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© Mundo-lmagem A realidade sempre fol interpretada através do regis- tra fornecido pelas imagens; e os fildsofos, desde Platao, 1am procurada .aliviar nossa. dependéncia das imagens in- vocando um modelo de forma de apreensio do real em que a imagem ndovesteja-presente. Mas quando, em mea- inalmente concre- jiante do avanco do pensamento human/stico e cient co néo provocou.= como se previa — fugas em massa em direcdo ac real, Ad. contrétio, a nova idade da descrenca fortaleceu a fidelidade'a imagem. O crédito que jd néo se podia mais dar 4-realidadecompreendida na forme de imagens dava-se agora a redlidade entendida como ima- gens, ilusdes. No.prefécio & segunda edigdo (1843) de lacdio 3 nossa era", que essa “prefere a copia ao original, a representago a r' cia ao ser” — ao, mesmo tempo em que tem consciéncia de estar fazenido apenas-isso. E 2 queixa premonitéria de Feuerbach trensformou-se, no século XX, num diagnestico amplamente acei des passa a sera: produggoe o consumo de image quando as imagens, qué:possuem poderes .extraordi Jencias com respeito a re- riéncia auténtica;tornam-se. indispensaveis 4 boa sade 447 148 ica e a busca da fel dade individual. As pelavras de Feuerbach — escreveu alguns anos de- pois da invengio da cdmara — parecem, mais especitica- mente, um pressentimento do impacto que viria a ter a fotografia. E isso porque as imagens que possuem um peso praticamente ilimitado na sociedade moderna so principalmente as imagens fotograficas; ea razdo de tél autoridade advém das qualidades peculiares as imagens que obtemos através dé*cimara, Essas imagens sao verdadeiramente capazes de usurpar a realidade porque, antes de mais nada, uma fotografia é no s6 uma imagem (como o ¢ a pintura), uma interpre- tagio do real ~ mas também um vestigio, diretamente caleado sobre o real, como uma pegada ou uma méscara funebre. Enquanto um quadro, mesmo aquele que estd conforme os padrées fotogréficos da verossimilhanca, nunca ¢ mais que uma forma de interpretago, a fotogra- fia nunca & menos que o registro de uma emanegdo (on- das de luz refletidas por objetos) — vest{gio material do tema fotografado, a tal ponto que quadro algum.se Ihe pode comparar. Entre duas alternativas imagindrias, a de que Holbein, o Jovem, tivesse vivide tempo bastante pa- ra poder pintar Shakespeare ou a de que um prot6tipo da cdmara tivesse sida inventado tempo de fotografar © grande dramaturgo inglés, a maioria dos admiradores de Shakespeare teria escothido a fotografia. E isso ndo apenas porque presumivelmente verfamos como era Shakespeare, pois mesmo que 2 fotografia hipotética de- le estivesse desgastada pelo tempo, dificilmente legrvel, com sombras amarronzadas, ainda @ prefeririamos pre vavelmente a qualquer outro glorioso Holbein. Possuir um retrato de Shakerpeare seria como possuir um dos pregos da Verdadeira Cruz. Grande parte das manifestagées contemporéneas de preocupagio de que o mundo das imagens esteja substi- tuindo 0 mundo real continua a refletir, como em Feuerbach, o desprezo platénico pela imagem: verdadei- ja em que se assemelha ao real, posti¢a por is do que mera semelhanga. Esse realismo vul- nerdvel ¢ ingénuo, entretanto, estd um tanto deslocado ,nado tema, é tai nal") ~ que Platdo:repetidamente ilustra com 0 exemplo de pintura — nao .se:aplica assim de mado to simples fotografia. E nem esse mesmio contraste contribui para que compreendamos 0 processo de elaboracio da ima- gem desde suas origens, quando era uma atividade prati- ca e magica, um:meio de nos apoderarmos de alguma coisa ou exercermos controle sobre ela, Quanto mais atrés buscamnos:na histéria, como observou E. H. Gom- brich, menos evidente ico entre imagem e real dade; nas sociedades primitives, o objeto e sua imagem constituam simplesmente ‘duas manifestagtes diferen- isto é, fisicamente distintas, da‘mesma energia de es- Pirito. Daf, a suposta eficdcia da imagem em propiciar exercer o controle sobre presencas vigorosas. Tais pode- res, tais presencas estavam presentes nela. Para os defensores do real, de Plato a Feuerbach, comparar a imegem com a mera abaréncia — ou seja, su- Por que a imagem € absolutamente distinta do obj representado ~ faz parte daquele processo de dessacrali- zago que nos separa indefectivelmente do mundo dos tempos e lugares sagrados, no qual se obtinha uma ima: gem com 0 objetivo de que essa participasse da realidade do objeto representado. O: que define a originalidade da fotografia é, no.momento mesmo em que o secularismo + triunfa completamente na longa e cada vez mais secular historia da pintura, sua capacidade de reviver — em ter- mos mente’ seculares ~ algo parecido com o status primitivo das imagens. Nossa sensagdo irreprimi- ‘vel de que 0 processo fotogrifico é algo mégico assenta- se em bases verdedeiras. Ninguém considera de modo al- gum que uma pintura de cavalete se consubstancie no motivo pintado; ela apenas o representa, ou a ele se refe- re, Ainda as tografia ndo retrata apenas determi: potente de possui-lo'e controld-lo. A fotografia 6, sob varios aspectos, smonimo de aqui- io. Em sua forma mais simples, temas numa fotogré- 2 posse vicdtiade uma pessoa ou objeto queridos, 149 posse essa que confere & fotografia algo da qualidade dos objetos Gnicos. -Através da fotografia, também numa posigéo de consumidores de aconteci- mentos, seja os acontecimentos que formam parte de nossa experiéncia, seja os que ndo — distin¢do entre ti- pos de experi que esse consumismo dependente torna vage. Uma terceira forma de aq através das maquinas de gens, nos possiblita adquirir algo comoa informagao (de preferéncia & experiéncia). Com efeito, a importéncia da imagem fotogréfica como o meio através do qual um nd- mero cada vez maior de eventos penetra nossa experién- cia 6, finalmente, apenas um produto paralelo da sua ca- pacidade de propiciar-nos conhecimentos dissociados da experiéncia e independentes dela. Essa é a forma mais inclusiva da aquisigdo fotogratica. Ao ser fotografeda, determinada coisa torna-se parte de ema de informagSes amoldado a esquemas de s¢80 @ armazenamento que vdo desde as sequén- instanténeos colados, em ordem, nos dlbuns de 7 € 0 arquivamento me- izagdo da fotografia nas suloso necessdrios para a ul is6es do tempo, na astronot pr geologia, nas 6 tos, 0 que quer que vejamos ~ ainda que diferenterente © muitas vezes com desatengdo ~ com a viséo natural) e acrescenta vastas quantidades de material que jamais chegamos a ver. A rea mo objeto para exp de inspecgo. A exploragdo e duplicacio fotagrafica do mundo fragmenta a continuidade ¢ alimenta as pegas de um intermindvel dossié, possi tando assim um contro- le com o qual nem se poderia sonhar sob o sistema ante- rior de registro da informagSo: a escrita, 0 fato de que o registro fotogréfico é sempre, poten- ciaimente, uma forme de controle jé havia sido reconhe- cido quando tais poderes estavam em sua inféncia. Em 1850, Delacroix anotou em seu didrio o éxito de algu- encontramo-nos + mas “‘experinciasna fotografia” que estavam sendo fei- tas em Cambridge, onde 08 astrénomos vinham fotogra- fando 0 Sol ea Lua e haviam logrado obter uma impres- sio da estrela Vega do tamanho'de uma cabeca de te. Ele acrescentou a sequinte observagao “curiosa’": ‘que foi daguerreotinade levou 20 anos sar © espaco que.a separa da Terra, o rao que ficou fixado na chapa havia, por consequinte, delxado a esfera celes- ‘te muito tempo antes de Daguerre ter descoberto 0 proceso or meio do. qual acabamos de adquirir 0 controle dessa luz. Deixando pera trés nogdes de controle to débeis como as de Delacroix, 0 progresso da fotografia tornou ainda ce sobre a ccisa fotografada, A tecnologia que Zou 0 grau em que a disténcia que separa o fotdgrafo do motivo fotogréfico afeta 2 preciséo e a magnitude da de fotografar iepenaente da propria luz (fotografia infravermetha):e curtou o intervalo entre a fotografar e aquele em-que jé se tem a fotografia maos (desde a primeira Kodak, quando um rolo de fil- mes revelada levava semanas para ser devolvido ao fot6- grafo amador, até 2 Polaroid, que exibe a imagem em poucos segundos); que no apenas conseguiu imagens que se movessem (cinema): comio também logrou a cap- tago e transmissfo: simulténea (video) — essa mesma ‘tecnologia fez da fotografia um instrumento incompard- vel para a decifracio do. comportamento, para a sua pre- visio e para que nele se possa interferir, A fotogratia tem,poderes que nenhum outro sistema de imagens jamais’ possuiu, pois, a0 contrério dos anteri a ndo depende do fotégrafo. Por mais cuidadoso que seja o fotdgrafo ao intervir na organizacdo e orienta- ‘0 do proceso: fotagrdfico, 0. processo em si mesmo permanacerd. sempre dptico-mecénico (ou eletronico), 151

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