No passado dia 5 de Outubro celebraram-se os 100 anos da
República. Em Lisboa, em directo da Praça do Município, vimos e ouvimos pela televisão os habituais discursos de circunstância do Presidente da República e do Primeiro-ministro. Em todas as vilas e cidades do país, igual afã comemoracionista. Desde o início do ano, de norte a sul do país, inúmeras exposições, debates e colóquios remetem-nos para aqueles longínquos dias de 1910. Edições e reedições literárias alusivas ao tema, multiplicam-se... Sendo certo que quem comemora algo comemora-se sempre a si próprio, e compreendendo esta vontade celebratória, esta demanda legitimadora, por parte dos partidos republicanos, ainda assim não resisto a perguntar: mas afinal, que “República” estamos nós a comemorar?
Será o facto de desde há 100 anos a figura máxima do Estado ser
designada por eleição e não por sucessão/hereditariedade? Ou antes o facto de o mandato presidencial ter um limite temporal plasmado na Constituição ao contrário do mandato régio, por natureza indefinido no tempo? É que se é isto, é pouco! Porque a verdade é que a nível político, com a implantação da República, pouco mudou. Já antes de 1910, desde há largas décadas, aliás, que no nosso país havia conselho de ministros, encarregado da condução política do país, e Parlamento, onde tinham assento os deputados eleitos em representação da Nação… E se até 1910 se pode apresentar como óbice restritivo dos mais amplos direitos políticos o sufrágio limitado (restrito), sufrágio restrito foi o que tivemos com a implantação da Republica…
Comemorar então a 1.ª República (1910-1926)? Também aqui há
pouco para comemorar. A instabilidade política deste período - com 45 governos e 8 Presidentes em 16 anos, e com total inoperância do poder executivo, subordinado e manietado pelo poder legislativo -, agravada por aquilo a que o Estado Novo chamou a “balbúrdia sanguinolenta”, ou seja por um clima social de caos, de quase anarquia e de violência gratuita - com assassínios por encomenda, atentados terroristas e com o Povo e o Poder na rua – deixam pouca margem para celebrações. E se a isto acrescentarmos a gravíssima situação de crise económica e financeira que à época se viveu, com défice orçamental gigante, carestia de vida, austeridade e inflação, assim um pouco á imagem do que hoje temos como iminente, logo se vê por que razão era até bom nem nos lembrarmos muito desta 1.ª República…
A 2.ª República, de 1926 a 1974, com ditadura militar seguida da
ditadura salazarista, também não creio! Não obstante a estabilização financeira e a pacificação social, a verdade é que isso só foi conseguido à custa da falta de investimento do Estado na economia - o que a prazo se traduziu numa empobrecimento progressivo do país -, e com a supressão dos mais elementares direitos, liberdades e garantias individuais, que a Guerra colonial e a abertura do país ao estrangeiro só vieram agravar. O Estado Novo foi no fundo a negação dos valores matriciais da República.
Estaremos então a comemorar a nossa república, a 3.ª, a do triunfo
da Democracia? Duvido! O colapso financeiro iminente, o défice orçamental fora de controlo, a instabilidade política, mas sobretudo a confrangedora degradação qualitativa da nossa classe dirigente, a gritante falta de capacidade de quem possui nos dias de hoje responsabilidades políticas e a tendência regressiva da militância cívica... não vejo o que daqui se possa comemorar!
Chego assim á conclusão que mais do que a implantação de um novo
regime político há 100 anos atrás, mais do que os novos símbolos que ele consagrou - um novo hino e uma nova bandeira - o que interessa comemorar na República não é tanto o seu projecto/programa político mas antes as suas ideias, a sua expectativa modernizadora, o seu projecto transformador, numa palavra, o seu ideário – o ideário republicano ou, se quisermos, o republicanismo.
Na verdade, a República não pode ser reduzida a uma proposta
estritamente política. Deve antes ser entendida como uma mundividência e como um ideário global de matriz essencialmente cultural, mas também social, e até espiritual. Enquanto mundividência, o republicanismo pré-anunciava-se como uma opção “imposta”, ditada por uma visão optimista do mundo, ainda para mais quando praticamente todos os militantes republicanos se assumiam como herdeiros directos do ideário iluminista. É neste contexto de puro optimismo que ganham sentido as ideias veiculadas pelo republicanismo como sejam a ideia de Progresso, de Perfectibilidade do homem, ou a de Redenção/Regeneração da Pátria - só concretizáveis com o novo regime -, e é também nessa medida, geradora de expectativas positivas face ao futuro, que faz hoje sentido comemorar a República. Enquanto projecto cultural, o republicanismo não só anunciava a República como uma inevitabilidade - e foi aqui determinante o facto de a maior parte dos dirigentes republicanos ser adepta das novas tendências científico- filosóficas emergentes no final do século XIX, como o cientismo, o positivismo ou o determinismo – como sobretudo a anunciava como o regime que ia fundar um Estado Novo, laico, secularizado, culto, positivo, moderno, liberto da influência malévola e castradora da religião, a certa altura substituída por uma nova religião cívica. E é nesse sentido que, tendo sido o republicanismo o defensor e precursor de um conjunto de ideias novas sobre o Estado e a Sociedade - como sejam as ideias de Laicidade, Nacionalismo e Modernidade - e sendo nós hoje os herdeiros dessa matriz cultural, é nesse sentido, dizíamos, que também se justifica este programa de comemorações.
Concretizando. A República era apresentada pela propaganda
republicana e pelo republicanismo como algo de messiânico, como um movimento que possuía a força épica dos grandes movimentos sociais de vocação redentora, como tinha sido a Regeneração, em meados do século XIX, ou como mais tarde vai reivindicar ser o Estado Novo de Salazar. O seu programa prometia e comprometia-se com o reinício, a refundação, a regeneração da Pátria, no fundo com o início de uma nova Era. Nesse sentido o republicanismo era redentor e regenerador. Por outro lado o advento da república era visto como uma “consequência inevitável de um destino inscrito na própria evolução cósmica…”. Nesse sentido, a República e o republicanismo, eram um imperativo, uma inevitabilidade. Acreditavam os republicanos que a própria História tinha ínsita a tendência instintiva e irresistível para o progresso. Nessa medida o republicanismo era progressista. Visava também o republicanismo a criação de um homem novo, liberto da influência do clero e do obscurantismo que lhe andava intimamente associado. A República era assim apresentada como a última fórmula capaz de cumprir a essência perfectível do homem, libertando-o de todas as peias e de todos os constrangimentos. Nesse sentido o republicanismo foi simultaneamente antropológico e optimista, alinhando por um humanismo que, em oposição ao Liberalismo, apostou na dimensão sociabilitária do homem. A República e o republicanismo – tributários do materialismo racionalista – trouxeram também o laicismo – doutrina filosófica que defende e promove a separação do estado da Igreja assim como a neutralidade do Estado em matéria religiosa. A religião viu o seu papel e a sua importância sociais drasticamente diminuídas, acabando remetida para o espaço da esfera privada/doméstica e interdita de promover manifestações públicas de Fé. Acreditavam os republicanos que o simbolismo religioso era pernicioso e, em desaparecendo, estaria aberto o caminho para uma cabal educação cívica da sociedade, quiçá para o aparecimento de uma religião cívica sem base metafísica. O republicanismo foi portanto laico, e dessa realidade somos todos tributários pelo que também aqui se impõe a comemoração. Refira-se por último a aposta da República e dos republicanos na educação, com a escola a ser doravante encarada com um laboratório de almas e uma oficina de republicanos, inculcadora de virtudes cívicas, que não religiosas, republicanas e sobretudo laicas. Neste âmbito, a república e os republicanos revelaram um enorme envolvimento pedagógico, constituindo-se o republicanismo, ao nível da instrução, como um projecto emancipador incompatível com uma qualquer coacção externa de nível metafísico, sendo também aqui a religião radicalmente afastada do âmbito escolar.
É por tudo isto que comemorar a República significa no fundo
comemorar um tempo e uma atitude, uma mundividência e um projecto cultural que fez da Modernidade a sua imagem de marca e que foi essencial na formação de uma mentalidade nova em oposição à mentalidade popular que em 1910 ainda perfilhava valores de Antigo Regime. Penso que é nesta medida que faz sentido comemorar, mais do que a República, o republicanismo, as suas ideias, os seus valores, e o seu projecto de futuro.