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ENTRE A GRAMATICA TRADICIONAL E A GRAMATICA DE VALENCIAS Fatima Silva Faculdade de Letras da Universidade de Porto Centro de Linguistica da Universidade do Porto Introdugio Unissona! na caracterizacdo do perfil do professor de Portugués é a asser- Go de que este deve possuir uma formacdo tedrica profunda e diversificada no dominio da lingua ¢ da linguistica, garantida, de forma inicial, pela uni- versidade, e, a um nivel continuo, por um processo de auto-formagao. Ao dominio de toda a complexidade do sistema linguistic alia-se necessaria- mente uma consciencializagio da distancia que separa a especializacao lin- guistica da sua aplicagdo na sala de aula, o que se traduz na capacidade de construir um quadro teérico decorrente da sintese apreendida no dominio das investigacées linguisticas como base de uma gramitica cientifica a partir da qual se viabiliza a construgao de uma gramética pedagégica. Em consequén- cia, a pratica do professor fundar-se-4 em principios de autonomia e coerén- cia, activados na convicgao de que «a gramatica ensina 0 uso corrente da lin- gua, ensina a pensar de modo Iégico, forma o espirito, fornece um conjunto de conceitos para se compreender 0 fenémeno «linguagem», problematiza a norma linguistica, melhora a capacidade de expresso escrita, serve de muleta para compreender textos dificeis, aprofunda ¢ aperfeigoa a capacidade de comunicagao» (VILELA, 1993: 144). No sentido de contribuir para a explicitagdo do papel da linguistica na actuacao do professor, toma-se como objecto deste trabalho? a comparacao, em alguns aspectos, das propostas da gramdtica tradicional e da gramitica de * CE, por exemplo, MELLO, Cristina (1999); BARBOSA, J. Morais et alii, (1999); VILELA, Graciete ef alii, (1995). ? A autora agradece a Mario VILELA a produtiva leicura ica deste trabalho ¢ a sugestio do tema, 8 ‘cas do Coloquio A LINGUISTICA NA FORMAGAO DE PROFESSORES DE PORTUGUES valéncias em relacao ao tratamento da estrutura frdsica, instituindo-se como objectivo fundamental dessa andlise a validagao, pedagégica, da hipdtese da produtividade de solugées eclécticas? na abordagem de temas gramaticais em contexto escolar, decorrente da verificacao, linguistica, da produtividade da proposta da gramatica de valéncias para 2 solugio de algumas questdes susci- tadas pela andlise da gramatica tradicional. 1. A gramatica tradicional A gramitica tradicional teve origem em Alexandria, com Aristéfanes de Bizancio, Aristarco de Samotracia e Dionisio de Tracia, com a finalidade de fixar o uso literdrio do grego classico dos textos homéricos, tendo servido pos- teriormente de modelo a gramatica latina, na sua dupla funcionalidade de des- crigdo sistematica da lingua e instrumento do seu ensino. No Ocidente, 0 modelo greco-latino impés-se até ha bem pouco tempo, sendo ainda visivel na gramatica contempordnea a mesma exigéncia de base da gramitica geral, no que se refere, por exemplo, A sua capacidade de for- mular hipéteses sobre o funcionamento da lingua, através da formalizacio e construgao de sistemas, fundadas na observa¢ao de dados fornecidos por rea- lizacées linguisticas extraidas de textos literdrios ou criadas pelo autor. Esta metodologia est subjacente a um niimero considerdvel de gramaticas escolares, que dao ainda continuidade a muitos dos princfpios postulados pelo modelo referido quanto ao modo de organizagao do saber linguistico. No sentido de apresentar algumas das suas caracteristicas no ambito do topico em andlise, foi seleccionado o Compéndio de Gramética de Lingua Por- tuguesa, da autoria de J. M. Nunes de Figueiredo e A. Gomest, justificando- -se a presente opcio pelo facto de esta gramética servir, ha algumas geracées, como instrumento operatério para muitos alunos e de constituir um exemplo visivel da fixagio do modelo linguistico conducente a activacio do uso cor- recto da lingua. 3 A selcacio desta hipétese de trabalho fundou-se na convicgio, j4 presente em Anténio FRANCO (1989: 63-65), de que, se tcorias diferentes se prestam de modo também diverso para a descrigio dos Giferentes planos da lingua, optar pelas solugdes eclécticas no dominio da investigagio de dreas par- Giais da lingua no constitui de forma alguma uma solucao negativa. A sua produtividade residiria no facto de a opsio consciente por determinadas propostas descritivas de uma componente da lin- gua estar orientada para a resolugio dos problemas suscitados pelo ensino-aprendizagem do Portugués. + No tratamento do tépico em questo, a anslise desta gramatica seré complementada com o recurso pontual a Nova Gramatica do Portugués Contemporineo, de Lindley CINTRA e Celso CUNHA. ENTRE A GRAMATICA TRADICIONAL E A GRAMATICA DE VALENCIAS a 1.1. Alguns principios A gramiatica tradicional elege como unidades preferenciais a palavra e a frase, incidindo em aspectos morfol6gicos e sintdcticos. Fundando-se 0 domi- nio morfossintéctico da lingua no conhecimento dos padrdes fundamentais inerentes 4 construgo frasica, a andlise sintdctica das frases é feita a partir da consideragdo das fungées sintdcticas, perspectivadas em correlacio com a posigo que cada palavra ocupa na frase, as relagdes gramaticais, as relacdes estruturais ¢ as propriedades inerentes e contextuais de cada palavra’. A des- cti¢&o proposta por este modelo assenta, assim, numa classificagio funda~ mentalmente sintdctica dos termos da oracao, sendo a partir do verbo que se efectua a sua integracdo em classes. Os elementos integrantes ¢ caracterizado- res de cada classe constituem as estruturas sintécticas que devem ou podem co-ocorrer com 0 verbo. Da descri¢&o completa do contexto frasico resulta a possibilidade de se estabelecer uma tipologia de verbos, fundada basicamente na determinagao do ntimero e fungées que se seguem ao verbo, pois o consti- tuinte que o precede nao tem valor distintivo pelo facto de 0 acompanhar quase sempre e definir-se como um argumento que Ihe é externo. Neste enquadramento, os autores citados tomam como ponto de referéncia a ‘oragao’, definida como «uma palavra ou conjunto de palavras com que se faz uma afirmagdo» (FIGUEIREDO, GOMES, 1979: 53), uma unidade estruturada de varias posigdes, como demonstra o seguinte esquema, adaptado (ibidemt: 70). Elementos da oragio Sujeito verbal Fundamentais } Predicado | nominal verbo-nominal Directo Predicative do C. directo Indirecto, Agente passiva Cireunstancial Complementos do verbo Complementares Aposto Complementos do nome | Determinativo Atributo Vocative Expresso de cealee 5 A base para a classificacio dos verbos € a regéncia verbal, que permite distinguir dois grupos: o do sujcito ¢ objecto € o dos adjuntos adverbiais. Os primeiros constituem as fungdes de membros de frase que referem directamente 0 verbo e os segundos, funcées que nao tém essa caractetistica (VILELA, 1986: 21).

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