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ISSN: 1518-4196
espacoplural@yahoo.com.br
Universidade Estadual do Oeste do
Paraná
Brasil
Resumo: O propósito deste texto é discutir Abstract: The purpose of this paper is to
a limitação de uma noção que desde os anos discuss the limitation of a notion that since
2000 tem ganhado ares de “renovação the 2000 years has gained an air of
conceitual” para o entendimento do regime “conceptual renewal” for understanding the
ditatorial implantado no Brasil em 1964. A nature of the dictatorial regime implemented
partir da constatação trivial de que tanto na in Brazil in 1964. From the observation,
operação do golpe de Estado quanto na something trivial, that both operation of the
condução da ditadura houve participação coup, such as in the conduct of the
importante de setores não-fardados em dictatorship, there was participation of
posições relevantes, esta idéia busca definir important sectors non-uniformed in relevant
tal situação a partir do termo “civil-militar” positions, that idea searches to define that
adjetivando tanto o golpe de 1964 quanto a situation with the term “civil-military”
ditadura que se seguiu. A partir de um adjectivizing both the 1964 coup as the
apanhado na literatura, procura-se apontar as dictatorship that followed it. From an
insuficiências e os desdobramentos overview on the literature, we seek to point
mistificadores que tal noção encerra, em out the shortcomings and the mystifying
primeiro lugar por naturalizar uma visão ramifications that such notion presents, first
corporativa dos militares sobre a sociedade; by naturalizing an enterprise view of the
em segundo, por não ser capaz de dar conta military on society, and secondly, for not
dos nexos reais que articularam o grande being able to cope with the real nexus who
capital monopolista com o aparelho de articulated the big monopoly capital with the
Estado naquela quadra histórica. state apparatus in that historic block.
“Golpe civil-militar”; “ditadura civil- adjetivo visa lembrar que também parte dos
militar”. O termo “civil-militar” foi civis apoiou o golpe e participou da
apresentado pela historiografia como forma condução do processo político entre abril de
mais precisa para adjetivar o golpe de 1964 1964 até 1985, quando a maior parte da
e do regime que lhe seguiu. Ao contrário de historiografia localiza o fim daquela
uma mera ação das Forças Armadas, tal ditadura. Por outro lado, a recente
1
Doutor em História pela UFF e Professor do curso de História da UFRJ. Email:
demian_pesquisa@yahoo.com.br
estava sendo “bom para o país”? Se não incorporar como tarefa histórica a prevenção
quisesse cometer suicídio, obviamente de situações revolucionárias; uma média
responderia o quão lindo era aquele país, seu duração, que remete às alterações do padrão
“presidente” e as Forças Armadas nacionais. de acumulação capitalista brasileiro; e uma
É preciso destacar que ao lado desta curta, que se liga ao processo político
proposição “civil-militar”, se desenvolveu imediato e as alternativas disponíveis aos
no Brasil uma importante reflexão histórica agentes sociais num quadro de crise de
ancorada na caracterização daqueles regimes hegemonia.24 Em suma, tal como na
existentes na América do Sul nos anos proposição de Dreifuss (que de certo modo é
1960/1970 como Ditaduras de Segurança incorporado), as formulações de Moreira
Nacional, opção teórica muito mais Alves, Padrós e Lemos buscam o sentido
interessante e que remete ao trabalho daquelas experiências históricas face à
pioneiro de Maria Helena Moreira Alves.22 dinâmica social interna e à relação de forças
O historiador gaúcho Enrique Serra Padrós, internacionais, de modo que é possível fugir
que tem seguido essa linha interpretativa, das visões mistificadoras aqui criticadas.
argumenta que os aspectos gerais destes Além do mais, em vários círculos
regimes compreenderam os seguintes começa a se manifestar por parte de
elementos: a Doutrina de Segurança pesquisadores (e também ativistas dos
Nacional; o alinhamento militante junto aos movimentos sociais) o desconforto com a
Estados Unidos na estratégia de “contenção expressão “civil-militar” (embora ela seja
do comunismo” que passou pela adoção de extremamente popular entre eles),25 de que
estratégias de contra-insurgência; e a defesa são exemplos dois artigos publicados em
dos cânones do capitalismo.23 ano de 2012: um pelo jornalista Pedro
Numa abordagem própria, o Pomar e outro do professor João Quartim de
historiador Renato Lemos tem defendido a Moraes.26 O próprio artigo supracitado do
centralidade da categoria de professor Daniel Aarão Reis publicado no
contrarrevolução como articuladora de jornal O Globo – cujo título é “Ditadura
determinações do processo histórico civil-militar” – foi alvo de inúmeras críticas.
brasileiro que, em linguagem braudeliana, Entre as quais destacamos uma carta
remetem a: uma longa duração, cujo marco
é 1917 onde há emergência de uma 24
LEMOS, Renato. Justiça Militar e processo
alternativa societária ao capitalismo a partir político no Brasil (1964-1968). In: 1964-2004. 40
anos do golpe. Ditadura militar e resistência no
da Rússia, que promove uma inflexão em Brasil. Anais do seminário. Rio de Janeiro: FAPERJ;
toda relação de forças internacionais e 7Letras, p.282-289; __________. Contrarrevolução e
obriga as instituições políticas burguesas a ditadura: ensaio sobre o processo político brasileiro
pós-1964.(mimeo).
25
A maior parte dos ativistas dos direitos humanos
22
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição que se pronunciou na audiência pública da Comissão
no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. da Verdade referida acima, enfatizou o termo “civil-
23
PADRÓS, Enrique Serra. História do tempo militar” ao se referir à ditadura.
26
presente, Ditaduras de Segurança Nacional e POMAR, Pedro. O modismo “civil-militar” para
arquivos repressivos. Tempo e Argumento, designar a Ditadura Militar. Brasil de Fato, São
Florianópolis, v.1, n.1, p.30-45, Paulo, 10 de agosto de 2012, disponível em
jan./jun.2009._______. A política de http://www.brasildefato.com.br/node/10300
desaparecimento como modalidade repressiva das (acessado em 20 de agosto de 2012). MORAES, João
Ditaduras de Segurança Nacional. Tempos Históricos Quartim de. Sobre o “aprimoramento” da expressão
(EDUNIOESTE), v.10, p.105-129, 2007.____. ditadura militar. Publicado no site
América Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_t
Terror de Estado. Revista História & Luta de exto=4891&id_coluna=24 (acessado em 17 de
Classes, v.4, p.43-49, 2007. setembro de 2012).
enviada pelo professor Renato Lemos, que argumento (falacioso) segundo o qual
embora não tenha sido publicada na referida incorporar a dinâmica econômica na
folha – como, aliás, era de se esperar – foi explicação do processo político seja igual a
publicizada na página eletrônica do “economicismo” ou “reducionismo
Laboratório de Estudos sobre Militares na econômico”, desconsidera-se uma dimensão
Política (LEMP) da UFRJ, do qual é da realidade social que afinal não diz
coordenador.27 Nesta, o autor, entre diversas respeito apenas à economia. Acreditamos
críticas que aqui incorporamos, lembrou que que sem retomar uma visão totalizante a
o apoio “civil” ao golpe e a ditadura “é uma compreensão daquele período chave da
informação muito utilizada por segmentos história recente do país fica empobrecida.28
militares para legitimá-los – ao golpe e à As modificações na estrutura do
ditadura”, e que a apresentação deste ponto capitalismo brasileiro no período da ditadura
com status de “novidade historiográfica, são por demais importantes para que se
estimula os interessados em geral, e os negligencie o projeto de classe que tomou o
jovens historiadores em particular, a aparelho de Estado em 1964. Em primeiro
adotarem uma abordagem temerosa de ir a lugar, uma das resultantes do processo de
fundo na conexão dos eventos em questão aceleração da acumulação capitalista
com poderosos interesses classistas”. conhecido naqueles anos foi, além de uma
Criticou ainda a forma como Reis buscou expansão da fração do capital ligada à
apresentar o período do “Milagre” como indústria de bens duráveis, o fortalecimento
“anos de ouro para não poucos”, lembrando de outras frações das classes dominantes
que: nacionais cujos agentes teriam maior peso
sobre o Estado no período subsequente.
Há farta evidência de que o ‘Milagre
Como exemplos eloquentes, pensemos o
brasileiro’ – a fábrica do ‘ouro’ desses
anos – custou à esmagadora maioria da empresariado ligado à construção civil
classe trabalhadora brasileira o ‘chumbo’ (como os grupos Camargo Corrêa, Andrade
do arrocho salarial, dos serviços públicos Gutierrez, Mendes Júnior e Odebrecht), à
degradados e outras mazelas que se
ausentaram da memória do professor. indústria pesada (Gerdau, Votorantim,
Villares, entre outros), sem esquecer o
Ditadura e capitalismo, ou a ditadura do sistema bancário (de que são exemplares os
grande capital grupos Moreira Salles, Bradesco e Itaú),
grupos capitalistas que construíram seus
Nesse ponto cabe então polemizar “impérios” naquele contexto.29 Não é por
com o ponto mais problemático do
programa de pesquisas desta “nova história
28
política”, qual seja, o de buscar a Como de tudo o mais, ao contrário da
metanarrativa pós-modernas segundo a qual não
compreensão do processo político brasileiro haveria mais lugar para as “grandes explicações”.
29
deslocando-o do capitalismo. Sob o Ver MANTEGA, Guido; MORAES, Maria.
Tendências recentes do capitalismo brasileiro. In.
MANTEGA, G.; MORAES, M. Acumulação
27
LEMOS, Renato. A ‘ditadura civil-militar’ e a monopolista e crises no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e
reinvenção da roda historiográfica. Disponível em Terra, 1979, p.83-106. CAMPOS, Pedro Henrique
http://www.ifcs.ufrj.br/~lemp/imagens/textos/A_dita Pedreira. A Ditadura dos Empreiteiros: as empresas
dura_civil- nacionais de construção pesada, suas formas
militar_e_a_reinvencao_da_roda_historiografica.pdf associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-
(acessado em 10 de abril de 2012) 1985. Niterói, 2012. Tese de doutorado em História.
inflação,33 que tornaria o nome de Delfim seu livro Ditadura militar, esquerdas e
Neto “famoso” entre os trabalhadores, não sociedade:
pode ser compreendida sem que
“Rompendo com os propósitos
estabeleçam os nexos reais entre a ditadura e
internacionalistas-liberais do governo
o grande capital. Caso contrário devemos Castelo Branco, o Estado, além de
nos contentar com uma denúncia da incentivar, regular, financiar e proteger,
“maldade do sistema”. intervinha ativamente nos mais variados
setores, seja através de tradicionais – e
Também não é possível esquecer que gigantescas – empresas estatais, como a
os famosos Atos Institucionais, além do Petrobrás, Vale do Rio Doce e
reforço aos instrumentos discricionários de Companhia Siderúrgica Nacional, seja
que se revestiu o regime, via de regra através de outras, a que deu alento – como
a Eletrobrás, ou ainda, a Siderbrás,
dotaram o Estado de capacidade de atributos imensa holding da produção de aço –,
modernizadores, como foi o caso do Ato além de estimular fusões e associações do
Complementar n.40, promulgado na esteira capital privado nacional e estrangeiro às
do AI-5, que centralizou tributos na esfera quais, com frequência, comparecia o
próprio Estado.”34
federal em detrimento de estados e
municípios. Tal procedimento possibilitou à Ora, é preciso ser crente na ideologia
ditadura dispor de recursos para sua propagandeada pelo liberalismo econômico
participação direta no processo de para conceber a possibilidade de um
acumulação, através das empresas estatais. capitalismo sem intervenção estatal. O que
Aqui cabe mais uma vez polemizar dizer dos mecanismos de poupança
com outro ponto de Daniel Aarão Reis. É compulsória erigidos sob a primeira
que, de acordo com este, embora já tenha administração ditatorial – o já mencionado
reconhecido que o primeiro governo da Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
ditadura tenha se empenhado em por em (FGTS), além do Programa de Integração
prática as diretrizes formuladas pelo IPES, Social (PIS) e o Programa de Formação do
após a morte trágica de Castelo Branco teria Patrimônio do Servidor Público (PASEP) –
havido uma retomada da participação do que se destinaram a financiar a formação do
Estado no processo econômico, estando aí, capital fixo das empresas privadas?35 Por
para esse autor, a razão maior para que entre acaso as empresas estatais arroladas pelo
o fim dos anos 1960 e início dos 1970 o historiador deixaram de funcionar durante a
Brasil tenha conhecido seu “milagre”. gestão do Marechal?
Baseando-se numa oposição metafísica entre Desde sua constituição até sua
dois projetos que alegadamente teriam reprodução histórica, o Estado é um
polarizado a política brasileira por largo elemento constitutivo da acumulação
período, o “nacional-estatista” e o “liberal- capitalista na modernidade, e naqueles anos
internacionalista”, Aarão Reis praticamente não poderia ser diferente, muito menos num
nos diz que o “milagre” teria sido o país como o Brasil.36 Sendo o
resultado da retomada do papel do Estado na
economia. Senão vejamos o que nos diz em 34
REIS, Ditadura militar, op. cit., p.56.
35
MENDONÇA, Sônia Regina de. Estado e
economia no Brasil: opções de desenvolvimento. Rio
33
Reveladas pelos estudos do DIEESE e que de Janeiro: Graal, 1986, p.97.
36
embalaram as campanhas por reposição das perdas Como de resto esta ser uma característica da
salariais (e que dariam origem ao ciclo grevista). constituição histórica da sociabilidade do valor.
43
GUZMAN, Patrício. A batalha no Chile (Cuba,
41
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, Vol. 3. Chile, França, 1975).
44
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.350. HARVEY, David. O Neoliberalismo: história e
42
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, Vol.2. implicações. 2ª edição. São Paulo: Loyola, 2011,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.197. p.17-19.