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Breve arqueologia da historia ora Norberto Luiz Guarinello™ Resuvo: Este pequeno ensaio tem como objetivo investigar algumas das condicdes de cientifi- cidade da Histéria Oral ¢, através de uma comparagéo com outras disciplinas de Ciéncias Humanas, como a Arqueciogia, discutir o espaco possivel de sua especificidade. Pauavaas-Cives: histéria oral - documento - interdisciplinaridade - teoria da histéria Os ARTIFICIOS PFLOS QUAIS A MENTE HUMANA tenta compreender e agir sobre a rea- lidade podem ser tenazes e duradouros. Embora reconhegamos, hoje, que a re- Particdo de objetos e fungdes entre as diversas Ciéncias Humanas é largamen- te arbitraria, nossa pesquisa académica ainda se articula por recortes que foram estabelecidos ha mais de um século. O campo académico atua como uma espé cle de forca inercial, que nos impede de adequar esses recortes 4 realidade rapi- damente cambiante de nossa época. E verdade que as linhas de demarcagao se alteram, se contestam, sio, por vezes, transgredidas, mas num passo que parece sempre aquém da velocidade do mundo real. Novas disciplinas surgem, novas conjuncdes s40 propostas, para desaparecerem, em sua maioria, logo a seguir. De certo modo, todas vi- vem em permanente crise de legitimidade ¢ de identidade, ameacadas pelo con- fronto com as Ciéncias ditas Exatas em sua cientificidade, contestadas na inte- ligibilidade de seus objetivos, negadas na razao de ser de seus limites. E assim com disciplinas tradicionais, como a Historia ¢ a Arqueologia. Que dizer de uma disciplina nova, como a histéria oral? Mas o que € mesmo historia oral? Sera uma disciplina? Mais uma? O qué Ihe confere sua especificidade, sua differentia specifica? De um ponto de vista externo, como o de quem escreve, a questao nao é iniitil, como tampouco parece ser aos proprios oralistas, cujas definigSes da disciplina parecem vagar A deriva. * Professor do Departamento de Historia da FPLCH-USP. GO | ART 1998, p 1S a 8 s & z él GUARINELLO, N.L. Breve argueologia da hist6ris oral 62 Um ponto parece-me indiscutivel: a historia oral conseguiu construir para si um lugar, institucionalizado, no seio da pesquisa académica. Lugar demarcado por especialistas, foruns de debates, associac6es regionais e nacionais, revistas linhas editoriais. Hla é, portanto, uma pratica académica instituida ¢ legitimada. Contudo, no interior desse espaco institucional legitimo, reina uma grande con- fusio. Os proprios oralistas se digladiam na busca de uma definicao unificada da disciplina que criaram. Nao parece haver consenso, longe disso!, sobre seus obje- tivos, sobre seus métodos, sobre a natureza de seu objeto, sobre a relagio da histé- ria oral com as outras Ciéncias Humanas. Por que? ‘As dificuldades se iniciam na propria expressio que define a disciplina: “his- téria oral ”. HA uma tensio permanente entre esses dois termos, um conflito de hegemonias. A predominncia do “oral” aproxima a disciplina da sociologia, da antropologia ¢, sobretudo, da psicologia e dos mecanismos da memoria indivi- dual. A preponderancia da “histéria” transforma-a em recurso heuristico, um en- tre tantos meios de se obter informagoes sobre o passado e que, a rigor, teria sido empregado pelos historiadores desde Herddoto. Entre esses dois polos, a “histd- ria oral ” corre os riscos, ou de se fundir no seio das Ciéncias Humanas, numa inter-disciplinaridade ilimitada que ameaca sua identidade, ou de submeter 4 His- téria, como simples método de coleta de informaées. Afinal, o qué da unidade ao universo tio variado e conflituoso das praticas e concepgies dos proprios oralistas? Admitamos, mesmo que por um momento, que 0 espaco que estes instauraram no mundo cientifico nao é simplesmente ar- bitrario, que tem sua razdo de ser. Que fronteiras separam a histéria oral das de- mais disciplinas das Ciéncias Humanas? Pensemos, novamente, nos dois termos de que se compée sua denominagio. Em primeiro lugar - ¢ j4 € aqui uma tomada de posigio -, como a propria Histo- ria tout court ou a Arqueologia, a histéria oral € uma disciplina voltada para o passado, para a produgio de memoria a partir dos vestigios do pretérito existen- tes no presente. fi, como as outras duas, uma “presentificagio” do pasado, uma reflexio sobre sua relacao, material, causal, ideal, com o presente. E uma memo ria que se pretende, como as outras, cientifica, estruturando seus pressupostos ¢€ sua argumentagao com esse fim. © qué a diferencia da Arqueologia e da Historia mais “tradicional” é, precisamente, a natureza dos vinculos que a unem ao passa- do. Ao mesmo tempo dos vestigios sobre os quais se debrucam ¢ dos documentos que produzem a partir desses vestigios. Ha diferengas quase 6bvias: na profundidade temporal que atingem, na re lagio que estabelecem entre individual ¢ coletivo, entre piblico ou privado, ou na prépria cadéncia temporal que impéem a meméria que produzem. Ha uma diferenca, no entanto, que é, a meu ver, fulcral: a histéria oral nao se debruga so- bre um arquivo morto; os vestigios de que se utiliza nao sio fixos, como para as outras “Histérias”, ndo sao ruinas passiveis de dissecaco, mas memérias vivas, de individuos precisos, que as produzem segundo as demandas do oralista. A histéria oral é, inevitavelmente, uma zona de fronteira, nao tanto entre disciplinas, mas entre a propria academia e o mundo real, entre a memoria legiti- ma, cientificamente produzida, dos historiadores, e as memdrias individuais, no que tem de pessoal ¢ de coletivo. Se ha, como muitos defendem, um confronto entre essas memédrias, a historia oral se localiza em pleno front. Os mados desse confronto interessam, obviamente, a historiadores e arquedlogos, mas para os oralistas nao se trata de questio meramente tedrica. Estes devem decidir, de pron- to, em que medida submetem a meméria no cientifica a seus ditames € regras ou em que grau se rendem a sua riqueza e sabor “espontaneos”. Dai advém aquela que, a meu ver, é a maior dificuldade com que se defron- ta.a busca de um consenso entre os oralistas: a da forma legitima de “documenta- lizar”, a0 mesmo tempo, as informagées obtidas ¢ a relagao entre historiador € entrevistado. Dai as diferentes doutrinas sobre a produg3o documental ¢ sobre o qué constitui, propriamente, o documento produzido pelo oralista (a fita, a trans- ctigdo da fita, a transcriagio da narrativa ou da relagdo de narragao, etc.). O trago mais distintivo da Historia Oral é, precisamente, a extrema maleabilidade com que produz os prdprios vestigios, a partir dos quais cria sua documentagio. Talvez um confronto com a Arqueologia auxilie a aclarar a especificidade desse trago. Também a Arqueologia pode ser considerada uma disciplina sui- generis pelo modo como transforma vestigios em documentos. E nao apenas por lidar com objetos. Com efeito, é freqiiente que o arquedlogo tenha que destruir seu objeto de pesquisa para transformé-lo em documento. E 0 caso das escavagdes arqueoldgicas, das quais apenas sobrevivem os vestigios observados, coletados ¢ descritos pelo escavador, que destri sua matéria-prima para transformala em documentos. O proprio documento arqueolégico, por sua vez, existe em diferen- tes niveis de concretude, durabilidade e acessibilidade: os préprios objetos, arquivados nas reservas de Museus ¢ Universidades, as anotagdes de campo, a pu- blicacio definitiva dos resultados. A partir dos mesmos vestigios, portanto, ar- quedlogos distintos podem produzir documentos muito diferentes entre si -¢ sem a possibilidade, que os historiadores possuem, de voltar ao vestigios para refazer a documentagio. Se os arquedlogos criam sua documentacio de modo consciente ¢ evidente, fazem-no, contudo, a partir de vestigios que so dados, fixos, pré estabelecidos. Jé 08 oralistas, como dissemos, no produzem apenas documentos mas, em grande medida, sio responsaveis pela producio dos proprios vestigios. Sio, no minimo, co-autores: definem a abrangéncia da cobertura, seus objetivos, temas ¢ questées HISTORIA ORAL, 1, 1998, p 613 63

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