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CORTEZ E OS SIGNOS Nao se deve imaginar que a comunicagao, entre 6s espanhéis, seja exatamente oposta a que praticam 08 indios. Os povos no sio nocoes abstratas - apre- sentam entre si semelhangas e diferencas. Jé vimos que, no plano tipolégico, Colombo situava-se, freqiiente- mente, do mesmo lado que os astecas. Acontece mais ou menos 0 mesmo com as primeiras expedigées dri gidas ao México, as de Hernandez de Cérdoba e de Juan de Grijalva. Pode-se descrever o comportamento desses espanhéis dizendo que se dedicam a coletar a maior quantidade de ouro no menor espaco de tempo, endo procuram saber nada sobre os indios. Eis o que conta Juan Diaz, cronista da segunda dessas expedi- ges: “Havia 4 margem uma multidao de indios que traziam dois estandartes, que levantavam e baixavam, para indicar que fossemos ter com eles: 0 comandante no quis.” “Uma das embarcagies perguntou-nos o que queriamos; o intérprete respondeu que procuravamos ouro.” “Nosso comandante disse a eles que s6 queria mos ouro.” Quando surgem ocasides, os espanhdis as 1 42 ACONQUISTA DA AMERICA evitam. “Falou também de outras provincias, ¢ disse a0 comandante que queria vir conosco, mas 6 come. dante nao consentiu, 0 que nos deixou descontenns ,vimos também que os primeiros intérpretes so indios; ora, estes nao tém a inteira confianga dos espa- nhéis, que muitas vezes se perguntam ces intérprete realmente transmite 0 que Ihe € dito. “Achamos qos o intérprete nos enganava, pois era natural daquelailhe € daquela mesma aldeia.” De “Melchior”, priveine ee dutor de Cortez, Gomara diz: “Bra todavia um ho, mem rude, pois era pescador e parecia nao saber fan nem responder” (11). O nome da provincia de Yacw tan, simbolo, para nds, do exotismo indigena e de an. tenticidade distante, éna realidade o simbolo dos eon entendidos que reinam entio: aos gritos dos primeing espanh6is que desembarcam na peninsula, os maise respondem: Ma c'ubah than, nao compreendemos sane Palavras. Os espanhéis, figis & tradigio de Colgan entendem “Yucatén’, e decidem que €0 nome de one vincia. Nesses primeiros contatos, os espanhis ni ce Preocupam nem um pouco com a impressio que seu Comportamento possa deixar nos que se encontrarndane ke deles: se sao ameacados, fogem sem hesitar mos. trando assim que sao vulneravers, . Q contraste é sensivel a partir do momento em que Cortez entra em cena néo sera ele um conguister dor de excesao, e néo um conquistador tipico? Naor 4 Prova 6 que seu exemplo logo sera seguido, ¢ ampla. mente, embora ele nunca seja igualado, Era necosesno um homem extremamente bem dotado para cristal, Zar, num tinico tipo de comportamento, elementos até entio dispares; uma vez dado o exemplo, impoe-se ors ‘uma rapidez impressionante. A diferenga entre Cones CONQUISTAR a € 08 que o precederam talvez esteja no fato de ter sido ele o primeiro a possuir uma consciéncia politica, e até mesmo histérica, de seus atos. Na véspera de sua par- tida de Cuba, provavelmente em nada se distinguia dos outros conquistadores vidos de riquezas. No en- tanto, tudo muda assim que comeca a expedicio, e jé se pode observar o espfrito de adaptacéo que Cortez transforma em principio de sua propria conduta: em Cozumel, alguém lhe sugere que envie alguns homens armados para procurar ouro no interior. “Cortez res- pondeu rindo que nao tinha vindo por coisas tao in- significantes, mas para servir a Deus e ao rei” (Bernal Diaz, 30). Assim que fica sabendo da existéncia do rei- no de Montezuma, decide nao apenas extorquir rique- zas, como também subjugar o reino. Esta estratégia muitas vezes contraria os soldados da tropa de Cortez, que contam com lucros imediatos e palpaveis; mas ele continua intratavel; assim, devemos a ele a invencio, por um lado, de uma tatica de guerra de conquista e, por outro, a de uma politica de colonizagao em tem- pos de paz, © que Cortez quer, inicialmente, ndo ¢ tomar, mas compreender; sao os signos que interessam a ele em primeiro lugar, nao os referentes. Sua expedigéo come- ga com uma busca de informagao e nao de ouro. A pri- meira ago importante que executa ~a significacio des- te gesto ¢ incalculavel - é procurar um intérprete. Ou- ve falar de indios que empregam palavras espanholas; deduz que talvez haja espanhéis entre eles, ndufragos de expedigGes anteriores; informa-se, e suas suposi- ges sao confirmadas. Ordena entdo a dois de seus bar- cos que esperem oito dias, depois de enviar uma men- sagem a esses intérpretes potenciais. Depois de muitas 144 ACONQUISTA DA AMERICA peripécias, um deles, Jerénimo de Aguilar, se une A tro- pa de Cortez, que quase nao reconhece nele um espa- nhol. “Tomavam-no por um indio, porque, além de ser naturalmente moreno, tinha os cabelos cortados cur- tos como os indios escravos. Tinha um remo sobre os ombros, uma yelha sandélia nos pés e outra presa cintura, uma capa ruim muito usada e uma tanga ain- da pior para cobrir sua nudez” (Bernal Diaz, 29). Esse Aguilar, transformado em intérprete oficial de Cortez, Ihe prestard servicos inestimaveis. Mas Aguilar sé fala a lingua dos maias, que nao é a dos astecas. A segunda personagem essencial dessa conquista de informacio é uma mulher, que os indios chamam de Malintzin, e os espanhéis de dofia Marina, € nao se sabe qual dos dois nomes é uma deformacéo do outro; a forma que o nome assume mais freqiiente- mente é “la Malinche”. Ela é dada de presente aos espanhéis, durante um dos primeiros encontros. Sua Imgua materna é o nahuatl, a lingua dos astecas; mas foi vendida como escrava aos maias, e também domi- naa lingua deles. H4, pois, no inicio, uma cadeia bas- tante longa: Cortez fala a Aguilar, que traduz o que ele diz para a Malinche, que por sua vez se dirige ao inter- locutor asteca. Seus dons para as linguas sao eviden- tes, e em pouco tempo ela aprende o espanhol, o que aumenta sua utilidade. Pode-se supor que cla guar- dasse rancor em relacdo a seu povo de origem, ou em relagdo a uns de seus representantes; 0 fato 6 que esco- Ihe decididamente o campo dos conquistadores. Com efeito, nao se contenta em traduzir; € evidente que também adota os valores dos espanhéis, e contribui como pode para a realizacao dos seus objetivos. Por um lado, efetua uma espécie de conversao cultural, in- CONQUISTAR 145 terpretando para Cortez nao somente as palavras, mas também os comportamentos; por outro lado, sabe to- mar a iniciativa quando necessério, e dizer a Monte- zuma as palavras apropriadas (especialmente no mo- mento de sua prisdo), sem que Cortez as tenha pronun- ciado anteriormente. Todos concordam em reconhecer a importéncia do papel da Malinche. £ considerada por Cortez. como uma aliada indispensdvel, e isto é evidenciado pelo lugar que concede a intimidade fisica entre eles. Ape- sar de té-la “oferecido” a um de seus tenentes logo de- pois de té-la “recebido” e de casé-la com outro con- quistador, logo apés a rendicao da Cidade do México, a Malinche ser4 sua amante durante a fase decisiva, desde a partida em direcio 4 Cidade do México até a queda da capital asteca. Sem epilogar acerca do modo como os homens decidem o destino das mulheres, po- de-se deduzir que esta relacio tem uma explicagio estratégica e militar, mais do que sentimental: gracas a ela, a Malinche pode assumir seu papel essencial. Mes- mo depois da queda da Cidade do México, ela conti- nua a ser to apreciada quanto antes, “porque Cortez, sem ela, ndo podia entender os indios” (Bernal Diaz, 180). Estes tiltimos véem nela muito mais do que uma intérprete; todos os relatos fazem-lhe freqtientes refe- réncias ¢ ela esta presente em todas as imagens. A que ilustra, no Codex Florentino, o primeiro encontro entre Cortez e Montezuma é bem caracteristica neste senti- do: os dois chefes militares ocupam as bordas da figu- 1a, dominada pela figura central da Malinche (cf. fig. 5 e capa). Bernal Diaz, por sua vez, conta: “Dofia Marina tinha muita personalidade e autoridade absoluta so- bre os fnidios em toda a Nova Espanha” (37). Também

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