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Performances da oralitura: corpo, lugar da memoria Leda Martins Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Entre siléncio e som riem tambores e sombras. Os meninos criaram meméria Antes de criar cabelos. (Edimilson de Almeida Pereira) Partir de uma palavra Partir numa palavra, Texto, lugar do encontro, (Rui Duarte) Observando-se o belo programa deste evento, notase o reiterado uso do significante meméria, orquestrado em um de seus lugares de reconhecimento, a escrita. Este texto lhes é oferecido como um convite para pensarmos a meméria em um de seus outros ambientes, nos quais também se inscreve, se grafa e se postula: a voz e 0 corpo, desenhados nos ambitos das performances da oralidade e das praticas rituais. Na literatura escrita no Brasil predomina a heranga dos arquivos textuais e da tradicao retérica européia. Mesmo os discursos que se alcaram como fundadores da Tetras n° 26 — Lingua ¢ Literatura: Limites ¢ Fronteiras 63 nacionalidade literdria brasileira, no século dezenove, tinham na série e dicgio literdrias ocidentais sua ancora e base de criagao literdria. A textualidade dos povos africanos indigenas, seus repertérios narrativos e poéticos, seus dominios de linguagem e modos de apreender e figurar o real, deixados 4 margem, nao ecoaram em nossas letras escritas. Bastide j isto antes observara. Risério o reitera: Quando os europeus principiaram a produzir textos no territério hoje brasileiro, os indigenas j4 vinham, ha tempos, produzindo os seus. E assim como os europeus transportaram para ci um dilatado e fecundo repertério textual, também os africanos, engajados 4 forga no maior processo migratério de toda a histéria da humanidade, conduziram suas formas verbais criativas ao outro lado do Atlantico. Logo, ao se voltar pioneiramente para a histéria do texto criativo em nossa extensio geogrifica, 0 romantismo deveria se defrontar, em tese, com os conjuntos formados por textos amerindios e textos africanos. Em tese. De fato, nfo foi bem isto 0 que aconteceu.(...) O texto criativo africano foi ladeado ou ignorado, invariavelmente, naquele nosso ambiente. (...) Dito de outro modo, palavras negras passaram em brancas nuvens. (1993, p.69-70). Nessa ordem, o dominio da escrita torna-se metéfora de uma idéia quase exclusiva da natureza do conhecimento, centrada no algamento da visio, impressa no campo ético pela percepsao da letra, A meméria, inscrita como grafia pela letra escrita, articula-se assim ao campo e processo da visio mapeada pelo olhar, apreendido como janela do conhecimento. Tudo que escapa, pois, 4 apreensio do olhar, principio privilegiado de cognicao, ou que nele nio se circunscreve, nos é ex-btico, ou seja, fora de nosso campo de percepsio, distante de nossa dtica de compreensio, exilado e alijado de nossa contemplacao, de nossos saberes. E somos férteis em nossos recursos de resguardo dessa meméria: 0s nossos livros, arquivos, bibliotecas, monumentos, parques tematicos e, mais recentemente, os avancos tecnolégicos, como hardwares e softwares cada vez mais sofisticados. Mnemosyne, a musa das lembrancas, certamente com isso se inquieta, pois na narrativa mitica, todo o saber que se quer reminiscéncia no pode prescindir de Lesmosyne, 0 esquecimento, esquecimento este que se inscreve em toda grafia, em todo trago que, como significante, traz em si mesmo as lacunas e rasuras do prdprio saber. Nessa perspectiva o graphen grego ¢ muito mais expansivo e inclusivo do que as seculares selegdes seminticas, eleitas pelo Ocidente, nos fazem crer, pois os locais de meméria no se restringem, na propria genealogia do termo, & sua face de inscrigo alfabética, & escrita. O termo nos remete a muitas outras formas e procedimentos de inscrigio e grafias, dentre elas & que 0 corpo, como portal de alteridades, dionisicamnte nos remete. Nos voltejos das etimologias, tentemos uma outra aproximagao. Em umas das Iinguas bantu, do Congo, da mesma raiz, ntanga, derivam os verbos escrever e dangar, ‘Programa de Pés-Graduagio em Letras ~ PPGL/UFSM 64 que realgam variantes sentidos moventes, que nos remetem a outras fontes possiveis de inscrigio, resguardo, transmissio e transcriagio de conhecimento, priticas, procedimentos, ancorados no e pelo corpo, em performance. Mas o que é performance? Pelos varios prismas mesmo de seu uso conceitual e metodoldgico, pelo alcance € quicd amplitude desmesurada, 0 termo performance, conforme Richard Schechner (1988:vi), é inclusivo, podendo a performance ser abordada tanto quanto um leque (ou ventilador) quanto como uma rede. Como um leque inclui por aderéncia modal ritos, performances do cotidiano, cenas familiares, atividades lidicas, 0 teatro, a danga, processos do fazer artistico, assim como, dentre outras praticas, performances de grande magnitude, No leque, todas essas priticas, com seus modos préprios e convengdes especificas, estio dispostos como ambientes nio hierarquizados, numa paisagem horizontilinea, processando-se como um continuum. Pensado como rede, em um outro desenho e visada epistemoldgica, esse sistema organiza-se mais dinamicamente, nio mais pelas relagdes de disposi¢fo no continuum, mas sobretudo pelas interagées ali processadas. ‘A teoria de Schechner, que abraca e tem por objeto tanto as performances teatrais experimentais (no sentido estrito da agio teatral), quanto as ceriménias litdrgicas de culturas predominantemente ritualisticas, desenvolve-se na liminaridade mesma das relagSes entre a pratica teatral e a Antropologia. Dai o seu alcance e as possibilidades {mpares que nos oferece em termos macroscépicos para pensarmos os Ambitos das teorias da performance ¢ as adjungdes temiticas, conceituais e metodoldgicas que dai derivam. Nesse viés, 0 termo performance se acomoda quer no ambito, por exemplo, do teatro ou das narrativas orais, quanto escapa a uma colagem sinonimica com os termos representacio encenagio jé também inflacionados e saturados semanticamente. Todas essas priticas, no entanto, ostensivamente revelam o que Schechner denomina de tstruturas profundas que os conectam performaticamente, por modulagées ou qualidades (repetitividade, provisoriedade, incompletude, transitoriedade, modos de duracio e de consignagio do espaco, etc), pelas técnicas e procedimentos; pelas relagées entre os performers e sua audiéncia, real ou virtual; pela incluso ou exclusto de atividades pré e pés performance que, em muitas praticas, constituem a propria performance; pelos seus efeitos imediatos e/ou extensivos, em termos histéricos, culturais e sociais. Cada uma dessas priticas (0 teatro, a danga, o ritual, o esporte, as atividades Kidicas, os jogos, encenagdes coletivas, atos artisticos e mesmo expresses pulsionais emotivas) sio modos subjuntivos, liminares, géneros performaticos cujas convengées, procedimentos e processos nfo so apenas meios de expressio simbélica, mas constituem em si o que institui a propria performance. Ou seja, numa performance da oralidade, por exemplo, o gesto nao é apenas uma representag4o mimética de um sentido possivel, veiculado pela performance, mas também institui e instaura a prépria performance. Ou ainda, o gesto néo é simplesmente narrativo ou descritivo mas performativo. As praticas performéticas no se confundem com a experiéncia ordinaria, sdo sempre provisérias e inaugurais, mesmo quando se sustentam em modos e métodos de transmissio profundamente enraizados e tradicionais; sempre se apdiam em letras n° 26 — Lingua e Literatura: Limites Fronteiras 65

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