You are on page 1of 5

Scorsese em filmagem1

Celina Murga

Descoberta graças a seu lindo primeiro longa-metragem, Ana e os outros (Ana y los
otros, 2004), diretora de Una semana solos, que confirma todas as esperanças inspiradas
em sua estreia, e cuja produção está prevista para o primeiro semestre de 2009, e
ganhou o Rolex Mentor and Protégé Arts Initiative de 2008. Com isso, ela teve a
oportunidade de assistir a toda a filmagem do novo filme de Martin Scorsese, o thriller
Ilha do medo (Shutter Island, 2010), adaptado do romance de Dennis Lehane, com
Leonardo BiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley e Max von Sydow. Pedimos-lhe para
realizar um diário de filmagem para a Cahiers.

26 de abril de 2008
Primeiras impressões do roteiro. Kafka/Welles (O processo) Hitchcock/Depois de horas
ambientado nos anos 50 e transformado em film noir.
A história de um homem diante de seus medos.

27 de abril
Eu digo a Marty que o roteiro me faz lembrar de O processo (The Trial, 1962) de
Welles. Ele respondeu que esta era uma das principais referências desse projeto.
A influência de O processo: corredores, túneis e tetos baixos, claustrofóbicos.
Lente grande angular. Planos gerais. Uso do cenário em relação aos personagens.
Atmosfera absolutamente insuportável para o personagem.

28 de abril
Hoje choveu muito o dia inteiro.
Nós falamos sobre filmar sonhos, pesadelos, alucinações. O reino do devaneio. Sua
ideia é filmá-los o mais diretamente possível, como se fossem reais.
Conversamos sobre Buñuel: Os esquecidos (Los olvidados, 1950), sua sequência de
sonho favorita. O fantasma da liberdade (Le Fantôme de la liberté, 1974), A idade de
ouro (L'âge d'or, 1930), O anjo exterminador (El ángel exterminador, 1962).
Segundo ele, para aqueles que têm esses sonhos de pesadelo ou essas alucinações, essas
coisas são reais; o que os torna ainda mais aterrorizantes. Sua intenção é transmitir essa
ambiguidade: a distinção entre o reino da realidade e o do devaneio deve ser difícil de
ser feita. Isto, eu acredito, nos aproxima do ponto de vista do personagem principal,
Teddy. Muitos de seus filmes tendem a criar realidades distorcidas que geram a
sensação de mundos de pesadelo. Para muitos de seus personagens, a realidade é um
pesadelo vivido (Taxi Driver [1973], Depois de horas [After Hours, 1985]).

1º maio
Cena 44 Int. Cafeteria do hospital.
O OLHAR
Os diálogos são filmados em close-up, com os personagens olhando diretamente para a
câmera, o que produz um profundo desconforto. Esses monólogos dos pacientes que
erigem sua loucura são desconfortáveis para o espectador. Para Marty, o visual é muito
importante. Ele está plenamente consciente do poder cinematográfico do olhar, entre os
atores e também na direção daquilo que está fora do campo.

7 de maio
1
Publicado originalmente em Cahiers du cinema, n° 641, janeiro de 2009. Tradução de Julio Bezerra.
Cena 92. Ext. Promontório rochoso
Martin Scorsese e alguns de seus colaboradores discutem as diferenças entre o que eles
vêem no retorno do vídeo e o que será visto mais tarde na tela.
Ritmo: como obter tal ação no plano com timing adequado?
Escuta absoluta para o ritmo interno (plano) e externo (montagem, planos e como eles
se relacionam). Ele pensa muito sobre ritmo. Primeiro, determina a ação central, o
elemento-chave do plano, o ponto exato em que o plano indica o que ele deve ser. Marty
é muito claro sobre o valor do plano.

9 de maio
Scorsese fala de Roberto Rossellini ardentemente: O Absolutismo - A Ascensão de Luís
XIV (La Prise de Pouvoir par Louis XIV, 1966), Viagem à Itália (Viaggio in Italia,
1954), Francisco, Arauto de Deus (Francesco, giullare di Dio, 1950) Stromboli (1950).
"Rossellini mostra a alegria da espiritualidade", diz ele.

15 de maio
Cena 95. Ext. Promontório. Pôr do sol
Quando o personagem olha par alguma coisa (no campo, em contracampo, ou em cenas
de ação quando ele parece fora de quadro e seu olhar corresponde a um plano
subjetivo), ele é muito cuidadoso no ponto exato do quadro ao qual esse olhar se
direciona. Ele tenta diferentes possibilidades, às vezes com apenas alguns milímetros de
distância, até encontrar um ponto exato. Essas minúsculas diferenças alteram
substancialmente a relação entre percepção e visão do fora de campo, bem como a
maneira como o espectador está envolvido na ação. É assim que Scorsese controla as
tensões dramáticas.

16 de maio
Hoje, projeção dos copiões da cena 13.
Os planos, um após o outro, as imagens, uma sobre a outra: de Welles a Bresson.
Scorsese é um iconoclasta no interior do sistema.

10 de junho
Bonito dia, fresco e ensolarado. Para terminar do lado de fora, precisamos de dias
nublados. Hoje continuamos os interiores no armazém.
Cena 78. Platô. Sala C.
É asfixiante, claustrofóbico, um verdadeiro labirinto. Com essa cena, começo a ter uma
ideia melhor da edição. "A ideia é que a imagem lhe dê uma chance", Marty me disse há
alguns dias. "Filmar a ação a partir de diferentes ângulos, de modo que cada corte
também seja um golpe."
Nesta cena, uma sucessão de "golpes", portanto, diante dos meus olhos, em uma série
quase infinita de imagens evocando o ambiente, a prisão interior do personagem.
Hoje ele falou comigo por um bom tempo sobre essa sequência; ele pensa na estrutura
da montagem, no equilíbrio a ser encontrado entre o ritmo dos planos curtos e o das
duas ou três tomadas mais longas dessa sequência.

11 de junho
Cena 78. Int. Sala C. 2º andar.
Conversamos muito hoje. "Para mim, figurinos são os personagens", diz ele. Ele os vê
como um elemento crucial que conta a história do personagem. É por isso que em Os
infiltrafos (The Departed, 2006), onde eles não tinham nada de especial (o filme é
contemporâneo), ele escolheu se concentrar nos rostos.
Depois da conversa, lembrei-me do casaco de Travis em Taxi Driver (1976), as túnicas
de A última tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, 1988), vestidos e trajes
de New York Stories (1989), o Pupkin Rupert de O Rei da comédia (The King of
Comedy, 1982). Penso também em Os bons companheiros (Goodfellas, 1990), Cassino
(Casino, 1995) ... Aqui o Dr. Cawley (Ben Kingsley) fuma cachimbo: muito bom para
um personagem que em alguns planos está literalmente escondido em uma nuvem de
fumaça. Isso lhe dá a aura de malícia que ele precisa.

12 de junho
Estamos em um estúdio suburbano de Boston, um enorme depósito onde você se sente
muito pequeno. Este lugar é bastante repulsivo. Não importa para onde se olhe, os
cenários estão em construção. Todas as cenas filmadas aqui são envoltas em enormes
tecidos que não apenas escondem os cenários, mas também faz com que tudo se pareça.
Chego cedo de manhã. Quando volto ao set, duas ou três horas depois, dou de cara com
um enorme corredor que evoca imagens dos campos de concentração. O choque é forte,
este corredor não estava lá esta manhã. Não havia nada e, de repente, surge este
corredor frio, gigantesco e aterrorizante.

13 de junho
Cena 79. Sala C. Celas 3º andar.
"O roteiro é exatamente isso: informação pura", diz Marty. Nesta cena, a luz é usada
para a dramaturgia de uma maneira excitante. Há de um lado a luz da decoração (a
cela), que não funciona bem, como a história exige; liga e desliga em momentos
dramaticamente fortes da cena. E depois há a outra luz, que vem dos fósforos que Teddy
ascende, e que também se apagam. É poderosa a combinação dessas duas fontes de luz
que dependem da carga dramática do diálogo nesta cena.
Nesta sequência, a câmera assume muitas vezes literalmente o ponto de vista de Teddy.
Pacientes trancados em suas celas reagem vendo-os chegando e se aproximando deles.
Eles olham diretamente para o câmera e se aproximam dele. O efeito é bastante
perturbador.

18 de junho
Cena 117. Int. Farol.
Marty, Ben Kingsley e Leo estão sozinhos desde que chegamos. É uma cena longa e
complicada. O final dramático do filme.
Nós, o resto da equipe, estamos esperando. Vamos esperar e ouvir. Silêncio completo.
Todo mundo se ocupa lentamente de suas respectivas funções, para não fazer barulho.
Como em uma sala de parto. De certo modo, é onde estamos. Pouco depois, a filmagem
começa. Marty vê os planos e acompanha os diálogos balançando os braços e as mãos
ritmadamente como um maestro. Ele dirige enquanto filma e às vezes antecipa, com um
gesto, o que o ator está prestes a fazer.

19 de junho, o jogo, a montagem


É realmente emocionante vê-lo sempre encontrar a palavra certa para sugerir uma
instrução a um ator ou solicitar uma mudança de tom.
Seguir a inclinação de seu pensamento crucial também é interessante. Isso pode parecer
óbvio, mas sua concepção de linguagem cinematográfica é total. Ele entende
perfeitamente a importância da relação entre todos os elementos da encenação. O que
mais me surpreende, talvez porque tenhamos uma concepção diferente de linguagem
cinematográfica, é a maneira como ele vê a conexão entre o jogo dos atores e a
montagem. O modo como um ator joga durante a tomada é considerado em relação ao
plano anterior e ao seguinte. A sala de montagem é, portanto, o lugar definitivo em que
peças (planos) maravilhosamente montadas e desenhadas farão sentido umas às outras.
Alguns dias depois, Marty disse-me para preferir a sala de montagem ao set.
A cada nova tomada, Scorsese pede algo diferente de seus atores, um tom diferente. Ele
tenta várias coisas: com ou sem texto, com mais ou menos intensidade, velocidade,
pausas. Especialmente nas cenas de ação. Ele sabe que precisa de nuances para reservar
opções para a montagem, além de avaliar se trabalha cada plano em relação ao anterior
ou ao próximo.
É mais uma diferença entre o estilo dele e o meu. Nos meus planos, muitas vezes tenho
a sensação de capturar algo único, tendo que ser constantemente forçada para aquele
momento de verdade que um ator (profissional ou não) pode produzir. Eu digo a
verdade no sentido do real, porque eu também acho que dou um testemunho documental
do que acontece, e que ultrapassa os limites de uma tela. O que não significa que haja
menos construção ou menos controle. Eu acho que é uma busca pelo naturalismo. Às
vezes tenho a sensação de que meu trabalho é apenas a preparação de um solo, a
fertilização para o surgimento da verdade oculta de uma cena, uma situação, uma
personagem, uma verdade que deve surgir e se mover. Neste set de filmagem, tenho a
impressão de que isso pode acontecer a qualquer momento e repetidamente.
Cada plano construído por Scorsese refere-se à História do cinema, sempre presente.
Seu amor pelo cinema informa seu trabalho criativo. É um cineasta que entende que
essa bagagem é uma ferramenta maravilhosa.

23 de junho
Chegamos à ilha. O jipe leva um tempo pra pegar e pouco depois sai de quadro. Decide-
se então fazê-lo sair de quadro em primeiro plano. Oito homens são necessários para
fazê-lo mover, incluindo assistentes de produção e direção.
É bom ver que para além das diferenças óbvias e lógicas, um plano é muitas vezes
semelhante a outro plano; Existem certos traços idênticos. As melhores soluções são
sempre encontradas em equipe e a necessidade de dominar a narrativa continua sendo a
prioridade do diretor. O barco que é uma equipe de filmagem deve sempre ser pilotado
para chegar com segurança.

24 de junho. O autor e sua independência


MS. Há algo fundamentalmente quixotesco nos objetivos de Scorsese; a maneira como
ele parece querer alcançar o que é imenso e transcendente. O que dá ao filme seu tom
épico (ver Welles, que flutua livremente entre a tradição americana e a ideia europeia do
autor).
O espírito de independência do Quixote decorre de sua convicção de que um projeto
pode ser realizado pela pura força da paixão e determinação, quaisquer que sejam as
condições de produção. Martin Scorsese luta para defender seu olhar, seu lugar de
autoria, sua independência, quaisquer que sejam as estruturas de produção. Diante de
dificuldades, esse espírito ressurge e nisso me sinto próximo dele.
Este espírito de Don Quixote e tiranesco também informa as ações do protagonista,
Teddy.

25 de junho
Cena 121. Ext. Parque.
Cena final com Max von Sydow. Quase sem diálogo; Marty enfatiza a importância da
linguagem corporal.
Max von Sydow é um homem muito alto, um verdadeiro gigante. Ele é perfeito para o
papel - essa maneira de andar... Ele me lembrou do meu avô - cabeça oblonga, mãos
enormes, grande envelope corporal em um jaleco de médico. No primeiro dia, não tive
coragem de falar com ele. Marty insiste e eu finalmente ganho coragem. E descubro
com prazer como ele é simpático!

27 de junho
Hoje estamos falando da World Cinema Foundation. Ele me fala sobre os filmes mais
recentes que foram restaurados. Seu amor pelo cinema transparece em todos os seus
poros.
Ele é um diretor que está plenamente consciente da história do cinema e do seu lugar na
história social e cultural de um país e do mundo. Ele pensa tanto no passado quanto no
futuro: Scorsese conhece perfeitamente o seu lugar nisso, e seu compromisso com a
defesa da herança cinematográfica é total.

29 de junho
Muitas cenas são filmadas em três ou quatro dias seguidos; é uma atmosfera de intensa
concentração quando os atores, Martin Scorsese e o diretor de fotografia, estão
procurando novas ideias para explorar no set no dia seguinte. O filme é um local de
construção permanente, mesmo durante as filmagens. Cada detalhe do plano é
trabalhado com cuidado. O profissionalismo é total, mas não deve ser confundido com
automatismo (que muitas vezes é mal interpretado). Ser profissional não significa fazer
as coisas de maneira rápida e eficiente. É maravilhoso ver como, aqui, o
profissionalismo deixa margem de manobra à pesquisa artesanal, de modo que o set é
um lugar onde as perguntas são feitas, um lugar criativo onde o trabalho de cada um é
precioso e a paixão que todos eles têm pelo seu trabalho, óbvio. Há algo do espírito
amador nisso, sem que seu profissionalismo seja minado.
No set, sentimos um forte espírito de equipe. Marty, seu diretor de fotografia, seu
assistente e roteirista trabalham juntos, pensando e repensando a encenação, para
aproveitar ao máximo cada cena, torná-la mais complexa e interessante, dar a ela
diferentes níveis de leitura e produzir algo mais sutil e mais poderoso. O ponto de
partida é sempre o roteiro; nós sentimos que a cena básica está destinada a se
desenvolver com a encenação. É na sua encenação que o filme vive e respira.

2 de julho
Último dia de filmagem Muito quente. Novos takes É impressionante que os interiores
da balsa sejam construídos no mesmo estacionamento do corredor de Dachau. De um
lado, o Corredor de Dachau com os figurantes atrás do arame farpado. Nesta locação,
neva (artificialmente), no outro não. Essa justaposição quase surreal cria uma atmosfera
alucinatória no set. Cinema como a mais pura e fantástica das ficções-recreações.

You might also like