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O Eu* Emst Tugendhat Universidade Catélica de Santiago do Chile (Tradtizdto do original espanhol por G. A. de Almeida) Minha exposigao tem o titulo: O Eu, Existe algo que merece ser chamado “oeu”? Antes de tratar de responder a essa pergunta, deveriamos perguntar-nos: quais s40 ‘os problemas que certas correntes na Filosofia e ultimamente na Psicologia créem poder resolver sob esse titulo? Aparentemente esses problemas sao, de uma parte, 0 problema te6rico da autoconsciéncia e, de outra, o problema pratico da autodetermi- nagao. Ambos sto problemas caracteristicos da Filosofia moderna. O problema da autoconsciéncia comega a ter importancia com Descartes, e com Fichte comeca 0 problema da autodeterminacao, que em nosso século foi retomado em um novoestilo na Psicanalise e naquilo que os anglo-saxdes chamam de Psicologia do Ego. Também a expresso “o eu” é uma expressao que nao existia antes da Filosofia moderna. Essa expressio foi inventada pela Filosotia e nao hé nada na linguagem comum que corresponda a ela. Para a Filosofia analitica, uma situagao desse tipo - uma tradigao filos6fica que se baseia numa expressao artificial - costuma ser 4gua para seu moinho destrutivo. Nao ésedutor mostrar que toda essa problematica da autoconsciéncia da autodeterminacdo esta baseada em um mal entendimento da linguagem, neste caso, da palavra “eu”? ()Conterénciapronuncinda no Serunrin de Filosofia da Linguagem do Instituto de Filosofia eCigncias Socaisda UFRJ, em 15.10.92, analtfrca volume 1 ime 1 9 10 Ocu Em que consistiria esse mal entendido? Uma explicagao relativamente superfi- ial, ainda que correta, seria a seguinte: A Filosofia tradicional teve uma tendéncia errOnea a assimilar as fungdes de todas as expressdes lingiiisticas & dos nomes, que tém a fungao de designar algo. Assim, também se entendeu mal a fungio da palavra “eu”, pensandoser ela um nome que representa algo, a saber, o eu. Na verdade, 0 uso da expressao “eu” ¢ outro; “eu” & uma expressio indexical. Outros exemplos de expressdes indexicais sio as palavras “aquilo”, “aqui”, “amanha”. O caracterfstico dessas expressdes ¢ que elas identificam algo, porém de um modo relativo a situacao em que se fala. Porisso, essas expresses nao tém objetos f-x0s,nao identificando algo de uma vez, por todas como 0 fazem os nomes proprios. Ao contrario, depende da situagdo qual objeto € identificado por uma expressao desse tipo, ¢, se a situagso muda, tem de se usar uma expressao indexical do mesmo grupo. O que, por exemple, idlentifico na situagao presente como “isto aqui”, posso identificar a partir de outro lugar como “aquilo ai”. O mesmo se passa com a expressao “eu”. A pessoa que identifico dizendo “eu” outros identificam dizendo “tu” ou “ele”. E assim se chega 4 seguinte definigao: com a expresso “eu”, o falante identifica-se a si mesmo; essa explicagao ¢ analog, por exemplo, a explicacaoda expresso “aqui”:ela tema funcao de identificaro lugarem que se fala. A palavra “eu”, por conseguinte, ndo desig objeto em mim, um eu, mas, simplesmente, identifica-me, se bem que somente quando eu mesmo uso essa palavra Seguramente, os filésofos que se apéiani na expressao “o eu” para aciarar os problemas da autoconsciéncia e da autodeterminacdo vio se mostrariam muito convencides. “De acordo”, diriam, “este € 0 uso da palavra ‘eu’ na linguagem ordinaria. Contudo, nio estamos interessados na palavra,mas, sim ,na coisa. A coisa de que se trata € a autoconsciéncia e a autodeterminacao. E aquilo a que chamamos © ‘eu’ € a ‘mesmidade’ aquilo de que estamos conscientes quando estamos conscientes de nés mesmos e que decide quando estamos autodeterminados. Sera acaso ilicito introduzir uma expressao artificial para um problema filoséfico?”’. E Sbvio que temos que deslocar a critica lingiifstica para um nivel mais fundamental, Naturalmente, ¢ perfeitamente licito introduzir uma expressio técnica para um problema filos6fico, uma expresso que nao coincide em seu uso com ERN T TUGENDHAT nenhuma palavra da linguagem ordinaria; mas o que se exige entio € que se dé uma explicagdo precisa dessa nova expressio. A diivida nao consiste em que se haja introduzido uma expressao nova para o problema da autoconsciéncia eda autodeter- minagao, mas, sim, que, a0 expressar esse problema com um substantivocomo“oeu” “a mesmidade", se esteja coisificando o problema Nesta exposigao procederei em dois passos. primeiro consistiré em percorrer brevementea origem hist6rica da terminologia do eu. $6 podemoscriticar esta tiltima se a vemos em conexao com 0 problema que se quis resolver com ela. Na segunda parte de minha exposigio , tratarei de mostrar que se pode aplicara anilise lingiiistica de um modo construtivo aos problemas da autoconsciéncia e da autodeterminacao. Minha tese é que se pode chegar a uma anélise adequada da estrutura da autoconsciéncia e da autodeterminagio na medida precisamente em que se procede a clarificagéo do uso ordinério da palavra “eu” em um nivel mais fundamental. A explicagao que acabo de dar do uso da palavra “eu” foi superficial por haver se restringido a essa palavra como uma expresso isolada. A reflexdo analitica adequada somente quando nao se apGia nas expressdes isoladas, baseando-se, a0 contrério, nas oragGes como as unidades primarias da linguagem. Para entender o sentido da palavra “eu”, teremos que analisar o sentido daquelas oragdes que tem um sentido especial quando estao na primeira pessoa, e assim se chega - esta 6 a minha tese - a um entendimento mais adequado da estrutura da autoconsciéncia e da autodeterminagao do que por meio da expressio “o eu”. Comego, pois, com o primeiro passo, uma reflexao critica da origem hist6rica da terminotogia do eu em conexio com o problema da autoconsciéncia. Como se sabe, © problema comegou com Descartes. Este se deu conta de que existe uma classe de proposigdes (¢importante que se trate de proposigoes) que sio indubitiveis para cada um, mas s6 a partir de sua propria perspectiva. Tais sao as proposigdes em que se exprime um estado de consciéncia como, por exemplo, “estou angustiado”, “penso em meu pai”, “quero tomar um café depois da conferéncia’. Ora, é essencial para a indubitabilidade dessas proposigdes que elas estejam na primeira pessoa, isto €, que Osujeito da oragao, se esta expresso, sejaaexpressao “eu”. Pois,semudoa oragao para a terceira pessoa e uso outro sujeito, por exemplo, se, em vez de dizer que estou analtfuca volume 1 nsieeno 1 193 ae

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