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AS TEORIAS DA EDUCACAO E 0 PROBLEMA DA 1. O PROBLEMA: De acordo com estimativas relativas @ 1970, “‘cer- ca de 50% dos alunos das escolas primérias desertavam fabetismo ou de analfabetismo Potencial na maioria dos pafses da América Latina” (Te- desco, 1981, pig. 67). Isto sem se levar em conta o con- ttingente de criancas em idade escolar que sequer t&m ‘acesso a escola e que, portanto, jé se encontram “a prio- ri” marginalizadas dela. (© simples dado acima indicado lanca de imediato fem nossos rostos a realidade da marginalidade relative mente a0 fenémeno da escolarizago. Como interpretar esse dado? Como explicé-lo? Como as teorias da educa- ‘cdo se posicionam diante dessa situagio? Grosso modo, podemos dizer que, no que diz res- peito & questo da marginalidade, as teorias educacionais podem ser classificadas em dois grupos. Num primeiro grupo, temos aquelas teorias que en- tendem ser a educacdo um instrumento de equalizacdo social, portanto, de superaco da marginalidade. Num segundo grupo, esto as teorias que enten- dem ser a educacdo um instrumento de discriminacdo social, logo, um fator de marginalizagéo. ‘Ora, percebe-se facilmente que ambos os grupos explicam a questo da marginalidade a partir de determi nada maneira de entender as relagdes entre educacdo sociedade. Assim, para o primeiro grupo a sociedade & concebida como essencialmente harmoniosa, tendendo & integrago de seus membros. A marginalidade é, pols, um fendmeno acidental que afeta individualmente a um ni- mero maior ou menor de seus membros que, no entan- ‘to, constitui um desvio, uma distorco que ndo s6 pode ‘como deve ser corrigida. A educacdo emerge ai, como um instrumento de correedo dessas distoredes. Constitui, ois, uma forca homogeneizadora que tem por funcdo reforcar os lagos sociais, promover a coeséo e garantir a integrag3o de todos os individuos no corpo social. Sua fungdo coincide, pois, no limite, com a superacdo do fendmeno da marginalidade. Enquanto esta ainda existe, devem se intensificar os esforgos educativos; quando for superada, cumpre manter os servigos educativos num ni- vel pelo menos sufi do problema da marginalidade. Como se vé, no que res- peita as relacdes entre educaco e sociedade, concebe-se *Da Pontiicis Universidade Catblica de Sdo Paulo ~ BRASIL 8 Dermeval Saviani* 2 educago com uma ampla margem de autonomia em face da sociedade. Tanto que Ihe cabe um papel decisivo nna conformacao da sociedade evitando sua desagregacdo @, mais do que isso, garantindo a construgSo de uma so- ciedade igualitéria. 4Jé-0 segundo grupo de teorias concebe a sociedade ‘como sendo essencialmente marcada pela divisio entre grupos ou classes antagénicos que se relacionam a base da forca, a qual se manifesta fundamentalmente nas con- digdes de produglo da vida material. Nesse quadro, @ marginalidade é entendida como um fenémeno inerente 2 propria estrutura da sociedade. Isto porque 0 grupo ou classe que detém maior forca se converte em dominante se apropriando dos resultados da produgdo social tenden- do, em conseqiiéncia, a relegar os demais & condi¢go de marginalizados. Nesse contexto, a educacio & entendida como inteiramente dependente da estrutura social gera- dora de marginalidade, cumprindo ai a fun¢io de refor- gar a dominagéo e legitimar a marginalizagao, Nesse sen- tido, a educacdo, longe de ser um instrumento de supera- ‘elo da marginalidade, se converte num fator de marging- lizagdo jé que sua forma especifica de reproduzir a mar- ginalidade social 6 a producéo da marginalidade cultural ©, especificamente, escolar. Tomando como critério de cr dos condicionantes objetivos, denominarei as teorias do primeiro grupo de “'teorias no-criticas"’ j& que encaram educagdo como:auténoma e buscar compreendé-la a partir dela mesma. Inversamente, aquelas do segundo ‘grupo sfo erfticas uma vez que se empenham em com: render a educacdo remetendo-a sempre a seus condi: ionantes objetivos, isto 6, a0s determinantes socias, vale dizer, & estrutura s6cio-econémica que condiciona a for- ma de manifestac3o do fenémeno educativo. Como, po- rém, entendem que a funco bésica da educacio € a re- produgio da sociedade, sero por mim denominadas de ‘weorias critico-reprodutivistas”. 2. AS TEORIAS NAO-CRITICAS 2.1. A pedagogia tradicional A constituico dos chamados “sistemas nacionais de ensino" data de inicios do século passado. Sua or- ganizacao inspirou-se no princ{pio de que a educagdo direito de todos e dever do Estado. O direito de todos 8 educago decorria do tipo de sociedade correspondente 20s interesses da nova classe que se consolidara no poder: Cad. Pesq. Séo Paulo (42): 8-18, Agosto 1982 MARGINALIDADE NA AMERICA LATINA 4 burguesia. Tratava-se, pois, de construir uma sociedade democrética, de consolidar a democracia burguesa. Para superar a situago de opressfo, propria do "Antigo Re- gime”, e ascender a um tipo de sociedade fundada no ontrato social celebrado “‘livremente” entre os indiv duos, era necessério vencer a barteira da ignorancia. S6 assim seria possivel transformar os siditos em cidadéos, isto 6, em individuos livres porque esclarecidos, ilustr dos Como realizar essa tarefa? Através do ensino. A escola ¢ erigida, pois, no grande instrumento para con- verter os siiditos em cidadios, “redimindo os homens de seu duplo pecado histérico: a ignorancia, miséria moral e a opressdo, miséria politica” (Zanotti, 1972, pp. 22-23). Nesse quadro, a causa da marginalidade é identifi- cada com a ignorancia. € marginalizado da nova socieda- de quem no é esclarecido. A escola surge como um antl- doto a ignordncia, logo, um instrumento para equacionar © problema da marginalidade. Seu papel é difundir a ins- ‘truco, transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente. O mestre: escola serd 0 artifice dessa grande obra. A escola se orga: niza, pois, como uma agéncia centrada no professor, 0 qual transmite, segundo uma gradacdo légica, 0 acervo cultural aos alunos. A estes cabe assimilar os conheci- ‘mentos que thes so transmitidos. ‘A teoria pedagégica acima indicada correspondia determinada maneira de organizar a escola. Como as ini- ives cabiam a0 professor, o essencial era contar com um professor razoavelmente bem preparado. Assim, as escolas eram organizadas na forma de classes, cada uma contando com um professor que expunha as ligdes que os alunos segulam atentamente e aplicava os exercicios que os alunos deveriam realizar disciplinadamente. ‘Ao entusiasmo dos primeiros tempos suscitado pelo tipo de escola acima descrito de forma simplificada, sucedeu progressivamente uma crescente decepeao. A re- ferida escola, além de nao conseguir realizar seu desidera- to de universalizago (nem todos nela ingressavam e mes ‘mo 0s que ingressavam nem sempre eram bem sucedidos) ainda teve de curvarse ante 0 fato de que nem todos os bem sucedidos se ajustavam ao tipo de sociedade que se queria consolidar. Comecaram, ento, a se avolumar as criticas a essa teoria da educacdo e a essa escola que passa a ser chamada de escola tradicional. 2.2. A pedagogia nova As criticas & pedagogia tradicional formuladas a Partir do final do século passado foram, aos poucos, dando origem a uma outta teoria da educagio. Esta ‘teoria mantinha a crenga no poder da escola e em sua Fungo de equalizacio social. Portanto, as esperancas de que se pudesse corrigir distoredo expressa no fendmeno dda marginalidade, através da escola, ficaram de pé. Se a escola no vinha cumprindo essa funcdo, tal fato se de- Via @ que 0 tipo de escola implantado — a escola tradi: cional ~ se revelara inadequado. Toma corpo, entio, um amplo movimento de reforma cuja expresso m vento tem como ponto de partida a escola tradicio: nal j6 implantada segundo as diretrizes consubstanciadas na teoria de educacio que ficou conhecida como peda- gogia tradicional. A pedegogia nova comeca, pois, por efetuar a critica da pedagogia tradicional, esbocando uma nova maneira de interpretar a educacio e ensaiando implanté-la, primero, através de experiéncias restritas; depois, advogando sua generalizacdo no émbito dos sis temas escolares. Segundo essa nova teoria, a marginalidade deixa de ser vista predominantemente sob o &ngulo da ignorancia, isto 6, 0 nfo dominio de conhecimentas. O marginaliza do jé no 6, propriamente, o ignorante, mas o rejeitado. Alguém esti integrado no quando é ilustrado, mas quando se sonte acaito pelo grupo e, através dele, pela sociedade em seu conjunto. E interessante notar que al- ‘guns dos principais representantes da pedagogia nova se converteram pedagogia a partir da preocupagao com os “anormais” (ver, por exemplo, Decroly e Montessori). A partir des experiéncias levadas a efeito com criangas “anormais” & que se pretendeu generalizar procedi As teorias da educagao e 0 problema da marginalidade na América Latina 9 mentos pedagégicos para o conjunto do sistema escolar Nota-se, entéo, uma espécie de bio-psicologizagso da sociedade, da educago e da escola. Ao conceito de “anormalidade biolbgica” construido a partir da consta- tagdo de deficiéncias neuro-fisiolégicas se acrescenta o conceito de “anormalidade psiquica” detectada através dos testes de inteligéncia, de personalidade, etc., que comecam a se multiplicar. Forja-se, entdo, uma pedago- gia que advoga um tratamento diferencial 2 partir da "descoberta” das diferencas individuais. Eis a “grande descoberta”: os homens $40 essencialmente diferentes; do se repetem; cada individuo é nico. Portanto, a mar- ginalidade no pode ser explicada pelas diferencas entre ‘os homens, quaisquer que elas sejam: no apenas diferen- 28 de cor, de raca, de credo ou de classe, o que jé era defendido pela pedagogia tradicional; mas também dif rengas no dom{nio do conhecimento, na participacio do saber, no desempenho cognitive. Marginalizados sé 0s “anormais”, isto 6, os desajustados e desadaptados de todos os matizes. Mas a “anormalidade” no ¢ algo, em si, negativo; ela 6, simplesmente, uma diferenca. Portan- to, podemos concluir, ainda que isto soe paradoxal, que a anormalidade & um fendmeno normal. Nao 6, pois, su- ficiente para caracterizar a marginalidade, Esta est mar- cade pela desadaptagio ou desajustamento, fenémenos associados a0 sentimento de rejeiggo. A educagéo, en- ‘quanto fator de equalizagdo social seré, pois, um instru: mento de corrego da marginalidade na medida em que cumprir a funcdo de ajustar, de adaptar os individuos & sociedade, incutindo neles o sentimento de aceitaglo dos demais e pelos demais. Portanto, a educacdo seré um ins- trumento de correcéo da marginalidade na medida em que contribuir para a constituigo de uma sociedade cu: jos membros, ndo importam as diferencas de quai tipos, se aceitem mutuamente e se respeit vidualidade especifica Compreende-se, entio, que essa maneira de enten- der a educagio, por referéncia & pedagogia tradicional tenha deslocado 0 eixo da questo pedagdgica do intelec to para o sentimento; do aspecto légico para o psicolé- ico; dos contetidos cognitivos para os métodos ou pro: cessos pedagégicos; do professor para o aluno; do esfor- 0 para o interesse: da disciplina para a espontaneidade, do diretivismo para o nfo-diretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de inspiracdo filos6- fica centrada na ciéncia da légica para uma pedagogia de inspiragdo experimental baseada principalmente nas con- tribuigées da biologia ¢ da psicologia. Em suma, trata-se. dde uma teoria pedagégica que considera que o importan- te ndo é aprender, mas aprender a aprender. Para funcionar de acordo com a concepgo acima ‘exposta, obviamente a organizaggo escolar teria que pasar por uma sensivel reformulago. Assim, em lugar de classes confiadas a professores que dominavam as ‘grandes éreas do conhecimento revelando-se capazes de colocar os alunos em contato com os grandes textos que eram tomados como modelos a serem imitados e pro- gressivamente assimilados pelos alunos, a escola deveria agrupar 0s alunos segundo areas de interesses decorrentes de sua atividade livre. O professor agiria como um est mulador e orientador da aprendizagem cuja ini principal caberia aos préprios alunos. Tal aprendizagem 10 seria uma decorréncia espontines do ambiente estimu- lante e da relagdo viva que se estabeleceria entre 0s alu- nos e entre estes e o professor. Para tanto, cada professor teria de trabalhar com pequenos grupos de alunos, sem © que a relacdo inter-pessoal, esséncia da atividade edu- cativa, ficaria dificultada; e num ambiente estimulanto, Portanto, dotado de materials didéticos ricos, biblioteca de classe, etc. Em suma, a feico das escolas mudaria seu aspecto sombrio, dlsciplinado, silencioso e de paredes ‘opacas, assumindo um ar alegre, movimentado, baruthen- toe multicolorido. © tipo de escola acima descrito nfo conseguiu, entretanto, alterar significativamente o panorama orga- nizacional dos sistemas escolares. Isto porque, além de outras razGes, implicava em custos bem mais elevados do ue a escola tradicional. Com isto, a “Escola Nova” orga nizou-se basicamente na_forma de escolas experimentais, ‘ou como nicleos raros, muito bem equipados e circuns- critos a pequenos grupos de elite. No entanto, o idedrio escolanovista, tendo sido amplamente difundido, pene- trou nas cabecas dos educadores acabando por gerar con- seqiiéncias também nas amplas redes escolares oficiais organizadas na forma tradicional. Cumpre assinalar que tais conseqiiéncias foram mais negativas que positivas uma vez que, provocando 0 afrouxamentaada a despreocupaco com a transmisso . conhecimen- tos, acabou por rebaixar o nivel do ensino destinado as camadas populares as quais muito freqdentemente tém na escola o tinico meio de acesso 20 conhecimento elabo- rado. Em contrapartida, a “Escola Nova’ aprimorou a qualidade do ensino destinados as elites. ‘Véte, pols, que paradoxalmente, em lugar de re solver 0 problema da marginalidade, a “Escola Nova” o ‘agravou. Com efeito, ao enfatizar @ “qualidade do ens 10", ela deslocou 0 eixo de preocupago do ambito po- Iitico (relative & sociedade em seu conjunto) para 0 Ambito técnico-pedagégico (relativo 20 interior da esco- 1a), cumprindo ao mesmo tempo uma dupla fun¢go:man- ter a expansio da escola om limites suportdveis pelos in- teresses dominantes ¢ desenvolver um tipo de ensino ade- quado a esses interesses. E a esse fendmeno que denomi- 7 nei de “mecanismo de recomposi¢éo da hegemonia da classe dominante” (Saviani, 1980) e que explicitei me- Ihor em outro texto (Saviani, 1981). Cabe assinalar que 0 papel da “Escola Nova’ aci- ‘ma descrito se manifestou mais nitidamente no caso da ‘América Latina, Em verdade, na maioria dos paises dessa regido 0s sistemas de ensino comecaram a assumi mais nitida jd no século atual, quando o escolanovismo ‘stave largamente disseminado na Europa e principal- mente nos Estados Unidos, ngo deixando, em conseqiién- cia, de influenciar 0 pensamento pedag6gico latino-ame- ricano. Portanto, a disseminacio das escolas efetuada se- sgundo 0s moldes tradicionais néo deixou de ser de algu ma forma perturbada pela propagacio do ideério da Pedagogia nova, jé que esse idedrio ao mesmo tempo que procurava evidenciar as “deficiéncias” da escola tradicio- nal, dava forga & idéia segundo a qual é melhor uma boa escola para poucos do que uma escola deficiente para muitos. Cad, Pesq. (42) Agosto 1982

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