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CLASSICOS CULTRIX A FILOSOFIA DE DIDEROT Introdugio, selecéo e traducdo de textos ¢ nots por | : J. Gumspune SBD-FFLCH-USP 7.5 EDITORA CULTRIX sho PAULO PARADOXO SOBRE O COMEDIANTE (**) Primemo INTERLocuTOR. — Néo falemos mais disso. SecuNpo nvrERLocUTOR. — Por qué? Primero. — Porque « obra & de vosso amigo. (°4) SecuNpo. — Que importa? _ PRIMEIRO. — Muito, De que vos serve ficar na alterna. tiva de desprezar ou o seu talento, ou o meu julgamento, ede. preciar « boa opinio que tendes déle ou a que tendes de mim? SecunDo, — Isso néo sucederé; e mesmo INDO. 2 5 que sucedesse, mi- ‘aha amizade pelos dois, baseada em qualidades mais essenciais, nio seria atingida. * Primero. — Talvez. SEGUNDO. — Estou certo. Sabeis a quem vos asseme- neste instante? A um autor de meu conhecimento que suplicava de joelhos a uma mulher a qual estava ligado, que nfo assistisse A primeira representacéo de uma de suas pecas, PrrmeIRo. — Vosso autor era niodesto e prudente. Szunno. — Temia que o sentimento terno que Ihe de- dicavam ficasse na dependéacia da apreciacéo que fosse feita de seu mérito literério, Primero. — Isso seria possivel, Secunpo. — Que um fracasso piiblico o degtadasse um pouco aos olhos de sua amada, _Primemo. — Que menos estimado, fSsse menos amado, E isso vos parece ridiculo? Secunpo. — Foi assim que foi alugedo e 9 autor logrou 0 foi abracado, festejado e acaric PrIMetro, — Sélo-ia muito mais se a pega f0sse vaiada. julgou o fato. O camarote éxito: s6 Deus sabe como 164 Secunpo. — Nio duvido. Primero. — E eu persisto em minha opiniio. SEGUNDO. — Persisti, consinto; mas lembrai-vos que nao sou mulher e que & preciso, se vos apraz, que vos expliqueis, PRIMErRO. — Absolutamente? SeGUNDO. —— Absolutamente. Prien. — Ser-meia mais ficil calarme do que dis- fergar meu pensamento. Sscunpo. — Actedito. Primero. — Serei severo. Sacunpo. — 0 que meu amigo exigiria de v6s. Parmero. — Pois bem, j& que é mister vo-lo dizer, a obra dale, escrita em um estilo slambicado, obscuro, tortuoso, em- polado, esté chela de idéias comuns, Ao saic desta Jeitura, a fre: ik grande comediante nfo seré melhor, e um’ Atof* serd menos tuim. Compete 2 natureza dat as qualidades da pes- soa, a figura, a voz, o julgamento, a sutileze. Compete a0 estudo dos grandes modelos, 20 conhecimento do coragio hue meno, & prética do mundo, a0 trabalho assiduo, & experi € 0 habito do teatro, aperfeigoar o dom da naturera. O mediante imitador pode chegar ao ponto de representar tudo passivelmente; nada haveré a louvar, nem a repreender em seu desempenho, SeGuNDO. — Ou haveré tudo a repreender Pareiro. — Como quiserdes. O comediante por natu- reza é emitide detestével e as vézes excelente. Em qualquer gé- ‘nero que seja, desconfiai da medioctidade constante, Qualquer ‘que sea o rigor com que um estreante seja tratado, & fécil pres- sentir seus triunfos vindouros. As vaias sufocam apenas os ineptos. E como formaria a natureza sem a arte um grande comediante, jé que nada se passa exatamente no palco como na natureza, ¢ que 0s poemas draméticos sio todos compostos se- gundo um certo sistema de principios? E como seria um papel desempenhado da mesma maneita por dois atbres diferentes, se no escritor mais claro, mais preciso, mais enérgico, as palavras nifo so © nfo podem ser senfo signos aptoximados de um pen- samento, de um sentimento, de uma idéia; signos cujo valor o 165 movimento, 0 gesto, 0 tom, a fisionoméa, os olhos, ¢ circunstin- cia dada, comple a i wvEas: plesam? Quando ouvis estas palavza +++ O que faz at vosse mio? — Apalpo 0 vosso traje, 0 seu tecido & macio, (8) O que sabcis vés? Nada. Ponderai bem o que segue, ¢ con- cebei como é fregtiente e f4cil que dois interlocutores, empre- gendo as mesmas expressGes, tenham pensado e dito coisas to- talmente diversas. O exemplo que disso vos darei & uma e cie de prodigio; & a obra mesma de vosso amigo. Perguntai a uum comedicnte francés qual a sua opinigo a respeito, ¢ éste con- cordaré que tudo néle é verdadeiro. Fazei a mesma pergunta 2 um comediante inglés, e éle vos juraré, by God, que nao hé sequer uma frase a mudar, e que é 0 puro evangelho da cena. Entretanto, como no hé ‘quase nada em comum entre a ma- neira de escrever a comédia ea trogédia na Inglaterra ¢ a ma: neira com que se escrevem ésses poemas em Franca, pois, se- gundo o modo de pensar mesmo de Garrick, quem sabe repre- sentar perfeitamente uma cena de Shakespeare no conhece 0 primeiro acento da declamagéo de uma cena de Racine; pois enlegado pelos versos harmoniosos déste wltimo, como por ov- tras tantas serpentes cujos anéis lhe estreitam a cabega, os pés, as mios, as pernas, e 05 bracos, sua ago perderia com isso téda a liberdade: (°) ' segue-se evidentemente que o ator francés € 0 ator inglés, que concordam unénimemente quanto A verdade dos princfpios de vosso autor, nfo se entendem, e que hé na lin guagem técnica do teatro uma latitude, um vago bastante con: derivel para que homens sensatos, de opini6es diametralmente opostas, creiam reconhecer ai a luz da evidéncia. E continual mais do que munca apegados 4 vossa méxima: Nao vos expliqueis nunca se quereis vos entender, Secunpo. — Pensais que em téda obra, e sobretudo nes- ta, existem dois sentidos distintos, ambos encerrades sob 0s mesmos signos, um em Londres e outro em Paris? Parmerro. — E que tais signos apresentam tio nitida- mente ésses dois sentidos que vosso amigo mesmo se enganow com @les, uma vez que, associando nomes de comediantes in- eléses a nomes de comediantes franceses, aplicando-lhes os mes- mos pteceitos, e concedendo-lhes a mesma censura e os mesmos 166 (° Quant a ‘mim, quero qu louvorés, imaginu, set divida, qué aquilo qué declarava quati- to a-uns eta igualmente justo quanto a dutfos. SEGUNDO, — Mas, désse méd0, nénhirm Outro autor te tia cometido tantos verdadeizos contra-sensos. Parmzino. — As mesmas palavras de que éle se serye enunciam uma coisa no carrefour de Bussy(*) e coisa dife- rente em Drury Lene, (*) devo confessi-lo com pesar; de resto, posso estar ertado. Mas 0 ponto importante, sObre_o “qual temos opinides.inteisamenté. qpostas, vosso autor eu, ‘questo das qualidades principsis de um grande comediant cesta gue honem um spect idle, por_conseaiiéncia, -peneiragao e{ nenbuma_ seni TaeIE Te inter bire Guede TO hese, Ue aptiddo para téda_espécie de caracteres ¢ papéis. Secunpo. — Neahuma sensibilidade! Prieto, — Nenhume. Nzo coordenei ainda bem mi- nhas razdes, e me permitireis de vo-las expor como elas me vie+ rem, na desordem da prépria obra de yosso, amigo, Se o comediante fésse. sens(vel,serJhe-ia permitido, de boa £6, desempenbar duas vézes seguidas um mesmo papél om 0 meimio calor e o mesmo ‘ior Nato atdente na primeira fe- presentagio, estatia esgotado e Frio como mérmore na terceira™) Ao passo que, imitador atento ¢ discipulo atento da natureza, na ‘pllineina vez “que se apresentar no_paleo s05-6 nome de Au., “gusto, de Cia, dé “Orosmano, de Agemenon, de Maomé,(*) ‘copista rigotoso de.si_proprio ou de seus estudos, ¢ observador_ ‘sontinud de sensag6es, sua interpretagao longe de nits: quecer-se, fortalecet-sea” cof iowais-rellexces que_terd—realhi-—~ », Ale se exaltard ou se moderaré,c_wds. ficareis com isso..cada- fio. "Se tle €éle_ quando representa, como dei. xaré de ser éle? Seéle quer cessar“de set éle, como_perceberd” “S ponto justo em que deve eslocarse e deerscy {© que me confirma minha opiniao € a desigualdade dos t6- q . Nao espeteis da parte del nenhuma unidade;, seu desempenho.€ alte: nt “co, quente ¢ fric see sublime... Hao de felhar amenha na ppassagem onde hoje primaram; em compensacio, ho de primar naquele em que falharam na véspera,) Ao_passo que o come: } 167

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