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eee A FABULA | MISTICA SECULI EXVH Michel de Certeau Rio de Janeiro Vennkd OKi- Capitulo 7 A CIENCIA EXPERIMENTAL DA LOUCURA Fe Fe Fe Fe ‘Mnuito tempo retido nos bastidores da historia por cau- sa de loucura, Jean-Joseph Surin (1600-1665) nao deixa de ser, dizem bons juizes (de Jean Orcibal ou Louis Cognet a Julien Green), um “génio literario" que eles encontram “digno de assumir lugar ao lado de Pascal de Bossuet”.* ‘Mas esse mistico escritor e poeta ficou “fechado" duran- te perto de 13 anos, embora de maneira intermitente, na enfermaria do colégio-universidade jesuita de Bordeaux (1637-1650) ~ seu “calabougo", diz ele -, e, durante quase 23 anos, mais ou menos incapaz de se deslocar, Heréi dos exorcismos de Loudun depois da morte de Urbain Gran- dier (1634-1637), esse jesuita tinha manifestado inicial- mente sobre esse teatro os sintomas de um mal atribuico entao a possessao e mantido, desde 1635, por uma “curio sidade" que intrigava os eruditos (o Padre Mersenne, Pei- Tesc, os itmaos Dupuy etc.). Pouco depois, ele é “preso” por doenga mental. Os documentos da época, esparsos em Bordeaux, em Paris, em Rome ete., informam sobre as, 1 Louis Cognet. In: Recharches de science religieuse, 1966. vol. LIV, Pp. 162-163, © 1968. vol. LVI, p. 169-281; Jean Orcibal. In: Revue dascétique et mystique, 1966. vol. XLII, p. 385; Julien Greert Pré face. In: Jean-Joseph Surin, Correspondance. Paris: Ed. Michel de Gerteau, 1966. p. 7-23. 242 Avatars isnca Michel dC fisiclagicas e psicologicas do “Iouco”: imposst- sficuldade de se mover, periodos afasicos, in- capacidade de escrever (até 1654), divagagoes notumnas, ‘os repentinos, prostragées, etc.’ No centro desses -s” ha, diz ele, o “pensamento” de que ele esta “da- nado vamente “rejeitado” por Deus. Ele préprio, ele contou miais tarde suas experiéncias de doente em wm texto que 6, no século XVII, um equivalente das Memerias de um nevropala do Presidente Schreber, e que ele intitula La Science expérimentale des choses de I'au-deia. Redigido em 1683, esse relato, escrito “para ele mesmo", é uma de suas tltimas obras, depois da abundante produgao que demarca sua lenta “cura” (colocada por ele de 1651 a 1660) e que a segue: 0 Catéchisme spirituel, 0 Guide, as ‘Questions sur l'amour etc. Ele se cura escrevendo. E uma historia estranha: “magna quaestio factus sum”, diz ele. Considero apenas aqui o telato dessa “viagem", La Science experimentale, e somente as duas partes (II ¢ II) que concemem a doenga mental. Seria necessario, sem dii- vida, comparar essa autobiografia parcial ndo somente com ‘oconjunto da obra, mas com casos andlogos, menos graves emenos espetaculares, mas relativamente frequentes entre as testemunhas da Contra-Reforma, assim a longa depres- sao afasica do Sr. Olier ou os quatro anos de neurastenia do proprio Vicente de Paulo. Mais amplamente, seria pre- 2 Bu editei esse dossié historico na Correspondance. 3 Essas duas partes formain um todo, aliés, isolado por todos os manuseritos antigos. Elas foram, eu acredito, tardiamente © quadradas pelas pattes Le IV sobre Loudun © a demonologi 11, 1640-1659. Toulouse; E4. Louis Michel e Ferdinané Gavallora, 1928. p. 1-161, corrigindlo-a e complotando-a com a melhor copia antiga (Pans, BN, fonds fr, 14596), eu a designo por La Science, incicando a parte por um algerismo romano ¢ o capitulo por um algarismno érabe Salvo outa indicacao, as aspas remetem a0 tex- to de Suri. 7 = Aceon Exper Loveura 288 co” el a literature ciso recotocar esse “diario de wm Jouco” em um: aie a om somente, aqui ou acolé, alg panida da qual emergem IS ar como James Carkesse (Luci preso ele mesmo também por loucura 1m Bedlam e, “self-curing Poet", es- crevendo ai, para “sobreviver” @ sot doutor Thomas Allen, the inspira Apolo.' Esses textos formain & os cantos que pol text cre outra face, correlativa e contraria, de uma literatura m tunis ipem conhecida, de Zacchias a Willis.’ ow da Anatomy of Melancholy, de Robert Burton (1621) no didrio médico do doutor Richad Napier (1597-1642).° ‘Em La Science expérimentale, Surin nao contosta sia loucura. Fle nao escrove, diz ele, “para se defonder de uma consura [...] que é de ser estimado louco, porque ele cai nesse inconveniente de uma maneira tao auténtica que seria por assim dizer chocar o senso comum dizer que nao, por causa das estranhas coisas que Ihe aconteceram'" Bem mais, "ele nao temeu muito esse titulo” de Iouco — “esse belo buqué em seu chapéu, que ninguém quer ter”. Esse estado de “insensato” ou de “demente”, ele o pensa, seguindo os loucos do Cristo,’ como imitagao desse Jesus que apareceu “diante de todo o povo nessa vestimenta tidicula de um rei de farsa". Por outro lado, ele nega ab- solutamente "que foi loucura acreditar ter sido danado”. Em sua linguagem, esté ai a “provagao” do espirito e nao “enfermidade" de “hipocondriaco”.’ Essas duas “penas” se conjugam, mas nao s4o de mesma natureza, Uma é a divagagao da “imaginagao", “debilidade da cabega ¢ dos autores “insensatos” valla, Londres, 1679), em Finsburg, depois ©! 7 Lucinda intervalla: Containing Divers Miscellaneous Poms, Wsit~ tenat Finsburg and Bedlam. Londres, 1679. Ver, por exemple, Lillian Feder, Maciness in Literature, Princeton (NO), 1980. p, 198-161. 5. Vor Michel Foucault, Hiscéria da loucura na idade eléssica. Par 1961. 6 Ver Michael MacDonald, Mystical Bedlam. Cambridge, 1981 Voir John Saward, Perfect Fools, Oxford, 1980, surtout, p. 118-146, 8 La Science, Il 4

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