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Medo Branco de Almas Negras: Escravos, Libertos e Republicanos na Cidade do Rio* RESUMO O objetivo do artigo é investigar os significados posstveis do aparente antagonismo entre a populacéo negra da cidade do Rio e os governantes ¢ burocratas das primeiras décadas da Repiblica. A hostilidade dos negros a algumas das medidas da administracéo republicana tinha um sentido cultural profundo, tavrado numa experiéncia longa e variada de luta contra 0 cativeiro ao longo do Sidney Chalhoub Universidade Estadual de Campinas ABSTRACT The objective of the article is to investigate possible explanations for the apparent antagonism between the black population of the city of Rio and the first’ Republican governments. The author argues that black hostility to some Republican policies had @ profound cultural Signifiance, the sources of which are to be found in the long and varied experience of struggle agaisnt slavery throghout the 19th century. século XIX. 1, MORTE AOS REPUBLICANOS Em artigo intitulado “Libertos e republicanos”, publicado no Didrio de Noticias em 19 de margo de 1889, Rui Barbosa denuncia com veeméncia as * Este artigo aparcccu originalmente em Bretas, Marcos (org.) - Papéis Avulsos. Rio de Janeiro, Fundagio Casa de Rui Barbosa, vol. 2, julho de 1986, mimeo. Fora escrito na verdade para o seminério “Crime e Castigo”, que teve lugar na mesma Fundagio em agosto de 1985. O autor hesitou em concordar com uma nova impressio desse artigo jé “velho", porém cedeu diante da teimosia gentil da Silvia Lara. © texto sofreu pequenos acréscimos, corregdes ¢ atualizagdes bibliogrificas para esta publicagio. Para fazer a revisio no texto, foram valiosas as criticas por escrito que recebi de Robert Slenes, Peter Eisenberg, Rebecca Scott e Silvia Lara. Como sempre, minha capacidade de incorporar as sugestdes nao fez justiga as criticas recebidas — muita coisa ficou para trabalhos posteriores. supostas tentativas da monarquia de garantira capone do trono através da mobilizagao politica dos libertos da cidade do Rio’, Rui menciona um episddio que teria ocorrido dias antes: uma numerosa malta de navalhistas, engrossada ainda por trabalhadores pagos pelo governo e armados de “estadulhos” policiais, percorrera a rua do Ouvidor aos gritos de “morte aos republican Cabe perguntar 9 porqué de Rui vociferar tanto contra ess: A utilizagao do recurso politico da mobilizacao popular n: uma novidade da cidade do Rio. Segundo Sandra Graham, a havia s pol e as volta do istas receberam com agrado ¢ aram fomentar a ‘agitag%o das ruas nas lutas contra a escravidao nos anos 80, Em outro artigo, © proprio Rui comenta a importancia da participagdo popular na campanha abolicionista: “A policia... perdera toda a ago nas ruas eletrizadas da capital, cujos movimentos tanta vez tém mudado a politica do Império”3. Na década de 1880, portanto, a agitaco nas ruas da Corte parccia um dado essencial no jogo de poder do Império. O que realmente incomodava Rui era 0 estimulo 4 agitagio politica dos libertos especificamente ©, mais ainda, o fato desta mobilizacdo estar dirigida diretamente contra os republicanos. Eram as ', Cujas “consciéncias de natureza encerrara gemas de gua purfssima, recobertas pela TBARBOSA, Rui, “Libenos © republicans", em Queda do Império. Rio de Janeiro, Livraria Castiho, 1921, tomo I, pp. 131 a 138. 2GRAHAM, Sandra, “The Vintem Riot and Political Culture: Rio de Janeiro, 1880", em Hispanic American Historical Review, 60 (3), 1980, pp. 431 a 449. 3BARBOSA, Rui, 10 de Margo, artigo publicado no Didrio de Noticias em 10 de margo de 1889, em Queda do Império, p. 43. 4BARBOSA, Rui, “Libertor e republicanos”, p. 135. ca 0 artigo de Rui nao é simplesmente um eco dos projetos e dos jeeconceline sobre 0 liberto que reinavam na elite politica da época. HA também uma certa frustra¢o em admitir que, pelo menos em relagdo 4 populacdo negra da Corte, a Coroa parecia bem-sucedida em canalizar si os dividendos politicos do 13 de maio de SRR Fig tndicioa sngestivos, _ como j4 mostrou José Murilo de Carvalho, de que a monarquia gozava de Nabuco registrou de forma expressiva ‘a popularidade do imperador: seu nome era para os escravos “sinénimo de forga social e até de previdéncia, como sendo 0 protetor de sua causa”’. Hé também o caso famoso, ¢ repleto de simbolismo, do principe Obd II da Africa, um negro colossal, alferes veterano da guerra do Paraguai, que se dizia filho de reis africanos e que tinha como vassalos os negros Minas ¢ as quitandeiras do largo da Sé. Reza a tradig4o que D. Pedro II era bastante simpatico ao principe, franqueando-lhe a entrada até em recepgdes solenes no pago da cidade. Obé tinha ainda 0 habito de cumprimentar o imperador no dia 2 de dezembro, data do aniversdrio de Sua Alteza. Conta-se que no 2 de dezembro que se seguiu 4 proclamagdo da Repiblica, o principe dirigiu-se ao pago imperial, mas encontrando as portas fechadas, enfureceu-se € protestou muito, disparando impropérios. Consta também que o governo provisério da Repiblica cassou as honras de alferes a0. principe negro, que teria sobrevivido poucos meses a mais este desgosto?. Todavia, a popularidade do imperador perdurou de tal forma entre a populagao pobre da Corte que o tema chegou a provocar certa obsess4o num Sthid., p. 133. SCARVALHO, José Murilo de, Os Bestializados: 0 Rio de Janeiro e a Repiblica gue do foi, Sko Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 29 a 31, NABUCO, Joaquim, 0 Abolicionismo, Petrépolis, Ed. Vozes, 1977 (1* edigio: 1883), p. 96. SMORAIS FILHO, Melo, “O Principe Obé,” em Fesias ¢ Tradigées Populares do Brasil, Belo Horizonte, Ed. Natiaia, 1979, pp. 309 2 312. 85

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