va um grande sacrifício, pois às
rependimento era considerada barbas se atribuíam certas virtu-
superior a todo o existente. des. O barrete preto, ou tricorne,
O pater, o credo e o confiteor, é igual ao que usavam os sacer-
eram as mais importantes ora- dotes de Júpiter, em Roma.
ções dos persas. O solidéu negro, o báculo, o
Na Grécia, a oração fazia-se anel de ouro, as sandálias, o
pela manhã e à noite, ao nascer e manto branco, a tiara, são cópia
ao pôr do sol. Os fiéis iam para o dos costumes sírios e babilôni-
templo de olhos baixos e ar su- cos.
plicante beijavam o chão e fica- Já falamos das festas da Nati-
vam de joelhos. E na Etrúria era vidade e da Páscoa; acrescenta-
já costume antigo rezar com as remos as mais importantes,
mãos juntas. como são, por exemplo, a come-
Os romanos tinham duas es- moração dos defuntos e a pri-
pécies de orações: as execrações meira comunhão, todas elas an-
que se dirigiam contra os deuses, teriores ao Cristianismo.
por ocasião das calamidades, e As peregrinações eram já pra-
as súplicas, que eram pedidos de ticadas pelos indianos.
graças. As ladainhas são antiquíssi-
A confissão auricular já se mas. Malvert, no livro a que já
praticava no brahmanismo, e os nos referimos, confronta as la-
163
dainhas da Virgem Maria com as Os cânticos e a música eram
das virgens-mães, que a precede- também já usados nas cerimôni-
ram, e vê nelas a origem das as religiosas dos gregos e roma-
próprias palavras da ladainha da nos. O mesmo diremos dos círi-
Virgem. os e das lâmpadas, que se acen-
As procissões remontam diam para honrar a luz, princípio
igualmente à mais remota anti- gerador do Sol e dos astros.
guidade. Ovídio e Apuleyo des- O culto das imagens é antigo
crevem procissões em honra de como o homem. Tem-se dito que
Juno e Diana, em tais termos, o cristianismo foi o primeiro e
que poderiam aplicar-se às de único a aboli-lo.
nossos dias. Plutarco, porém, recorda que
Havia também o costume de os tebanos não representavam
adornar as ruas quando passava Deus sob forma alguma e o pró-
a procissão, figurando nela alta- prio Numa admoestou os roma-
res, incenso, promessas, crianças nos para que não fizessem ima-
vestidas de branco e sacerdotes gens materiais dos deuses.
de cabeça raspada, relíquias sa- Mas até o cristianismo acabou
gradas, etc. por adotar o culto das imagens, e
As preces públicas eram em caso curioso, muitas vezes suce-
Roma a Ambarvalia, e tinham de que as imagens dos deuses
também lugar em maio, através antigos são objeto da devoção
dos campos, pedindo para eles a dos cristãos, com uma simples
proteção divina. No solstício do mudança de nome.
verão, celebrava-se a festa do Das cerimonias que acompa-
Sol, que o cristianismo conver- nham o nascimento, importa re-
teu na de João. cordar a dos indianos, que lava-
Os budistas levavam estandar- vam o menino em água benta,
tes nas procissões, uso que pas- dando-lhe em seguida o nome de
sou para Igreja romana, sem al- um gênio, que se convertia em
teração alguma. seu protetor, menino que ao fim
No budismo, os fieis eram de quatro meses era oferecido ao
chamados à igreja pelo toque de Sol, cortando-lhe os cabelos em
campainhas e no vestíbulo de to- forma de coroa para imitar o dis-
dos os templos gregos havia co daquele astro.
água lustral. Nas dos persas, o mobed (sa-
164
cerdote) batizava a criatura, es- xistiam já nas várias religiões,
premendo- lhe na boca, com al- das quais ela os copiou.
godão, o suco da árvore chama- É certo que nos podem obser-
da hom - cerimônias que passa- var que nos Evangelhos nada se
ram todas para o cristianismo. encontra referente ao culto, mas
Entre os indianos, quando a isto é ainda um fato que depõe a
criança chegava à idade de oito nosso favor, pois não só prova
anos, começava a recitar o hino que quem escreveu os Evange-
ao Sol, e pouco depois, ia à es- lhos se não preocupava com o
cola do Gurom ou diretor espiri- culto, porque evidentemente pra-
tual, que lhe ensinava os Vedas. ticava já um, mas também que o
Entre os persas, a criança de- que depois foi culto de uma ou
via, aos quinze anos, preparar-se outra seita cristã não se tinha
para as cerimônias do Zuzodi ou ainda adotado, ou antes diferen-
iniciação na religião e só então ciado dos precedentes, com ca-
era purificada e conduzida ao racteres distintos, porque primei-
templo. O mesmo sucedia entre ro devia criar-se o novo Deus e a
os egípcios. crença nele mesmo.
Acerca do matrimônio, as ce- Sob este ponto de vista, as
rimônias que a ele presidiam contendas e lutas entre as várias
eram quase as mesmas, assim seitas cristãs, relativas a este ou
como na morte. àquele ato do culto são verdadei-
ras sandices e perdem todo o va-
Entre os indianos, a extrema
lor, já que todas elas beberam da
unção consistia em banhar as
mesma fonte oriental, o mito do
mãos do enfermo em urinas de
Deus Redentor, encarnado no
vaca.
novo Deus.
Como se vê, esta ligeira rese-
Importava à nossa argumenta-
nha das principais cerimônias do
ção demonstrar que nem para
culto das religiões pré-cristãs,
criar o culto cristão era preciso a
embora parecesse, a princípio,
existência e a obra do pretendido
estranha ao nosso tema, deu,
Cristo, tanto mais que, do exame
contudo, em resultado mostrar
do culto, tiramos para a luz, es-
que, ainda aqui, a religião cristã
plêndidas e irrefutáveis provas
nenhuma necessidade teve de
da origem e natureza mitológica
criar coisa alguma porque todos
de Cristo.
os elementos do seu culto pree-
Concluiremos, pois, dizendo,
165
com Stefanoni, que em vários
pontos da sua admirável obra es-
tabelece com grande lógica e só-
lida argumentação a pergunta -
se Cristo realmente existiu: A
nova época (a do nascimento do
Cristianismo) estava, por conse-
guinte, irrevogavelmente prepa-
rada. Nem cataclismos, nem
quebras de tradições a inicia-
ram; veio lenta, insensível, qua-
se inesperada, a erguer as inte-
ligências a uma nova ideia. Não
iniciou, mas completou o traba-
lho de vários séculos.
O cristianismo não foi, pois,
obra de um só homem nem de
poucos anos, mas o resultado de
largo trabalho de vários povos,
o conjunto dos progressos ge-
rais de cada um, feitos em todos
os tempos.
E, ainda que a fé ensine que a
nova religião foi consequência
da divindade novamente revela-
da, a História, fundamentada
em documentos pode afirmar
com toda a segurança que o
cristianismo existia antes de
Cristo260.

260
Stephanoni, História Crítica das
Superstições, vol. 1, cap. XVI.
166
CAPÍTULO IV
FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO CRISTIANISMO

O haver demonstrado que to- ser uma coisa palpável, concreta,


dos os elementos que formaram determinada ou determinável,
o cristianismo já preexistiam nos mediante meios diretos e experi-
vários cultos e escolas filosófi- mentais de observação, mas sim
cas, que o precederam, não bas- o produto de um processo lento
taria ainda para explicar a razão e quase imperceptível em suas
por que vieram a fundir-se num fases, de um trabalho absoluta-
único corpo de doutrinas e cren- mente interno, imponderável, in-
ças, dando origem a uma nova definível e indeterminável, do
religião. Esta razão deve ser conjunto das capacidades huma-
procurada fora dos materiais da nas.
nova religião, da qual forma a Quando se apresenta como um
parte objetiva; esta razão não fato completo e consumado na
pode ser mais do que o estado cena da história, não pode dizer-
subjetivo dos ânimos, nos tem- se, com justiça, qual seja a sua
pos e lugares onde o cristianis- fonte, porque as suas origens
mo se foi elaborando, paulatina- perdem-se na noite dos tempos,
mente, como difusa nebulosa e especialmente, naquele misté-
que, pelas mesmas leis de gravi- rio, quase impenetrável - porque,
dade que regem o Universo, deu inadvertido quando se difunde,
princípio a um novo núcleo de está já difundido e consistente
atração em torno do qual vieram quando se dá por isso - da filia-
gravitar as forças psíquicas da ção das ideias e dos sentimentos,
evolução humana. que constituem a causa verdadei-
E aqui surge de novo a obser- ra da formação de uma religião
vação de que hajam sido vãos nova.
todos os esforços que se têm ten- Mas, se não podemos determi-
tado para determinar o momento nar o verdadeiro momento da
preciso da origem histórica do história em que surgiu o cristia-
cristianismo por parte das inteli- nismo, podemos, em compensa-
gências positivas, que com justa ção, fixar a sua causalidade e de-
razão, não podem reconhecer o terminar, precisamente, o pro-
milagre, afirmando que o nasci- cesso da sua formação. Este
mento de uma religião não pode meio é a psicologia que avalia os
167
fenômenos morais com o estudo O cristianismo, que foi o en-
das condições do meio ambiente. contro dos hebreus e dos gregos
Sem pretendermos descrever a no Egito, crisol onde se realizou
fundo a formação psicológica do a fusão do Oriente com o Oci-
cristianismo, daremos contudo, dente - consumado organica-
deste fenômeno, uma explicação mente em Roma - absorveu de
suficientemente clara, até mes- todos esses povos, como expo-
mo sob o ponto de vista positivo ente comum e denominador de
e evolucionista. suas diversidades étnicas, o con-
junto daquelas lágrimas das coi-
Diz-se, e é mesmo um lugar
sas de que falava então, precisa-
comum arraigado na persuasão
mente, o poeta latino.
de todos, até de muitos positivis-
tas, e que só se explica pela O cristianismo fez a sua apari-
grande força da tradição, que o ção quando hebreus, gregos e ro-
cristianismo fora um progresso manos tinham perdido a liberda-
moral, devido à necessidade de de, a felicidade e a esperança de
pôr termo à corrupção do paga- reconquistá-las no mundo pre-
nismo. sente; veio quando a felicidade
de viver, própria da antiguidade
Pois bem: ainda com risco de
primitiva, que teve o seu apogeu
sermos apedrejados, contra essa
na Grécia, foi destruída pela re-
infundada crença nos revolta-
flexão e pela prática dolorosa da
mos, só porque é infundada, e
vida, dando lugar ao tédio, às de-
em nome da verdade e como ho-
silusões trazidas pelas contínuas
menagem à justiça, devida tam-
adversidades, aquela dor univer-
bém aos homens que tiveram a
sal das coisas, que tornava a
desgraça - ou a fortuna - de viver
existência inexplicável e intole-
antes do cristianismo, declara-
rável ao mesmo tempo, porque
mos que a causa psicológica do
com a cultura, tinha também au-
advento do cristianismo foi um
mentado o sentimento da into-
princípio de decadência e não de
lerância dos males que afligiam
progresso.
os homens e os povos.
E desde já passamos a de-
Como diz Gaetano Negri, in-
monstração, deixando que falem
comparável filósofo e artista: E
os fatos para que, num argumen-
não podendo o homem renunci-
to de tanta monta não figure a
ar à felicidade, não tem mais
retórica em linhas de combate.
que um meio para sair de sua
168
miserável condição o de trans- ção e difusão do que mais tarde
portar esta sua felicidade da se chamou cristianismo.
vida terrena para a vida trans- O advento desta filosofia da
cendental, a de admitir a adver- dor, da resignação e do desprezo
sidade no mundo presente, para da vida presente precedeu igual-
a substituir, se assim pode dizer- mente as mais graves calamida-
se, pela esperança da felicidade des públicas na Grécia e em
no mundo futuro. Esta foi, justa- Roma.
mente, a doutrina do cristianis-
Platão - o primeiro padre pré-
mo261.
cristão da Igreja - escrevia preci-
A ciência experimental não ti- samente quando os destinos de
nha ainda nascido, e a Humani- Atenas decaíam a olhos vistos.
dade, combalida, não tinha então
As ruínas morais da pátria não
outro remédio contra os males
fizeram senão dar maior incre-
desta vida, além da esperança na
mento à filosofia de Platão,
vida futura. O cristianismo foi
àquele misticismo que, destacan-
pois, uma doutrina nascida da
do-se da vida real por sua bruta-
decadência. Foi por conseguinte,
lidade, sem liberdade nem justi-
a religião da decadência262.
ça, em si mesmo se concentrou,
A sorte do povo hebreu, conti- como em último refúgio.
nuamente escravizado por uma e
Encaminhada assim, a filoso-
outra dominação, desiludido nas
fia grega chegava por um lado à
suas esperanças de voltar aos
Egesia, que aconselhava a morte
tempos felizes e à glória, tinha
voluntária como meio mais se-
preparado aquela literatura da
guro para alcançar o repouso da
dor, que deveria consolar os hu-
alma, a paz sem inquietações, e
mildes e os aflitos e ser um po-
por outro lado, ao Livro do Luto,
deroso elemento para a forma-
do acadêmico Crantor, modelo
261
Gaetano Negri, Crise Religiosa. das consolações.
262
Emíle Zola, com sua vista de águia
penetrou até a íntima essência do cristi-
Não andavam melhor as coi-
anismo, ao escrever: É do negro pessi- sas de Roma, no século anterior
mismo da Bíblia que é preciso libertar ao advento do cristianismo.
o mundo, espantado e esmagado há
Este século, que depois de ter
dois mil anos, vivendo apenas para a
morte; e nada é mais caduco nem mais reduzido tantos povos à domina-
mortalmente perigoso que o velho ção de Roma, submete a mesma
Evangelho semita aplicado ainda como Roma ao domínio de um só,
único código moral e social.
169
inaugura-se sob os auspícios de Daquele ambiente não podiam
uma interminável guerra entre sair senão almas cristãs, como
cimbros e tentões; vê levanta- Sêneca. E eis porque, naquela
rem-se todos os povos da Itália época, começa a fazer à sua apa-
contra Roma; assiste às guerras rição misteriosa o nome cristão e
entre Mário e Sylla; admira Es- com ele o objeto.
pártaco, que à frente dos escra- A filosofia converte-se em re-
vos fez tremer os senhores; hor- ligião, e esta na religião do sofri-
roriza-se com a organização ge- mento e da morte nesta vida,
ral e terrível dos piratas; na Áfri- para gozar na outra o paraíso.
ca, na Espanha, na Bretanha, vê
Vejam se naquele ambiente
cenas de ferocidade e de luta; as-
não deviam surgir e tomar forma
siste às guerras de Mitrídates e
concreta, as esperanças messiâ-
dos partos no Oriente, às fações
nicas dos hebreus, anunciando o
de Pompeu, de César, de Bruto,
fim próximo do mundo, a ressur-
de Antônio e de Augusto, que di-
reição e a palingenésia univer-
vidiram e ergueram em armas o
sal!
mundo que Roma dominava.
Vejam se, ao antimoralismo
É então que desabrocha um
daquele tempo, não era necessá-
grande mal estar para a vida,
rio o ultramoralismo oriental, se-
nada se esperando já da liberda-
gundo a feliz antítese de Renou-
de nem da lei; o suicídio conver-
vier264, para que, a fim de curar
te-se numa salvação, e a morte é
um excesso, viesse um excesso
considerada, não como o termo,
contrário, e a fim de curar um
mas como o objetivo da vida é a
mal viesse outro mal - um outro
filosofia da desolação, que inspi-
mal que, desgraçadamente, per-
ra a Tusculane de Cícero.
maneceu no corpo social enfer-
E como a arte é o termômetro mo e debilitado, sem que tenham
moral do tempo, nós vamos en- conseguido ainda expulsá-lo as
contrá-la em Horácio, pessimista repetidas renascenças do natura-
até ao ascetismo263. lismo filosófico e do experimen-
E esta era a disposição dos es- talismo científico.
píritos, antes de Augusto. O que Por outro lado, enquanto a
não seria depois, nos sucessores, moral degenerava, as crenças na
sob Tibério e Nero? antiga divindade esfumavam-se
263 264
Paulo Orano, O Problema do Citado por Benoit Malon no livro
Cristianismo. Questões Ardentes.
170
até desaparecer de todo. Se a fé secundárias, e que no seu tempo,
diminuía, não era tanto obra do devia ter exercido uma influên-
livre exame, mas do encontro cia demolidora sobre as religiões
entre os vários cultos e a crítica constituídas.
recíproca. A incredulidade entra nas
Sobretudo, devia ter sido de consciências de tal modo, que
uma grande influência e contato até Virgílio admirava Lucrécio
com os persas, pois não tendo os nos famosos versos: Foelix qui
seus deuses estátuas nem altares, potuit rerum cognoscere causas.
animando o seu culto apenas o (Feliz. aquele que foi capaz de
elemento puramente espiritual, aprender as causas das coisas )
os gregos seriam levados a me- E o próprio Séneca, o cristão
ditar sobre o grosseiro antropo- Séneca, escrevia o não menos fa-
morfismo dos seus deuses. moso verso em que faz acabar
Isto não quer dizer que à anti- tudo com a morte.
guidade clássica faltassem espí- Estava portanto batido o poli-
ritos liberais e críticos raciona- teísmo. Na sociedade culta era
listas: Anaxágoras, Epicuro, De- moda ser incrédulo. Não se cria
mócrito, Protágoras, Diágoras de em milagres, nem pouco nem
Melos, Lucrécio, etc., são nomes muito, e a idolatria, essa era só
que o moderno livre pensamento para o vulgo.
pode colocar entre os seus mem-
A crítica religiosa tinha chega-
bros honorários.
do, com Cicero, até á negação
Já, além disso, o estoicismo absoluta da divindade, nos seus
encontrara a verdadeira explica- diálogos sobre Deus e sobre a
ção da origem das religiões nos adivinhação, apesar das precau-
mitos, nos quais a imaginação ções que toma ao apresentar a
dos antigos, desconhecedora das ideia.
leis da Natureza, intentara expli-
Mas esta crítica, numa época
car os fenômenos naturais. Já
em que faltavam a liberdade e a
Evemero de Messina estabelecia
ciência experimental, não podia
a teoria de que os deuses não
conduzir à negação absoluta,
eram mais que grandes homens
embora fosse excessivamente
ou reis divinizados, teoria que
atrevida e adiantada para o mai-
esteve muito em voga até os
or numero dos homens daquele
nossos dias, e que ainda hoje é
tempo.
verdadeira para certas tradições
171
Ainda assim, conseguiu, em vam a reforçar a fé debilitada, a
certas ocasiões, destruir a fé nos Humanidade entregava-se de
vários Deuses, se bem que para a corpo e alma aos sonhos do so-
concentrar no Deus ignoto de brenatural, como para se agrupar
Sócrates, de Eurípedes e do dou- em torno da última âncora de
to e grave Varrão. salvação. A impotência geral
0 povo greco-romano não se sentia a necessidade de um jugo,
julgava incrédulo, embora hou- na ordem espiritual, como na or-
vesse perdido toda a fé nas desa- dem temporal.
creditadas divindades ocidentais; Os próprios poetas eróticos,
estava agitado, mais que nunca, Ovídio e Tíbulo sobre todos, fa-
por uma intensa febre de crer, zem-se eco da devoção domi-
especialmente no maravilhoso, nante nos espíritos do tempo.
no místico, na novidade, em al- Por fim, Sêneca mostra acre-
guma coisa que adormecesse a ditar na astrologia, no fim do
inteligência amodorrasse os sen- mundo e numa nova palingené-
tidos. Dominava o ceticismo fi- sia. Chega a falar no reconheci-
losófico. mento que se deve ao Sol e à
O espírito febrilmente agitado Lua. Lucano mostra-nos a alma
procurava um ponto, um leito de Pompeu subindo ao céu, onde
onde repousar. E não conhecen- se senta entre as almas santas,
do ainda a ciência experimental, contemplando de lá o nosso
caminhava, delirando, em busca mundo miserável e o despojo
de uma nova fé. O neopitagoris- mortal que nele deixou. Também
mo e, mais tarde, o neoplatonis- em Virgílio se revela a crença na
mo, não foram mais que esboços palingenésia universal; o nasci-
de tais tentativas. A superstição mento de um menino sugere-lhe
recrudescia. o cumaeum carmen, sonhando,
Diodoro tinha já invejado a de olhos abertos, na fé do apoca-
tranquilidade que os caldeus lipse sibilino.
desfrutavam em suas crenças re- O grande número de dogmas e
ligiosas, imóveis e livres da crí- religiões concentrados em Roma
tica. favorecia, mais que tudo, esta al-
Na desagregação política e na titude dos espíritos, predispon-
desconsolação pela liberdade do-os para aceitar a doutrina re-
perdida, quando nem leis nem ligiosa que mais autoridade mos-
poderes, nem costumes basta- trasse pela necessidade universal
172
da unidade religiosa e de sub- tais, que vieram, com todas as
missão a uma crença, que acal- outras, estabelecer-se em Roma.
masse os espasmos da incerteza, E destas, as que mais se dis-
da confusão e do caos. putavam o domínio dos espíritos
Os espíritos estavam fatiga- eram a persa e a hebraica, hele-
dos, cansados de pensar, e ansia- nizada especialmente por Fílon,
vam o repouso. sobre as doutrinas de Platão por
A unidade do mundo, prepara- um lado, sobre as dos terapeutas
da por Alexandre e consumada por outro.
em Roma, onde se realizava a Os mistérios egípcios, com o
paz universal, na universal es- Deus Redentor Serápis e sua Vir-
cravidão, e a universalidade da gem Mãe Ísis, tinham igualmen-
língua grega, convertida em veí- te conquistado grande influência,
culo e em ponto de contato mo- mas acabaram por se confundir
ral das mais diversas nações, com os dos hebreus, provavel-
como Roma viera a ser o centro mente por estes se terem impreg-
e ponto de contato material dos nado daqueles, tirando deles o
diversos povos, conduziram to- mito do Deus Redentor, que de-
das as inteligências à concepção pois viria realizar, às mil maravi-
do homem universal, que não lhas, o sonho do Messias, com
fosse apenas um cidadão de Ate- quem podia confundir-se.
nas, de Alexandria, de Jerusalém Mitra, sobretudo, conseguiu
ou de Roma, e sim homem hu- por muitos anos conquistar a su-
mano, segundo a justa expressão premacia. Pelo ano 68, antes da
de Strauss, como a multidão das época assinalada ao nascimento
religiões (gaulesa, caldaica, per- de Cristo, introduziram-se em
sa, egípcia, hebraica, etc.) con- Roma os mistérios de Mitra, al-
duz os espíritos a buscar a sua cançando um êxito prodigioso e
fusão e confusão numa crença conseguindo milhares de adep-
única, cujo centro seja o Deus tos. Mitra, que já era adorado na
supremo e único e a periferia Pérsia, na Armênia e na Capadó-
toda a Humanidade. cia, teve em Roma, durante dois
Que religião seria essa? O séculos, a preferência dos devo-
único obstáculo estava na sele- tos. No tempo de Adriano, o seu
ção. culto era tão popular, que um es-
Acusava-se o público do ul- critor grego, Paládia, compôs
tramoralismo das religiões orien- um tratado especial, a que Porfí-
173
rio faz referências. das guerras de Pompeu, que con-
O seu culto torna-se quase ge- duziu consigo alguns milhares
ral nos últimos séculos do paga- de prisioneiros. Antes disto, po-
nismo, em Roma, onde a sua ini- rém, já eles exerciam em Roma
ciação misteriosa feria as imagi- uma influência considerável, a
nações, provocando a criação de ponto de, já no tempo de Cícero,
muitos monumentos, baixo-rele- terem no Senado alguns amigos,
vos e inscrições em sua honra, segundo diz Plutarco.
descobertos e recolhidos no nos- Já no ano 22, reinando Tibé-
so tempo. rio, teve lugar um Senatus-con-
A vitória definitiva, porém, sultus contra os hebreus e os
essa devia caber aos hebreus. egípcios, que segundo Tácito,
formavam em Roma uma única
(Breve se verá porque falamos
superstição.
de hebreus e não ainda de cris-
tãos). Assim, pois, os hebreus, mais
que nenhuma outra religião, le-
Os hebreus tinham começado
vavam a Roma aquilo de que
a exercer determinada influência
Roma, e com ela todo o mundo,
sobre os ocidentais, especial-
tinha necessidade, isto é, a cren-
mente no Egito, onde, por suas
ça no fim do mundo, seguida da
contínuas emigrações, estabele-
ressurreição ou palingenésia uni-
ceram numerosas colônias, se-
versal, a exaltação da pobreza,
gundo atestam os escritores he-
dos humildes e dos doentes e
breus Josefo e Fílon, sobretudo
também a exaltação do misticis-
quando Alexandre leva 40 mil
mo religioso, que então chegava
deles para Alexandria e quando,
ao cúmulo, porque sendo uma
150 anos antes da nossa era, ali
enfermidade, esta irrita-se, espe-
se foi estabelecer Onia, fundan-
cialmente nas horas de sofrimen-
do um templo ao Deus israelita.
to e prostração, tanto na vida dos
Foi principalmente em Ale- povos como na dos indivíduos.
xandria que, por meio das tradu-
A crença no fim próximo do
ções dos seus livros sagrados,
mundo e numa regeneração da
feitas em grego, começaram a
vida, trazida da Pérsia para o
ser conhecidas as suas crenças,
mundo latino, era geral naquela
rebaixando as gregas, alexandri-
época, desde a Índia a todo o
nas e egípcias.
Mediterrâneo, e no Ocidente,
Passaram logo a Roma, depois Plutarco, Lucrécio, Ovídio, Vir-
174
gílio, Lucano e Sêneca tinham se Com a diferença de que, com
tornado seus intérpretes. Os li- a religião cristã, aquela filosofia,
vros do Novo Testamento, dis- em lugar de uma redenção, foi
cordante em quase tudo, anda- uma ilusão pior que o mal, foi
vam de harmonia neste ponto so- uma decadência que retardou a
bre que gravitava a crença na reivindicação que prometia, co-
próxima vinda do Messias. locando-a mais longe, na vida
A religião judaico-cristã vinha futura, pregando nesta vida a re-
aqui dar um destino a esta cren- signação e a miséria, como sen-
ça, e por conseguinte, devia ser a do de direito divino e como
predileta naquele ambiente exal- meio meritório, a uns para exer-
tado, que também era o mais cer a caridade, a outros para dar
bem disposto para que esta se motivos a que os primeiros a
pudesse arraigar nele e estender- exercessem, tornando-se dignos
se rapidamente, como uma man- do reino dos céus.
cha de azeite sobre uma superfí- Sob este ponto, foi moroso o
cie plana. triunfo do cristianismo, porque
O que mais devia contribuir prometia a felicidade só com a
para o culto do cristianismo,era esperança, separada de toda a
a tendência eminentemente po- ação e iniciativa, fonte única de
pular do judaísmo, tendência todo o verdadeiro progresso mo-
que, tanto na literatura como nas ral e material.
figuras ideais dos seus persona- Estas eram, realmente, as ar-
gens, era extremamente sugesti- mas da vitória, o in hoc signo
va e de molde a que os humil- vinces daquela época, em que o
des, os oprimidos e os deserda- sentimento da revolta contra a
dos se convertessem em massa à miséria e a opressão se tinha ge-
nova fé. neralizado e selecionado pela
Este elemento, passado do ju- força das coisas e das doutrinas
daísmo ao cristianismo, explica filosóficas, que para tal fim con-
como e porque essa mesma mo- vergiam.
ral e essa mesma doutrina, assim As aspirações morais, mais
como a filosofia greco-romana, profundamente sentidas naquela
há tanto professada de maneira época, juntavam os hebreus o
sublime, só se tornaram popula- culto a um Deus Redentor, que
res, só se generalizaram por in- nesse tempo era provavelmente
termédio da nova religião. Serápis, adotado por eles no Egi-
175
to, como veremos, e que viera ção mística das crises religiosas,
substanciar e materializar o Ver- como se vê pela história.
bo de Fílon, encarnando-o num Agora pergunta-se: em que
deus feito homem; um Deus Re- época começaria Cristo a ser hu-
dentor que tinha os mesmos atri- manizado? Não é fácil determi-
butos de Mitra, de Horus, de ná-lo com precisão, embora isso
Apolo, e em geral, dos Deuses seja indiferente à psicologia.
Redentores, já conhecidos e ado-
Recordaremos, no entanto, de
rados por todos os povos.
novo, que a invenção de Jesus
Os propagandistas mostra- não pode ser obra dos hebreus,
vam, na propaganda, tanto fana- mas dos romanos, não já pela
tismo como o mesmo público, parte favorável atribuída a Pila-
segundo afirma Horácio e a his- tos, contra a lógica das ideias,
tória confirma, achando nas mu- que corresponde à logica dos fa-
lheres um dos meios de propaga- tos, mas pelo papel odioso, inve-
ção mais eficazes, de que se ser- rossímil e absurdo que os Evan-
viram. gelhos as igualam aos hebreus: o
Assim, Pomponia Graecina papel de deicidas.
comparecia no ano 57 perante Repugna à inteligência e ao
um tribunal, acusada de judaís- coração supor que uma calúnia
mo, e a famosa Popea, amante e tão atroz, que por tantos séculos
depois esposa de Nero, protegia devia pesar sobre um povo, só
os hebreus nos momentos difí- porque se negou a acreditar na
ceis. mentira da vinda do Messias,
Ajuntemos a isto o atrativo da possa ter sido inventada pelos
comunhão dos sexos nesta reli- hebreus, inovadores e expatria-
gião, comunhão que, na institui- dos.
ção dos ágapes, chegou ao extre- Não: essa calúnia só pode ter
mo de se beijarem na boca e dor- sido elaborada pelo cristianismo
mirem no mesmo leito, por pre- romano, ao formar-se o catoli-
tendido espírito de mortificação, cismo czarista e teocrático, em
abusos cuja autenticidade está cujo auxílio acudia um novo
fora de toda a dúvida, e que tor- Deus para melhor consolidar o
naram necessária a imposição de seu poder; Deus que era preciso
limites a tão misteriosa intimida- fabricar na expectativa messiâni-
de, filha da exaltação erótica, ca dos hebreus, sobretudo depois
que acompanha sempre a exalta- da destruição de Jerusalém e dis-
176
persão dos hebreus, em que co- Nessa fusão histórica e psico-
meçavam a passar as gerações e lógica de raças, doutrinas, religi-
os testemunhos, que poderiam ões e aspirações cosmopolitas,
desmenti-lo. de que surge o cristianismo, foi
O momento histórico aproxi- isso um efeito do meio ambiente
mado, em que foi inventada a fa- e do estado relativo dos ânimos.
bula de Cristo, constitui uma Mas, deixemos isso, que afi-
questão por completo supérflua nal, pouco tem com o nosso as-
para o nosso objetivo. sunto, já suficiente e exuberante-
mente demonstrado.

177
CAPÍTULO V
COMO ACONTECEU O TRIUNFO DO CRISTIANISMO

Exposto o meio ambiente em anismo?


que se produzira o cristianismo, Foi o cristianismo que gerou o
não fica, porém, de todo explica- clero cristão, ou este que gerou o
do o grande fenômeno de unifi- cristianismo? Veio primeiro o sa-
cação que gerou o cristianismo. cerdote, ou veio primeiro a mis-
Naquelas condições criadoras sa, como diria Guerrazzi?
do meio e por sua vez, do estado Desgraçadamente - e dizemos
de ânimo geral que deveriam desgraçadamente porque a histó-
operar a transformação da civili- ria verdadeira da Igreja seria
zação greco-romana, só vemos também a da origem precisa do
agir causas mecânicas e incons- cristianismo - temos de nos re-
cientes - em relação do efeito signara confessar a ignorância da
produzido com seu involuntário história sobre este ponto, tanto
concurso - causas que explicam mais que os únicos documentos
a preparação subconsciente e que sobre tal assunto existem,
evolutiva do fenômeno, mas como a História de Eusébio, que
nunca a sua determinação defini- também é a primeira e só data do
tiva. Isso foi obra de causas ano 313, são documentos inte-
conscientes e de vontades ativas, ressantes.
que neste capítulo indicaremos
O que, porém, está evidente-
rapidamente.
mente provado é existir já a Igre-
Estas forças ativas, coordena- ja antes da redação dos Evange-
doras, conscientes, determinadas lhos, e os próprios Evangelhos
e determinantes foram a Igreja e nos dão provas disso, tais como
o Estado. Primeiro, aquela só, e as palavras de Cristo, quando diz
contra a vontade deste; depois que se deve considerar o herege,
com este e por meio deste; e fi- que não obedece à Igreja, como
nalmente, contra este. publicano e fariseu, e quando
Quando, onde e como se for- fala em levar a própria cruz, em
mou o primeiro núcleo, a pri- sentido metafórico, o que não
meira organização da Igreja cris- poderia nunca ter dito antes que
tã? O que existiu primeiro: o cle- a pretendida paixão de Cristo se
ro, a casta sacerdotal ou o cristi- tivesse difundido e fosse acolhi-
178
da com aquele caráter de autori- E a constituição do cristianis-
dade que pressupõe uma organi- mo em teocracia, conciliando-se
zação. com a moral evangélica, é outra
E como a Igreja era anterior daquelas contradições lógicas,
aos Evangelhos, com que ela fa- que parecem formar o substrac-
bricou o novo Deus Redentor, é tum da psicologia dos povos, e
lícito deduzir que a casta sacer- que provavelmente estão deter-
dotal presidira desde o princípio minadas pelo trama dos mais di-
à formação e difusão da nova re- versos e vários interesses das di-
ligião. ferentes classes sociais.
E também é certo que, desde o Pela presença, certamente,
princípio da nova seita, se en- duma nova casta sacerdotal, as-
contra a Igreja hierarquicamente sistimos desde o principio do
organizada sobre a imagem da cristianismo a este duplo caráter
teocracia hebraica e conforme a da sua política ser a um tempo
associação grega e o colégio ro- rebelde à autoridade constituída,
mano, de cujos nomes principais e instrumento de submissão à
se apropriou (clero, bispo, pres- mesma; caráteres que termina-
bítero, diocese, etc.). ram ambos por fazer parte da
doutrina da Bíblia, na qual,
Dada assim a existência da
como já vimos, estão em desa-
Igreja, já temos uma das causas
cordo, tanto como na vida da
mais poderosas e eficazes da di-
Igreja.
fusão do cristianismo, porque ao
ideal, o clero juntou o próprio Estas duas doutrinas, que à
interesse, estímulo e aguilhão es- primeira vista parecem inconcili-
pecialíssimos para a ação. áveis, não o são. Quando a Igreja
quer, concilia-as admiravelmen-
Acerca da contradição entre a
te, em seu interesse. O que a
organização de uma nova Igreja
Igreja quer é a sujeição do povo
e a pregação do próximo fim do
ao poder civil, quando este trata
mundo, só diremos que pode
dos interesses dela mas quando
muito bem existir, como tantas
se ocupa dos interesses próprios,
outras que formam grande parte
então passa a outra doutrina, ar-
do trama da vida dos povos, ain-
mando a mão dos Ravailac e dos
da que aquela fosse de gravida-
Clement inspirando a justifica-
de, própria para fazer duvidar da
ção do regicídio, que se não en-
boa fé do clero cristão e até mes-
contra apenas nos doutores jesu-
mo da origem da nova seita.
179
íticos, mas também nos diplomá- dem, restabelecia a religião. E
ticos como S. Thomaz de Aqui- quando chegou o tempo de
no. Constantino, o hipócrita, este
A primeira destas doutrinas aproveitou-se habilmente da
serviu à Igreja cristã para fazer doutrina da resignação e da sub-
prosélitos nos pontos da terra, missão aos princípios - instru-
povoados de nações vencidas, de mentos do direito divino - ensi-
povos reduzidos à escravidão e nada pela Igreja cristã, para co-
escravos ansiosos pela emanci- locar simplesmente esta nova re-
pação, que a filosofia helênica e ligião no lugar da antiga religião
romana há muito defendia e fo- romana, restaurada por Augusto,
mentava. porque a nova era também uma
sanção para o Estado e um ins-
A segunda doutrina serviu-lhe
trumento de servidão. Esta e só
- se bem que nem sempre - de
esta pode ter sido a razão da pre-
proteção contra o medo do go-
tendida conversão de Constanti-
verno romano, para quem a reli-
no266, muito mais que a de apa-
gião era questão de Estado e pe-
gar os remorsos de sua consciên-
dra de escândalo.
cia de assassino, apegando-se a
Este segundo elemento da uma religião que tinha o poder
doutrina cristã, muito mais que o de lavar toda a culpa, conforme
elemento revolucionário popular, lhe lançavam em rosto os pa-
foi o que produziu, em princípi- gãos267.
os do reinado de Constantino, o
Constantino, encurtando as
triunfo do cristianismo265.
disputas internas da Igreja cristã,
Este desprendimento dos âni- que tinham marcado o largo pe-
mos, que os fez abdicar da pró- ríodo da lenta formação durante
pria independência, em mãos de o qual esta vinha elaborando e
uma nova teocracia lançou-os aperfeiçoando os seus dogmas
depois nos braços do despotismo mediante a discussão das várias
político. A restauração foi religi-
osa e política ao mesmo tempo. 266
Que a conversão de Constantino fora
Augusto, restabelecendo a or- uma hábil manobra de oportunismo po-
lítico, ele próprio o confessa na carta em
265
Ninguém como Bakounine viu a reci- que, falando da disputa com Arrio, ape-
procidade das relações entre o Estado e lida de mesquinha, vã, inútil, indigna de
a Igreja, para exploração do fenômeno discussão e de resposta, etc. (Eusébio,
religioso. O seu livro Deus e o Estado livr. II, cap. LXIV.)
267
é, neste ponto, admirável. Zósimo, l50.
180
seitas cristãs, entre si e em luta que desorganizou o império, dei-
com o paganismo, Constantino, xando a Igreja em pé, sobre as
dizemos iniciou o famoso Con- suas ruínas, pôde o cristianismo
cílio de Niceia, no ano 325, de triunfar e estabelecer a tirania
onde data a consolidação do das consciências ao lado da tira-
cristianismo. Sem a conversão nia temporal dos princípios, à
de Constantino ao cristianismo, espera do tempo em que pudesse
é provável que este não chegasse empunhar as duas espadas, as
nunca a triunfar, não já pela sua duas tiranias, que fez pesar sobre
pretendida268 doação, que arran- a pobre humanidade até a esma-
cava ao poeta gibelino de Flo- gar e horrorizar com a fogueira,
rença a famosa invectiva: a tortura, o cárcere, o desterro, a
Ai! Constantino de quanto mal inquisição, os índex, a censura, a
foste a causa! confiscação, as guerras de exter-
Não tanto pela tua conversão, mínio dos heterodoxos, os tribu-
mas pelo rico dote nais de exceção e capitis dimi-
Que de ti arrancou o primeiro nutio dos hereges, dos cismáti-
Papa cos e dos hebreus.
mas porque facilitou ao cristia- O cristianismo conquistou o
nismo a maneira de impôr-se mundo com a violência, e só
com violência. com a violência pôde tê-lo sujei-
Só por meio da força, auxilia- to por tantos séculos. E Por vio-
do pelos embustes do clero e ou- lência, não entendemos só a da
tras circunstancias fortuitas força bruta, mas também, a le-
como a mudança da capital do gal, a moral da opinião e, sobre-
império de Roma para Bizâncio, tudo, a patológica da servidão
o que permitiu à Roma dos Cé- intelectual, que foi a mais pode-
sares converter-se na Roma dos rosa arma da Igreja católica, e
Papas e a invasão dos bárbaros, que chegou à sua perfeição dou-
trinal na fórmula jesuítica perin-
268
A Doação de Constantino é apócrifa e de ac cadaver.269
não foi redigida antes da metade do sé- Mas isto não basta para che-
culo sexto. Esta falsificação foi demons-
269
trada inequivocamente por Lorenzo Val- Disciplinado como um cadáver.
la, que provou também a falsidade da Loyola escreveu a constituição jesuíta
Carta de Cristo a Abgaro, tal como fez que deu origem a uma organização rigi-
o próprio cardeal Nicolan de Cusa com damente disciplinada, enfatizando a ab-
as Decretaes de Isidoro e com os escri- soluta auto-abnegação e a obediência ao
tos atribuídos a Dionísio, o Areopagita. Papa e superiores hierárquicos. (NE).
181
gar à liberdade, a fórmula da li- demônios os deuses pagãos e em
berdade de consciência das práticas de magia os ritos dos
constituições modernas, no sen- seus sacrifícios, ora fazendo-lhes
tido cavouriano da Igreja livre crer que as cerimônias dos pa-
no Estado livre. gãos eram uma permanente
É mister a separação, sem a conspiração contra a vida do so-
supremacia do Estado; é neces- berano e obrigando-os, desta
sário enfim, que a liberdade diri- maneira, a declará-los culpados
gida por livres pensadores tenda de delitos de lesa-majestade.
sobretudo a emancipar com a Por este processo, os bispos
mais intensa propaganda intelec- obtiveram o duplo efeito de in-
tual, psicológica e sociológica duzir os imperadores a extermi-
aqueles a quem a crença católica narem o paganismo, a ferro e
faz escravos da superstição, ina- fogo, e ao mesmo tempo, de se
bilitando-os para desfrutar a li- esconderem por detrás do braço
berdade de pensamento. secular, lançando sobre este toda
Com muitíssima razão disse- a responsabilidade e odioso da
ram V. Alfieri e Filippe De Boni perseguição.
que a liberdade é incompatível Para fazer passar por magia os
com o catolicismo e onde este ritos do paganismo, bastava res-
impera não pode nascer nem peitar os decretos anteriores con-
conservar-se pura a liberdade. A tra a magia: assim se alcançava o
mais perigosa das teocracias é fim desejado, sem dar a conhe-
aquela que o padre exerce sobre cer que se inaugurava uma nova
as consciências. perseguição.
Com aquisição do favor impe- Os primeiros decretos de
rial, o cristianismo preparou-se Constantino não fizeram, em
para a grande luta contra o paga- aparência, mais do que sancionar
nismo, que só logrou aniquilar leis severas contra a magia; mas,
passada uma larga série de anos, na realidade, feriam de morte o
com leis repressivas e persegui- paganismo.
ções de todo o gênero. Com os imperadores, Cons-
Por dois modos a Igreja insi- tâncio, Constante, Valério e Teo-
nuou aos imperadores a ela con- dósio, a perseguição deixou cair
vertidos, a persuasão de empre- a máscara que a cobria, dirigin-
garem a violência contra o paga- do-se diretamente contra o paga-
nismo: ora transformando em nismo. Basta examinar as leis
182
contidas no Códice Theodosia- gente, para cujo cativeiro não é
no, com o titulo de paganis, sa- salvaguarda a honra de muitos
crificiis et templis para com- méritos.
preender todo o alcance e gravi- Sob o império de Valério, o
dade daquela odiosa perseguição próprio nome de filósofo era um
destinada a exterminar o paga- titulo de proscrição.
nismo.
Libânio e Jamblico foram acu-
Um decreto imperial começou sados como tais, e só o veneno
por proibir os sacrifícios pagãos. os pode libertar de pior suplício.
Em 353, Constâncio e Constante
Deste modo, o terror operava
promulgam este decreto: Decre-
simuladas conversões mas, ape-
tamos que, em todo o lugar e em
nas voltava a tranquilidade, a
toda a cidade sejam fechados os
maioria dos convertidos abraça-
templos (refere-se aos pagãos)
va a antiga crença.
que ninguém possa entrar neles
e que aos ímpios se negue o di- Para impedir isso, Teodósio
reito de delinquir (isto é, adorar decretou uma lei, que despojou
outros Deuses). Queremos que do direito de testar aos pagãos
todos se abstenham de fazer sa- que voltassem ao seu culto. Dez
crifício. Se alguém fizer seme- anos depois, a mesma lei era re-
lhante coisa, será morto com a novada, e declarando infames os
espada vingadora. Decretamos apóstatas do cristianismo, conce-
que os bens do executado vão dia que se ultrajasse a sua me-
para o fisco e queremos que se- mória e se rasgassem os seus
jam castigados os governadores testamentos. Outra lei proíbe
das províncias que se mostrarem toda a espécie de sacrifícios pa-
negligentes na repressão dos de- gãos. O culto dos deuses, pros-
litos. crito da cidade, refugiara-se nos
campos.
Guiado pelo clero, Constanti-
no manda matar, na Tebaida, to- Teodósio arremete contra ele
dos os sequazes do antigo cul- até no ultimo refúgio, ordenando
to270. João e Valentiniano I imi- a confiscação do campo onde se
tam o rigor de Constâncio. consumasse um sacrifício.
Por toda a parte, escrevia Zó- Não se permite ter nem usar
zimo, reina o pranto e o deses- outro nome que o dos cristãos
pero; as prisões regurgitam de católicos; proibido em absoluto
270
aos apóstatas, não já o direito de
Amiano Marcelino, lib. XXI. cap. XI.
183
testar, mas até o de vender; pena pagãos - violação das sepulturas
de fogo contra quem abraçar re- dos pagãos e roubos dos seus
ligião contrária, com a respetiva bens - excessos tais, que até os
confiscação de bens; autorizada mesmos imperadores, entre eles
e permitida a delação; ordem Valentiniano, se vêm obrigados a
para derrubar todos os templos proteger, momentaneamente, as
pagãos; destituição de todos os vítimas da perseguição.
cargos públicos para aqueles que Para melhor armar o braço se-
se não conformarem; desterro, cular, os bispos dão a entender
pena de morte, confiscação dos aos imperadores que as calami-
bens, para quem continue ainda dades públicas são devidas à im-
realizando sacrifícios pagãos; piedade dos que se não conver-
desterro e excomunhão contra tem ao cristianismo.
quem ouse discutir as afirma-
O clero tinha, além do fisco, o
ções da Igreja e dos sacerdotes;
direito de se apossar dos bens
proibição aos hereges de recebe-
dos perseguidos, falando-lhes de
rem bens; privações de todo o
assuntos respeitantes ao sacrilé-
direito civil para os não católi-
gio e tratando de delatar contra-
cos; expulsão dos soldados de
venções à lei da fé271. Mal os ir-
todas as legiões, que se encon-
mãos tinham qualquer possibili-
trem em igual caso; pena de
dade de se assenhorearem de um
morte contra o possuidor de
campo, acusavam o seu proprie-
qualquer livro, que contradiga o
tário de ter sacrificado aos deu-
Concilio de Niceia. Uma só fé
ses, pedindo que contra ele se
para todos: a de Niceia.
mandasse a soldadesca.
Tais são, além doutras, as
O clero cristão consegue toda
prescrições dos imperadores
a sorte de privilégios e imunida-
cristãos, combinados para exter-
des, aproveitando-se arteiramen-
minarem o paganismo e consoli-
te daquela época de terror para
darem o cristianismo, impondo
se dedicar à obra fraudulenta de
silencio a toda a heresia.
falsificação e destruição dos li-
A Igreja é que tinha a seu cui- vros que poderiam revelar as
dado atear o fogo nos seus con- mentiras e farsas demasiadamen-
cílios, secundava os imperadores te visíveis da nova religião, e
na obra de destruição por ela su- que de algum modo poderiam
gerida; excitava as turbas cristãs
271
a cometerem excessos contra os Libânio, Oração em favor dos
templos.
184
esclarecer suas origens; obra de do cristianismo primitivo, como
falsificação que, em verdade, co- Atanásio, Basílio, Crisóstomo,
meçara com o mesmo cristianis- Eusébio, etc.
mo e se praticara em grande es- Orígenes chegou até a inven-
cala por todas as seitas, que ha- tar uma teoria para justificar es-
viam concorrido para formar a sas falsificações, distinguindo as
nova religião. feitas com bom fim, das feitas
O próprio S. Jerônimo con- com má intenção.
fessa que, traduzindo Orígenes, O pior de tudo porém foi a
não teve em conta senão o que destruição das obras que poderi-
lhe pareceu útil, eliminando tudo am ter esclarecido as suas im-
o que julgou nocivo, escusando- posturas. Foi assim que desapa-
se com a desculpa que o mesmo receram muitas obras importan-
fizeram S. Hilário e S. Eusébio. tes de Cícero, Proclo, Porfírio,
Confessou isso no prefácio que Celso, Fílon, Orígenes, S. Cle-
fez ao livro de Eusébio. (De Loi- mente, Eunômio, etc.
cis Ebr.)
É nossa opinião que toda a
Celso acusava os cristãos de história do cristianismo, até a
terem falsificado os oráculos si- Reforma, deve ser quase por
bilinos e a ciência justificou a completo reescrita com critério
acusação de Celso. naturalista, porque a Igreja tem
Macróbio foi falsificado para sempre caluniado todos os que
justificar o martírio dos inocen- não vão com ela, chegando em
tes; foram inventados esses nú- contraposição, a colocar sobre os
meros escritos, que a própria altares a última canalha, contan-
Igreja viria depois declarar apó- to que fosse devota.
crifos. Contudo, e apesar de tantas
Foram falsificados Josefo e proscrições e perseguições, ape-
esses outros autores que já vi- sar desse regime de terror e des-
mos. Foram até inventados do- sa inquisição, a Igreja não conse-
cumentos atribuídos ao pai de guiu conquistar o politeísmo
Matusalém, ao bisavô de Noé e para a nova fé.
de Enoc. Então, recorreu a um último
Mas, sobretudo, foram gravís- expediente, que lhe assegurou o
simas as falsificações realizadas triunfo, e que, se lhe não deu o
pelos apologistas e historiadores aplauso do povo, pelo menos
185
tornou tributárias à sua domina- as religiões - que convertem em
ção as práticas religiosas, apro- demônios os deuses das religiões
veitando assim, em seu favor, a contrárias - foram convertidas
grande força do costume que em santos cristãos.
adotou as formas exteriores do Os gregos celebravam festas
culto, já em uso entre os pagãos. em honra de Hermes (Mercúrio)
Foi assim que, arrancando um e de Nícan (o Sol); estas festas
novo farrapo àquela doutrina passaram ao calendário católico,
que queria adorar Deus em espí- nas mesmas datas, com os no-
rito e em verdade, pouco devia mes de S. Ermeto e S. Nicanor.
custar-lhe já o triunfo, herdando Baco era adorado sob o nome
delas, fundindo-as e amalgaman- de Soter (Salvador) e Apolo com
do-as, a moral e a doutrina das o de Efoibios. estas festas foram
religiões precedentes. mantidas com os nomes de S.
Já vimos que o culto cristão Sotero e S. Efebo ou Efésio.
não é mais que uma amálgama Festejavam Baco com a festa
de cerimônias tiradas dos cultos de Dionysios, a que se seguia
precedentes. outra em louvor de Demetrius;
Agora assistimos ao processo pois os dois nomes encontram-se
de integração deste culto, pro- na mesma data, no calendário
cesso mediante o qual assimila cristão, com os de S. Dionísio e
as práticas e a própria divindade S. Demétrio.
do paganismo romano, transfor- A festa de Ceres, a loira (Flá-
mando-o e corrompendo-o. via) é a de Santa Flávia; a festa
Deste modo, o cristianismo da pudica Diana converteu-se
converte-se, por sua vez, em idó- em Santa Prudência; a do Palla-
latra e fetichista. O politeísmo dium de Minerva veio a ser a
não conseguira destruir o feti- festa de Santa Paládia.
chismo, limitando-se apenas a As Saturnais converteram-se
sobrepujá-lo. Pois também o ca- em S. Saturnino; a festa de Afro-
tolicismo não destrói o politeís- disia (Venus) corresponde a S.
mo, antes o subordina aos seus Afrodísio e Santa Afrodísia; o
interesses. dia do signo da Virgem (15 de
As divindades do paganismo, agosto), em que Astrêa aparece
que não foram declaradas infer- no céu, na dita constelação, con-
nais, como é costume em todas verteu-se na Assunção da Vir-
186
gem. de onde lhe vem o nome.
Baco, que se chamava na Gré- A festa da Gorgona, divindade
cia Eleutério ou Dionísio e que infernal, que simboliza as trevas
tinha uma festa denominada rús- maiores do ano, foi substituída
tica, porque celebrando-se no pela festa de Santa Górgona.
tempo das vindimas,era essenci- Uma nova festa consagrada a
almente campestre, (Festum Di- Baco, se celebrava em dezembro
onysis Eleuterie Rustici) deu lu- com o nome de Dionísia; tam-
gar, com estes três nomes distin- bém passou para o calendário
tos, a três santos cristãos: S. Di- católico. E aqui, importa obser-
onísio, S. Eleutério e S. Rústico. var quão frequente é o nome de
A brisa matutina, aura placida, S. Dionísio no calendário católi-
que o paganismo simbolizava na co, o que prova, não que tenham
mulher de Baco, converteu-se sido numerosos os Dionísios
para os cristãos em Santa Aura santos, mas que os santos Dioní-
Plácida. sios não são mais que outras tan-
A fórmula da saudação, per- tas transformações das festas em
petua felicitas, gerou duas santas honra de Baco (Dionísio), que
Perpetua e Felicidade. Orar e dar eram muito frequentes na época
(rogare e donare) correspondem do paganismo.
a S. Donaciano e S. Rogadano, A fórmula romana flor et lux,
cuja festa se celebra no mesmo flor e luz, transformou-se em
dia. Santa Flora e Santa Lúcia.
S. Apolinario comemora-se O sobrenome de Júpiter, Nice-
alguns dias depois daquele em for, é nem mais nem menos que
que se celebravam os jogos Apo- S. Niceforo; e o de Juno, Pelas-
linares em honra de Apolo. Até gia, Santa Pelagia. Atenena (Mi-
os Idus do mês se transformaram nerva) originou S. Atanásio e
em Santa Ida. Apollon o S. Apolônio e Santa
A deusa Pelino transformou- Apolônia.
se em S. Pelino e o Termes, que E quando não se cristianiza-
presidia aos limites dos campos ram as formas pagãs, inventa-
e dos caminhos, simbolizando-se ram-se santos novos, que, pelo
por uma pedra, transformou-se próprio nome, indicam a virtude
na estátua de S. Vito, colocada curativa dos antigos ídolos: San-
nos limites dos caminhos (viae), ta Luzia para o mal dos olhos; S.
187
Gotardo para a gota; Santa Tos- Os deuses e as deusas pagãs
cana para a tosse; S. Latino para desciam à terra para conversar
as afecções do leite; S. Bono com os mortais e o mesmo fize-
para as enfermidades bovinas, ram as Nossas Senhoras Cristãs.
etc. Os pagãos pediam favores às
Até mesmo os atributos dos estátuas dos seus deuses, e, obti-
deuses passavam para os santos dos estes, colocavam junto dos
cristãos. Como Baco, Noé e S. seus altares um voto e acendiam
Vicente presidem a conservação círios; nem mais nem menos do
da videira e da vindima. Como que fazem os cristãos com seus
Neptuno, S. Nicolau e S. Vicente santos e madonas.
Ferrer invocam-se para acalmar A Igreja de S. Lourenço, em
as tempestades. Como Minerva, Roma, foi transformada em S.
Santa Catarina infunde a ciência. Lourenço de Lucina, santa advo-
Como Esculápio, S. Cosmo pre- gada dos partos das mulheres,
side a medicina. Priapo conver- em memória de um templo pa-
te-se em S. Fiacre, que guarda os gão ali existente, dedicado a Di-
jardins. Como Juno, Santana ana Juno Lucina, divindade que
ampara as parturientes. presidia aos partos. A águia de
Santa Margarida, que fecunda Júpiter foi substituída pela de
as mulheres, é copiada de Luci- João. Esculápio com a serpente,
na, assim como S. Antônio e S. foi substituído por S. Patrício
Humberto, de Mercúrio, que en- com a sua.
contrava o perdido, e de Diana Santa Barbara, com a taça, é a
que presidia a caça. representação flagrante de Baco.
A estátua de Diana em Efeso O dragão de Apolo passou para
e a de Pallas em Atenas, tinham S. Jorge, assim como o martelo
caído do céu, tal como muitas de Vulcano para S. Eládio.
estátuas e imagens da Virgem A verdadeira imagem (vera
cristã. icon), que algum tempo se vene-
As estátuas dos deuses, que rou pintada em uma tela, foi
Enéas trouxera de Troia e colo- logo personificada em uma San-
cara em Alba, voltaram para os ta Verônica.
seus antigos templos. Também Muratori demonstrou como,
Nossa Senhora de Montenegro, de uma casa destinada a hospe-
trazida de Livorno, voltou para o dar peregrinos, se fez um S. Pe-
seu monte.
188
regrino, e de outra chamada o dos mesmos e em que tomaram
Santo Albergue, situada no terri- parte - até nem se acredita! - ho-
tório de S. Cesáreo, se fez uma mens de ciência de Paris, a favor
Santa Alberga. da autenticidade de um ou outro
As curas milagrosas, que se dos sudários.
obtinham nos templos pagãos, A Igreja adotou também o cul-
com práticas sugestivas e medi- to das imagens, especialmente
ante peregrinações a mananciais da Senhora e dos Santos, e, so-
de fontes sulfurosas, ferrugino- bretudo, a da Cruz - evolução re-
sas, arsenicais, etc., sobrevive- gressiva para cujo cumprimento
ram ao paganismo, como tam- teve de suprimir a segunda lei do
bém sobreviveram as crenças Decálogo hebraico, que condena
nos sonhos e nas aparições. toda a representação da divinda-
Igual destino tiveram as pedras, de com coisas sensíveis272, ven-
cujo culto, ou litolatria, é uma do-se obrigada, em troca e para
supervivência do fetichismo, os conservar sempre o número dez,
animais que foram dados como a subdividir o décimo manda-
companheiros a alguns santos e mento em duas partes.
com eles colocados nos altares, Portanto, se o cristianismo
etc. pôde triunfar e substituir o paga-
Que diremos agora do culto nismo, foi somente mediante a
das relíquias, que tanto se gene- perseguição, a farsa e a assimila-
ralizou no cristianismo, da mul- ção do culto pagão, favorecido
tiplicação das cabeças, dos bra- por outro lado, pela desagrega-
ços, das pernas, dos ossos, das ção do Império romano e pela
mãos dos Santos, tantos que, invasão dos bárbaros.
para os catalogar, ser-nos-iam O cristianismo não foi apenas
precisos muitos volumes. o herdeiro do império romano,
Recordaremos apenas o sudá- de cuja decadência se aproveitou
rio, de que existem quatro exem- para se erguer sobre as suas ruí-
plares famosos, disputando to- nas, mas até contribuiu enorme-
dos a autenticidade (os de Be- mente, mais que nenhuma outra
sançon, Turim, Compiègne e Ca- causa, para produzir tal decadên-
douin) além doutros menos im- cia273.
portantes. E citamo-los unica-
272
mente, porque ainda se não apa- Êxodo, XX, 3,6.
273
G. Sorel, Ruína do mundo antigo,
gou o eco das discussões acerca (Paris, 1902).
189
O seu triunfo, porém, foi com- vulgo um novo culto antropo-
pletamente isento da pretendida mórfico, uma divindade acessí-
pessoa de Cristo, como também vel aos sentidos e em forma hu-
fora isento à formação da nova mana.
religião, não tendo jamais existi- Esta força de expansão, porém
do, como de sobra temos de- não foi de Cristo, mas da ilusão
monstrado no presente livro. popular, que viu em Cristo o
O mito do Cristo serviu, é símbolo dos infelizes, martiriza-
certo, para dar impulso ao cristi- dos nesta vida e glorificados na
anismo porque apresentava ao outra.

190
Conclusão

191
CONCLUSÃO

Lisonjeamo-nos por ter persu- muito acerca da fortuna da tese,


adido os nossos leitores, os de ou melhor, da verdade por nós
boa fé e despidos de todo o pre- demonstrada. Porque não se trata
conceito, de que realmente Cris- apenas de uma verdade científi-
to nunca existiu. Quanto aos ou- ca, histórica e moral: trata-se
tros, é certo que não poderiam também de uma religião. E se é
jamais, e agora menos do que fácil destruir erros antigos, no
nunca, tomar superficialmente e terreno científico, histórico e
destruir sem discussão a hipóte- moral, não sucede o mesmo no
se da não existência de Cristo. A religioso, pois que nele estão ar-
estes, basta fazê-los duvidar da raigados os interesses de uma
própria fé, porque a dúvida é o imensa casta de parasitas que
princípio da sabedoria, a origem jungem ao erro dos outros a sua
das descobertas e o ponto de própria existência, os seus pró-
partida de todo o progresso. prios privilégios.
Além disso, seja qual for o re- Se a ciência pôde destruir sem
sultado prático deste nosso tra- dificuldade, por exemplo, o mito
balho, a nós basta o prazer de ter ou lenda de Guilherme Tell, não
levado a nossa pedra para o edi- sucederá o mesmo com Cristo,
fício da Verdade. Aos de maior porque na conservação de Cristo
engenho e mais favorecidos pe- estão interessados milhões de
las circunstâncias do tempo e do pessoas que vivem dessa crença,
ambiente, compete erguer o edi- como a aranha está interessada
fício até a suma perfeição, para em conservar a sua teia.
que não estremeça aos embates Dir-se-á: Que importa, no fim
das tormentas. de contas, que Cristo não tenha
Temos consciência absoluta existido, desde o momento em
de haver contribuído, na medida que existe o farto cristianismo,
das nossas poucas forças, para que ainda quando derive de uma
imprimir a crítica aquela nova ilusão inicial, não deixa de ser
direção, que a deve conduzir á um fato consumado e da maior
resolução do problema da ori- importância?
gem do cristianismo. Que importa, dirão outros,
Contudo, não nos iludamos que a crença em Cristo tenha
192
sido uma ilusão da Humanidade, e o helenismo, o oriente e o oci-
se essa crença foi tão benéfica? dente.
A estas objeções poderemos Em uma palavra: o cristianis-
responder, simplesmente, que a mo, tomado como fato consuma-
ciência nada tem com as conse- do, não é uma doutrina, uma re-
quências nem com a utilidade ligião, uma crença homogênea.
prática das suas investigações, É um mosaico em que há de
preocupando-se apenas com a tudo, menos a perfeição ideal do
descoberta da verdade. pretendido fundador e de seus
Mas importa ainda examinar o pretendidos sequazes primitivos,
significado do que geralmente se como neste estudo se viu e como
chama o cristianismo. O que é o pode ver-se, lendo a própria Bí-
cristianismo? Parecerá talvez blia, sem véu algum nos olhos.
uma pergunta paradoxal, mas A pretendida perfeição do
tem a sua razão de ser. cristianismo não é mais que o
O cristianismo é um nome ideal humano, ideal que se tem
que serve para legitimar toda formado em volta daquele centro
a espécie de aberrações. E isto de gravidade, para o subtrair às
é assim, subjetiva e objetiva- vistas naturais, não o deixando
mente. Subjetivamente, porque ver senão àquelas vistas particu-
usa o nome de um autor que lares que só veem o que querem
nunca existiu; objetivamente, ver, mas não o que realmente se
porque, sob o nome cristão, se vê, fruto da sugestão teológica,
deu cabimento às doutrinas mais do visionismo sobrenatural e do
disparatadas, amalgamando-as ilusionismo transcendental.
em monstruosa confusão. Hoje, quem diz Cristo, cristia-
Decompondo este nome, ve- nismo ou cristão, quer dizer o
nerável apenas pelos séculos de homem, a doutrina, o crente, que
veneração usurpada que sobre é, se julga, ou quer ser perfeito
ele pesam, vê-se que não é já o como o Pai que está nos céus.
resultado de elementos afins reu- Deste modo, o nome de Cristo
nidos em um todo harmônico e converteu- se no símbolo do ide-
orgânico, mas a arbitrária com- al humano: pode dizer-se que, na
binação e justaposição de ele- sociedade atual, quem não é cris-
mentos heterogêneos e inorgâni- tão é comparado com as bestas
cos, provenientes das fontes ou pouco menos.
mais opostas como o hebraísmo Tão estranha quão monstruosa
193
e ingênua é esta alucinação cole- de engordar com os milhões rou-
tiva! Não só porque o cristianis- bados, moeda a moeda, à pobre
mo da Bíblia e dos doutores da gente, ou sequestrando os peni-
Igreja é completamente diferente tentes ricos, com contratos frau-
daquela perfeição que a si pró- dulentos, e um pouco a todos os
prios se atribuem, mas também e crentes, com a sugestão e o ter-
sobretudo, porque na nossa soci- ror das penas do inferno ?
edade não há de cristão mais que Onde está a pobreza voluntá-
o nome, ainda que a considere- ria, aceita e procurada como
mos na sua parte civil, evolutiva, meio mais seguro de ir ao céu,
moderna, progressiva, naquela, mesmo sem nenhum outro méri-
em suma, que indica o expoente to para se salvar? Onde está a
da civilização presente. fraternidade, se os sacerdotes
Porque, onde está a crença no abençoam as guerras, promoven-
próximo fim do mundo, que do-as até por conta própria?
constitui a base da moral evan- Onde está a igualdade, se os pró-
gélica? Onde as castrações vo- prios padres e o próprio chefe,
luntárias, para conquistar o reino Leão XIII, copiado por Pio X,
dos céus? Onde o celibato, a não repetem que a pobreza e as dife-
ser nas leis arbitrárias e políticas renças entre as condições sociais
da Igreja, desprovidas de todo o são de direito divino? Onde está
consentimento e de toda a verda- o ódio e o abandono da família
de prática? Onde o retiro místi- para seguir o Senhor?
co, aceito como um meio de per- Ah! Se alguma coisa ficou da
feição, a não ser nos conventos, moral cristã, aparte a época me-
que dele fazem um cômodo ins- dieval, foi a parte bruta, foi o
trumento de parasitismo, desfru- abandono da família, o ódio ao
tando, ao mesmo tempo, o traba- próximo, em que incorrem os
lho das pobres criaturas exalta- exaltados que se retiram do
das, enganadas e roubadas à fa- mundo, e os fanáticos, que jul-
mília ? gam que só eles vivem na justiça
Onde está o desapego, a ren- e na verdade, considerando os
úncia espontânea das riquezas, que não estão com eles - quem
para passar à vida contemplati- não é por mim é contra mim -
va? A própria Igreja não estará como eternamente condenados,
ainda farta de engolir os patri- por cegueira voluntária; ficou a
mônios das viúvas e dos órfãos e intolerância provocadora de ódi-
194
os e de guerras; ficou o misticis- fazendo do cristianismo o fim
mo contemplativo e ocioso das ideal, o espelho de toda a perfei-
ordens eclesiásticas e dos cren- ção. E não vê ou não quer dar a
tes de boa fé, cujos danos à eco- conhecer os interesses que man-
nomia pública e ao progresso to- tém com tal engano, e que tudo
dos nós podemos avaliar; ficou o aquilo que forma o orgulho da
entorse cerebral (como diria o civilização moderna, da civiliza-
dr. Alfredo Pioda) que torna a ção europeia e americana, não só
mente dos fiéis refratária à ra- não é devido ao cristianismo,
zão, forçando-a e habituando-a a mas representa uma série de
crer no absurdo - o que inspirava conquista obtidas pelo pensa-
a Tertuliano quando ingenua- mento humano, tornado autôno-
mente proclamava os motivos da mo, sobre o cristianismo intole-
sua fé, nestes termos: O filho de rante, imobilista, teocrático, ili-
Deus morreu: isto é crível por- beral, reacionário, místico, ascé-
que é absurdo. Sepultado, res- tico e visionário.
suscitou: isto é certo, porque é Da liberdade civil à política,
impossível. da liberdade de pensamento à
Esta é a sociedade que de cris- soberania do povo, do progresso
tã só tem o nome e a parte bru- intelectual ao econômico, tudo o
tal, ao passo que a parte bela, a que serve de base à nossa civili-
parte moral se refugiou (ironia zação é anticristão.
da história!) na esfera da incre- O ideal do cristianismo não é
dulidade, porque nesta se conti- o homem moderno, trabalhador
nua a serena investigação da ver- comedido, instruído e social; são
dade e se trabalha para a reden- os irmãos da Tebaida, os abstê-
ção dos povos e para fraternida- mios, que maceram a própria
de universal; esta é a sociedade carne para salvar a alma, os Se-
que tem posto obstáculos ao miões Estilitas, que vivem sobre
cristianismo com a proclamação as colunas, os Simões de Mon-
da laicização do Estado e da li- fort, que degolam o próximo
berdade de consciência, para a si para ganhar o paraíso, os Pedros
mesma se salvar da sua into- Eremitas, os inquisidores, os tor-
lerância e consigo salvar as con- turadores, os censores, os acen-
quistas da civilização, promo- dedores de fogueiras; são os dés-
vendo outras; esta é a sociedade potas, que suprimem toda a li-
que continua a chamar- se cristã, berdade para consolidarem uma
195
única: a de ser cristão. São os E já sabemos que o progresso
devotos, que passam o tempo em moral só procede da razão autô-
orações, jejuns e penitências, noma, do conhecimento da ver-
abandonando o patrimônio nas dade e do amor, companheiro do
mãos da Igreja madrasta. bem. São inúteis, pois, todas as
Em uma palavra o cristianis- mistificações: a moral é também
mo é a religião da morte, ao pas- uma ciência positiva. A sua nor-
so que a atual sociedade só res- ma única baseia-se nas necessi-
pira o amor da vida, de uma vida dades da natureza humana.
sempre melhor e mais intensa. E estas necessidades, quem as
Porque perpetuar, pois, a men- fará conhecer e quem as avaliará
tira de chamar-se, de julgar-se, a não ser a razão humana, o livre
de querer ser cristão? pensamento, a ciência armada do
método experimental?
Ainda mesmo que no delírio
da hipótese, se quisesse admitir Suprimi o uso da razão prática
que Cristo, tal como o figuram e positiva na investigação do
os cristãos, fora um ideal de per- bem e voltareis às máximas an-
feição, e se dissesse, por conse- tissociais do cristianismo, imora-
quência, que ele representa uma líssimas quando mais pretendem
ideia mãe, que deve ser conser- ser morais, porque nos delírios
vada, embora seja uma ilusão, a de além-túmulo, isto é, fora do
nossa resposta é que, ainda na homem, colocaram o fim do ho-
hipótese - bem longe de ser certa mem, como diz João Bovio.
- a Humanidade tem muito a ga- Além disso, feita a alma uma
nhar e nada a perder, quando entidade concreta, destinada a
deixar de lhe dar fé. um mundo melhor, o corpo con-
Ainda mesmo que esta fosse vertia-se em um cárcere, em um
uma ilusão boa, conservaria escândalo, causa de todo o mal;
sempre dois defeitos capitais: daqui, os suplícios infligidos à
primeiro, ser uma ilusão que, carne, o descuido por melhorar
cedo ou tarde provocaria um as condições da existência, e o
conflito entre o pensamento livre ideal de perfeição baseado na
e conhecedor da verdade e os dor, no abandono de todos os
costumes baseados no erro tradi- cuidados corporais, santificado
cional; segundo, pela sua lei mo- pelo beato Labre.
ral oposta à natureza humana, Pois que este mundo é um lu-
num limite heterogêneo. gar de provações, enquanto que
196
a verdadeira pátria do homem natureza humana e sempre o uso
seria em um mundo futuro, todo da razão natural, nunca exaltada
o interesse pelas condições polí- nem desviada por nenhum trans-
ticas, morais e materiais da exis- cendentalismo, para buscar e al-
tência, deixaria de existir, acei- cançar a felicidade.
tando-se resignadamente o mal A moral, que é a última das
como um mérito maior para con- disciplinas humanas a emanci-
quistar a pátria celestial. par-se da religião, deverá tam-
E posto que, segundo a reve- bém diferenciar-se e constituir
lação, um Deus se tivesse feito terreno autônomo, convertendo-
homem e morresse na cruz para se em ciência experimental. É
salvar a Humanidade, à qual le- uma questão de método, que
gou o modo de conquistar o rei- dará, na própria moral, a vitória
no dos céus com o conhecimento definitiva da ciência sobre a fé.
e a prática dos seus mandamen- Porque a fé não raciocina, não
tos, era pérfido e satânico aquele examina, não discute, não inves-
que se não aproveitasse da boa tiga, não descobre nada, ao pas-
nova para se salvar, era meritó- so que a ciência faz precisamen-
rio obrigar os não crentes a con- te o contrário, e não impõe nada,
verterem-se, à força de os ator- nem sequer o bem, fazendo-o
mentar ou exterminar. Assim é contudo conhecer, como esplen-
que a civilização cristã poderia dor da verdade, induzindo a
se definir dizendo que nela o ho- amá-lo, pela persuasiva propa-
mem, iludido acerca do fim da ganda que faz dele. Iluminando
vida, reduzia toda a felicidade a as inteligências, engrandece e
torturar a si próprio para con- nobilita os corações: a sensibili-
quistar a glória. dade mais requintada é a que se
Eis aí, pois, como a moral re- desenvolve e apura na investiga-
pousa também na ciência e como ção da verdade.
só a razão humana, autônoma e Não só, portanto, se dispensa
experimental, pode descobrir as a ilusão de um Homem Deus
leis do bem e os métodos para o para conduzir a Humanidade ao
alcançar. bem; não só é necessário aban-
Eis aí, pois, como também no donar definitivamente essa ilu-
campo moral - e mais que em são, que tem sido causa de tão
parte alguma - concorrem o co- grandes danos, mas até preciso
nhecimento positivo das leis da se torna emancipar para sempre
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a moral de toda a tutela teológi- ram abolidos pelo cristianismo
ca e de toda a infiltração mística mas pela filosofia, em quanto
e sobrenatural, para a tornar ver- que o cristianismo agravava os
dadeiramente humana, para a ba- males que esta não pudera des-
sear nas necessidades reais da truir, acrescentando-lhe outros
vida: fazê-la, em suma, urna ci- novos, como, para não citar se
ência positiva, experimental, ra- não os maiores, a luta da alma
cional. contra o corpo e a perseguição
Com Cristo, deverá necessari- dos crentes contra os incrédulos.
amente desaparecer o cristianis- Como antes do cristianismo,
mo. no futuro não haverá necessida-
Os que confundem o cristia- de do mito Cristo para ordenar o
nismo com moralismo, pergunta- que à natureza humana cabe exe-
rão, talvez, de boa fé: Que será cutar. Cristo pode voltar definiti-
então da Humanidade sem a be- vamente para o céu, de onde não
néfica ilusão de um mito, ideal devia ter descido nunca à esta
do homem, como o é Cristo? terra, para com o seu nome a en-
cher de ruínas e desventuras.
À essa pergunta, basta respon-
der com esta: Teve a Humanida- Pela nossa parte, nenhuma
de a necessidade de Cristo du- nostalgia sentimos por esse ídolo
rante todo o tempo pré-cristão? que se vai. Antes, pelo contrário,
De modo algum. Nesse tempo, sentimos a alegria que traz sem-
antes dele, viveram as socieda- pre um mal menor.
des cultas e civis; nesse tempo Agora, a vós, pagãos, estulta-
deram-se altos exemplos e exce- mente caluniados e destruídos; a
lentes costumes de moral, que o vós, hebreus injustamente odia-
cristianismo nunca conseguiu ul- dos e infamados, a vós, livres
trapassar; nesse tempo houve pensadores de todos os tempos,
Estados poderosos, ricos, prós- natureza e grau, atrozmente per-
peros; floresceram filósofos, po- seguidos; a vós todos, a reabili-
etas, artistas, homens de ciência, tação da história, da ciência e da
juristas que ainda hoje servem Humanidade.
de modelo. E se, por outro lado, Cristo, esse vosso detrator,
existiram instituições más e cos- Cristo, esse vosso perseguidor,
tumes desumanos, estes não fo- Cristo, não existe!
FIM
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Emilio Bossi nasceu em Bruzella no Can-
De Jesus Cristo, pessoa real, ser tão suíço de Ticino em 31 de dezembro
de 1870, filho de um arquiteto, Francis-
humano, a história não nos con- co, e de Emilia Contestabile. Iniciou seus
servou documento algum, prova estudos no Liceu de Lugano e formou-se
alguma, demonstração alguma. em direito em Genebra. Empreendeu car-
Assim começa um dos ensaios reira no jornalismo e ganhou fama como
mais polêmicos e surpreendentes um grande polemista com o pseudônimo
dos anos 1900. O advogado Emilio de Milesbo. Foi adversário inflexível do
clericalismo e defensor acérrimo da itali-
Bossi desmonta minuciosamente, anidade de Ticino. Travou duras batalhas
ponto a ponto, com extrema habili- contra os "menatorroni" da vida pública.
dade e rigor, qualquer vaga ideia Colaborou com o jornal O Dever, dirigiu
que a nossa cultura possa ter a res- A Gazeta Ticinense, foi diretor do sema-
peito de um personagem chamado nário Nova Vida e fundou o jornal Ideia
Moderna. Em 1906 fundou e editou A
Jesus Cristo. Ação, órgão da Extrema Radical. Bossi
Seria ele filho de Deus? Este não é foi deputado do Grande Conselho, do
um argumento de pesquisa históri- Conselho Nacional e do Conselho dos
ca e, consequentemente, nem deste Estados. Como tal, dirigiu o Departamen-
ensaio. to do Interior. De 1905 a 1910 ocupou o
Viveu ele realmente, ainda que so- cargo de juiz de instrução substituto. Li-
beral radical, foi com Romeo Manzoni, o
mente como pessoa física? flagelo implacável da política oportunista
Bossi declara um categórico NÃO e das transações de Rinaldo Simen. Em
demostrando incontestavelmente, 1897 foi um dos fundadores da União
com provas e mais provas, que não Social Radical Ticinense, uma associação
há nenhum traço de evidência ou que, além das reformas sociais que de-
fendia propugnava a escola neutra e a se-
sequer sombra de suspeita da pos- paração entre Igreja e Estado. Com Man-
sível existência de um homem cha- zoni, foi o líder carismático da Extrema
mado Jesus. Radical, fundada em 1902 após uma vio-
Este ensaio mordaz de 1900 (Rara- lenta polêmica com a corrente de Simen.
mente reimpresso) é uma viagem Em seguida à sua entrada no Conselho de
através dos mecanismos meméti- Estado, Bossi foi forçado a se adequar à
lógica das negociações. Em consequên-
cos de evolução cultural: mostra cia, a Radical Extrema desaparece como
como as religiões mais primitivas e grupo autônomo. Morreu 27 de novem-
os rituais mais antigos evoluíram bro de 1920, em Lugano. Jesus Cristo
para o que hoje se chama de "ver- Nunca Existiu foi publicado simultanea-
dade revelada". mente em 1904 em Milão e em Bellinzo-
na, na Suíça. Revê a luz em 1951 em Bo-
lonha pela Lida e finalmente em 1975 em
Ragusa, pela La Fiaccola.

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