You are on page 1of 9
yesh COSACNAIFY om FONDO DE CULTURA ECONOMICA OS FILHOS DO BARRO Do romantismo a vanguarda Octavio Paz ‘Tradugo Ari Roitman e Paulina Wacht A TRADIGAO DA RUPTURA 0 TEMA DESTE livro é a tradigao moderna da poesia. Essa expressio nao significa apenas que existe uma poesia moderna, mas também que o mo: demo é uma tradigao. Uma tradicio feita de interrupgGes e na qual cada ruptura é um comego. Entende-se por tradigao a transmissio de noticias, lendas,histérias,crencas, costumes, formas literstias eartisticas,ideiase estilos de uma geragio para outra; portanto, qualquer interrupgio nessa transmissio equivale a quebrar a tradigao. Se aruptura é uma destruigao dovinculo que nos une ao passado, uma negacio da continuidade entre uuma geragio e outta, seré que podemos chamar de tradicio aquilo que Jo € interrompe a continuidade? E mais: mesmo se acei- a afinal, om a repetigio do ato uma tradigio, como chegaria a por geragGes de iconoclastas, con: sé-lo de fato sem negar a si mesma, isto & sem afirmar em determinado stinuidade? A tradigo da ruprura nao implica s6 a negacio da tradigio, mas também a negacéo da rup- tura...A contradigio persiste se,em vez das palavras interrupgao e nuptura, empregarmos outras que se oponham com menos violencia 3sideias de ‘ede continuidade. Por exemplo: a tradicio moderna. Se 0 é por exceléncia o antigo, como o moderno pode ser tradicio- momento nao a interrupeao, mas igdo significa continuidade do passado no presente, como se pode falar de uma tradigao sem passado e que consiste na exaltacio daquilo que o nega: a pura atualidade? “Apesar da contradicio que implica, e as vezes com plena conscién- cia dela, como no caso das reflexdes de Baudelaire em LArt romantique, desde o principio do século x1x fala-se da modernidade como uma, tradicio e se pensa que a ruptura é a forma privilegiada da mudanca. ‘Ao dizer que a modernidade é uma tradigao, cometo uma ligeita in- corregao: deveria ter dito outra tradigao. A modernidade é uma tradi- ‘¢30 polémica que desaloja a tradigao imperante, seja ela qual for; mas 86a desaloja para, ante seguinte, ceder o lugar a outra tradicio, ‘que, por sua vez, é mais uma manifestasio momentanea da atualidade. ‘A modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. © moderno nao se caracteriza apenas pela novidade, mas pela heterogeneidade. Tra- digdo heterogénea ou do heterogéneo, 2 modernidade esta condenada a pluralidade: a antiga tradigio era sempre a mesma, a moderna é sempre diferente. A primeira postula a unidade entre o passado € 0 hojes a segunda, nZo satisfeita em sublinhar as diferengas entre ambos, afirma que esse passado nao é uno, ¢ sim plaral. Tradigéo do moderno: heterogeneidade, pluralidade de passados, estranheza radical. Nemo moderno é continuidade do passado no presente nem o hoje é filho do ontem: sao sua ruptura, sua negagio. O moderno é autossuficiente: cada vez que aparece, funda sua propria tradicio, Um exemplo recente dessa maneira de pensar €0 livro que o critico norte-americano Harold Rosenberg publicou ha alguns anos: A tradigao do novo, Embora 0 novo nko yente 0 moderno ~ ha novidades que nao sio moder- lo do livro de Rosenberg exprime com saudavel ¢ liicida insoléncia o paradoxo que fundou a arte ¢ a p nosso tempo. Um paradoxo que é,concomitantemente,o prine(pi que os justifiea e nega, seu alimento e seu veneno. A arte e a poesia do nosso tempo vivem de modernidade e morrem por ela. Na hist6ria da poesia do Ocidente, o culto ao nove, o amor pela no- de, aparece com uma regularidade que nao me atrevo a chamar de ica, mas que tampouco é casual. Ha épocas em que o ideal estéti consiste na imitagio dos antigos; hé outras em que se exaltam a novi- dade ¢ a surpresa. Nao € preciso recordar, como exemplo dessa iltima, os poetas “metafisicos” ingleses e os barrocos espanhéis, Tanto uns como ‘outros praticaram com igual entusiasmo o que se poderia chamar de atdiies da ecqudearNerilade e’murpiees tio texans abina/ndiv equiva lentes. Conceitos, metaforas, argiicias ¢ outras combinagdes verbais do poema barroco sio destinados a provocar 0 assombro: 0 novo é novo se for inesperado. A novidade do século xvit no era critica nem implicava anegagio da tradigao, Ao contratio, afirmava sua continuidade; Gracin diz que os modernos so mais argutos que os antigos, no que sio di- ferentes. Ele se entusiasma com certas obras de seus contemporaneos do porque seus autores negassem o estilo antigo, mas porque oferecem combinagées novas e surpreendentes dos mesmos elementos. Nem Géngora nem Gracién foram revolucionarios, no sentido que agora damos a essa palavra; nao se propuseram a mudar os ideais de be- lezade sua época,embora Géngora os tenha efetivamente mudado: novi- dade para cles no era sindnimo de mudanga, mas de assombro. Para en- A TRADIGAO D4 RUPTURA ccontrar essa estranha alianga entre a estética da surpresa ea da negagio, & preciso chegar ao final do século xvi quer dizer, ao principio da idade moderna. Desde seu nascimento, a modernidade é uma paixio critica e portanto é uma dupla negacio, como critica e como paixio, tanto das geometrias clissicas como dos labirintos barrocos. Paixio vertiginosa, pois culmina na negacio de si mesma: a modernidade é uma espécie de autodestruigSo criadora. HA dois séculos a imaginacio poética ergue .ém conte, mas o fato de ser uma ruptura: critica do pasado joderna nio é apenas um jea de si mesma. Eu disse que 0 novo nao é exatamente © moderno, a menos que seja portador da dupla carga explosiva: ser negacio do pasado e ser afirmagio de algo diferente. Esse algo mudou de nome ¢ de forma no decorrer dos tltimos séculos da sensibilidade dos pré-romanticos a me- taironia de Duchamp -,mas sempre foi aquilo que é alheio e estranho’ tradigio reinante,a heterogencidade que irrompe no presente edesvia ‘o curso numa diregio inesperada. Nao € apenas o diferente, mas 0 que se opde aos gostos tradicionais: estranheza polémica, oposicio ativa.O ‘novo nos seduz nao por ser novo, mas por ser diferente; € 0 diferente € a negagio,a faca que corta o tempo em dois: antes ¢ agora. ‘Algo que tem milénios de velhice também pode ter acesso 3 moder- nidade: basta que se apresente como uma negagio da tradig2o e que nos proponha outra. Ungido pelos mesmos poderes polémicos que o novo, 0 antiquissimo nio é um passado: é um comeco. A paixio contraditoria 0 ressuscita, reanima e transforma em nosso contemporénco, Na arte € na literatura da época moderna ha uma persistente corrente arcaizante, que vai da poesia popular germanica de Herder 3 poesia chinesa desenterrada por Pound, e do Oriente de Delacroix arte da Oceania amada por Breton, ‘Todos esses objetos, sejam eles pinturas, esculturas ou poemas, tem em lizagio a que pertencam, sua apari- cow uma ruptura, uma mudanca. Essas novidades centensrias ou milenares interromperam repetidas

You might also like