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iakrishnan, Gopal, org. (1996) Uma Mapa da Ln Ot esto Nacional. Rio de Janeiro: Contraponto. O ADVENTO DO NACIONALISMO E SUA INTERPRETAGAO: OS MITOS DA NAGAO E DA CLASSE Ernest Gellner Este é um ensaio tedrico. Pretende oferecer uma exposi¢o e uma explicacao tedricas gerais de uma transformagao social muito significativa, a saber, 0 ad- vento do nacionalismo no curso dos séculos XIX e XX. As afirmacoes feitas si0 as seguintes: 1. Houve uma grande e clara mudanga nas condigées sociais da humanidade. Um mundo em que o nacionalisima — a ligacdo entre o Estado e uma cultur “nacionalmente” definida — € disseminado e normativo ¢ muito diferente de um mundo em que ele é relativamente raro, sem entusiasmo, nao siste- matizado e atfpico. H4 uma enorme diferenca entre, de um lado, um mundo % de padrdes complexos, entremeados, mas 1140 perfeitamente superpostos de poder e cultura e, de outro, um mundo que consi unidades politicas - claras, sistematica e orgulhosamente diferenciadas entre si pela “cultura”, todas lutando, com bastante sucesso, por impor internamente a homoge- neidade cultural. Essas unidades que ligam a soberania & cultura so conhe- cidas como Estados nacionais. Durante os dois séculos que se seguiram a Revolugao Francesa, 9 Estado nacional torno rma | € por que isso se deu? . Existe um modelo tedrico que, partindo de generalizagies plausiveis e nao seriamente contestadas, em conjunto com os dados disponiveis sobre a transformagao da sociedade no século XIX, explica o fensmeno em questao. . A maior parte, embora nao a totalidade, do material empirico pertinente € compattvel com esse modelo. norma poli Como Sao afirmacoes sérias. Se sustentadas, isso significa que ¢ problema em dis- cusso — o nacionalismo —, ao contrério da maioria dos outros grandes pro- Vou onutriten vu woetlelrév co ei4 , ved Qvh 2 crys Vuel ie fo eesyccl com « maelerial Cas gro-lelrada: UW Qaarada ara agricul re 108 UM MAPA DA QUESTAO NACIONAL blemas da mudanga social histérica, de fato tem uma explicagdo. Quase todas as. outras grandes transformagées ocorridas na histéria também tém provocado tentativas recorrentes de explicagao. Mas as explicacdes oferecidas consistem apenas em especificar possibilidades interessantes, ou em fornecer contribui- ses parciais plausiveis para uma resposta final. Raras vezes elas sao definitivas, suficientes e convincentes. Em contraste, existe uma explicagdo valida e per- suasiva para 0 nacionalismo. © MODELO £ melhor comecar pela explicitagao do modelo. Ele diferencia dois tipos di- ferentes e muito genéricos de sociedades, A argumentago concentra-se na diferenca entre os papéis da estrutura e da cultura nesses dois tipos distintos de sociedades, A SOCIEDADE AGRO-LETRADA A sociedade agro-letrada define-se por diversas caracteristicas, Trata-se de uma \ sociedade baseada na agricultura (incluindo o pastoreio), ou seja, na producao J. € armazenagem de alimentos. £ dotada de uma tecnologia bastante est4vel: embora de tempos em tempos possam ocorrer, ¢ de fato ocorram, inovacdes € aperfeigoamentos, eles néo fazem parte de um Processo continuo de desco- berta e invengao. A sociedade esté livre da idéia (téo corriqueira hoje, entre 16s) de que a natureza é um sistema inteligivel e passivel de exploracdo, a qual, quando bem-sucedida, gera uma nova tecnologia mais poderosa. A visio em que se baseia essa sociedade nao € a de uma compreensio e dominio sempre crescentes da natureza (como é a nossa), justificando a expectativa de um per- pétuo aprimoramento da condicao humana, Antes, sua a visio pressupde uma parceria estével entre a natureza ea sociedade, na qual a primeira nao apenas fornece uma provisdo material modesta, mas razoavelmente constante, como também subscreve e justifica a ordem social, e espelha seus arranjos. “1° A posse de uma tecnologia estavel traz diversas conseqiiéncias. Dada a re- lativa falta de elasticidade no abastecimento de alimentos, bem como a existén- cia de um teto definido e nao muito elevado para a produsio deles, os valores dos membros da sociedade costumam dirigir-se para a coercéo e a hierarquia. © que realmente importa para um membro de uma sociedade desse tipo é estar bem-situado em sua escala hierdrquica, e nao produzir de maneira abundante € eficiente. Alids, ser um produtor eficiente nao é a melhor maneira (ou talvez nem seja uma boa maneira) de melhorar a prépria condicéo. Um valor ca~ racterfstico dessa sociedade é a “nobreza”, que significa combinar vocagdo mi- litar e status elevado. ERNEST « .LLNER 109 Essa orientagao decorre da Iégica fundamental de uma sociedade que con- vive com um potencial produtivo bastante estdvel: nao hé muito a ganhar com as tentativas de aumentar a producao, mas 0 individuo, assim como qualquer subgrupo, tem tudo a ganhar com uma posigio privilegiada dentro da socie- dade. O aumento da produgao sé beneficia os detentores do poder, e ndo a pes- soa responsavel por ele; mas tornar-se um dos detentores do poder beneficia © proprio individuo. Assim, ele deve se esforcar por aumentar seu poder e status e nao desperdigar esforgos no aumento da producao. Essa tendéncia é reforcada pelo segundo traco decorrente de uma tecnologia estavel — uma condicao malthusiana. As possibilidades de aumentar a pro- dugao de alimentos sao limitadas, mas nao as de aumentar a populacao. Esse tipo de sociedade se compée de unidades que tendem a valorizar a prole, ou, pelo menos, a prole masculina, como fonte de forca de trabalho e capacidade de defesa. Entretanto, a alta valorizacao da prole leva, pelo menos intermiten- temente, a colocar a populacéo total perto ou além do limite do suprimento dispontvel de alimentos. isso, por sua vez, reforga a orientagéo marcial e hierdrquica da sociedade: quando vem a fome, ela nao ataca aleatoriamente. Ataca de acordo com a posigéo. Os homens passam fome de acordo com seu status, sendo as ordens inferiores as primeiras a enfrenté-la. Isso é garantido pelo acesso socialmente controlado aos centros de armazenagem de alimentos, que sao vigiados. Na Africa do Norte, usa-se um termo muito sugestivo em teferéncia ao governo central: Makhzen. Ele tem a mesma raiz de magazine {armazém]. O governo controla e é 0 armazém. Alguns dos mecanismos automantenedores que operam nesse tipo de so- ciedade sao indicados no Diagrama 4.1. Tecursos limitados mas armazenados situagdo malthusiana e socialmente controlados a acesso ao armazém ane baixa condicao produtiva nr conforme a posicao social ia valorizagdo exclusiva do poder de coer¢ao e do status; auséncia de recompensas pela inovacao produtiva Diagrama 4.1 A conseqiiéncia dessa situacao € que a sociedade agro-letrada constitui um sis- tema complexo de posigdes bastante estveis. A posse de um status e 0 acesso a seus direitos e privilégios sao, de longe, a consideracao mais importante para 0 membro de uma sociedade assim. O homem € 0 sew posto. (Isso é muito dife-

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