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A FANTÁSTICA MEMÓRIA DE FUNES O MEMORIOSO À LUZ DO

INCONSCIENTE FREUDIANO

Gustavo Figliolo1

Resumo: “Recordo-o (não tenho direito de pronunciar esse verbo sagrado,


somente um homem na terra teve direito e esse homem morreu)”: assim
começa o conto de Jorge Luis Borges Funes o Memorioso, em que o narrador
descreve a prodigiosa memória da personagem Funes. O ‘recordar’ é solidário
ao funcionamento do inconsciente, conforme descrito pela Teoria Psicanalítica
freudiana, manifestado pelo déjà vu (já visto), pelo déjà raconté (já
reconhecido) e pelo déjà experimente (já´experimentado), entre outros
fenômenos psicológicos da vida normal. Em O Inconsciente (1915), Freud
descreve o sistema inconsciente, destacando cinco características: ausência
de cronologia; ausência de contradição; linguagem simbólica; igualdade de
valores para a realidade interna e a externa ou supremacia da primeira; e
predomínio do principio do prazer. Uma leitura da surpreendente capacidade
de memória de Funes sob a ótica do inconsciente freudiano permitirá verificar
que, embora de cunho fantástico na ficção, esses elementos mnêmicos
correspondem a uma realidade absolutamente presente no sujeito, buscando
continuamente passagem do inconsciente para a consciência.

Palavras-chave: Jorge Luis Borges; Funes o Memorioso; Inconsciente


Freudiano.

Este artigo forma parte do Projeto de Pesquisa intitulado “A Interface


Literatura e Psicanálise”, levado a cabo na Universidade Estadual de Londrina
(UEL), sob a coordenação de Gustavo Javier Figliolo.
Em ocasião de um suposto milagre, em que uma árvore sangrava
deixando escorrer uma seiva vermelha ao mesmo tempo em que seus galhos
adotavam, entrelaçando-se de maneira horizontal e perpendicular, a figura de
alguma virgem, uma multidão de pessoas compareceu ao lugar para ver o
fenômeno. A polêmica sobre a real autenticidade do fato não foi pouca, uma
vez que muitos diziam ter visto a virgem e o sangue e outros tantos diziam não
ter visto nada: “eu fui olhar, mas não vi nada”. Do que se depreende

1
Professor adjunto de Língua Espanhola, Literaturas Hispânicas e Teoria Literária da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). gustavo@uel.br.
claramente que olhar e ver não são a mesma coisa. Da mesma maneira, existe
uma diferença, talvez mais sutil, entre lembrar e recordar. Soren Kierkegaard
(2005, pág. 75) o analisa da seguinte maneira:

A recordação não tem apenas que ser exata; tem que ser
também feliz; é preciso que o aroma do vivido esteja
preservado, antes de selar-se a garrafa da recordação. Tal
como a uva não deve ser pisada em qualquer altura, tal como o
tempo que faz no momento de esmagá-la tem grande
influência no vinho, também o que foi vivido não está em
qualquer momento ou em qualquer circunstância pronto para
ser recordado ou pronto para dar entrada na interioridade da
recordação. Recordar não é de modo algum o mesmo que
lembrar. Por exemplo, alguém pode lembrar-se muito bem de
um acontecimento, até o mais ínfimo pormenor, sem contudo
dele ter propriamente recordação. A memória é apenas uma
condição transitória. Por intermédio da memória o vivido
apresenta-se à consagração da recordação.

Conforme o filósofo, a memória retém os detalhes dos acontecimentos:


uma memória mais apurada reterá maior quantidade de detalhes; mas está
reservado somente à recordação, ao recordar, a fidedignidade total e absoluta
do evento vivido, no qual intervêm as sensações vivenciadas pelos cinco
sentidos no exato momento de produzido o acontecimento e, mais ainda, a
marca cenestésica que a própria consciência muitas vezes não consegue
explicar. Esse sentimento vago que se produz em nós e que nos desconcerta e
que, efêmero, dilui-se imediatamente. Isso está reservado somente à
recordação: a memória é muito frágil e não tem tamanha capacidade de
apreensão. Por isso é que Jorge Luis Borges (1998, pág. 52) começa seu
conto Funes o Memorioso da seguinte maneira: “Recordo-o (não tenho direito
de pronunciar esse verbo sagrado, somente um homem na terra teve direito e
esse homem morreu)”. O verbo sagrado não é lembrar. Lembrar atua no nível
da consciência: basta uma boa memória para exercitar-se na lembrança. E
lembrar é profano, pois implica a subjetividade de quem lembra, isto é, a
necessária imparcialidade, age na esfera do eu, da consciência. O verbo
sagrado é recordar, que surge das profundezas do sujeito e requer de uma
análise minuciosa para trazer a recordação à tona. A Teoria Psicanalítica
freudiana estabelecerá um elo fundamental entre a recordação e a categoria do
inconsciente, este último servindo de reservatório dos resíduos mnêmicos não
apreensíveis á consciência, interdição ocorrida pelo fato dela não poder
suportar determinadas situações; esses eventos reprimidos irão alojar-se no
inconsciente e ficarão à espreita para continuamente procurar encontrar
passagem do inconsciente para a consciência. O recordar constitui uma dessas
manifestações em que o evento é revivido, revisitado, para ganhar um novo
significado que lhe permita situar-se na consciência de maneira suportável para
a economia do aparelho psíquico, assim superando o trauma.
O conceito de recordação de Kierkegaard funciona assim de maneira
similar ao inconsciente freudiano. Se o homem sabe de sua consciência, de
seu ego que mantém laços estreitos com o mundo exterior ao qual deve se
adaptar, o inconsciente permanece velado a ele, só se manifestando de
maneira indireta, por meio de mecanismos que o sujeito não controla. Portanto,
são inconscientes os processos psíquicos que não podem ser evocados
voluntariamente a partir da consciência. Somente pode-se ter acesso ao
inconsciente através de suas manifestações na consciência. Nesta, o
inconsciente aparece sob os disfarces que a censura dos sistemas Pré-
consciente e Consciente lhe impõem, pelo que suas manifestações estão
distorcidas e modificadas. Freud (2006, p. 354), em sua defesa do sistema
inconsciente, afirma que:

os dados da consciência apresentam um número muito grande


de lacunas; tanto nas pessoas sadias como nas doentes
ocorrem com freqüência atos psíquicos que só podem ser
explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais,
não obstante, a consciência não oferece qualquer prova. Estes
não só incluem parapraxias2 e sonhos em pessoas sadias, mas
também tudo aquilo que é descrito como um sintoma psíquico
ou uma obsessão nas doentes; nossa experiência diária mais
pessoal nos tem familiarizado com idéias que assomam à
nossa mente vindas não sabemos de onde, e com conclusões
intelectuais que alcançamos não sabemos como.

Freud vai além e postula que, na verdade, nossa


consciência carrega somente uma pequena parte das memórias de eventos
acontecidos em nossa vida; a maior parte está no sistema inconsciente:

Podemos ir além e afirmar, em apoio da existência de um


2
O chiste, o lapso, o ato falho [observação nossa].
estado psíquico inconsciente, que, em um dado momento
qualquer, o conteúdo da consciência é muito pequeno, de
modo que a maior parte do que chamamos conhecimento
consciente deve permanecer, por consideráveis períodos de
tempo, num estado de latência, isto é, deve estar
psiquicamente inconsciente. (FREUD, 2006, p. 354).

Assim, Freud considera que o caminho de busca do


inconsciente parte das lacunas deixadas pela consciência, conforme Garcia-
Roza (1994, p. 171):

Freud inicia seu extenso artigo O Inconsciente assinalando que


é nas lacunas das manifestações conscientes que temos de
procurar o caminho do inconsciente. Essas lacunas vão trazer
para o primeiro plano da investigação psicanalítica aquilo que
Lacan, seguindo Freud, chamou de “formações do
inconsciente”: o sonho, o lapso, o ato falho, o chiste e os
sintomas.

Há, então, conforme Sigmund Freud e sua Teoria Psicanalítica, muitas


lembranças e poucas recordações. Isto pode ser verificado quando são
analisadas as características do inconsciente freudiano. Nesse sistema,
conforme Freud, há em primeiro lugar uma ausência de cronologia: o evento
recordatório volta com a mesma força como se estivesse acontecendo hic et
nunc. Em segundo lugar, há também ausência de contradição: a recordação
não precisa seguir as leis de nenhuma lógica. Depois, o evento recordado pode
se manifestar de maneira simbólica: um aroma ou uma visão sinestésica pode
reviver uma recordação e trazê-la á tona novamente (não assim uma
lembrança, fruto da memória, hospedada no sistema consciente). Ainda, na
recordação os sistemas de valores interno e externo se mimetizam, fazendo
que o que importe seja o evento recordado, para além de questões de ordem
éticas. Finalmente, há um predomínio do princípio do prazer: se a recordação
se manifesta de alguma maneira, ela não poderá ser censurada pelo princípio
da realidade.
No que diz respeito ao nosso conto, a memória de Funes funciona como
um sistema inconsciente. O narrador nos conta que a personagem teve um
acidente ao cair de um cavalo que o deixou paraplégico, sem poder
praticamente mexer-se:
Disseram-me que não se movia do catre, postos os olhos na
figueira do fundo ou numa teia de aranha. Nos entardeceres,
permitia que o levassem à janela. Portava a soberba até o
ponto de simular que fora benéfico o golpe que o tinha
fulminado... Duas vezes o vi atrás da grade, que relembrava
toscamente sua condição de eterno prisioneiro: uma, imóvel,
com os olhos fechados; outra, também imóvel, absorto na
contemplação de um oloroso galho de santonina. (BORGES,
1998, pág. 53).

A condição de eterno prisioneiro serve como metáfora para as


recordações que se alojam no inconsciente, esperando passo para a
consciência. Mas é na sua assombrosa capacidade para recordar que Funes
se assemelha ao inconsciente humano; comenta o narrador:

Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem


ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao
cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente
era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as
memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois, constatou
que estava aleijado. O fato apenas lhe interessou. Pensou
(sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora sua
percepção e sua memória eram infalíveis. (BORGES, 1998,
pág. 54).

Funes, após o acidente, tem uma percepção e uma memória infalíveis.


O narrador o exemplifica com a seguinte passagem:

Nós, de uma olhadela, percebemos três taças em uma mesa;


Funes, todos os rebentos e cachos e frutos que compreende
uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do
amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e
podia compará-las na lembrança aos veios de um livro
encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas
da espuma que um remo levantou no rio Negro. (BORGES,
1998, pág. 54).

E é na prodigiosa memória de Funes que pode se vislumbrar os


elementos fantásticos da ficção, que não são diferentes do ato da recordação,
por ser este em si extremamente raro. O recordar, como o inconsciente, não
funciona no nível da consciência; sua assimilação necessita de uma análise
pormenorizada dos fatos recordados. Funes não tem esse problema, sua
memória é tudo recordação, ele só consegue recordar. O narrador comenta da
personagem que “não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer
diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia
senão pormenores, quase imediatos”. O generalizar e abstrair se dá no
pensamento consciente, Funes, porém, funciona como um sistema
inconsciente, onde só há “pormenores imediatos”.
Mas, voltando à questão dos elementos fantásticos na ficção, talvez seja
útil esboçar uma palavra a respeito do assunto. A literatura fantástica
acompanha o homem desde os primórdios da escrita, como o testemunham os
mitos e lendas nas distintas culturas do planeta. Na literatura, porém, é
somente a partir do século XVIII que o gênero se estabelece como uma clara e
distintiva manifestação estética, sem depender de outras dimensões da cultura
humana, como a fé ou as religiões.3 Os primeiros estudos consistentes a
teorizar sobre a literatura fantástica de maneira orgânica são os de crítica
francesa, com Roger Caillois, Louis Vax y Pierre Castex. Todorov (1981, p.16),
em sua Introdução à Literatura Fantástica, cita os três autores. Castex, em Le
Conte fantastique en France diz que “a literatura fantástica […] se caracteriza
por uma intrusão brutal do mistério no marco da vida real”. Louis Vaz, em Arte
e a Literatura Fantástica, comenta que “o relato fantástico [...] nos apresenta
em geral a homens que, como nós, habitam o mundo real mas que de repente,
encontram-se ante o inexplicável”. Roger Caillois, em Ao Coeur do Fantastique,
afirma que “todo o fantástico é uma ruptura da ordem reconhecida, uma
irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana”. Esta
espécie de distorção da naturalidade do mundo encontra no fantástico sua
essência. Todorov (1981, p. 16) dará sua definição:

O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não


conhece senão as leis naturais, diante de um acontecimento
aparentemente sobrenatural. [...] Um fenômeno pode ser
explicado de duas maneiras: de acordo a causas naturais e de

3
Tzvetan Todorov diz a respeito da que seria a primeira formulação do conceito de fantástico:
“O conceito de fantástico se define, pois, com relação ao real e imaginário [...]”. Semelhante definição é,
pelo menos, original? Encontramo-la, embora formulada de maneira diferente, a partir do século XIX. O
primeiro a enunciá-la é o filósofo e místico russo Vladimir Soloviov: “No verdadeiro campo do
fantástico, existe sempre a possibilidade exterior e formal de uma explicação simples dos fenômenos, mas
ao mesmo tempo, esta explicação carece por completo de probabilidade interna” (TODOROV, 1981, p.
16).
acordo a causas sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre
ambas cria o efeito fantástico.

O postulado todoroviano vai além e situa o fantástico entre o estranho e


o maravilhoso. O autor (TODOROV, 1981, p. 26-29) estabelece uma sequência
de classificação em: estranho-puro, fantástico-estranho, fantástico-maravilhoso
e maravilhoso puro. Dentro do estranho-puro “relatam-se acontecimentos que
podem explicar-se perfeitamente por leis da razão, mas que são, de uma ou
outra maneira, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes,
insólitos”. Em relatos correspondentes ao fantástico-estranho,“os
acontecimentos que ao longo do relato parecem sobrenaturais recebem,
finalmente, uma explicação racional, enquanto que em relatos situados dentro
do fantástico-maravilhoso os acontecimentos são aceitos como sobrenaturais,
sem nenhuma explicação racional. Finalmente, o maravilhoso-puro oferece-nos
histórias em que “os elementos sobrenaturais não provocam nenhuma reação
particular nem nas personagens, nem no leitor implícito”. A característica do
maravilhoso não é uma atitude com relação aos acontecimentos relatados, mas
a natureza mesma desses acontecimentos.
E cremos que é na categoria do fantástico-maravilhoso que se encaixam
as recordações de Funes. Não seria maravilhoso-puro, pois o narrador em
primeira pessoa do conto manifesta uma reação de incredulidade à infalível
memória de Funes; porém, essa memória sobrenatural é aceita sem que o
narrador nos dê nenhuma explicação racional, além de fazer coincidir o início
desse estado com a queda de um cavalo por parte de Funes, o memorioso.
Uma intrusão brutal do mistério no marco da vida real; um habitar o
mundo real, mas de repente, encontrar-se ante o inexplicável; uma ruptura da
ordem reconhecida; uma irrupção do inadmissível no seio da inalterável
legalidade cotidiana, a memória de Funes produz recordações como somente o
inconsciente humano pode produzir. À personagem:

Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão


abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e
diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto
de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto
(visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias
mãos, surpreendiam-no todas as vezes. [...] Funes discernia
continuamente os tranqüilos avanços da corrupção, das cáries,
da fadiga. Notava os progressos da morte, da umidade.
(BORGES, 1998, pág. 55).

Nos meandros da psique humana, as recordações alojadas no


inconsciente estão á espreita de alguma ocasião para retornar à consciência.
Por outro lado, existem acontecimentos inexplicáveis que resistem a serem
chamados de “fantásticos”: a ficção e as formações do inconsciente, como por
exemplo, os sonhos, tão estranhos e fugidios, estão aí, como produto da
capacidade humana, para lembrar-nos de que há coisas que existem para além
do lugar da consciência.

Referências bibliográficas

BORGES, Jorge Luis. Funes o Memorioso In: Obras Completas, Volume I.


Tradução Carlos Nejar. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1998.

FREUD, Sigmund. O inconsciente [1915] Edição Standard Brasileira (ESB) das


Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro:
Imago, 2006.

GARCIA-ROZA, Luis Alfredo. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar,


1994.

KIERKEGAARD, Soren. In vino Veritas. Lisboa: Antígona, 2005.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução Maria Clara


Correa Castelo. São Paulo: Perspectiva, 1975.

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