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VITIMAS OU CUMPLICES?
Dos diferentes caminhos da produçao acadêmica
sobre violência contra a mulher no Brasil
Introduçao
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di fi cu 1dade dé acesso aos re 1atôr ios f ina is de pesqu isa quanto por
considerá-los de alguma forma uma produção "engajada"(2)
Uma primeira análise do conjunto dos estudos sobre a
violência contra a mulher me leva a sinalizar diferentes abordagens
teóricas da questão: uma, mais generalizante, que opera com o
conceito de violência utilizado como sinônimo de opressão masculina
(3); uma outra, majoritária nos trabalhos analisados, que escolhe a
violência conjugal ou doméstica como locus privilegiado de análise
da situação estrutural da mulher na sociedade brasileira; uma
terceira, mais recente, parece apontar ora para uma redefinição da
problemática da violência a luz dos estudos de gênero, ora retorna a
uma abordagem feminista da violência, com a recuperaç~o do
si gn ificado ma is amp lodo conce ito ,li gado a id~ ia de op ressão da
mu 1her. Estas tr~s abordagens estâo, no meu entender, re 1aci onadas
com a propria transformação teórica ocorrida no seio do campo de
estudos sobre mulher no Brasil(4).
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tal. Parte-se do pressuposto militante de que o"fato de ser mulher
basta para a pesquisadora assumir uma postura de "subjetividade" que
a permita entender as outras mulheres, pois todas são potencialmente
"vítimas de violência". Ora, nâo basta ser mulher para entender a
violência, pois se assim o fosse, estaríamos não só excluindo os
homens da produ~âo te6rica deste campo de saber, como
desconsiderando as diferen~as entre as pr6prlas mulheres,
acreditando numa "ess~ncia feminina" desvinculada de toda e qualquer
historicidade e pertinência social. Heloisa PONTES expl icita este.
"armadilha positivista" na introdu~ão de sua tese: "...Percebi que a
identi"fica'iao subjetiva e polftica com as integrantes do movimento
conduzia-me nâo à elaboração de uma análise antropológica sobre o
"feminismo, mas antes a ree "fi rmaçào , travestida de cienti"ficidade,
das categorias e exp 1icaçôes "net: ivas", isto é, "femin istas"
(11:1986). Sem desconsiderar que a subjetividade do pesquisador é um
, , .
elemento importante na esco 1ha do objeto, creio que e necessan o
também relativizar o discurso feminista impli'cito em grande parte
dos trabalhos sobre este tema, relativização sugerida em três teses
escritas sobre os SOS Mulher de são Paulo e de Porto Alegre
(GREGORI:1988, GROSSI:1988 e PONTES:1986).
vâr ios sâo os pontos em comum destas teses (ainda pouco
citadas nos trabalhos posteriores talvez pela própria dificuldade de
acesso a este tipo de publicaç§o). Os três trabalhos foram feitos na
área de Antropologia, com a postura metodológica de "observação
participante" , os três se propoem a entender a violência a partir
da experiência militante alternativa dos SOS, todos tem a
preocupaçao de relativizar o discurso "nativo" feminista e
comprender que discurso é esse. No entanto, cada uma destas teses
aborda a problematica sob um ângulo diferente que resumo a seguir.
Heloisa Pontes nâo se propõe a estudar a violência, mas
sim utilizar-se da experiência "sintética" do SOS Mulher de sâo
Paulo para comprender como o feminismo brasileiro constrée um
discurso sobre a condiç~o feminina e indiretamente tambem a
masculina, pois trabalha com oposiçÕes binárias. Ela argumenta que o
feminismo opera com uma categória total izante: a mul her, pois se
propõe a criar um novo la~o entre as mulheres fundado numa
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identidade comum de igualdade. O conceito de opressão servirá para
tornar as mu 1he res isua is : "A opressão ganha nessa conce itua 1ização
um carater 'universalista', pois supõe que, por trás das diferen~as
sociais, exista uma identidade feminina que se afirma pela
interdição" (1986:26).
Pontes sustenta que o femi nismo cri a uma forma de ver e
v ive r o mundo baseada numa "pedagog ia do fem in ismo": Pedagog ia que
se baseia no prazer de viver entre mulheres. Seria mais f!cil assim
nomear o inimigo, o homem espancado r , carrasco, cruel. Acredito que
esse sentimento de irmandade, que as feministas do primeiro mundo
chamaram de sororidade, pouco existiu no feminismo brasileiro. O
,
caso do SOS de Sao Pau 10 t mu ito ma is pontua 1 do que parad igmàt ico
nesse sentido.
PONTES E GREGORI (1983) descontróem a crise do SOS de são
Paulo a partir do conflito que chegou a agressâo ffsica entre duas
mulheres albergadas. Elas mostram como a realidade da relação entre
duas mulheres nâo feministas acolhidas na sede do SOS, é bem
diferente do "mar de rosas" em que viviam as militantes, acreditando
que a solidariedade entre as mulheres era a soluçao para a superaçâo
da opressão das mulheres.
Em minha tese analisei a crise e a autodissoluçao do SOS
de Porto Alegre à partir da cri se interna provocada pe 10 brutal
suicidio de uma das militantes fundadoras do grupo. Este suicidio
também abalou as estruturas militantes, pois remeteu á incapacidade
do grupo gaàcho de viver a sol idariedade tao propagada entre as
feministas no atendimento dos plantões.
Segundo Pontes, predominavam dois principios no projeto do SOS:
além da solidariedade, a conscientizaçao das mulheres. A cultura
feminista apontava para a idéia de que a soluçao para a violência,
principalmente a conjugal, era de que as mulheres poderiam
"prescindir dos homens". Todo o projeto de consc i errt t zaçâo passava
por ai, mas a grande contradição era de que as mulheres que iam lá,
espancadas, nao prescindiam de seus maridos. O objetivo da
conscientização das mulheres vitimas de violência seria, por um lado
"despertá-7as para o fato de que s~o oprimidas; e de outro estimular
a solidariedade entre elas" (PONTES:1986). Gregori vai mais além ao
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I
3. Crimes e julgamentos
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da mob i lt zaçâo feminista e da criação das Delegacias da Mulher, a
Justiça parece continuar seguindo a mesma lógica dos processos
estudados por CORREA (1983).
O estupro, como crime contra a mulher, parece ter
despertado pouco interesse entre as pesquisadoras da área, seguindo
talvez a mesma lógica oculta de esquecimento da questão seguida pelo
movimento feminista brasileiro. INGELFRITZ DA SILVA (1985) em sua
tese defendida na área do Direito analisa tanto o discurso jurídico
sobre o estupro, à partir de processos, quanto o discurso dos
próprios juizes sobre a violência contra a mulher. Partindo da
hipótese de que "o direito penal é um dos principais mecanismos
institucionais, sobre o qual se funda a reprodu~âo
assimétrica dos sexos na sociedade, permanecendo refratário às
mudan~as em profundidade que possam alterar o quadro tra~ado por
essa desigualdade" (1985:109), ela conclui que n~o é apenas o
discurso da lei (norma, doutrina, jurisprudência) que discrimina a
mulher mas sobretudo o discurso do juiz, que como aplicador destas
regras, pode dar o parecer que quizer baseado em seus próprios
preconceitos camuflados sob a capa do regras jurídicas. Neste
sentido DA SILVA (1985) e ARDAILLON & DEBERT (1987) concordam que a
Justica se mostra impermeável às mudancas ocorridas no comportamento
de homens e mulheres em nossa sociedade. Tese contestada por CORREA
(1986) que vê a Justica mudando sob pressão dos movimentos sociais e
se pergunta se as mulheres estariam realmente dispostas a mudarem
esta situa~âo estrutural na qual se encontram presas, uma vez que
sendo tratadas como iguais elas perderiam as prerogativas que a
Justica sempre lhes deu ao absolverem-na dos crimes que cometiam.
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debate sobre mulher e violência" de Marileria CHAUI (1984) e
"Mulheres: lugar, imagem, movimento" de Maria Celia PAOLI (1984).
Em "A De 1egac ia de Costumes e os costumes da De 1egac ia"
ALVES. MEDEIROS e VON SMIGAY (1985) dão' exemplos grotescos de como
as mulheres eram tratadas nas Delegacias tradicionais, fazendo-as se
sentirem culpadas pela violência sofrida.
discussão da cidadania muda de eixo por volta de 1985
A
com a criaT~o dos Conselhos de Direitos da Mulher e das Delegacias
~
de Defesa da Mulher. Neste momento as preocupaçoes ficam mais
voltadas para as rela~ôes das mulheres com o Estado. Os grandes
impasses do momento sâo em torno do desejo de ver algumas solu~ôes
propostas pelo movimento serem assumidas pelo Estado mas ao mesmo
tempo os receios das lutas serem esvaziadas neste processo
(CORREA:1986). Algumas como ARDAILLON (1989) sao mais otimistas
sobre este processo, acreditando que os problemas surgidos nas
Delegacias são similares aos surgidos nos SOS Mulher e que face aos
impasses do "vitimismo" podem ser buscadas solu~ôes no feminismo.
Esta análise reflete um momento aureo das relaç~es Estado/Feminismo,
entre 1985 e 1988, quando o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
dispoe de verbas e executa inúmeros projetos militantes. No entanto
com o final do Governo Sarney e "Era Collor", a tendência ainda
inc ip iente nos estudos é a red iscussâo do conce ito de C idadan ia a
luz da avalia~~o da experiência, para algumas vitoriosa, para outras
fracassada, da relarao movimento social/Estado.
Num artigo recente, Alba ZALUAR (1990) retoma a
problemática da violência e da cidadania sob um outro Sngulo: o das
percep~~es de mulheres do Rio de Janeiro sobre a violência social da
qual são vítimas. O texto, que no furor do feminismo dos anos 80 nâo
seria considerado como um texto de violência contra a mulher pois
nâo trata da violência conjugal, traz dados muito significativos
sobre a s i t.uaçâo de vitimizacao da mulher. Por exemplo: 60% das
mulheres que responderam a pesquisa foram assaltadas pelo menos uma
vez na vida; 88% delas tiveram alguém da familia assaltado. Estes
dados, pensados a luz das teorias sobre relacoes de genero, ajudam a
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pensar nas razoes que levam as mulheres a serem mais numerosas nas
propostas de extermínio de assaltantes, o que em princípio feriria
12.
~
tanto o projeto feminista, de cidadania, quanto concep~oes mais
gerais de direito a cidadania ligadas a defesa dos Direitos Humanos
(e por conseQuencia contra a Pena de Morte). Zaluar explica: "Entre
as mulheres, parece Que a experiencia de alguém da
f am f l t a importa mais para acionar esse espírito, o Que ê coerente
com o conhec ido fato de •••
Que sao e 1as as ma is 1igadas ao espa~o
doméstico, seus interesses e sua lógica, enquanto os homens,
re 1at ivamente ma is afastados dessa 1óg ica, se gu iam ma is pe 1a do
mundo viril da rua e pelas injunções do mercado de trabalho."
(1990:14)
É interessante observar que esse tipo de abordagem coincide com
uma reorgan izaçao da soc iedade c iv i1 e dos mov imentos soc ia is em
torno da Questão da violência. Podem ser citados aqui como exemplos
o movimento contra o ex~rminio de menores, o movimento contra a pena
de morte, os foruns contra a violência, etc. Também no interior
desses movimentos é vivenciado o impasse em torno do significado e
da amplitude do conceito de violência em rela~~o à idéia de opressao
em geral.
.,.
CONSIDERAÇOES FINAIS
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(6)Concordo em parte com as criticas que Otavio Velho (1991) faz ao
uso indiscriminado do Relativismo dentro da Antropologia,
descaracterizando o engajamento do Antropologo face aos cruciais
problemas brasileiros.
se afinal a violência contra a mulher existe? E face aos inúmeros
exemp 1os que todos os estudos expôe cont inuamos observando que no
cotidiano de um casal em crise quem apanha é a mulher; que nos lares
e nas ruas sâo as mulheres que sâo violentadas. Como conciliar nosso
relativismo com a situaç~o concreta de desigualdade e de desrespeito
a cidadania da mulher?
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rr
tenha sido pub1icada no lnlClO dos anos 80 e n;6 mais recentemente
quando a violência contra a mulher já foi analisada com maior
profundidade.
Dentro da academia, a discussâo· atual sobre a amplitude do
conceito de violência retoma, num certo sentido, o impasse em torno
do significado do conceito de cultura. Esse impasse é descrito por
Geertz (1978) quando discute o conceito antropologico de cultura a
partir da infinidade de definiçôes em torno dele, o que ele chama de
"pantanal conceitual". Ele propoe, em contrapartida, o limite, a
especificaçao, a reduçao do conceito de cultura a uma dimensao
justa, que realmente assegure a sua importancia" (p.14). Talvez essa
mesma necessidade teórica esteja colocada hoje para quem tem como
objeto a violência contra a mulher, categória dentro da qual tem
entrado todas as situaçôes mais genéricamente descritas como
situaçôes de opressao ou dominação. Por outro lado, o próprio campo
teórico dos estudos das relaçôes de gênero acaba apontando para uma
abordagem bem mais relativizadora do conceito de violência, na
medida em que propôe um enfoque relacional da construçâo do gênero.
Esta sessao da ANPOCS sobre violência contra a mulher
abrange temas como prostituiçâo, controle do corpo da mulher,
estupro familiar, discriminaçao da mulher negra. Coloca-se novamente
a questao sobre o significado dessa ampliaçao do conceito de
violência: seria uma nova abordagem ou o retorno a visao de
Y\
violência como sinonimo de opressao?
"
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Bibliografia de referência
It
(org.) Vivência: História, sexua 1idade e imagens femin inas,
FCC/Ed. Brasiliense, 1980.
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