You are on page 1of 21
& ¥ = Religido e politica no alvorecer da Repablica: os movimentos de Juazeiro, Canudos Contestado Jacqueline Hermann rofessora Adjunta do Departamento de Histria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ferreira, Jorge & Delgado, Lucilia de Almeida Neves orgs. O Brasil Republicano (vol iro: Civil in ape ‘ano (vol. 1). Rio de Janeiro: Civilizago | capitulo € um esforgo de sintese das hist6rias dos movimentos religiosos populares que se desenvolveram em torno da figura do padre Cicero, de Anténio Conselheiro e dos monges Joao e José Maria, A proposta € discutit as principais correntes interpretativas que esses movimentos conheceram, tendo como cendrio a transigio do quadro politico-institucional que mar- cou o inicio da histéria republicana brasileira. Antes de analisar os trés C4505, porém, algumas observagdes sobre a situagio da Igreja nesse contexto e uma breve discussio sobre os principais trabalhos que, como este, procuraram examinar em conjunto essas manifestagSes politicas da religiosidade popular. AIIGREIA DEPOIS DA REPUBLICA 0 fim do padroado ¢ do regalismo! imposto pela proclamago da Repiblica foi recebido com um duplo e contradit6rio sentimento pelos representantes da Igreja Catélica no Brasil: alivio e apreensio. Alivio porque os novos tem- ‘pos permitiam uma liberdade de ac4o ante o poder temporal ha muito recla- mada por uma parte das liderancas eclesiais;? € apreensio porque 0 projeto da nova Constituigéo, tornado pablico pelo governo provisorio em 22 de junho de 1890, apresentava propostas evidentes de limitacio da esfera de agao da Igreja e de religiosos: reconhecimento € obrigatoriedade do casa- mento civil, laicizagao do ensino pablico, secularizagao dos cemitérios, proi- bigdo de subvengGes oficiais « qualquer culto religioso, impedimento para abertura de novas comunidades religiosas, especialmente da Companhia de Jesus, inelegibilidade para o Congresso de clérigos ¢ religiosos de qualquer confissio, 123 episcopado ja havia declarado seu desacordo pela Pastoral Col de 19 de margo de 1890, apés a publicacio do decreto 119-A, no qual 0 governo provisério abolira o padroado. Com a divulgagao do projeto cons- titucional, novos protestos foram feitos contra os artigos considerados ofen- sivos aos dircitos da Igreja. Através de uma Reclamago, de autoria de D. Antonio Macedo Costa, recém-nomeado arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, considerava que, & luz de uma teoria teol6gico-politica, o Estado nfo poderia progredi sem a protecio da religiao, ¢ terminava promerendo lutar pelos interesses da Igreja. Em 6 de novembro o episcopado publica um novo protesto, sob a forma de um Memorial dirigido & Assembléia Constituinte e, em 12 de janeiro de 1891, as vésperas da votacio final da primeira Consti- tuigio republicana do Brasil, D. Macedo pessoalmente volta a apelar para ue os membros da Assembléia climinem “as cléusulas ofensivas da liberda- de da Igreja Catélica” (Moura ¢ Almeida, 1985, p. 327). TTodo esse esforgo de manutengio do poder e da autonomia institucional da Igreja, aqui expresso na conduta de D. Macedo da Costa, integrava ainda tum processo internacional de reagio da Santa $é ao avango de correntes ideolégicas ¢ politicas heterodoxas nas quais se inclufa, sem distingio, toda sorte de idéias que questionassem principios defendidos pela Igreja Romana, considerados “erros modernos”,’tais como o liberalismo, o socialismo, 0 co- munismo, o cientificismo, o positivismo, a magonaria eo protestantismo. Essa reagio caracterizou 0 que ficou conhecido como o esforco de “romanizagao” da Igreja, movimento reformador da prética catélica surgido na segunda me- tade do século XIX, liderado pelos papas Pio IX (1846-1878) e Leio XIIL (1878-1903), que procurou retomar as determinagées do Concilio de Trento (1545-1563), reforcar a estrutura hierérquica da Igreja, revigorar 0 trabalho missionério, moralizar o clero e diminuir 0 poder das irmandades leigas. Assim, © movimento liderado por D. Macedo deu infcio a um processo de construgio institucional da organizacio eclesidstica no Brasil nas primei- ras décadas republicanas, para o que a vitéria obtida na Constituigao apro- vada em 24 de feverciro de 1891 foi fundamental. Os bens da Igreja foram Poupados ¢ as ordens e congregagies admitidas sem reservas. Além disso, as autoridades eclesidsticas adaptaram-se aos novos limites politicos impostos Pela Repablica, chegando mesmo a alargar sua esfera institucional no perfo- a4 do de 1889 2 1930: no ano da instaurasao do novo regime o Brasil consti- ‘ula apenas uma provincia eclesiéstica, com uma arquidiocese € 11 dioceses} em 1930 eram 16 arquidioceses, 50 dioceses € 20 prelazias ou prefeituras apostélicas; © contingente de padres aumentou com o estimulo ao estabe- lecimento de religiosos ¢ religiosas estrangeiros no pais. Esse quadro de tensio e negociagZo que moldou as relagoes entre Igreja ¢ Estado no alvorecer da Repiiblica, contribuindo para o seu fortalecimento institucional e patrimonial (Micelli, 1988; Oliveira, 1985), responde, no entanto, por apenas uma das dimensées da relagao entre religido e politica no inicio da hist6ria republicana. Pois se a Igreja soube contornar as limita- es politicas impostas pela nova ordem, nao foi capaz, entretanto, de con- twolar as reagOes populares diante dos questionamentos e da perda de poder das autoridades religiosas. Varios movimentos e organizages populares de defesa da Igreja e de seus princfpios surgiram nesse contexto e deram forma Aqueles que ficaram conhecidos como os mais expressivos e importantes “movimentos messiénicos”; Juazeiro, Canudos ¢ Contestado. Esses movimen- 105, ow essas distintas formas de manifestagio das religiosidades populares, serio aqui discutidos tanto no que se assemelham como no que se distin- guem; mas antes de analisé-los separadamente, algumas palavras sobre as vrias maneiras de abordar 0 tema dos messianismos brasileros. 05 MOVIMENTOS MESSIANICOS BRASILEIROS Os chamados “movimentos messianicos brasileiros” foram, durante bastan- te tempo, objeto de andlise da sociologia e da antropologia e 56 recentemen- ‘te tém merecido atengio sistemtica dos historiadores. Nao se trata aqui de desqualificar qualquer dessas disciplinas, mas tao-somente de apontar as. especificidades dessas abordagens e, a0 mesmo tempo, discutir como as no- vas possibilidades abertas pela historiografia puderam se valer desses cam~ pos de conhecimento para firmar seu proprio teritério de andlise das religies € das religiosidades. Como objeto de andlise, pode-se dizer que “os movimentos messianicos brasileiros” comegaram a ser estudados na década de 1960. E de 1963 a pri- 12s

You might also like