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sra2019 Sintose de A Estrutura das Revolugées Cientiicas, de Thomas Kuhn Sintese de A Estrutura das Revolugées Cientificas, de Thomas Kuhn Silvio Seno Chibeni Departamento de Filosofia, Unicamp Apresenta-se aqui uma sintese de alguns dos topicos importantes do livro de Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, cuja primeira edigo apareceu em 1962. Essa sintese nao visa, evidentemente, a substituir a leitura do préptio livro, tendo cardter meramente didatico e introdutério, Kuhn comegou sua carreira académica como fisico tedrico, interessando-se depois por historia da cigncia, Ao longo das importantes investigagdes que empreendeu acerca das teorias cientificas passadas, realizadas segundo uma nova perspectiva historiografica, que procura compreender uma teoria a partir do contexto de sua época, e nao do ponto de vista da ciéncia de hoje, Kuhn se deu conta de que a concepgao de cigncia tradicional nao se ajustava ao modo pelo qual a ciéncia real nasce e se desenvolve ao longo do tempo. Essa percepgio da inadequagdo histérica das idéias usuais sobre a natureza da cigncia © conduziu, finalmente, A filosofia da cigncia, Seus estudos nessa area apareceram publicados de modo mais amplo em seu livro de 1962, A Estrutura das Revolugées Cientificas. Esse trabalho viria a exercer uma influéncia decisiva nos rumos da filosofia da ciéncia, Embora em uma linguagem aparentemente acessivel, Kuhn avanga nele teses bastante sofisticadas sobre 0 conhecimento cientifico € 0 conhecimento em geral, que receberam criticas filoséficas diversas a0 longo dos anos. Naturalmente, este nao € o lugar para adentrarmos essas discusses. Limitar-nos-emos a expor simplificadamente alguns dos pontos destacados por Kuhn ¢ que aglutinaram as atengdes dos filosofos da ciéncia nas décadas subseqiientes a publicagao do livro. A espinha dorsal da concepsio kuhniana de cigneia consiste na tese de que o desenvolvimento tipico de uma disciplina cientifica se dé ao longo da seguinte estrutura aberta: fase pré-paradigmitica — ciéncia normal — crise > revolugio > nova eiéneia normal — nova crise > nova revolugio — ... Daremos agora uma explicagdo simplificada das nogdes envolvidas nessa cadeia evolutiva de uma cigneia, A fase pré-paradigméitica represent . por assim dizer, a pré-histéria de uma ciéncia, aquele periodo no qual reina uma ampla divergéncia entre os pesquisadores, ou grupos de pesquisadores, sobre quais fendmenos dever ser estudados, e como o devem ser, sobre quais devem ser explicados, ¢ segundo quais a que devem ipios tedricos, sobre como os prinefpios teéricos se inter-relacionam, sobre as regras, métodos ¢ valores ecionar a busca, descrigdo, classificago ¢ explicagdo de novos fenémenos, ou 0 desenvolvimento das teorias, sobre quais téenicas ¢ instrumentos podem ser utilizados, ¢ quais devem ser utilizados, ete. Enquanto predomina um tal estado de coisas, a disciplina ainda nao alcangou o estatuto de cientifica, ou seja, ndo constitui uma ciéncia genuina. Uma disciplina se torma uma cigncia quando adquire um paradigma, encerrando-se a fase pré- paradigmatica e iniciando-se uma fase de ciéncia normal. Este € 0 critério de demarcagdo proposto por Kuhn para substituir os critérios indutivista ¢ falseacionista. © termo ‘paradigma’ tem uma acepco bastante eldstica no texto original de Kuhn, ¢ no podemos aqui adentrar as sutilezas de seu significado. Em seu hitp:iwwuunicamp bri-chibenitextosdidaticosistructure-sintese.him 18 sra2019 Sintese de A Estrutura das Revolugées Cientiicas, de Thomas Kuhn sentido usual, pré-kuhniano, 0 termo significa ‘exemplo’, ‘modelo’. Assim, amo, amas, ama, amamos, amais, amam & um paradigma da conjugagdo do indicative presente dos verbos regulares da Lingua Portuguesa terminados em ‘ar’. Kuhn percebeu que a transigdo para a maturidade, para a fase cientifica, de uma disciplina envolve 0 reconhecimento, por parte dos pesquisadores, de uma realizago cientifica exemplar, que defina de maneira mais ou menos clara os principais pontos de divergéncia da fase pré-paradigmatica. A mecdnica de Aristétel s, a éptica de Newton, a quimica de Boyle, a teoria da eletricidade de Franklin estdo entre os exemplos dados por Kuhn de paradigmas que fizeram algumas diseiplinas adentrar a fase cientifi E dificil explicitar, especialmente em poucas palavras, os elementos que entram na formagio de um paradigma, Kuhn sustenta mesmo que essa explicitagdio nunca pode ser completa, A razio disso é que 0 conhecimento de um paradigma é, em parte, fécito, adquirido pela exposigao direta ao modo de fazer ciéneia determinado pelo paradigma. Assim, por exemplo, é somente fazendo éptica 4 maneira de Newton que se pode conhecer completamente 0 paradigma éptico newtoniano, ou fazendo eletromagnetismo 4 maneira de Maxwell que se pode conhecer completamente o paradigma eletromagnético No entanto, podemos, a titulo de balizamento, considerar como partes integrantes de um paradigma: uma ontologia, que indique 0 tipo de coisa fundamental que constitui a realidade; principios tedricos fundamentais, que especifiquem as leis gerais que regem 0 comportamento dessas coisas; principios tedricos auxiliares, que estabelegam sua conexdo com os fendmenos e as ligagdes com as teorias de dominios conexos, regras metodolégicas, padrées e valores que direcionem a articulagao futura do paradigma; exemplos concretos de aplicagio da teoria; ete Um paradigma fornece, pois, os fundamentos sobre os quais a comunidade cientifica desenvolve suas atividades. Um paradigma representa como que um “mapa” a ser usado pelos cientistas na exploragao da ‘Natureza, As pesquisas firmemente assentadas nas teorias, métodos e exemplos de um paradigma sio chamadas por Kuhn de ciéncia normal. Essas pesquisas visam, principalmente, a extenso do conhecimento dos fatos que o paradigma identifica como particularmente significativos, bem como o aperfeigoamento do ajuste da teoria aos fatos pela articulagdo ulterior da teoria e pela observagdo mais precisa dos fendmenos. ‘Um ponto importante destacado por Kuhn & que enquanto o “mapa” paradigmitico estiver se mostrando frutifero, e ndo surgirem embaragos sérios no ajuste empirico da teoria, o cientista deve persistir tenazmente no seu compromisso com o paradigma, Embora a ciéncia normal seja uma atividade altamente direcionada, ¢ em um certo sentido seletiva, essa restrigdo ¢ essencial ao desenvolvimento da ciéncia. E somente centrando sua atengdo em uma gama selecionada de fendmenos e prinefpios tedricos explicativos que o cientista conseguiré ir fundo no estudo da Natureza, Nenhuma investigagio de fendmenos poder ser levada a cabo com sucesso na auséneia de um corpo de principios teéricos e metodolégicos que permitam ica selegiio, avaliagdo ¢ critica do que se observa. Aqui se nota um dos prineipais enganos da concepgao cli de cigncia, que imaginava ser possivel fazer observagdes neutras. Nas concepgdes contemporineas, reconhece-se que fatos ¢ teorias estiio em constante relago de interdependéncia, como que em “simbiose”, os primeiros sustentando as tiltimas ¢ estas contribuindo para a sua selegio, classificagdo, concatenagio, predigao e explicagio. De posse de um corpo de principios tedricos regras metodolégicas, 0 cientista no precisa a cada momento reconstruir os fundamentos de seu campo, comegando de principios basicos justificando o significado ¢ uso de cada conceito introduzido, assim como a relevincia de cada fendmeno observado. Kuhn entende a cigncia normal como uma atividade de resolugdo de “quebra-cabegas” (puzzles), ja que, como eles, ela se desenvolve segundo regras relativamente bem definidas. $6 que na ciéncia os quebra- hitp:lwwiunicamp bri-chibenitextosddaticosistructure-sintese.him 28 ‘roa019 Sintose de A Estutura das Revolugdes Cienicas, de Tomas Kuhn cabegas nos so apresentados pela Natureza, Ao longo da exploragdo de um paradigma pode ocorrer que alguns desses quebra-cabegas se mostrem de dificil solugdo. O dever do cientista é insistir no emprego das regras © principios paradigméticos fundamentais 0 quanto possa, Utilizando a analogia, ndo vale, por exemplo, cortar um canto de uma pega do quebra-cabega para que se encaixe em uma determinada posigdo. ‘Mas no caso da cigneia esse apego ao paradigma, que é essencial, como indicamos acima, nfo pode ser levado ao extremo, Quando quebra-cabegas sem solugdo a que Kuhn denomina anomatias se multiplicam, resistem por longos periodos aos melhores esforgos dos melhores cientistas, ¢ incidem sobre dreas vitais da teoria paradigmatica, chegou 0 tempo de considerar a substituigo do proprio paradigma. Nestas situagdes de crise, membros mais ousados ¢ criativos da comunidade cientifica propdem altemativas de paradigmas. Perdida a confianga no paradigma vigente, tais alternativas comegam a ser levadas a sério por um néimero crescente de cientistas, Ins la-se um periodo de discussdes e divergéncias sobre os fundamentos da ciéneia que lembra um pouco o que ocorreu na fase pré-paradigmitica, A diferenga basica é que mesmo durante a crise o paradigma até entio adotado nao é abandonado, enquanto nao surgir um outro que se revele superior a ele em praticamente todos os aspectos. Quando um novo paradigma vem a substituir 0 antigo, ocorre aquilo que Kuhn chama de revolugdio cientifica, Grande parte das teses filos6ficas sofisticadas desse autor que se tornaram alvo de polémicas entre os especialistas ligam-se ao que ele assevera acerca das revolugdes cientificas. Conforme ja alertamos, no constitui propésito destas notas adentrar esse debate. eee KUNN, T. S. The Structure of Scientific Revolutions. 2 ed., enlarged. Chicago and London: University of Chicago Press 1970. ©S.S. Chibeni hitp:lwwiunicamp bri-chibenitextosddaticosistructure-sintese.him 38

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