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Revista Mercuryo

http://www.clotildenews.digi.com.br/saude.htm
Acesso: 01/03/2009

A MATRIZ INVISÍVEL DA SAÚDE

Veja neste artigo: O modelo biomédico de atenção à saúde. A prática da medicina e a


relação médico paciente. O sistema de saúde e a máquina de fabricar doentes. O
especialista: sabendo cada vez mais sobre cada vez menos. Uma visão holística da saúde.

O modelo biomédico

Apesar do grande desenvolvimento da ciência e da tecnologia médica nas últimas décadas,


o homem ainda não conseguiu acabar com o fantasma da doença que, apesar de todo o
progresso, continua a lhe desafiar. No mesmo noticiário de TV em que vemos cenas do
último transplante de coração, fígado e pulmões, ou onde se discute a possibilidade de
escolha do sexo e até da cor dos olhos do futuro bebê pelos pais, assistimos também às
notícias trágicas do avanço da AIDS, das doenças cardíacas, do câncer e, como se não fosse
o bastante, da cólera, da dengue e da febre amarela, doenças que julgávamos relegadas às
crônicas do século passado e que agora ressurgem para ficar, parece que por muito tempo.

O noticiário também mostra as longas filas nos postos de atendimento à saúde pública, os
pacientes morrendo sobre macas nos corredores por falta de médicos nos pronto-socorros,
as cenas medievais nos hospitais psiquiátricos, os medicamentos inócuos ou até prejudiciais
que são colocados à venda por laboratórios inescrupulosos.

Não poderia ser diferente. Predomina na sociedade ocidental uma forma de encarar o corpo
humano e os problemas relativos à saúde e à doença segundo uma ótica própria e
particular, baseada no paradigma newtoniano-cartesiano de explicação da realidade.
Fundamentado nas idéias de Newton e Descartes, este paradigma tem como características
principais o determinismo (conhecendo-se as leis causais dos fenômenos é possível
determinar a sua evolução), o mecanicismo (concepção do universo como máquina,
sujeito a leis matemáticas), o empirismo (apenas o conhecimento a partir de fatos
concretos tem valor científico) e a fragmentação (a decomposição do objeto de estudo em
suas partes constituintes).

Este paradigma serviu de modelo no século XVIII para a estruturação da maioria das
ciências e práticas que hoje dominam a nossa sociedade, incluindo-se aí a Medicina como
hoje é praticada baseada na Fisiologia, na Biologia, na Bioquímica, ciências estruturadas
também nesse mesmo período e seguindo esse mesmo paradigma. Baseado neste
paradigma é que o modelo predominante de prática médica na sociedade ocidental, o
chamado modelo biomédico, tem como características principais as seguintes:

a) o corpo humano é (ou funciona como) uma máquina;


b) a saúde é o funcionamento perfeito dessa máquina e a doença uma avaria;
c) cabe ao médico consertá-la.

Esse modelo determina:


a) a prática da medicina, que se caracteriza basicamente pela forma como se dá a relação
médico-paciente;
b) a organização dos sistemas de atenção à saúde;
c) a formação de recursos humanos na área de saúde, incluindo aí a formação médica.

A relação médico-paciente

A relação médico-paciente é talvez uma das relações mais ricas em significados que se
estabelece entre dois indivíduos. Quando uma pessoa adoece e procura um médico seus
objetivos são, à primeira vista, muito simples: ela quer ser tranquilizada, compreendida,
aliviada e curada no mais breve espaço de tempo, da maneira menos incômoda e mais
barata possível. Ora, o médico, que compartilha daquela visão do corpo como máquina,
raramente considera a dimensão humana do seu doente e poucas vezes o vê como uma
pessoa que se sabe doente, sabe algo sobre a sua doença e tem algum tipo de idéia sobre a
cura.

O conceito de doença também difere, dependendo da ótica pela qual é visto. Para o médico,
é uma alteração do equilíbrio físico ou psíquico, caracterizada por um conjunto de sintomas
e sinais clínicos que devem ser pesquisados através de uma série de exames, levando a um
diagnóstico, com terapêutica e evolução determinadas. Para o doente, a doença é um
transtorno que lhe impede de trabalhar, lhe acarreta perda de tempo e de dinheiro e lhe tira
a tranquilidade, fazendo-o vivenciar um dos mais antigos sentimentos do homem: o medo
da Morte.

Configura-se aí uma situação singular: tem-se frente a frente duas pessoas, uma das quais
se encontra em situação privilegiada de dominação sobre a outra e com idéias totalmente
contrárias sobre o mesmo episódio que os uniu: a doença.

Uma relação de poder

Por imposições de ordem econômica a que é submetido, o médico é geralmente um homem


atarefado, com horários a cumprir, limitado por normas da empresa médica a que serve,
seja ela privada ou pública. Durante a consulta, surgem novas perplexidades. O paciente é
submetido a um interrogatório recheado de perguntas para ele totalmente destituídas de
sentido e de qualquer utilidade prática.

A pressa em atender faz com que o médico se impaciente com a demora nas respostas e o
resultado é um paciente atemorizado, confuso e finalmente mudo, sendo frustrada aí
qualquer possibilidade de comunicação. Ao fim da consulta, levando na mão uma receita
escrita com letra incompreensível e que não lhe foi sequer explicada, o doente se vê
invadido por um sentimento de abandono e frustração que anula qualquer intenção de
seguir a orientação médica.

Finalmente, a relação médico-paciente se processa como uma relação de poder, autoritária,


onde se exige a submissão do doente ao "aparelho médico" e isso se faz limitando o
controle que o leigo exerça ou possa exercer sobre o saber médico. O poder médico se
exerce tanto pelo domínio de termos e técnicas próprias inacessíveis ao leigo como pela
interferência cada vez mais ampla em domínios até então da competência do próprio
indivíduo, como os cuidados com a gestante, o parto e os cuidados com a criança, por
exemplo.

Eventos que antes aconteciam de forma natural são tecnificados, medicalizados, e o


indivíduo vai se tornando cada vez mais incapaz para lidar com os aspectos fisiológicos de
sua vida como, por exemplo, o parto, a amamentação e os cuidados com as crianças. Nem
a Morte consegue escapar da invasão da técnica, já que não se permite mais que o paciente
morra sossegado. Em vez de morrer dignamente em sua cama, cercado pelo afeto e
compreensão dos familiares, fazendo suas últimas recomendações, o indivíduo fica numa
fria e impessoal sala da UTI, perfurado por agulhas e conectado a tubos, porque a medicina,
por não saber lidar com a Morte, recusa-se a permitir que ela aconteça, seguindo o curso
natural da Vida.

A máquina de fabricar doentes

Os serviços de atenção à saúde, tanto públicos como privados, também se organizam de


acordo com a concepção mecanicista do organismo. Assim é que existe a organização
hierarquizada dos serviços de saúde pública, com graus crescentes de especialização, onde
o doente penetra no sistema e vai caminhando ao longo dele como numa imensa linha de
montagem até chegar aos grandes centros de tecnologia médica cujo apanágio é o Instituto
do Coração de São Paulo.

Concebido como uma máquina, o sistema deve ter a capacidade de absorver a maior
quantidade possível de indivíduos doentes e devolvê-los como saudáveis. Para isso, grandes
quantias são gastas no aperfeiçoamento da máquina, para que ela tenha condições de
processar uma quantidade cada vez maior de doentes. Essas quantias são desviadas da
medicina preventiva e de outros programas que impediriam ou diminuiriam a ocorrência de
doenças. E esse é um problema difícil de sanar pois, como já se investiu bastante na
máquina, não se pode agora desativá-la, o que fatalmente ocorreria se a medicina
preventiva diminuísse o número de doentes. É semelhante a aumentar o contingente e
equipar cada vez mais a polícia para acabar com a violência. O máximo que se pode
conseguir é transformar a sociedade numa praça de guerra, com dois exércitos - policiais e
bandidos - a se entrematarem furiosamente.

Parece que já nos encontramos perto dessa situação no que se refere à saúde pública. De
um lado uma estrutura gigantesca de atenção à saúde com todos os vícios e problemas
acarretados pelo seu exagerado tamanho. Do outro, um número cada vez maior de pessoas
doentes, que buscam - e raramente conseguem - tratamento médico adequado.

A arte do diagnóstico

Um terceiro aspecto é a formação de recursos humanos na área de saúde. E aqui saliento


principalmente o treinamento do médico, pois esta é a categoria que desfruta de maior
status nessa área, e suas concepções servem de modelo para a maioria dos outros
profissionais.

O médico é um profissional treinado para fazer diagnósticos. A nosologia, ou seja, o


conjunto de doenças estudado na escola médica, é geralmente aquilo que se chama
"doenças universitárias", quadros clínicos bem delineados, sintomas e sinais aparecendo na
ordem determinada, métodos diagnósticos e terapêutica acompanhando o quadro. Os
professores têm o hábito de selecionar para as aulas práticas aqueles pacientes "típicos",
que apresentam o quadro clínico como descrito nos compêndios, o chamado paciente "de
livro".

Na prática diária, porém, os pacientes apresentam habitualmente quadros obscuros,


superpostos, sintomas vagos e indefinidos. Aos agentes etiológicos tradicionais, como os
vírus e as bactérias, somam-se aqueles mais imponderáveis e que não são controláveis por
medicamentos ou conduta terapêutica específica: stress, poluição, subnutrição, acidentes de
trabalho e neuroses, todos decorrentes da deterioração da qualidade de vida. Nesta
situação, o profissional pouco pode fazer pelo seu doente, até porque não foi preparado
para lidar com essas questões.
A formação médica na maioria das escolas é dissociada das preocupações sociais. Questões
fundamentais que dizem respeito a condições de habitação, alimentação, educação,
emprego, migrações, meio ambiente, cultura e tradição são raramente discutidas. Tudo
aquilo que extrapola o biológico é relegado a segundo plano e encarado com pouco
interesse, como "problema social", da alçada de outros profissionais, e não do médico.

O médico não é preparado para trabalhar a Dor e a Morte. Isso se revela na falta de
habilidade com que ele trata essas duas questões que são tão frequentes no seu dia a dia. A
Dor é reduzida a um sintoma e tratada pela negação, com analgésicos, sem que seja
buscado primeiro seu significado. Na prática diária, o médico ignora a dor do paciente,
chegando por vezes às raias da insensibilidade. Quanto à Morte, é considerada uma
"inimiga", que ele precisa "derrotar", arrancando o paciente de suas "garras". Quando não o
consegue e vê "perdida" a batalha, muitas vezes abandona o paciente à própria sorte,
desaparecendo do hospital na hora em que a família e o paciente mais precisam dele, não
para evitar a morte mas para ajudá-los a superar o trespasse.

Talvez em virtude desse stress psicológico de ter que lidar com questões profundamente
existenciais para as quais não está preparado, e por enfrentar no exercício da profissão
uma competitividade tão exagerada, estudos publicados nos Estados Unidos mostram que
as condições de stress em que vivem os médicos os colocam, ao lado dos publicitários,
entre os profissionais que apresentam maiores prevalências de alcoolismo, suicídio e
enfarte, além de viverem dez a quinze anos menos do que a maioria da população.

O especialista

À medida que acontecem os progressos da ciência, a Medicina se transforma cada vez mais
no terreno da especialização. O clínico geral, ou o médico de família, não mais existe, tendo
sido tentada várias vezes - sem sucesso - a sua ressurreição por alguns programas do
governo. Os meios de comunicação, por sua vez, cercam de uma aura quase divina os super
especialistas, aqueles que só operam o dedo polegar da mão direita ou os que interpretam
apenas a onda P do eletro-cardiograma. A medicina, refletindo o dualismo cartesiano,
continua a se dividir em dois setores estanques: a clínica, que cuida do corpo, e a
psiquiatria, que cuida da mente, como se a mente e o corpo fossem coisas separadas, como
se não fizessem parte de um todo uno e indivisível.

É claro que com o avanço da tecnologia médica muitas situações que antes levavam o
paciente à Morte não são mais fatais hoje em dia. Conseguimos controlar muitas doenças
que há cinquenta anos atrás ceifavam vidas preciosas e melhoramos as condições de vida
de muitos pacientes que hoje viveriam miseravelmente sem o concurso de aparelhos ou
medicamentos atualmente utilizados.

Não se trata, portanto, de abolir a especialização. O clínico geral não pode dominar todos os
campos do saber, mesmo porque o progresso científico é muito rápido, e seria impossível
acompanhá-lo nas suas mais diversas frentes. Não obstante, a ênfase na especialização faz
com que se perca de vista a totalidade do ser humano e o funcionamento do organismo
como um sistema vivo cujos componentes são interligados e interdependentes, e fazendo
parte de sistemas maiores que o afetam mas que podem também ser por eles modificados.

O resgate dessa percepção ecológica exige modificações profundas na nossa forma de


perceber as questões relacionadas ao processo saúde-doença, além de implicar no desejo
sincero de assumir a responsabilidade pessoal pelo bem-estar de cada um, tanto a nível
individual como coletivo, e o entender a totalidade como qualidade inerente e básica ao ser
humano.
Uma abordagem holística da saúde.

A primeira e fundamental característica dessa abordagem é entender que saúde e doença


em sentido absoluto não existem. Ambas fazem parte de uma totalidade, de um processo, e
a prova disso é que não se consegue definir uma sem falar na outra. É, portanto, preferível
referirmo-nos ao "processo saúde-doença", expressão esta que se aproxima mais do que
queremos transmitir.

Dentro da visão holística, o estado de saúde pode ser definido como um estado de harmonia
entre o corpo, a mente e o ambiente. Nele, o indivíduo traz dentro de si, harmônicas e
equilibradas, as duas tendências básicas dos organismos: a tendência auto-afirmativa,
que o faz identificar-se como indivíduo único e pessoal, consciente de sua individualidade, e
a tendência integrativa, que lhe dá a consciência de ser e se sentir parte de todos maiores,
integrando-se na harmonia cósmica.

É por isso que, dentro desse enfoque, não se vê a doença como um conjunto de sinais e
sintomas, que devem ser suprimidos ou controlados por medicamentos ou procedimentos
terapêuticos agressivos. A doença é tão somente reflexo de uma desarmonia ou de um
conflito e deve ser observada e estudada para que se busque a causa subjacente. Essa
observação pode incluir variados instrumentos e procedimentos para diagnóstico e
tratamento - alguns até não ortodoxos.

Em vez da ênfase nos medicamentos e cirurgia, privilegia-se as técnicas não agressivas


como exercícios físicos, regimes alimentares, e a busca da integridade corpo-mente através
de técnicas as mais variadas que vão desde as disciplinas físicas como dança, ioga, tai-chi-
chuan até disciplinas espirituais como meditação. O efeito placebo deixa de ser encarado
como um "truque" que dá certo apenas em pessoas "nervosas" ou impressionáveis e passa
a ter a sua dimensão real, que é a de ativar capacidades previamente existentes no cérebro
que podem levar à cura, demonstrando de forma cabal o papel da mente na geração da
doença e sua consequente potencialidade para afastá-la.

Ao contrário do modelo biomédico, no qual se privilegia o dado quantitativo obtido em


laboratório através de testes e exames, na visão holística o diagnóstico se baseia
principalmente em dados qualitativos como os relatos subjetivos dos pacientes e na própria
intuição de profissionais.

Exatamente por isso é que se exige um envolvimento emocional com o paciente que não
existe e é até condenado pelos mestres durante a formação médica. Esse envolvimento é
considerado fator importante para a compreensão que ambos - médico e paciente - terão do
processo e implica em transformar radicalmente tanto a relação entre os dois como cada um
individualmente. Aí, é necessário que o médico abdique do poder nessa relação, abra mão
de sua autoridade e passe a se colocar como parceiro terapêutico, conferindo ao paciente a
responsabilidade pelo seu próprio tratamento, ajudando-o como profissional treinado a
encontrar o caminho de sua cura.

Nesse contexto, a cura é buscada não apenas na eliminação dos sintomas mas num
movimento para restabelecer o relacionamento com o universo, um sentimento de que é
possível ter a integridade e saúde de volta tão logo sejam descartados os sentimentos e
emoções negativas como o medo, o ceticismo, a raiva e a frustração.

Nessa abordagem, o corpo e a mente não são separados, e os males psicossomáticos são da
alçada de todos os profissionais de saúde e não apenas dos psiquiatras. A doença mental
passa a ser vista como uma falha na avaliação e na integração da experiência e os sintomas
refletem tão somente a tentativa do organismo de curar-se e atingir um novo nível de
integração. Por isso não devem ser suprimidos mas trabalhados, para que o novo nível seja
atingido.

Uma nova especialidade médica?

A saúde holística não é uma especialidade, nem uma disciplina que, por uma reforma
curricular, passe a ser ensinada na escola médica. Ela é uma perspectiva, uma forma de
abordar a realidade na busca de superar o dualismo, a fragmentação e o mecanicismo
newtoniano-cartesiano. Implica em uma revisão da nossa própria maneira de encarar e de
viver no mundo, tanto como terapeutas como quanto pacientes. Propõe uma nova forma de
perceber e tratar a tensão, de aceitar a responsabilidade pelas nossas ações e permitir que
os outros assumam as suas. Valoriza a noção de um objetivo, de um projeto de vida e
busca relacionamentos humanos mais satisfatórios e mais criativos.

Finalmente, faz-nos reconhecer o profundo significado da dimensão espiritual no esquema


do universo e nos mostra que a harmonia que buscamos não pode ser encontrada em
medicamentos, tratamentos ou terapeutas, por melhores que estes sejam. Essa harmonia
está dentro de nós, emana da nossa essência divina, do corpo-mente, que é a verdadeira
matriz invisível da saúde.

BIBLIOGRAFIA

BOLTANSKI, Luc. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro, Graal, 1979.


CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo, Cultrix, 1986.
FERGUSON, Marilyn. A conspiração aquariana. Rio de Janeiro, Record, 1990.
GROF, Stanislav. Além do cérebro: nascimento morte e transcendência em
psicoterapia. São Paulo, McGraw-Hill, 1989.
ILLICH, I. Nêmesis da medicina: a expropriação da saúde. 3. ed. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1975.

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