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http://www.clotildenews.digi.com.br/saude.htm
Acesso: 01/03/2009
O modelo biomédico
O noticiário também mostra as longas filas nos postos de atendimento à saúde pública, os
pacientes morrendo sobre macas nos corredores por falta de médicos nos pronto-socorros,
as cenas medievais nos hospitais psiquiátricos, os medicamentos inócuos ou até prejudiciais
que são colocados à venda por laboratórios inescrupulosos.
Não poderia ser diferente. Predomina na sociedade ocidental uma forma de encarar o corpo
humano e os problemas relativos à saúde e à doença segundo uma ótica própria e
particular, baseada no paradigma newtoniano-cartesiano de explicação da realidade.
Fundamentado nas idéias de Newton e Descartes, este paradigma tem como características
principais o determinismo (conhecendo-se as leis causais dos fenômenos é possível
determinar a sua evolução), o mecanicismo (concepção do universo como máquina,
sujeito a leis matemáticas), o empirismo (apenas o conhecimento a partir de fatos
concretos tem valor científico) e a fragmentação (a decomposição do objeto de estudo em
suas partes constituintes).
Este paradigma serviu de modelo no século XVIII para a estruturação da maioria das
ciências e práticas que hoje dominam a nossa sociedade, incluindo-se aí a Medicina como
hoje é praticada baseada na Fisiologia, na Biologia, na Bioquímica, ciências estruturadas
também nesse mesmo período e seguindo esse mesmo paradigma. Baseado neste
paradigma é que o modelo predominante de prática médica na sociedade ocidental, o
chamado modelo biomédico, tem como características principais as seguintes:
A relação médico-paciente
A relação médico-paciente é talvez uma das relações mais ricas em significados que se
estabelece entre dois indivíduos. Quando uma pessoa adoece e procura um médico seus
objetivos são, à primeira vista, muito simples: ela quer ser tranquilizada, compreendida,
aliviada e curada no mais breve espaço de tempo, da maneira menos incômoda e mais
barata possível. Ora, o médico, que compartilha daquela visão do corpo como máquina,
raramente considera a dimensão humana do seu doente e poucas vezes o vê como uma
pessoa que se sabe doente, sabe algo sobre a sua doença e tem algum tipo de idéia sobre a
cura.
O conceito de doença também difere, dependendo da ótica pela qual é visto. Para o médico,
é uma alteração do equilíbrio físico ou psíquico, caracterizada por um conjunto de sintomas
e sinais clínicos que devem ser pesquisados através de uma série de exames, levando a um
diagnóstico, com terapêutica e evolução determinadas. Para o doente, a doença é um
transtorno que lhe impede de trabalhar, lhe acarreta perda de tempo e de dinheiro e lhe tira
a tranquilidade, fazendo-o vivenciar um dos mais antigos sentimentos do homem: o medo
da Morte.
Configura-se aí uma situação singular: tem-se frente a frente duas pessoas, uma das quais
se encontra em situação privilegiada de dominação sobre a outra e com idéias totalmente
contrárias sobre o mesmo episódio que os uniu: a doença.
A pressa em atender faz com que o médico se impaciente com a demora nas respostas e o
resultado é um paciente atemorizado, confuso e finalmente mudo, sendo frustrada aí
qualquer possibilidade de comunicação. Ao fim da consulta, levando na mão uma receita
escrita com letra incompreensível e que não lhe foi sequer explicada, o doente se vê
invadido por um sentimento de abandono e frustração que anula qualquer intenção de
seguir a orientação médica.
Concebido como uma máquina, o sistema deve ter a capacidade de absorver a maior
quantidade possível de indivíduos doentes e devolvê-los como saudáveis. Para isso, grandes
quantias são gastas no aperfeiçoamento da máquina, para que ela tenha condições de
processar uma quantidade cada vez maior de doentes. Essas quantias são desviadas da
medicina preventiva e de outros programas que impediriam ou diminuiriam a ocorrência de
doenças. E esse é um problema difícil de sanar pois, como já se investiu bastante na
máquina, não se pode agora desativá-la, o que fatalmente ocorreria se a medicina
preventiva diminuísse o número de doentes. É semelhante a aumentar o contingente e
equipar cada vez mais a polícia para acabar com a violência. O máximo que se pode
conseguir é transformar a sociedade numa praça de guerra, com dois exércitos - policiais e
bandidos - a se entrematarem furiosamente.
Parece que já nos encontramos perto dessa situação no que se refere à saúde pública. De
um lado uma estrutura gigantesca de atenção à saúde com todos os vícios e problemas
acarretados pelo seu exagerado tamanho. Do outro, um número cada vez maior de pessoas
doentes, que buscam - e raramente conseguem - tratamento médico adequado.
A arte do diagnóstico
O médico não é preparado para trabalhar a Dor e a Morte. Isso se revela na falta de
habilidade com que ele trata essas duas questões que são tão frequentes no seu dia a dia. A
Dor é reduzida a um sintoma e tratada pela negação, com analgésicos, sem que seja
buscado primeiro seu significado. Na prática diária, o médico ignora a dor do paciente,
chegando por vezes às raias da insensibilidade. Quanto à Morte, é considerada uma
"inimiga", que ele precisa "derrotar", arrancando o paciente de suas "garras". Quando não o
consegue e vê "perdida" a batalha, muitas vezes abandona o paciente à própria sorte,
desaparecendo do hospital na hora em que a família e o paciente mais precisam dele, não
para evitar a morte mas para ajudá-los a superar o trespasse.
Talvez em virtude desse stress psicológico de ter que lidar com questões profundamente
existenciais para as quais não está preparado, e por enfrentar no exercício da profissão
uma competitividade tão exagerada, estudos publicados nos Estados Unidos mostram que
as condições de stress em que vivem os médicos os colocam, ao lado dos publicitários,
entre os profissionais que apresentam maiores prevalências de alcoolismo, suicídio e
enfarte, além de viverem dez a quinze anos menos do que a maioria da população.
O especialista
À medida que acontecem os progressos da ciência, a Medicina se transforma cada vez mais
no terreno da especialização. O clínico geral, ou o médico de família, não mais existe, tendo
sido tentada várias vezes - sem sucesso - a sua ressurreição por alguns programas do
governo. Os meios de comunicação, por sua vez, cercam de uma aura quase divina os super
especialistas, aqueles que só operam o dedo polegar da mão direita ou os que interpretam
apenas a onda P do eletro-cardiograma. A medicina, refletindo o dualismo cartesiano,
continua a se dividir em dois setores estanques: a clínica, que cuida do corpo, e a
psiquiatria, que cuida da mente, como se a mente e o corpo fossem coisas separadas, como
se não fizessem parte de um todo uno e indivisível.
É claro que com o avanço da tecnologia médica muitas situações que antes levavam o
paciente à Morte não são mais fatais hoje em dia. Conseguimos controlar muitas doenças
que há cinquenta anos atrás ceifavam vidas preciosas e melhoramos as condições de vida
de muitos pacientes que hoje viveriam miseravelmente sem o concurso de aparelhos ou
medicamentos atualmente utilizados.
Não se trata, portanto, de abolir a especialização. O clínico geral não pode dominar todos os
campos do saber, mesmo porque o progresso científico é muito rápido, e seria impossível
acompanhá-lo nas suas mais diversas frentes. Não obstante, a ênfase na especialização faz
com que se perca de vista a totalidade do ser humano e o funcionamento do organismo
como um sistema vivo cujos componentes são interligados e interdependentes, e fazendo
parte de sistemas maiores que o afetam mas que podem também ser por eles modificados.
Dentro da visão holística, o estado de saúde pode ser definido como um estado de harmonia
entre o corpo, a mente e o ambiente. Nele, o indivíduo traz dentro de si, harmônicas e
equilibradas, as duas tendências básicas dos organismos: a tendência auto-afirmativa,
que o faz identificar-se como indivíduo único e pessoal, consciente de sua individualidade, e
a tendência integrativa, que lhe dá a consciência de ser e se sentir parte de todos maiores,
integrando-se na harmonia cósmica.
É por isso que, dentro desse enfoque, não se vê a doença como um conjunto de sinais e
sintomas, que devem ser suprimidos ou controlados por medicamentos ou procedimentos
terapêuticos agressivos. A doença é tão somente reflexo de uma desarmonia ou de um
conflito e deve ser observada e estudada para que se busque a causa subjacente. Essa
observação pode incluir variados instrumentos e procedimentos para diagnóstico e
tratamento - alguns até não ortodoxos.
Exatamente por isso é que se exige um envolvimento emocional com o paciente que não
existe e é até condenado pelos mestres durante a formação médica. Esse envolvimento é
considerado fator importante para a compreensão que ambos - médico e paciente - terão do
processo e implica em transformar radicalmente tanto a relação entre os dois como cada um
individualmente. Aí, é necessário que o médico abdique do poder nessa relação, abra mão
de sua autoridade e passe a se colocar como parceiro terapêutico, conferindo ao paciente a
responsabilidade pelo seu próprio tratamento, ajudando-o como profissional treinado a
encontrar o caminho de sua cura.
Nesse contexto, a cura é buscada não apenas na eliminação dos sintomas mas num
movimento para restabelecer o relacionamento com o universo, um sentimento de que é
possível ter a integridade e saúde de volta tão logo sejam descartados os sentimentos e
emoções negativas como o medo, o ceticismo, a raiva e a frustração.
Nessa abordagem, o corpo e a mente não são separados, e os males psicossomáticos são da
alçada de todos os profissionais de saúde e não apenas dos psiquiatras. A doença mental
passa a ser vista como uma falha na avaliação e na integração da experiência e os sintomas
refletem tão somente a tentativa do organismo de curar-se e atingir um novo nível de
integração. Por isso não devem ser suprimidos mas trabalhados, para que o novo nível seja
atingido.
A saúde holística não é uma especialidade, nem uma disciplina que, por uma reforma
curricular, passe a ser ensinada na escola médica. Ela é uma perspectiva, uma forma de
abordar a realidade na busca de superar o dualismo, a fragmentação e o mecanicismo
newtoniano-cartesiano. Implica em uma revisão da nossa própria maneira de encarar e de
viver no mundo, tanto como terapeutas como quanto pacientes. Propõe uma nova forma de
perceber e tratar a tensão, de aceitar a responsabilidade pelas nossas ações e permitir que
os outros assumam as suas. Valoriza a noção de um objetivo, de um projeto de vida e
busca relacionamentos humanos mais satisfatórios e mais criativos.
BIBLIOGRAFIA