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2, Artifices da graga nacional: humoristas no Rio de Janeiro Hei de ter senspre a mentatidade de 1906: rua estreita, bonde de burro, casa de pasto, piada do Emilio de Menezes. Agrippino Grieco, Gralhas e paves, 1988 DILEMAS DA IMAGINAGAO NACIONAL E HUMORISMOS DA DESILUSAO REPUBLICANA Semanzrio alegre, politico, critico e esfuziantes noticia rio avariado, telégrafo sem arame, cronica epidémica; tiragem de cem mil quilémetros, por ora; colaboragae de graga, isto é, deespirito. “Apresentagao,em forma de subtttulo, da For- fort 1911 CO humor que perdura na Belle Epoque brasileira serd um humor quealme- ja cultivar a bonomia, que vé a si proprio como civilizador e cultor de gestos nobres,embora nem sempre esta imagem correspondaa realidade. H,em prin- cipio,a producio humoristica que surge ligada, quase toda cla, aosentimento és 66 desilusdo republicana que atinge a intelligentsia brasileira que passou pelos eventos da aboligao e da Reptblica. Abre-se um espaco para a representacao bumoristica pela inflexio provocada pelos préprios eventos e pelas promessas de transformagoes sociais que eles traziam. Contudo, se por um lado a aboligao ea inauguragao do regime republicano comecam aalimentar muitos sonhos e expectativas sociais, por outro virdo ape- nas aguear antigos dilemas:o que significava ser brasileironaquela realidade cada sez mais paradoxal, infinitamente variada, regionalmente diversificada e, sobre- sudo depois daqueles eventos cruciais, uma realidade indefinida em termos de futuro? Nos circuitos jé instaveis e pouco sedimentados da vida nacional, como cepresentar e conceber uma identidade de brasileiros, como sentir-se parte daquela comunidade politica imaginada chamada nagao? O pais, sufocado pelas estruturas escravistas, pela instabilidade populacional e econ6mica e pela inci- piente urbanizagio durante quase todos os decénios anteriores, encontrar iater- reno para se desenvolver com as mudangas desencadeadas na transigao para 0 periodo republicano? A interrogacao de Sérgio Buarque de Holanda, em conhe- da anilise do advento da Republica, pode se constituir numa sintese concisa este tema: “Como esperar transformacées sociais profundasem pais onde eram =antidos os fundamentos tradicionais da situagao que se pretendia ultrapas- sar?”!A Reptiblica criou uma cidadania precéria, porque calcada na manuten- So da inigitidade das estruturas sociais —acentuowas distancias entre as diver~ sas regides do pais, cobrindo-as com a roupagem do federalismo difuso da “politica dos governadores”, ou dando continuidade a geografia oligarquica do poder que, desde o Império, dilufa o formalismo do Estado ¢ das instituigdes.* A condigso agréria retrégrada esubalterna do pais,no contexto internacio- nal da uma segunda revolucao industrial ¢ tenolégica, também voltou a ser posta em relevo com as expectativas criadas pela aboligio e pela Repiblica. No Slano da vida humana, os processos de desestabilizagao das regides periféricas, erados pela revolucao tecnolégica, vieram consagrar a hegemonia européia sobre todo o globo terrestre, que viu seus modos de vida, usos, costumes, formas de pensar, ver e agir sufocados pelos padrdes burgueses europeus. O antigo eo moderno, o Império ea Republica eram sentidos como camadas pouco sedi- mentadas, numa sobreposigao de ritmos temporais diversos. O advento da Repiiblica viria proclamar, inicialmente, uma atitude de reptidio difuso a vida cotineira e aos arcafsmos, que seriam a propria negacao do progresso, como 67 Os impasses da passagem da Mo- narquia a Replica vistos pelo angulo htumoristico da auséricia ou dda recriagao de signifieadas. (“15 de novembro’, desenho de K. Lixto para a capa da revista Fon-Fon!, 13.11.1913.) “15 NOVEMBRO 'A Monarquia — Nao é por falar mal, mas com fran- queza...eu esperava outta coisa ‘A Reptiblica— Eu também!” forma de os individuos desamarrarem-se dos modos provincianos € das socia- bilidades geradas pela sociedade escravista. Assim, uma atmosfera que ansiava por cosmopolitismo, geradaa partir do Rio de Janeiro, auténtica capital cultural do Brasil na Belle Epoque, percorteo pais numa ansia séfcega pela europeizacio ce pela modernizagao. $e asua difustio foi, com efeito, pouco abrangentee limita- daasincipientes manchas urbanas no Brasil de fin-de-siécle, seu efeito descon- certante foi, por isso mesmo, maior e mais profundo. Se durante a independén- cia esta mesma ansiedade expressava-se, culturalmente, pela atragao € busca de raizes nativistas e pelo “desejo de ser brasileiros” — na expresso de Antonio 68

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