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Espaço Plural

ISSN: 1518-4196
espacoplural@yahoo.com.br
Universidade Estadual do Oeste do
Paraná
Brasil

Bezerra de Melo, Demian


DITADURA “CIVIL-MILITAR”?: CONTROVÉRSIAS HISTORIOGRÁFICAS SOBRE O
PROCESSO POLÍTICO BRASILEIRO NO PÓS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO
PRESENTE
Espaço Plural, vol. XIII, núm. 27, julio-diciembre, 2012
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Marechal Cândido Rondon, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=445944369004

Como citar este artigo


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DITADURA “CIVIL-MILITAR”?: CONTROVÉRSIAS
HISTORIOGRÁFICAS SOBRE O PROCESSO POLÍTICO
BRASILEIRO NO PÓS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO
PRESENTE

DICTATORSHIP “CIVIL-MILITARY”?: HISTORIOGRAPHICAL CONTROVERSIES


OVER THE BRAZILIAN POLITICAL PROCESS IN POST-1964 AND THE
CHALLENGES OF THE PRESENT TIME

Demian Bezerra de Melo1

Resumo: O propósito deste texto é discutir Abstract: The purpose of this paper is to
a limitação de uma noção que desde os anos discuss the limitation of a notion that since
2000 tem ganhado ares de “renovação the 2000 years has gained an air of
conceitual” para o entendimento do regime “conceptual renewal” for understanding the
ditatorial implantado no Brasil em 1964. A nature of the dictatorial regime implemented
partir da constatação trivial de que tanto na in Brazil in 1964. From the observation,
operação do golpe de Estado quanto na something trivial, that both operation of the
condução da ditadura houve participação coup, such as in the conduct of the
importante de setores não-fardados em dictatorship, there was participation of
posições relevantes, esta idéia busca definir important sectors non-uniformed in relevant
tal situação a partir do termo “civil-militar” positions, that idea searches to define that
adjetivando tanto o golpe de 1964 quanto a situation with the term “civil-military”
ditadura que se seguiu. A partir de um adjectivizing both the 1964 coup as the
apanhado na literatura, procura-se apontar as dictatorship that followed it. From an
insuficiências e os desdobramentos overview on the literature, we seek to point
mistificadores que tal noção encerra, em out the shortcomings and the mystifying
primeiro lugar por naturalizar uma visão ramifications that such notion presents, first
corporativa dos militares sobre a sociedade; by naturalizing an enterprise view of the
em segundo, por não ser capaz de dar conta military on society, and secondly, for not
dos nexos reais que articularam o grande being able to cope with the real nexus who
capital monopolista com o aparelho de articulated the big monopoly capital with the
Estado naquela quadra histórica. state apparatus in that historic block.

Palavras-chave: Ditadura civil-militar, Keywords: Civil-military dictatorship,


historiografia, revisionismo. historiography, revisionism.

“Golpe civil-militar”; “ditadura civil- adjetivo visa lembrar que também parte dos
militar”. O termo “civil-militar” foi civis apoiou o golpe e participou da
apresentado pela historiografia como forma condução do processo político entre abril de
mais precisa para adjetivar o golpe de 1964 1964 até 1985, quando a maior parte da
e do regime que lhe seguiu. Ao contrário de historiografia localiza o fim daquela
uma mera ação das Forças Armadas, tal ditadura. Por outro lado, a recente

1
Doutor em História pela UFF e Professor do curso de História da UFRJ. Email:
demian_pesquisa@yahoo.com.br

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PROCESSO POLÍTICO BRASILEIRO NO PÓS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO
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insistência sobre esse ponto por parte de à preguiça intelectual. O


problema é que esta memória
alguns profissionais da área tem despertado
não contribui para a
algumas críticas, pois muitos dos que tem compreensão da história recente
recorrido a essa adjetivação não parecem do país e da ditadura em
querer dizer a mesma coisa. Senão vejamos particular.
alguns exemplos.
Daniel Aarão Reis, professor Titular
Em uma aula inaugural do Programa
de História Contemporânea da UFF,
de Pós-Graduação em História, Política e
convida a que seja retomada a atmosfera da
Bens Culturais do CPDOC/FGV, em março
época do golpe para que se entendam como
de 2010, o historiador Daniel Aarão Reis
as multidões que marcharam contra as
enfatizou a importância dessa (suposta)
reformas de base de Jango temiam a
precisão, chegando mesmo a fazer uma
instauração do comunismo e por isso teriam
autocrítica de seus próprios textos pretéritos
aceitado apoiar aquela ação, optando pelo
que fizeram com que circulasse a noção
que acreditavam ser um “mal menor”. Trata-
“errônea” de ditadura militar.2 Em 2012, o
se de um tipo de argumentação que lembra
influente historiador voltou a intervir nesse
os mesmos argumentos utilizados pelos
mesmo sentido, em artigo publicado no
militares de pijama como o ex-coronel
jornal O Globo.3 O mesmo texto seria
Jarbas Passarinho, ou eminências “civis” do
posteriormente republicado na Revista de
regime como o ex-ministro do
História da Biblioteca Nacional, fazendo-o
Planejamento, Roberto Campos.
circular por um amplo público.4 Logo em
No artigo, o historiador carioca
suas primeiras linhas escreveu:
elencou uma série de argumentos para
Tornou-se um lugar comum provar a tese de que não só civis, como a
chamar o regime político “sociedade brasileira”, teria apoiado por
existente entre 1964 e 1979 (sic)
de ‘ditadura militar’. Trata-se de
largo tempo o regime ditatorial que,
um exercício de memória, que se controversamente, o autor acredita ter
mantém graças a diferentes terminado em 1979. A partir desta data, teria
interesses, a hábitos adquiridos e se dado um processo de transição à
2
democracia que seria concluído em 1988,
Em nota ao texto da aula, o historiador diz: “Eu
mesmo empreguei o termo [ditadura militar], e com a nova Constituição. A escolha desta
quantas vezes, inclusive em título de livro, periodização, baseada na suposição de que o
contribuindo para consolidar uma tradição
estado de direito teria sido restabelecido
equivocada, do que hoje me arrependo.” REIS,
Daniel Aarão. Ditadura, anistia e reconciliação. após a revogação do AI-5 e da Lei de
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.23, n.45, Anistia, apóia-se numa concepção muito
p.171-186, jan./jun.2010, citação à página 183. Nesta
nota, o autor refere-se ao seu livro_____. Ditadura particular de democracia, que a define a
militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: partir de critérios meramente institucionais.5
Zahar, 2000.
3
_______. Ditadura civil-militar. O Globo, Rio de
Janeiro, caderno Prosa & Verso, 31 de março de
2012.
4 5
_______. O sol sem peneira. Revista de História da Para uma crítica a essa noção de corte liberal, ver
Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, agosto de 2012. WOOD, Ellen M. O demo versus “nós, o povo”: das
Disponível em antigas às modernas concepções de cidadania. In.
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o- Democracia contra capitalismo: a renovação do
sol-sem-peneira (acessado em 15 de novembro de materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003,
2012) p.177-204.

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Em polêmica, o historiador busca Segundo Fico, ao contrário do que


atribuir àqueles que consideram o fim da diz ser uma “memória confortável”, o golpe
ditadura em 1985 o raciocínio segundo o de 1964 foi uma operação que contou não só
qual aquela teria sido simplesmente uma com o apoio de parte da sociedade civil
ditadura militar, chegando ao ponto de dizer brasileira, mas com uma ação efetiva de
que desde 1979 o estado de exceção teria elites civis. E um dos setores que mais
deixado de existir (sic). Em seguida, atribui apoiou o golpe foi a Igreja Católica, que
aos que no fim da ditadura haviam ajudou a construir o movimento de massas
construído uma memória, seletiva e que foi a base para o golpe, as conhecidas
conveniente, capaz de livrarem-se do “Marchas com Deus, pela Pátria e pela
passado incômodo, a opção pelo termo Família”, em São Paulo (antes do golpe),
ditadura militar e localizam seu fim em Rio de Janeiro e outras capitais e cidades do
1985. Quem, então, havia construído tal país com o golpe já vitorioso. Segundo o
memória? Segundo o autor, a própria pesquisador, tais marchas seriam a base de
“sociedade brasileira”, num exercício de uma narrativa de justificação do golpe
auto-absolvição. Cito: construída pelos militares durante toda a
ditadura, segundo a qual “a sociedade
Por essas razões é injusto dizer – outro
clamou pela derrubada de Goulart, o que em
lugar comum – que o povo não tem
memória. Ao contrário, a história atual grande medida é verdade!”, concluiu Fico.
está saturada de memória. Seletiva e Ele também lembrou do apoio da imprensa
conveniente, como toda memória. No ao golpe, cujo emblemas são os famosos
exercício desta absolve-se a sociedade de
qualquer tipo de participação nesse triste editoriais do Correio da Manhã, que
– e sinistro – processo. estamparam na capa do jornal os títulos
“Basta!”, “Fora!” e “Basta e Fora”,
Em audiência pública realizada pela precisamente nos dias 31 de março, 1º e 2 de
Comissão Nacional da Verdade na sede da abril de 1964.
OAB-RJ no dia 13 de agosto de 2012, numa Ao mesmo tempo, defendeu que o
mesa intitulada “Antecedentes, contexto e que caracteriza a natureza “civil-militar” do
razões do golpe militar”, o historiador golpe não decorre só do apoio de civis, mas
Carlos Fico, logo no início de sua da participação direta na preparação e
exposição, foi enfático ao afirmar que “o execução do golpe, como foi o caso do
golpe não foi militar, mas civil-militar”, governador mineiro, Magalhães Pinto. Ele
afirmação seguida por aplausos da platéia.6 lembrou que o governador udenista esteve
Ao mesmo tempo, quanto ao caráter do integrado ao esquema golpista que contava
regime que ali se instalou, Fico pronunciou- com o apoio de Washington: através de um
se em favor da ideia que aquela foi apenas acordo entre o seu (recém-nomeado)
uma ditadura militar, não sendo pertinente o secretário sem-pasta Afonso Arinos de Melo
adjetivo “civil”. Mas voltemos ao que o Franco e o governo Lyndon Johnson,
pesquisador discutiu sobre as razões do materializado na operação Brother Sam.
golpe. A conhecida operação –7 que
recentemente foi discutida em livro pelo
6
Da mesa também participaram a cientista política
Maria Celina D’Araujo e o histórico advogado
defensor dos presos políticos Modesto da Silveira.
Toda a audiência pública pode ser vista no endereço
7
eletrônico http://aovivorj.com.br/oabrj13082012/ Essa história é contada pelo próprio Afonso Arinos
(acessado em 20 de setembro de 2012). no documentário de Silvio Tendler, Jango, de 1984.

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autor –8 contava com plano segundo o qual, predominância contínua de civis, os


chamados técnicos, nos ministérios e
diante da provável resistência de Goulart, o
órgãos administrativos tradicionalmente
governo mineiro declararia o estado de não-militares, é bastante notável.10
beligerância, senha para que os EUA
interviessem no conflito em favor dos Ao contrário do que certa
golpistas. Através do general de brigada historiografia tem buscado apresentar,11
José Pinheiro de Ulhôa Cintra – cadete de Dreifuss não estava empenhado em apenas
Castelo Branco na Escola Militar de descrever a conspiração levada a cabo por
Realengo (RJ) e seu subordinado na organizações da sociedade civil em conluio
campanha da FEB na Itália –, em contato com militares e o governo dos EUA, afinal
com o adido militar estadunidense Vernon isso já era conhecido e abordado em livros
Walters – amigo pessoal de Castelo Branco como os de Moniz Bandeira.12 Em sua tese,
– o plano previa ajuda militar efetiva, Dreifuss estudou a ação de uma importante
inclusive desembarque de tropas no solo organização da sociedade civil o Instituto de
brasileiro. Pesquisas e Estudos Sociais (IPES),
constituída, já no final de 1961, por setores
A participação dos “civis” empresarias, executivos de empresas e
oficiais das Forças Armadas (alguns na
Ora, a participação de elementos reserva, como o general Golbery do Couto e
“civis” naquele processo não constitui Silva). Essa entidade, que desenvolveu uma
grande novidade para os que por acaso intensa campanha de desestabilização do
venham a se debruçar sobre a literatura governo João Goulart e de construção de um
acadêmica produzida ao longo das últimas programa de poder, passaria a atuar ao lado
décadas, não obstante a insistência recente de outras já existentes como: o Instituto
sobre esse ponto lhe querer atribuir caráter Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) que
de novidade. Um exemplo merece destaque: tinha significativa participação no processo
a tese de doutorado de René Armand político brasileiro desde sua fundação em
Dreifuss, publicada no Brasil em 1981 (e
10
que já se encontra em sua 11ª edição), onde Idem, p.417.
11
Refiro-me aqui a uma leitura enviesada do trabalho
é possível ler que “a queda do governo de Dreifuss, que o reduz a uma mera narrativa focada
ocorreu como a culminância de um na conspiração golpista, uma deturpação grosseira de
seu trabalho e que pode ser facilmente percebida por
movimento civil-militar e não como um qualquer um que se debruce sobre seu trabalho. Essa
golpe das Forças Armadas contra João deturpação apareceu pela primeira vez no livro da
Goulart”.9 Sobre a ditadura, o mesmo autor também cientista política Argelina Figueiredo,
Democracia ou reformas? Alternativas democráticas
escreveu que à crise política (1961-1964) (São Paulo: Paz e Terra,
1993), passando a ser reproduzida em diversos
Apesar de a administração pós-1964 ser balanços historiográficos subsequentes.
rotulada de ‘militar’ por muitos Recentemente a historiadora Lucilia Almeida Neves
estudiosos de política brasileira, a Delgado incorreu no mesmo reducionismo, ao
enquadrar a hipótese de Dreifuss como uma narrativa
de “curto prazo” (sic) focada na conspiração. Ver
8
FICO, Carlos. O Grande Irmão: da operação DELGADO, L. A. N. O governo João Goulart e o
Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos golpe de 1964: memória, história e historiografia.
Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Tempo, Niterói, v.14, n.28, p.125-145, jan-jun 2010.
12
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João
9
DREIFUSS, René A. 1964, a conquista do Estado. Goulart e as lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio
Petrópolis: Vozes, 1981, p.361. de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

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1959; a Escola Superior de Guerra (ESG), criação do Banco Central e do Conselho


que formularia a doutrina de “Segurança e Monetário Nacional; empreendendo a
Desenvolvimento”, fundamental na primeira flexibilização da legislação
estruturação do regime ditatorial; trabalhista no Brasil – através da lei do
organizações extremistas como o FGTS, que acabou com a estabilidade por
Movimento Anti-Comunista (MAC); setores tempo de serviço dos trabalhadores da
expressivos da imprensa; além das iniciativa privada, criando um imposto
tradicionais entidades patronais, como a compulsório que seria canalizada para o
Associação Comercial do Rio de Janeiro, a Banco Nacional de Habitação, também
Federação Brasileira de Bancos (Febraban) criado na ocasião –, entre outras medidas no
e a Federação das Indústrias do Estado de interesse do capital monopolista.
São Paulo (FIESP) só para citar as mais Ou seja, ao contrário de um
importantes. Com base em copiosa comentário difuso sobre esses “civis”, a
documentação do IPES localizada no pesquisa de Dreifuss permite não só
Arquivo Nacional (RJ), o cientista político identificar socialmente os tais “civis”
uruguaio buscou entender a ação desta envolvidos naquele processo, tanto no golpe
entidade como a de um verdadeiro “partido quanto na ditadura. Além do mais, ele
político” (no sentido gramsciano) do capital desvelou o que certa literatura apologética
multinacional e associado, que havia deitado denominou de “tecnocratas”,13 termo usado
raízes na estrutura econômica do Brasil para se referir a tais elementos “civis” que
desde a década de cinquenta, tornando-se o atuaram nos postos estratégicos daquele
eixo do processo de acumulação capitalista regime. Entendendo-os como parte de uma
no país. elite organicamente ligada aos interesses do
No último capítulo de sua tese, de capital multinacional e associado, o cientista
onde tiramos o último trecho supracitado, político uruguaio afirma:
Dreifuss discute como tal articulação foi
Um exame mais cuidadoso
capaz de tomar de assalto o aparelho de
desses civis indica que a maioria
Estado, ocupando seus postos estratégicos, esmagadora dos principais
como: o Ministério do Planejamento, técnicos em cargos burocráticos
ocupado por Roberto Campos, o da deveria (em decorrência de suas
fortes ligações industriais e
Fazenda, por Otávio Gouveia de Bulhões, bancárias) ser chamada mais
Indústria e Comércio, por Paulo Egydio precisamente de empresários, ou,
Martins, todos eminências pardas do IPES. na melhor das hipóteses, de
Além desses, quadros militares da entidade, tecno-empresários.14
como os generais Goubery do Couto e Silva,
Ao contrário de tal precisão teórico-
e os irmãos Ernesto e Orlando Geisel,
metodológica, alguns pesquisadores em
diversos ipesianos ocupariam posições de
tempos recentes parecem ter deixado
proa ao longo de todo o período ditatorial.
critérios metodológicos fundamentais de
Uma vez no poder, os quadros do
lado quando têm se referido ao termo “civil”
IPES conseguiram implementar grande parte
(e daí explicamos por que da nossa
do programa anteriormente formulado,
empreendendo transformações importantes 13
Roberto Campos, por exemplo, é comumente
no arcabouço institucional de regulação do referido como um desses “tecnocratas”, noção que
capitalismo brasileiro, através de medidas busca apresentar as ações destes agentes como
como: uma vasta Reforma Administrativa; a medidas “técnicas” e despolitizadas.
14
Idem, p.417, grifo nosso.

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insistência com as aspas). Em primeiro lugar podemos chamar de “versão tupiniquim” de


é preciso dizer que os historiadores devem argumentos revisionistas como o de David
apurar a abordagem sobre a participação das Goldhagen para o contexto da Alemanha
Forças Armadas no processo político nazista,15 de acordo com o qual teria sido a
brasileiro, evitando compartilhar das “sociedade brasileira” cúmplice do
ideologias próprias desta instituição do “autoritarismo”.
Estado. Dizemos isso, pois, a visão segundo É preciso notar que, além de
a qual a sociedade é dividida entre “civis” e Goldhagen, esse tipo de proposição
“militares” é própria da ideologia alimenta-se de posições similares
corporativa das Forças Armadas, enganosa e encontradas na historiografia internacional,
simplista, para dizer o mínimo. Em suma, a e que dizem interessar-se pela forma como
argumento “civil-militar” da forma como “as sociedades produziram regimes
vem sendo apresentado pela historiografia autoritários”. No Brasil, isso apareceu
recente como “grande novidade”, ao se recentemente como substrato da coleção A
distanciar do estudo da dinâmica da luta de construção social dos regimes autoritários,
classes como nervo da política, acaba por organizada pelas historiadoras Samantha
reproduzir a pobre visão corporativa dos Viz Quadrat e Denise Rollemberg,
militares, significando um retrocesso no particularmente presente nas proposições
conhecimento já acumulado pela pesquisa teóricas das autoras, explicitadas na
acadêmica sobre o golpe e a ditadura. Pois Introdução (comum a cada um dos
enquanto Dreifuss apresentou a natureza de volumes).16 Nesta, é possível ler que a
classe desses “civis”, as novas abordagens pretensão da obra coletiva “é entender como
em tela perdem-se numa descrição dos os ditadores foram amados – quando se trata
elementos “civis” que teriam protagonizado de ditaduras pessoais – não porque temidos,
as principais ações (ou as mais visíveis) sem mas, provavelmente, porque expressavam
que sejam estabelecidos seus nexos sócio valores e interesses da sociedade que, em
históricos. dado momento, eram outros que não os
Essa questão tem implicações que democráticos”.17 Da forma como vem sendo
estão além de uma mera querela entre apresentada a caracterização “civil-militar”
historiadores, pois, como vimos na da ditadura brasileira, é possível verificar
abordagem proposta por Daniel Aarão Reis,
o que tem acompanhado tais assertivas são 15
Refiro-me aqui ao seu Os carrascos voluntários de
argumentos – esses sim perigosos – segundo Hitler, livro de meados de anos 1990 que defende a
os quais “a sociedade brasileira apoiou o ideia de que a sociedade alemã foi cumplice do nazi-
fascismo e do Holocausto dos judeus em campos de
golpe e a ditadura”, assunto sobre o qual nos concentração. Edição brasileira, GOLDHAGEN, D.
deteremos agora. Os carrascos voluntários de Hitler. Os alemães e o
Holocausto. São Paulo: Companhia da Letras, 1997.
16
QUADRAT, S. V.; ROLLEMBERG, D. (org.). A
Apoio da sociedade ao golpe e à ditadura? construção social dos regimes autoritários. 3 vols. –
Brasil e América Latina; África e Ásia; Europa. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. É prudente
A partir do notório conhecimento da destacar que em se tratando de obra coletiva, existe
participação de elementos “civis” nesse enorme diversidade quanto ao grau de sofisticação
com que os autores dos capítulos discutem nesta obra
processo (como vimos, já conhecido na a capacidade de “regimes autoritários” constituírem
historiografia), escorrega-se para isso que bases consensuais na sociedade.
17
Idem, p.17, grifo nosso.

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um deslocamento das proposições situações notoriamente não hegemônicas


dreifussianas, e uma aproximação a este (como são os contextos de ditaduras
último paradigma, como, aliás, está explícito militares latino-americanas dos anos 1960-
no artigo do professor Daniel Aarão Reis, 70) a dominação sócio-política não foi
publicado em O Globo e mencionado no possível com ausência de elementos de
topo de nosso texto. Diga-se de passagem, consenso, do mesmo modo que nenhum
as proposições historiográficas desse autor regime democrático é capaz de se manter
são tomadas como inspiração para a coleção sem os aparelhos estatais de coerção
organizada por Quadrat e Rollemberg. (polícia, Forças Armadas, sistema carcerário
Para desenvolver agora nossa crítica, etc.). Em comentário a essa questão na obra
procederemos a uma breve digressão gramsciana, precisamente ao trecho do
teórica. caderno 13 onde Gramsci convoca a
Desde Antonio Gramsci existe uma metáfora do Centauro do secretário
longa discussão no campo político sobre a florentino, o cientista político Alvaro
conformação de mecanismos de consenso Bianchi ensina:
nas mais variadas formas de regime no
A imagem do Centauro é forte e serve
século XX. Num plano histórico mais
para destacar a unidade orgânica entre a
amplo, a questão remete pelo menos a coerção e o consenso. É possível separar a
Maquiavel e sua metáfora do Centauro. Do metade fera da metade homem sem que
aporte gramsciano é possível entender que ocorra a morte do Centauro? É possível
separar a condição de existência do poder
tanto nos regimes democráticos, onde existe político de sua condição de legitimidade?
uma relação equilibrada entre coerção e É possível haver coerção sem consenso?
consenso,18 até nas mais rudimentares Mas tais questões podem induzir a um
ditaduras, nenhum regime político foi capaz erro. Nessa concepção unitária, que era de
Maquiavel, mas também de Gramsci, não
de sobreviver sem o estabelecimento de é apenas a coerção que não pode existir
bases sociais e elementos de hegemonia, sem o consenso. Também o consenso não
pelo menos desde que as sociedades pode existir sem a coerção.19
capitalistas se tornaram de massas, isto é,
desde o fim do século XIX. De acordo com Todavia, estudar a forma como
Gramsci, é precisamente naquele momento regimes ditatoriais constituem-se a partir de
histórico que é colocada a questão da bases na sociedade, o que implica na recusa
necessidade das classes dominantes ao binômio da teoria política liberal
tornarem-se também dirigentes. Estado/sociedade, é muito diferente de
O que podemos aferir das reflexões buscar o “apoio da sociedade ao
do marxista sardo é que mesmo em autoritarismo”, argumento sempre florido
com a suposição politicamente correta
18
Como define o marxista sardo no §37 do caderno segundo a qual “não podemos vitimizar a
13. “O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno sociedade”. Esse tipo de argumento nada
clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela
combinação da força e do consenso, que se
mais faz do que trazer de volta o tal binômio
equilibram de modo variado, sem que a força liberal pela porta dos fundos, afinal de
suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, contas, a sociedade não é uma “pessoa”,
tentando fazer com que a força pareça apoiada no
consenso da maioria, expresso pelos chamados uma coisa monolítica que possa ser
órgãos da opinião pública – jornais e associações –,
os quais, por isso, em certas situações, são
19
artificialmente multiplicados.” GRAMSCI, Antonio. BIANCHI, Alvaro. O Laboratório de Gramsci:
Cadernos do cárcere. Vol. III. Rio de Janeiro: Filosofia, História e Política. São Paulo: Alameda,
Civilização Brasileira, 2000, p.95. 2008, p.190.

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responsável integralmente por apoiar ou se possíveis de serem levados à sério por


opor a um regime político, do mesmo modo aqueles incapazes de fazer alguns
que os regimes políticos não são conduzidos questionamentos bem prosaicos e que, com
por ETs, e sim por membros da própria certa irritação, elencamos a seguir.
sociedade. Em primeiro lugar, sim as marchas
Deste modo, é igualmente errônea a em apoio ao golpe e à ditadura já instalada
suposição de que o golpe e a ditadura foram massivas – mas se esperava o quê,
constituíram-se em oposição à sociedade que depois do golpe e da ditadura instalada
civil, afinal, se pensarmos o conceito de as esquerdas promovessem atos públicos de
sociedade civil a partir de Gramsci – e não a repúdio, ou mantivessem a agenda de
partir do senso comum = parte da sociedade comícios pelas reformas de base? Em
formada pelos “civis” – encontraremos os segundo, o argumento da “expressiva
nexos causais a partir dos quais uma parte votação da Arena” não leva em conta que a
da sociedade brasileira apoiou uma ditadura parte não desprezível da oposição ao regime
feita contra outra parte da sociedade.20 pregou o voto nulo como forma de
Voltemos agora à aula inaugural de denunciar a farsa da oposição entre o “sim”
Daniel Aarão Reis anteriormente (ARENA) e “sim senhor” (MDB). Ora, o
mencionada, para explorar alguns outros próprio autor em seu supracitado livro
pontos de sua argumentação sobre o alegado Ditadura militar, esquerdas e sociedade
“apoio da sociedade” à “ditadura civil- enfatiza a enorme proporção de votos nulos
militar”. O historiador carioca elencou três e brancos nas eleições de 1966 e 1970,
argumentos com os quais quer provar seu denotando que o mesmo tem regredido em
argumento. São eles: suas elaborações.21
Por fim, a tal “popularidade de
1) as massivas Marchas com Deus, Médici”. Ora, o mínimo que se espera é que
pela Pátria e Família,
os historiadores sejam capazes de
organizadas antes (em São Paulo)
e depois do golpe de Estado (no problematizar certas fontes, em especial as
Rio de Janeiro, capitais e muitas pesquisas de opinião feitas num contexto de
cidades do país); uma ditadura. Imaginemos como qualquer
2) as votações expressivas no opositor do regime ditatorial – seja
partido de apoio à ditadura, revolucionário, reformista, de esquerda,
ARENA;
liberal, democrático ou tropicalista –
3) e a suposta popularidade do
general Médici à frente do procederia em face de uma entrevista sobre
Executivo federal. a popularidade do ditador de plantão?
Imagine-se um entrevistador na saída do
Um a um os argumentos são estádio do Maracanã nos idos dos anos 1970
absolutamente insólitos, postos que só são perguntando para um clandestino militante
da luta armada se o “presidente” Médici
20
É claro que a opção por Gramsci implica na recusa
21
do paradigma liberal presente em pensadores como Naquele livro ele afirma que nas eleições de 1966
Locke e Tocqueville, onde a sociedade civil em os votos brancos e nulos alcançaram proporções
chave gramsciana não é o “espaço da liberdade”, inéditas, e sobre as eleições de 1970 o número destes
como é propugnado pelos liberais, nem algo parecido votos de protesto seria ainda maior, alcançando o
como a “esfera pública” habermasiana. Cf. índice de 30%. REIS, Ditadura militar, op. cit., p.44
BIANCHI, O Laboratório, op. cit, p.173-198. e 59.

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estava sendo “bom para o país”? Se não incorporar como tarefa histórica a prevenção
quisesse cometer suicídio, obviamente de situações revolucionárias; uma média
responderia o quão lindo era aquele país, seu duração, que remete às alterações do padrão
“presidente” e as Forças Armadas nacionais. de acumulação capitalista brasileiro; e uma
É preciso destacar que ao lado desta curta, que se liga ao processo político
proposição “civil-militar”, se desenvolveu imediato e as alternativas disponíveis aos
no Brasil uma importante reflexão histórica agentes sociais num quadro de crise de
ancorada na caracterização daqueles regimes hegemonia.24 Em suma, tal como na
existentes na América do Sul nos anos proposição de Dreifuss (que de certo modo é
1960/1970 como Ditaduras de Segurança incorporado), as formulações de Moreira
Nacional, opção teórica muito mais Alves, Padrós e Lemos buscam o sentido
interessante e que remete ao trabalho daquelas experiências históricas face à
pioneiro de Maria Helena Moreira Alves.22 dinâmica social interna e à relação de forças
O historiador gaúcho Enrique Serra Padrós, internacionais, de modo que é possível fugir
que tem seguido essa linha interpretativa, das visões mistificadoras aqui criticadas.
argumenta que os aspectos gerais destes Além do mais, em vários círculos
regimes compreenderam os seguintes começa a se manifestar por parte de
elementos: a Doutrina de Segurança pesquisadores (e também ativistas dos
Nacional; o alinhamento militante junto aos movimentos sociais) o desconforto com a
Estados Unidos na estratégia de “contenção expressão “civil-militar” (embora ela seja
do comunismo” que passou pela adoção de extremamente popular entre eles),25 de que
estratégias de contra-insurgência; e a defesa são exemplos dois artigos publicados em
dos cânones do capitalismo.23 ano de 2012: um pelo jornalista Pedro
Numa abordagem própria, o Pomar e outro do professor João Quartim de
historiador Renato Lemos tem defendido a Moraes.26 O próprio artigo supracitado do
centralidade da categoria de professor Daniel Aarão Reis publicado no
contrarrevolução como articuladora de jornal O Globo – cujo título é “Ditadura
determinações do processo histórico civil-militar” – foi alvo de inúmeras críticas.
brasileiro que, em linguagem braudeliana, Entre as quais destacamos uma carta
remetem a: uma longa duração, cujo marco
é 1917 onde há emergência de uma 24
LEMOS, Renato. Justiça Militar e processo
alternativa societária ao capitalismo a partir político no Brasil (1964-1968). In: 1964-2004. 40
anos do golpe. Ditadura militar e resistência no
da Rússia, que promove uma inflexão em Brasil. Anais do seminário. Rio de Janeiro: FAPERJ;
toda relação de forças internacionais e 7Letras, p.282-289; __________. Contrarrevolução e
obriga as instituições políticas burguesas a ditadura: ensaio sobre o processo político brasileiro
pós-1964.(mimeo).
25
A maior parte dos ativistas dos direitos humanos
22
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição que se pronunciou na audiência pública da Comissão
no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. da Verdade referida acima, enfatizou o termo “civil-
23
PADRÓS, Enrique Serra. História do tempo militar” ao se referir à ditadura.
26
presente, Ditaduras de Segurança Nacional e POMAR, Pedro. O modismo “civil-militar” para
arquivos repressivos. Tempo e Argumento, designar a Ditadura Militar. Brasil de Fato, São
Florianópolis, v.1, n.1, p.30-45, Paulo, 10 de agosto de 2012, disponível em
jan./jun.2009._______. A política de http://www.brasildefato.com.br/node/10300
desaparecimento como modalidade repressiva das (acessado em 20 de agosto de 2012). MORAES, João
Ditaduras de Segurança Nacional. Tempos Históricos Quartim de. Sobre o “aprimoramento” da expressão
(EDUNIOESTE), v.10, p.105-129, 2007.____. ditadura militar. Publicado no site
América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_t
Terror de Estado. Revista História & Luta de exto=4891&id_coluna=24 (acessado em 17 de
Classes, v.4, p.43-49, 2007. setembro de 2012).

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PROCESSO POLÍTICO BRASILEIRO NO PÓS-1964 E OS DESAFIOS DO TEMPO
PRESENTE

enviada pelo professor Renato Lemos, que argumento (falacioso) segundo o qual
embora não tenha sido publicada na referida incorporar a dinâmica econômica na
folha – como, aliás, era de se esperar – foi explicação do processo político seja igual a
publicizada na página eletrônica do “economicismo” ou “reducionismo
Laboratório de Estudos sobre Militares na econômico”, desconsidera-se uma dimensão
Política (LEMP) da UFRJ, do qual é da realidade social que afinal não diz
coordenador.27 Nesta, o autor, entre diversas respeito apenas à economia. Acreditamos
críticas que aqui incorporamos, lembrou que que sem retomar uma visão totalizante a
o apoio “civil” ao golpe e a ditadura “é uma compreensão daquele período chave da
informação muito utilizada por segmentos história recente do país fica empobrecida.28
militares para legitimá-los – ao golpe e à As modificações na estrutura do
ditadura”, e que a apresentação deste ponto capitalismo brasileiro no período da ditadura
com status de “novidade historiográfica, são por demais importantes para que se
estimula os interessados em geral, e os negligencie o projeto de classe que tomou o
jovens historiadores em particular, a aparelho de Estado em 1964. Em primeiro
adotarem uma abordagem temerosa de ir a lugar, uma das resultantes do processo de
fundo na conexão dos eventos em questão aceleração da acumulação capitalista
com poderosos interesses classistas”. conhecido naqueles anos foi, além de uma
Criticou ainda a forma como Reis buscou expansão da fração do capital ligada à
apresentar o período do “Milagre” como indústria de bens duráveis, o fortalecimento
“anos de ouro para não poucos”, lembrando de outras frações das classes dominantes
que: nacionais cujos agentes teriam maior peso
sobre o Estado no período subsequente.
Há farta evidência de que o ‘Milagre
Como exemplos eloquentes, pensemos o
brasileiro’ – a fábrica do ‘ouro’ desses
anos – custou à esmagadora maioria da empresariado ligado à construção civil
classe trabalhadora brasileira o ‘chumbo’ (como os grupos Camargo Corrêa, Andrade
do arrocho salarial, dos serviços públicos Gutierrez, Mendes Júnior e Odebrecht), à
degradados e outras mazelas que se
ausentaram da memória do professor. indústria pesada (Gerdau, Votorantim,
Villares, entre outros), sem esquecer o
Ditadura e capitalismo, ou a ditadura do sistema bancário (de que são exemplares os
grande capital grupos Moreira Salles, Bradesco e Itaú),
grupos capitalistas que construíram seus
Nesse ponto cabe então polemizar “impérios” naquele contexto.29 Não é por
com o ponto mais problemático do
programa de pesquisas desta “nova história
28
política”, qual seja, o de buscar a Como de tudo o mais, ao contrário da
metanarrativa pós-modernas segundo a qual não
compreensão do processo político brasileiro haveria mais lugar para as “grandes explicações”.
29
deslocando-o do capitalismo. Sob o Ver MANTEGA, Guido; MORAES, Maria.
Tendências recentes do capitalismo brasileiro. In.
MANTEGA, G.; MORAES, M. Acumulação
27
LEMOS, Renato. A ‘ditadura civil-militar’ e a monopolista e crises no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e
reinvenção da roda historiográfica. Disponível em Terra, 1979, p.83-106. CAMPOS, Pedro Henrique
http://www.ifcs.ufrj.br/~lemp/imagens/textos/A_dita Pedreira. A Ditadura dos Empreiteiros: as empresas
dura_civil- nacionais de construção pesada, suas formas
militar_e_a_reinvencao_da_roda_historiografica.pdf associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-
(acessado em 10 de abril de 2012) 1985. Niterói, 2012. Tese de doutorado em História.

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acaso que o auge da repressão tenha sido principais fontes de financiamento do


justamente no período do “milagre”, como, “modelo” (o endividamento externo) se
a propósito, defenderam Rui Mauro Marini exauriu, justamente no contexto onde era
e Theotônio dos Santos.30 Ao contrário da necessário um novo pacote de
imagem enganosa de uma “era de ouro para investimentos. A outra importante fonte de
não poucos”, é mais preciso entender financiamento, que era a mais-valia
aqueles como anos nas quais a política resultante do próprio ciclo interno de
permanente de arrocho salarial aprofundou- reprodução do capital, era frágil para
se, garantindo lucros extraordinários para o sustentar as condições da acumulação pelo
capital monopolista e certa euforia do restante da década, já que seria necessário
consumo entre as classes médias. apertar ainda mais o valor da força de
Nesse mesmo sentido, também não é trabalho para baixo. Depois de dez anos de
nenhuma coincidência que desde 1964 política de arrocho o sistema possuía limites
fossem sólidos aquilo que com muita estruturais em garantir a recuperação da taxa
propriedade Paulo Eduardo Arantes de lucro simplesmente a partir do aumento
denominou de “vasos comunicantes” entre o da mais-valia absoluta.32
mundo dos negócios e os subterrâneos da Somada a outros fatores, as
repressão;31 fato que, aliás, ficou bem contradições do “modelo” explodiriam no
evidenciado recentemente no documentário fim da década de 1970 quando das
de Chaim Litewski, Cidadão Boilesen antológicas greves operárias do ABC
(Brasil, 2009). Neste filme, além do paulista, principal ponto de concentração da
personagem central – o empresário indústria de bens duráveis no Brasil,
dinamarquês Henning Boilesen, membro do particularmente a automobilística. Por entre
IPES desde o pré-golpe e articulador do as falas das lideranças operárias que
apoio do capital privado à montagem da organizaram tal movimento, a denúncia do
Operação Bandeirante –, o então ministro da “arrocho” como política da ditadura para a
Fazenda, Antônio Delfim Netto (1967- classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, a
1974), é um dos que aparecem entre os atmosfera do conflito social seria pontuada
animadores da mesma iniciativa terrorista pelo recurso do empresariado paulista aos
que resultaria na criação dos famigerados aparelhos de repressão do Estado: sejam as
DOI-CODI. polícias estaduais paulistas (militar e civil)
Com a crise internacional do na repressão direta às greves e sindicalistas;
capitalismo dos anos setenta, uma das seja na reivindicação dos instrumentos da
estrutura sindical corporativista, ocasião em
que o titular da pasta, Murilo Macedo,
Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, p.508. lançou todos os recursos discricionários
30
Como lembrou Francisco de Oliveira em 2004, a disponíveis – como a cassação das
tese da dupla seria contestada por Fernando Henrique
Cardoso e José Serra nos anos setenta, uma vez que lideranças sindicais, intervenção em
estes estariam interessados em convencer o sindicatos etc. –, ficando evidenciados os
empresariado nacional de que não haveria tal fortes compromissos que o regime possuía
afinidade eletiva entre repressão e crescimento
econômico. OLIVEIRA, Francisco. Ditadura Militar com o capital. A falsificação dos índices de
e crescimento econômico: a redundância autoritária.
In: 1964-2004. 40 anos do golpe, op. cit., p.219-225.
31
ARANTES, Paulo. 1964, o ano que não terminou.
32
In. TELES, Edson & SAFATLE, Vladimir (orgs.). O MENDONÇA, Sônia Regina de. Estado e
que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, economia no Brasil: opções de desenvolvimento. Rio
p.206. de Janeiro: Graal, 1988, p.101.

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PRESENTE

inflação,33 que tornaria o nome de Delfim seu livro Ditadura militar, esquerdas e
Neto “famoso” entre os trabalhadores, não sociedade:
pode ser compreendida sem que
“Rompendo com os propósitos
estabeleçam os nexos reais entre a ditadura e
internacionalistas-liberais do governo
o grande capital. Caso contrário devemos Castelo Branco, o Estado, além de
nos contentar com uma denúncia da incentivar, regular, financiar e proteger,
“maldade do sistema”. intervinha ativamente nos mais variados
setores, seja através de tradicionais – e
Também não é possível esquecer que gigantescas – empresas estatais, como a
os famosos Atos Institucionais, além do Petrobrás, Vale do Rio Doce e
reforço aos instrumentos discricionários de Companhia Siderúrgica Nacional, seja
que se revestiu o regime, via de regra através de outras, a que deu alento – como
a Eletrobrás, ou ainda, a Siderbrás,
dotaram o Estado de capacidade de atributos imensa holding da produção de aço –,
modernizadores, como foi o caso do Ato além de estimular fusões e associações do
Complementar n.40, promulgado na esteira capital privado nacional e estrangeiro às
do AI-5, que centralizou tributos na esfera quais, com frequência, comparecia o
próprio Estado.”34
federal em detrimento de estados e
municípios. Tal procedimento possibilitou à Ora, é preciso ser crente na ideologia
ditadura dispor de recursos para sua propagandeada pelo liberalismo econômico
participação direta no processo de para conceber a possibilidade de um
acumulação, através das empresas estatais. capitalismo sem intervenção estatal. O que
Aqui cabe mais uma vez polemizar dizer dos mecanismos de poupança
com outro ponto de Daniel Aarão Reis. É compulsória erigidos sob a primeira
que, de acordo com este, embora já tenha administração ditatorial – o já mencionado
reconhecido que o primeiro governo da Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
ditadura tenha se empenhado em por em (FGTS), além do Programa de Integração
prática as diretrizes formuladas pelo IPES, Social (PIS) e o Programa de Formação do
após a morte trágica de Castelo Branco teria Patrimônio do Servidor Público (PASEP) –
havido uma retomada da participação do que se destinaram a financiar a formação do
Estado no processo econômico, estando aí, capital fixo das empresas privadas?35 Por
para esse autor, a razão maior para que entre acaso as empresas estatais arroladas pelo
o fim dos anos 1960 e início dos 1970 o historiador deixaram de funcionar durante a
Brasil tenha conhecido seu “milagre”. gestão do Marechal?
Baseando-se numa oposição metafísica entre Desde sua constituição até sua
dois projetos que alegadamente teriam reprodução histórica, o Estado é um
polarizado a política brasileira por largo elemento constitutivo da acumulação
período, o “nacional-estatista” e o “liberal- capitalista na modernidade, e naqueles anos
internacionalista”, Aarão Reis praticamente não poderia ser diferente, muito menos num
nos diz que o “milagre” teria sido o país como o Brasil.36 Sendo o
resultado da retomada do papel do Estado na
economia. Senão vejamos o que nos diz em 34
REIS, Ditadura militar, op. cit., p.56.
35
MENDONÇA, Sônia Regina de. Estado e
economia no Brasil: opções de desenvolvimento. Rio
33
Reveladas pelos estudos do DIEESE e que de Janeiro: Graal, 1986, p.97.
36
embalaram as campanhas por reposição das perdas Como de resto esta ser uma característica da
salariais (e que dariam origem ao ciclo grevista). constituição histórica da sociabilidade do valor.

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desenvolvimentismo da ditadura um colaboração de órgãos do Grupo Folha com


aprofundamento do padrão de acumulação a face mais cruel da ditadura: a perseguição,
dependente que emergiu desde meados dos prisão, tortura, assassinato e
anos cinquenta, não haveria como o sistema “desaparecimento” de opositores do regime,
retomar sua fase ascendente sem que o especialmente da Folha da Manhã, que por
Estado estivesse bem colocado em sua aquela época ficaria conhecido entre a
posição de “empresário”, participando do militância da luta armada como “Diário
tripé também formado pelos capitais Oficial da Operação Bandeirantes”.
nacional, estrangeiro e associado. Não demorou também para que, da
Em relação aos grandes impérios direita do espectro políticos, vozes fossem
empresarias constituídos sob a ditadura, levantadas para defender as benesses
caberia também mencionar os grandes modernizantes trazidas pela ditadura, e em
grupos monopolistas do setor de alguns casos a defesa de uma periodização
comunicação de massa, como é evidente o ainda mais restrita que a hipótese de Daniel
caso das Organizações Globo, cuja trajetória Aarão Reis. No mesmo momento em que a
de colaboração com o regime ditatorial está própria Folha fazia uma tímida autocrítica
bem descrita no documentário Muito Além da “ditabranda”, o mais caricatural dos
do Cidadão Kane, de Simon Hartog (Reino revisionistas, Marco Antonio Villa,
Unido,1993). Mas é preciso lembrar escrevendo no mesmo periódico paulista,
também de outros importantes grupos chegou ao ponto de dizer que ditadura só
capitalistas, como o setor da imprensa que, teria existido mesmo entre 1968-1979.39
antes de tudo, constituía uma história de Capturando o sentido revisionista desse
colaboração íntima com a ditadura, como é episódio, Paulo Arantes escreveria:
o caso do Grupo Folha, da família Frias, e O
Pelas novas lentes revisionistas, a dita
Estado de São Paulo, a revista Veja, além, é
cuja só teria sido deflagrada para valer em
claro, de O Globo. dezembro de 1968, com o Ato
Sobre as empresas da família Frias, Institucional no5 (AI-5) – retardada, ao
recentemente o vínculo entre esta e o regime que parece, por motivo de “efervescência”
cultural tolerada – e encerrada
ditatorial foi lembrado em razão de uma precocemente em agosto de 1979, graças
tentativa da Folha de S. Paulo apresentar a à autoabsolvição dos implicados em toda
expressão “ditabranda” para caracterizar a cadeia de comando da matança. O que
aquele regime.37 A controvérsia que se vem por ai? Negacionismo à brasileira?40
seguiu, que envolveu desde cartas de
É verdade, diversos órgãos de
leitores até uma manifestação em frente à
imprensa, alguns antes, outros depois,
sede do jornal,38 trouxe à tona o passado de
construíram uma memória sobre sua
participação naquele período da história do
FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-
imperialismo. Teoria e história. Rio de Janeiro: Brasil, especialmente quando começou a
EdUFRJ; Editora Escola Politécnica de Saúde ficar claro que a ditadura acabaria. Mas
Joaquim Venâncio, 2010.
37
No editorial “Limites à Chávez” da Folha de S. identificar a posição da imprensa com a
Paulo, do dia 17 de fevereiro de 2009. opinião da sociedade, assumindo de forma
38
Manifestação que reuniu cerca de 300 pessoas,
acrítica aquilo que vulgarmente se denomina
segundo noticiou a própria Folha de S. Paulo, em
edição de 8 de março de 2009. Um apanhado do
39
ocorrido pode ser lido em TOLEDO, Caio Navarro VILLA, Marco Antonio. Ditadura à brasileira.
de. Crônica política sobre um documento contra a Folha de São Paulo, São Paulo, 5 de março de 2009.
40
“ditabranda”. Revista de Sociologia e Política, ARANTES, 1964: o ano que não terminou, op. cit,
Curitiba, v.17, n.34, p.209-217, 2009. p.209.

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PRESENTE

“opinião pública”, não é argumento brasileira para os maiores movimentos de


plausível, senão para aqueles que insistem massas da história do país nos anos 1980
em, a despeito das evidências, provar uma (que compreenderam desde a campanha das
cumplicidade dos “brasileiros” com a Diretas já!, e um cenário ascendente da luta
ditadura implantada em 1964. Em vez disso, de classes, em meio a uma crise sem
melhor seria o entendimento da imprensa, precedentes na economia brasileira).
para além de uma fonte de informações
sobre os acontecimentos correntes e da Considerações finais
opinião de seus leitores, um mercado
formado por empresas capitalistas A primeira parte do documentário de
fabricantes de ideologias que se comportam Patricio Guzman, A batalha no Chile, cujo
como “partidos”, no sentido dado por tema é o golpe contra Salvador Allende,
Gramsci.41 Quem produziu as narrativas denomina-se “A insurreição da burguesia”.43
justificadores do golpe e da ditadura foram Como o próprio subtítulo indica, seu autor
jornais como O Globo, Folha de São Paulo, atribuiu ao 11 de setembro de 1973 não
O Estado de São Paulo que nos idos de simplesmente uma intervenção militar
março de 1964 venderam a versão de que contra um governo de esquerda
era Jango quem pretendia dar um golpe, constitucional; nem simplesmente uma
perpetuando-se no poder e abrindo o espaço intervenção de “civis” e militares
para que a “infiltração comunista” tomasse o interrompendo o regime democrático. Tal
poder. Principalmente em períodos de crise como ocorreria em diversos outros países da
de hegemonia, a imprensa corporativa América do Sul nos anos 1960 e 1970,
exacerba sua ação que também ali se tratou de uma ação das
classes dominantes chilenas, em conluio as
não somente visa satisfazer todas as
Forças Armadas e as forças do imperialismo
necessidades (de uma certa categoria) de
seu público, mas pretende também criar e estadunidense. Para além do terrorismo de
desenvolver estas necessidades e, Estado, o caráter de classe do golpe chileno
conseqüentemente, em certo sentido, seria logo evidenciado pela rápida
gerar seu público e ampliar
progressivamente sua área.42 implantação de políticas econômicas
neoliberais.44 Ocorrido quase uma década
Mas isso nem sempre é eficiente, e capaz de antes, o golpe de 1964 no Brasil foi lido por
moldar as opiniões políticas de setores uma série de críticos numa chave muito
expressivos da sociedade, como denota o próxima, embora por aqui, certamente, o
fato de que embora já fosse a mais projeto vencedor não tenha sido o
importante corporação empresarial na área neoliberal.
das comunicações, as empresas da família O propósito deste trabalho foi o de
Marinho não tenham logrado sucesso em problematizar e questionar as formulações
evitar que a oposição ao regime tenha de certa historiografia recente que, sob o
conquistado amplas parcelas da população invólucro do termo impreciso “civil-

43
GUZMAN, Patrício. A batalha no Chile (Cuba,
41
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, Vol. 3. Chile, França, 1975).
44
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.350. HARVEY, David. O Neoliberalismo: história e
42
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, Vol.2. implicações. 2ª edição. São Paulo: Loyola, 2011,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.197. p.17-19.

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militar”, deslocou o sentido dado por um


dos pioneiros do seu uso, René Dreifuss.
Além de descolar a explicação do processo
político da dinâmica do capitalismo e de
suas contradições, tais historiadores ainda
introduzem noções algo perigosas, como a
de que a “sociedade brasileira” teria sido
cúmplice daqueles anos terríveis.
Especialmente em tempos de Comissão
Nacional da Verdade e desses bem vindos
movimentos de jovens conhecidos como
escrachos, as responsabilidades éticas
intrínsecas à disciplina cujo propósito é a
investigação e o esclarecimento sobre o
passado devem ser levadas em conta.
Ao distribuir a “culpa” ao conjunto
da sociedade (a esquerda e a direita, os
torturadores e os torturadores, os que deram
o golpe e os que o sofreram) tal
revisionismo histórico acaba por incorrer, no
campo construção do conhecimento
histórico, no mesmo tipo de mistificação
conservadora que engendrou a Lei de
Anistia e o pacto de conciliação que presidiu
a transição para o atual regime democrático
brasileiro. Recolocar o capitalismo no centro
da reflexão sobre a ditadura parece ser a
tarefa premente do pensamento crítico nos
embates que temos pela frente. Dito isto,
melhor seria que em vez de “civil-militar”
nos habituássemos a utilizar uma outra
caracterização também feita por Dreifuss, e
que talvez capture com mais precisão a
natureza daquele regime: uma ditadura
empresarial-militar implantada a partir de
uma insurreição contra-revolucionárias das
classes dominantes.

Recebido em: 16/11/2012


Aceito em: 20/11/2012

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