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LOY 2 Hae i‘ BOLETIM DO MUSEU NACIONAL fe . NOVA SERIE ‘RIO DF JANEIRO, RJ — BRASIL MN wes ‘d — ANTROPOLOGIA N® 32 MAIO DE 1979 “= A CONSTRUCAO DA PESSOA NAS 2 SOCIEDADES INDIGENAS * APRESENTACAO Este nimero do Boletim do Museu Nacional, série Antro- * pologia reine os trabalhos apresentados na sesso intitulada A Construgdo da Pessoa nas Sociedades Indigenas, realizada no primeiro dia do Simpésio A PESQUISA ETNOLOGICA NO BRASIL. O Simpésio A PESQUISA ETNOLOGICA NO BRASIL teve lugar no Museu Nacional e na Academia Brasileira de Cién- cia, ‘Rio de Janeiro, de 21 a 23 de junho de 1978, numa iniciati- va do Programa de Pos-Graduagdo em Antropologia Social do ‘Museu Nacional (UFRJ). Teve'o propésito de reunir especia- listas em sociedades tribais para discutirem temas e linhas de pesquisa relevantes para um maior didlogo entre aqueles que tra~ Balham na area da etnologia brasileira. Contou-se com 0 patro- cinio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico ¢ Tec- nolégico ¢ com 0 apoio da Regional Rio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciéncia e Academia Brasileira de Ciencia. Expressamos a essas entidades, mais uma vez, 08 nossos agra- decimentos. Além dos trabalhos ora publicados, foi também apresentada uma Comunicaggo da Profe. Lux Vidal (USP) sobre pintura corporal Xikrin que por necessitar de recursos de impresséo mais complexos no foi incluida na presente coletdnes. + Optou-se por manter a forma original em que os trabalhos forain apresentados, propria para exposico oral, tendo -orga~* nizador restringido-se a uma uniformizagdo das referéncias bi- bliograficas ¢ notas de rodapé. Composto ¢ impresso nas oficinas da Ga. Editora Fon-Fon ¢ Seleta, ‘ua Rua Pedro Alves, 60, Centro, Rio de Janeiro Yonne de Freitas Leite Organizadora A CONSTRUGAO DA PESSOA NAS SOCIEDADES INDIGENAS BRASILEIRAS Anthony Seeger Roberto da Matta £,..B.. Viveiros de.Castro- Museu Nacional — U.B.R.J. Introdugéo Cada regiéo etnogratica do mundo teve 9 seu momento na histéria da teoria antropolégica, imprimindo seu selo nos proble mas caracteristicos de épocas e escolas. Assim, a Melanésia des- cobriu a reciprocidade, o sudeste asidtico a alianga de casamento assimétrica, a Africa as linhagens, 2 bruxaria e a politica. As sociedades” indigenas da América do Sul, apss os canibais de Montaigne ¢ a influéncia Tupi nas teorias politicas do Ihiminismo 86 muito recentemente yitram a contribuir para a renovacéo ted- rica da Antropologia. Deve-se creditar a Robert Lowie e Claude Lévi-Strauss, sem davida, a apresentagéo do pensamento indigena sul-americato a0 circuit conceitual mais amplo da disciplina. E em termos ‘de etnografia — se excetuarmos Curt Nimuendaju — ¢ apenas apés a Segunda Guerra que comecam a surgit estudos descritivos mais detalhados de sociedades tribais brasileiras; e apenas mais re- centemente que se inicia a elaboragio teérica deste material. Ow seje, apenas mais recentemente o foco do problema se desloca de categorias mais abrangentes, referidas a sociedade nacional brasileira de um lado e ao «Indio» enquanto categoria genérica de outro, para o estudo de sociedades tribais especificas, quando © foco nio € mais a discussio do lugar do indio (junto com 0 negro € com o branco, na hiesarquia do universo nacional), mas — isso sim — a posicéo daquela socizdade tribal como uma rea- Iidade dotada de unidade. Hoje, pode-se dizer que a etnologia do Brasil ja aleangou certa, maturidade, desenvolvendo teorias e problematicas orig'- ‘ais, e dialogando em nivel mais abstrato com as quest6es intro duzidas na Antropologia pelas sociedades africanas, polinésias € australianas. O objetivo do presente trabalho é salientar as con- tribuigdes.que a etnologia dos grupos tribais brasileiros esta fa- zendo & Antropologia como um todo. De modo particular, foca- 2 lizaremos nossa atengdo sobte uma tese: que a originalidade das sociedades tribais brasileitas (de modo mais ampio, sul-ameri- cana) reside numa elaboragdo particularmente rica da nogho de pessoa, com referéncia especial & corporalidade enquanto idioma simbélico focal. Ou, dito de outta forma, sugerimos que 4 nogéo de pessoa e uma consideracéo do lugar do corpo humano na vi- so. que as sociedades indigenas fazem de si mesmas sfo cami- hos basicos para uma compreeasio adequeda da organizagio so- cial e cosmologia destas sociededes. Muitas etnografias recentes sobre grupos brasileitos — se- jam Jé, ‘Tukano, Xinguenos, ‘lupi — tém-se detido sobre cideo- logias nativas» a respeito da corporalidade: teorias de concepso; teoria de doengas, papel dos fluidos corporais no simbolismo ge- ral da sociedade, proibigSes alimentares, ornamentagdo corporal. Os trabalhos de Goldman, Reichel-Dolmatoff, S. e C. Hugh Jones. J. Kaplan, P. Menget, J. C. Melatti, C. Croker e tan- tos outros? séo um bom exemplo desta tendéncia, que domino © recém-publicado simpésio sobre Tempo e Espago Sociais (Actes du XLileme Congrés International des Ameéricanistes, Vol. Il) organizado por Joana Kaplan. Isto nao nos parece acidental, nem fruto de um bias tebrico. Tudo indica que, de fato, a grande maioria das sociedades tribais do continente. pri- vilegia uma reflexdo sobre a corporalidade na elaboracdo de suas, sosmologias, Mais importante ainda, porém, € 0 fato de que as etnografias mencionadas — e equi, sim, temos uma escolha te6- rica, mas guiada pelo objeto — necessitam secorrer a estas ideo- logias da corporalidade para dar conta dos principios da estrutu- ra social dos grupos; tudo se passa como se os conceitos que a Antropologia importa de outras sociedades — linhagem, alianca, grupos corporados — nfo fossem suficientes para explicar a. Or ganizacao das sociedades brasileiras. Cremos que, hoje, se pode dizer que a vasta problematica esbocada por Lévi-Strauss nas Mythologiques mantem realmente, uma relegéo profunda com a natureza das sociedades brasileiras; esta problematica néo trata apenas de mitos, ilusbes e ideologias: trata de principios que ope- ram ao nivel da estrutura socia’. Esta € a outra tese que vamos defender. Mas, na verdade, este privilégio da corporalidade se da den- tro de uma preocupacio mais ampla: a defini¢ao e construgao da (1) Ver bibliogratia. pessoa pela sociedade. A produgio fisica de individuos se insere em um contexto voltado para a produgao social de pessoas, i. e., membros de uma sociedade especifica. O corpo, tal como n6s ocidentais 0 definimos, ndo ¢ 0 iinico objeto (e instrumento) de incidéncia da sociedade sobre os individuos: os complexos de nominagio, os grupos ¢ identidades cerimoniais, as teorias sobre a alma, associam-se na construgéo do ser humano tal como enten- dido pelos diferentes grupos tribais. Ele, 0 corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posigéo central na visio que as sociedades indigenas tém da ratureza do ser humano. Perguntar-se, assim, sobre © lugar do corpo € iniciar uma indagaco sobre as formas de construgao da pessoa. A Nosao de Pessoa como Categoria Nio ha sociedade humana sem individuos, Isto, porém, nao significa que todos os grupos humanos se apropriem do mesmo modo desta realidade infra-estrutural, Existem sociedades que constroem sistematicamente uma nogdo de individuo onde a ver~ ftente interna € exaltada (caso do Ocidente) e outras onde a énfase recai na nogdo social de individuo, quando cle ¢ tomado pelo seu lado coletivo: como instrumento de uma relagio com- plementar com a realidade social, B isso que ocorre nas socie- dades chamadas «tibais» e € aqui que nasce a nogdo basica de pessoa» que queremos elaborar agora. ‘© conceito de pessoa, como Geertz observou, ¢ uma via real para a compreenso antropologica; num certo sentido, fazer an- tropologia ¢ «.. azalisar as formas simbélicas — palavras, ima- gens, instituigdes, comportamentos — em termos das quais os homens (people) ‘se representam, para si mesmos © para os ou- toss (Geertz 1976: 224-5). E sabemos, desde Marcel Mauss, que as vatiagbes na definigéo desta séo enormes, de sociedade para sociedade. Sabe- mos também, especialmente depois de Louis Dumont, que a visio ocidental da’ pessoa (do Individuo) € algo extremamente parti- cular e hist6rico. Hoje, depols de Mauss e Dumont, Geertz, Lienhardt,. Griaule (e depois dos helenistas franceses inspirados por Mauss), tomoi-se quase Ingar-comum afirmar isto, Levar isto as devidas consegiiéncias analiticas, porém, & algo mais di- ficil, como bem o demonstrou Louis Dumont (1966). Por sex 4 basica e central, a concepgéo do que seja o ser humano que n6s, ocidentais, entretemos, tence a ser projetada, em algum nivel, so- bre as sociedades que estudamos, com o resultado que as nogbes nativas sobre a pessoa passam a ser consideradas como «ideolo- gies; enquanto que nossas pré-concepcbes, nao analisadas, vo constituir a bese das teorias . Mas, sob esta algo vaga nogéo — pessoa — se escondem diferencas teOricas importantes, dentro da Antropologia. Em li nhas gerais, pode-se dizer que a Antropologia Social, desde Ma- linowski, tendeu sobretudo a analisar a personalidade social, isto $a pessoa como agregado de papéis sociais, estruturalmente prescritos (e 05 papéis serdo concebidos como feixes de direitos fe deveres). Ja a tradicio de Mauss, que foi retomada claramente por Dumont, mas que aparece em autores como Geertz, inclina-se para uma «etnopsicologias (Cameiro da Cunha 1978: 1), ou uma eetnofilosofias — ow seja, considera as nogdes de pessoa enquanto categorias de pensamento nativas — explicites ou im- plicitas —; enquanto, portanto, construgées culturalmente va- Hlaveis. Na concepcdo da pessoa como agregado de papéis assume- se, na verdade, um n6dulo fixo, por baixo da variagdo in! de papéis que os individuos, de sociedade para sociedade, a0 longo da hist6ria, puderam assumir. Este nédulo, € 0 Individuo, em sua concepcao ocidental moderna. Ja a propria perspectiva «juralista> de Radcliffe-Brown ¢ seus seguidores supunha uma concepcao de edireitos e deveress, que seriam assumidos por individuos dotados dos mesmos atributos que o pensamento do Ocidente atribui ao Individuo. Por isto, a dicotomia Individuo/ Sociedade vai ser recorrente nas discussdes tedricas da Antropo- logia Social, aparecendo sob varios disfarces: parentesco/descen- déncia (Evans-Pritchard), descendéncia/filiacio complementat. (Fortes), estrutura/communitas (Turner), estrutura social/orga- nizago social (Firth). Desde que Malinowski marcou os Tro- biandeses com a oposigdo mother-right vs. father-love, e que Redcliffe-Brown definiu o avunculado a partir de uma oposicao entre 0 direito e 0 afeto, 0 juridico e 0 optativo, o obrigatério © 0 espontaneo (Radeliffe-Browa, (1924) 1973), foram legiao, na Antropologia, as dicotomiss e analises dicotdmicas da estru- tura social em termos de uma polatizagéo entre o social e 0 individual, 0 normative e 0 espontdnto, o jutidico e o sentimen- 5

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