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entrevista

scientiæ zudia, São Paulo, v. 7, n. 4, p. 669-79, 2009

Da fenomenologia à etnometodologia
Entrevista com Kenneth Liberman*
por Marcus Sacrini

Kenneth Liberman doutorou-se em sociologia pela Universidade da Califórnia, San


Diego, em 1981. Desde 1983 é professor de sociologia na Universidade de Oregon.
Ele já realizou pesquisas de campo com os aborígenes australianos e com monges
tibetanos, entre outros trabalhos de grande impacto no mundo acadêmico. É autor dos
seguintes livros Understanding interaction in central Australia: an ethnomethodology of
australian aboriginal people (1985), Dialectical practice in tibetan philosophical culture: an
ethnomethodological inquiry into formal reasoning (2007a) e Husserl’s criticism of reason,
with ethnomethodological specifications (2007b), além de diversos artigos especializa-
dos. Sua principal linha de pesquisa é a etnometodologia tal como desenvolvida por
H. Garfinkel, a qual tem por base diversos temas da fenomenologia. É exatamente o
legado da fenomenologia para a tradição sociológica da etnometodologia o tema prin-
cipal desta entrevista.

Você poderia nos contar sua trajetória intelectual e quais são os principais momentos do seu trabalho
até hoje? Você estudou com expoentes da tradição fenomenológica da sociologia?

Tive a sorte de ter alguns dos maiores professores que alguém poderia desejar e uma coisa que
me incomoda de tempos em tempos é minha incapacidade de substituí-los. Provavelmente
toda geração tem essa preocupação em algum grau, mas no meu caso a extraordinária excelên-
cia dos meus professores torna impossível fazer justiça ao seu brilhantismo e integridade.
Meu primeiro professor sério foi Peter Berger, que estava lecionando na New School for
Social Research na época, 1969. Ele foi aluno de Alfred Schutz e o ajudou a introduzir a análi-
se fenomenológica formal na sociologia. Era um homem brilhante e sempre me instigava a
ler tanto Husserl quanto eu pudesse. Eu dizia para mim mesmo: “Todo mundo adora ler Sar-
tre, Merleau-Ponty e Heidegger porque são excitantes, mas as verdadeiras descobertas estão
em Husserl”.

* Entrevista realizada por e-mail em maio de 2009; traduzida por Natália Fujita.

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Marcus Sacrini

Schutz foi aluno de Husserl. Outro soci- mos a intuir que nossos pensamentos não
ólogo que aprendeu muito com Schutz foi apenas refletem a realidade, mas constituem
Harold Garfinkel, o fundador da etnometo- seu sentido.
dologia, que foi o principal mentor acadêmi- A propósito, os estudiosos indianos es-
co da minha vida. Nesse sentido você pode tavam à frente dos europeus no desenvolvi-
dizer que eu pertenço a uma linhagem aca- mento de sua sofisticação epistemológica,
dêmica fenomenológica que vem de Husserl quer dizer, suas investigações sobre o papel
a Schutz, de Schutz a seus alunos e deles a da razão precedem o Ocidente em um milê-
mim. Como pós-graduando, também estudei nio. E eles reconheceram cedo que a própria
com Herbert Marcuse, que tinha estudado razão podia ser mitologizada e tornar-se um
com outro dos alunos de Husserl, Martin problema para si mesma. Os europeus che-
Heidegger, embora Marcuse tenha repudia- garam forçosamente a essa percepção somen-
do Heidegger tanto quanto Adorno o fez. te no começo do Renascimento, especial-
Apesar disso, aspectos da linhagem hus- mente com a descoberta da história em um
serliana também chegaram a mim por meio sentido que as tradições orientais nunca fi-
do professor Marcuse. Pertencer a uma linha- zeram, com o que me refiro não à historio-
gem dessa maneira invoca um senso de res- grafia – datas e nomes – mas à intuição de que
ponsabilidade na empreitada, mais do que se os humanos fazem sua própria história e de
eu tivesse simplesmente lido alguns livros na que as instituições que eles mesmos criam
biblioteca ou participado de alguns seminá- recriam os humanos na sua própria imagem.
rios com gente que os tivesse lido. Como disse Marx, os homens criam sua pró-
O que é essa responsabilidade? Como pria história. E essas instituições e as catego-
indico no prefácio do meu livro sobre Hus- rias e modos de reflexão que usam evoluem
serl, um traço importante da evolução da com o tempo, e eles continuam a evoluir.
humanidade é a capacidade de usar a razão. O autoentendimento radical buscado por
A humanidade não é realmente tão velha Edmund Husserl ocupa um momento impor-
quanto alguns imaginam – a parte do cérebro tante nessa evolução, no destino humano se
do Homo sapiens que processa linguagens de se quiser, embora eu não queira soar metafí-
fato não se desenvolveu plenamente (ainda sico. Quero dizer apenas no sentido prático
está se desenvolvendo) até mais ou menos daquilo que podemos atingir.
200.000 anos atrás, e sem dúvida a lingua- Reconhecer que estamos aprisionados
gem e a sociedade humana evoluíram juntas. por nossas próprias instituições e limitados
Isso não é realmente muito tempo, dado que ao nosso próprio pensamento foi uma das in-
a Terra tem 5 bilhões de anos. É impossível tuições humanas mais duramente conquista-
dizer quando o pensamento foi racionalmen- das, e ela ainda corre o risco de desaparecer.
te formalizado, mas podemos dizer que não Quando se considera a facilidade com que
foi antes de dois mil anos atrás que começa- ideologias absolutistas (religiosas ou políti-

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cas) são capazes de banir radicalmente práti- jogo, como degustadores de café produzem a
cas autorreflexivas de pensamento é que se inteligibilidade da degustação, as práticas que
pode avaliar a vulnerabilidade dessas intui- as pessoas usam para desenvolver um enten-
ções coligidas por Husserl. A etnometodo- dimento coerente quando se comunicam em
logia dá um passo evolucionário adiante, eu situações interculturais etc. – tem muito mais
diria, e me vejo como guardião dessa grande a contribuir para o esclarecimento das con-
intuição da reflexividade do entendimento a dições de uso do raciocínio prático e formal e
que a humanidade chegou. Então aceitei isso do papel do pensamento formal em empre-
como uma responsabilidade. Não há impor- endimentos humanos que contribuições às
tância pessoal aqui – o que é vital é o que vai estruturas de sustentação de tipos mais gerais
sobreviver anonimamente à nossa era como de teoria macrossocial.
formas de pensamento amplamente difundi- Aprendi tudo que sei com as análises
das que sabem se manter em seus limites e históricas e epistemológicas dos nossos gran-
usar essa capacidade sabiamente. des pensadores – incluo entre eles os epis-
Para voltar aos meus professores, além temólogos budistas –, e nós certamente não
de Berger, Garfinkel e Marcuse estudei com podemos prescindir da teoria, mas acaba-
Fredrich Jameson, Ivan Illich, os intelectu- mos excessivamente agarrados às estruturas
ais heideggerianos Fredrich Olafson e Bert objetificadas da nossa própria teorização e
Dreyfus, e não quero deixar de fora o Dalai precisamos nos guiar por eventos do mundo
Lama, que é meu professor há trinta anos. real em vez das teorias que adotamos como
Então minha questão central, agora que en- slogans. É disso que eu mais gosto em Husserl
trei na minha sétima década e o tempo que – ele estava sempre pronto a reconhecer o
tenho para contribuir é reduzido, é qual a modo como seus próprios hábitos de pensa-
melhor maneira de dar essa contribuição mento o conduziam a uma nova região de mi-
“anônima”. É claro que estou profundamen- ragens. E ainda assim ele estava tão agarrado
te comprometido com muitas causas políti- à superestrutura do elegante aparato teórico
cas e a maioria dos professores que mencio- (a moeda de sua cultura filosófica) por ele
nei sempre tiveram um engajamento em construído que continuou voltando de suas
assuntos políticos, na esperança de mudar a investigações radicais para retraduzir suas
história, mas hoje eu acredito que a minha descobertas para a metafísica europeia.
habilidade de conduzir investigações micros-
sociais muito cuidadosas pode revelar melhor Vamos falar mais especificamente sobre a feno-
as origens radicais do sentido, da sociedade, e menologia husserliana. Em seus trabalhos você
a inteligibilidade e ordenação da vida. Con- elogia o último programa filosófico de Husserl de
cluí que o estudo de assuntos mundanos – fe- explicitar a inserção das ciências no mundo con-
nômenos como a maneira pela qual as pes- creto da vida. Husserl pretendia ter diagnostica-
soas produzem e aprendem as regras de um do uma crise das ciências em geral, no sentido de

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que elas teriam perdido sua capacidade de con- perderam? Na verdade, é exatamente nesse
tribuir para a determinação do sentido concreto ponto que frequentemente a fenomenologia
da vida humana. Ele propunha uma reflexão his- é dispensada.
tórica para redescobrir o sentido original das prá- Mas porque a investigação sobre as “ori-
ticas científicas e acompanhar seus destinos nas gens” não pode ser propriamente estandar-
várias formas sociais que a ciência assume. Mas dizada e transformada numa metodologia de
na sua avaliação, os resultados de Husserl não prateleira (embora seja isso que a maioria dos
são inteiramente satisfatórios. Por quê? pesquisadores contemporâneos tente fazer),
isso não quer dizer que não haja motivos e
Dois parágrafos acima, falei de encontrar as intuições profundos que deram o primeiro
“origens” do sentido e da inteligibilidade, que impulso para as investigações formais nas
é uma das principais preocupações de ambas, quais estamos envolvidos. Numa palavra, a
a fenomenologia e a etnometodologia, mas única maneira que conhecemos de pensar é
essa questão das “origens” é um dos aspectos formalizar nossas reflexões. Precisamos de
mais controversos do trabalho de Husserl. uma formalização a) para ter um registro do
O diagnóstico de Husserl é de que as ciências que nós mesmos estamos pensando; b) para
perderam sua capacidade de contribuir para checar se não estamos chegando a conclusões
a determinação do sentido concreto da vida absurdamente inconsistentes e c) para ser-
humana. Deixe-me acrescentar, primeiro, a mos capazes de comunicar nossas intuições
observação de dois grandes pensadores que aos outros seres humanos. E este é o ponto
frequentaram a escola husserliana – e, no crucial onde a etnometodologia pode ensinar
entanto, foram adversários ferozes toda vida algo à fenomenologia – a tarefa prática e local
– Heidegger e Adorno, ambos tinham coisas de manter a inteligibilidade de nossas inves-
incrivelmente clarividentes para dizer sobre tigações, que é uma parte essencial da orde-
a vacuidade das atuais metodologias cientí- nação local, sempre em desenvolvimento, dos
ficas, a saber, que elas tinham de fato perdi- problemas sociais, segundo a qual as pessoas
do de vista as questões e interesses “originais” pensam publicamente e compartilham seus
que motivaram suas investigações. Mas o entendimentos, pode se sobressair aos pro-
problema é – como se pode perder algo cuja blemas substanciais que motivaram nossas
“origem”, para começo de conversa, nunca investigações. Nesse sentido os cientistas
foi clara? Simplesmente pressupor que num “perdem” de vista o que estavam fazendo “em
dado momento havia uma origem, clara e primeiro lugar”.
distinta, cognoscível em termos formais, é Esse “em primeiro lugar” é uma admis-
aderir a uma metafísica europeia que sobre- são de que há eventos que ocorreram antes do
viveu a sua utilidade. Como Derrida nos que nós estamos fazendo agora e nesse senti-
ensinou, tudo é derivativo. Falando claro, não do motivaram ou fundaram de alguma manei-
há origem alguma e nunca houve. Então, o ra o que fazemos (embora não possa haver
que foi que os cientistas contemporâneos nada como assegurar uma fundação firme),

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apesar do fato de que toda prática social, des- duzida por um filósofo que reflete sozinho em
de o início do Homo sapiens, os humanos que seu gabinete no porão tarde da noite é bem
pensam, tenha sido dirigida a estabelecer e pequena comparada ao modo público com que
assegurar essas fundações. Mas o fundacio- as pessoas organizam a inteligibilidade de seus
nismo é suspeito – então a questão se torna: entendimentos no nosso mundo cotidiano.
como podemos aprender a refletir e organi-
zar uma ordem social que carece de fundações Você propõe que a etnometodologia pode realizar
ou origens? Tomemos um caso relevante: o programa de Husserl sem limitar-se a genera-
Heidegger, Levinas, Derrida e Adorno são lidades formais. O que é etnometodologia? Quan-
unânimes sobre a impossibilidade de reduzir do e por quem foi desenvolvida?
a moralidade a regras, isto é, a fórmulas que
poderiam assegurar padrões éticos. Mas A etnometodologia foi desenvolvida por
uma sociedade de massas pode funcionar sem Harold Garfinkel durante os anos 1950 e
solavancos quando se abandonam as garan- por seus muitos alunos nos anos 1960 e 1970.
tias absolutistas? A etnometodologia descreve em seus deta-
É com isso que os fenomenólogos con- lhes locais as maneiras pelas quais o pensa-
temporâneos estão se batendo, e pensadores mento e o conhecimento são formalizados e
tão diferentes quando Derrida e Adorno de- transformados em um sistema social. Em
senvolveram uma dialética negativa que tem termos fenomenológicos, ela descobre a in-
a capacidade de desfazer os laços que ela mes- tersubjetividade como um dado básico, en-
ma ata, de maneira que as mistificações do quanto Husserl tenta fundar a intersubje-
pensamento próprio de cada um são reduzidas tividade na consciência individual, o que eu
ao mínimo absoluto. E todo o tempo a socie- acho que é um vestígio da logística do Escla-
dade está clamando em massa pela segurança recimento. Por sinal, a verdadeira deixa para
da certeza. Do meu ponto de vista não há qual- os etnometodólogos veio com as extensões
quer garantia de que o Homo sapiens vá con- radicais da fenomenologia husserliana de
seguir resolver isso. Merleau-Ponty.
Apesar das contribuições vitais de Hus- É claro que isso não garante que os etno-
serl, ele volta sempre a um tipo de monadismo metodólogos estão imunes a transformar seu
leibniziano no qual o individualismo egoísta próprio trabalho num fundacionismo, à me-
da metafísica europeia é ressuscitado e con- dida que desenvolvem seus próprios slogans
siderado primordial. O reconhecimento des- e hábitos de análise. Se eu aprendi alguma
sa insuficiência de Husserl é uma contribui- coisa com Husserl foi que não há garantias
ção dos fenomenólogos sociais (Schutz, para o pensamento claro, nenhuma: deve-se
Gurwitsch, Natanson e outros), sobre a qual permanecer atento, a todo momento, aos de-
as investigações etnometodológicas foram talhes de como se instituem os autoenganos
construídas. Pensar é realmente uma ativida- que nos impedem de ver o mundo, “deixar
de pública. A quantidade de pensamento pro- aquilo que se mostra ser visto por si mesmo

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da mesma maneira pela qual se mostra a partir feição do mundo para pessoas reais em cir-
de si mesmo” (Martin Heidegger, na intro- cunstâncias práticas; é muito divertido tes-
dução de Ser e tempo). Uma ilustração de como temunhar quão loucamente engenhosas as
a etnometodologia pode se reificar é a forma pessoas podem ser ao organizar seus afaze-
com que alguns estudos contemporâneos de res! Enquanto os fenomenólogos frequente-
análise da conversação, conquanto brilhan- mente primeiro raciocinam formalmente e
tes e mesmo radicais em sua identificação de depois buscam por um caso ilustrativo para
muitas das estruturas primitivas de coorde- ajudá-los a explicar o que querem dizer, os
nação de sentido, tornam-se eles mesmos etnometodólogos adiam a maior parte de suas
técnicas habituais e prontas para reduzir a análises até que tenham sido levados de um
interação humana a um interesse disciplinar. lado para outro por algum tipo de maluquice
Embora eu tenha o maior respeito pela aná- do mundo real. Dessa maneira a etnometo-
lise da conversação, é um pouco assustador a dologia se lança num caminho um pouco dife-
velocidade com que a disciplina da sociologia rente da fenomenologia. A “fenomenologia”
reduziu a etnometodologia a suas práticas poderia ser renomeada como “fenomeno-
mais padronizadas, perdendo a dialética bá- logização”, no sentido de que as preocupa-
sica do método e a atenção à reflexividade ra- ções teóricas formais normalmente se sobre-
dical que melhor a caracterizam. É claro que põem ao contato com o mundo real. Sempre
a história consiste nesse tipo de redução. Que entremeados a uma ou outra sequência de
tradição religiosa não se formou por elas? Não acontecimentos reais, normalmente gravada
precisamos apenas ajudar a perpetuar um em vídeo, os etnometodólogos descobrem
método de autoentendimento radical, nós (pois isso não pode ser inventado ou imagi-
precisamos perpetuar a vigilância contra a nado) o trabalho mundano de dar um sentido
reificação desses mesmos métodos. Isso nós às coisas. Ao invés de subordinar a ilustração
aprendemos não apenas com os sucessos de como grande parte da fenomenologização
Husserl, mas também com seus fracassos. faz, os etnometodólogos se permitem ser
conduzidos pela mão pelos afazeres corren-
O que distingue a etnometodologia da fenome- tes do mundo.
nologia?
Você afirma que a ciência consiste em suas prá-
A etnometodologia se mantém tão atenta aos ticas, que não é uma entidade que seria separá-
detalhes mundanos reais que as pessoas usam vel de tais práticas. Mas os resultados científicos
para organizar a ordenação local da nossa não excedem as particularidades das práticas
interação social que está mais pesadamente com as quais foram produzidos, eles não mere-
ancorada no mundo real, e se mantém tão só- cem o título de “idealidades”, ou seja, afirma-
bria quanto possível. Nós queremos iden- ções válidas não limitadas a nenhuma particu-
tificar o que está realmente acontecendo, a laridade cultural ou étnica?

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Essa é uma questão importante. Deixe-me nossas próprias práticas de pensamento, que
primeiro relacionar essa questão à anterior e então mitologizamos como algum tipo de for-
pedir que você considere a melhor maneira ça ontológica.
de buscar uma resposta para ela. Deveríamos Deixe-me falar mais concretamente.
elaborar uma arcabouço teórico capaz de fun- Recentemente comecei um novo projeto de
dar todas as noções de verdade e idealidade pesquisa. É um pouco estranho para mim, já
que uma pessoa poderia ter e satisfazer todos que geralmente dediquei meu tempo a estu-
os critérios de razão que reconhecemos como dar as formas de pensamento e ser de não-
vitais? Ou deveríamos procurar no mundo si- europeus/americanos, tais como os tibetanos
tuações em que pessoas, cientistas ou leigos, e o povo aborígene da Austrália. Sempre pen-
estão empenhadas em sistematizar suas in- sei que quanto mais dessemelhantes a nós
vestigações sobre a verdade de um problema fossem as práticas que estudamos, menos
e então identificar e descrever exatamente chances haveria de nos tornarmos presa de
como suas práticas produzem os resultados nossos próprios preconceitos, embora nun-
ideais que elas precisam para ter sucesso em ca haja garantias disso.
suas vidas? O primeiro caminho permanece No ano passado comecei um estudo pi-
abstrato, e haverá menos interferência na tra- loto sobre o trabalho de degustadores profis-
jetória do nosso próprio pensamento. O últi- sionais de café. Como se sabe, as empresas de
mo caminho pode ficar extremamente com- café compram cafés com base nas qualidades
plicado, talvez até confuso e ambíguo, mas vai de gosto dos grãos e há uma variedade grande
nos dar acesso a muito mais detalhes dos mé- e crescente de palavras descritivas para expe-
todos que as pessoas usam para entender a riências de gosto. Essas palavras incluem ad-
realidade. Só podemos descobrir esses mé- jetivos como “redondo”, “encorpado”, “pe-
todos, já que eles são engenhosos e numero- netrante”, “frutado”, “cítrico”, “terroso” etc.,
sos demais para que possamos imaginá-los palavras que guardam uma certa ambiguidade
todos do alto das nossas cadeiras de filóso- no que toca ao seu sentido e alcance. Ocasio-
fos. O grande historiador Abraham Herschel nalmente, comerciantes não profissionais
disse uma vez que a raiz da ciência não é o combinam adjetivos incompatíveis como “su-
método, mas o deslumbramento, e com esse ave” e “penetrante”, mas a maior parte deles
último caminho nós estamos prontos a aban- é usada com admirável precisão, já que uma
donar nossa miopia disciplinar em favor de empresa vai pagar US$120.000 por um car-
um maravilhamento entusiasmante em re- regamento de café gourmet da África (talvez
lação às habilidades e expertise que as pes- um que possa se harmonizar muito bem com
soas desenvolvem enquanto vão fazendo o um café menos caro da América Central) ao
mundo. Concordo que não queremos cair invés de US$75.000 por um grão menos in-
num relativismo cultural, mas também que- teressante. Além disso, os degustadores – e
remos evitar nos encarcerar na prisão das não são sempre os mesmos – têm de conse-

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guir fazer amostragem dos grãos que chegam há diferenças entre os paladares. Esse estudo
ao porto de, digamos, São Francisco, para ve- trabalha com muitas belas questões que eco-
rificar se são de fato aqueles pelos quais se am fortemente os temas fundamentais que
pagou tanto. Então é um bom negócio proce- Emile Durkheim colocou para a sociologia
der com precisão. Esses adjetivos são chaves sobre a produção de fatos sociais, mas tam-
que dizem aos degustadores o que eles têm bém temas fenomenológicos tais como tole-
que procurar. Além disso, ajudam os degusta- rar e domar a indeterminação, experiência
dores a organizarem seu próprio pensamen- corporificada e entendimentos objetivantes.
to sobre suas experiências sensíveis. Como procede aqui um etnometodólo-
Toda a questão de como alguém pode co- go? Pegamos nossas câmeras de vídeo e gra-
municar uma experiência sensível subjetiva vamos tantas horas das degustações mais
a outros levanta o problema prático de produ- profissionais quanto possamos filmar. Digi-
zir relatos objetivos dessas experiências, que talizamos o vídeo num computador e ana-
possam ser comunicados com sucesso e, lisamos um a um, repetidamente, cada mo-
como você disse, merecem o título de “ideali- vimento dos participantes enquanto compre-
dades” que não se limitam a nenhuma parti- endem, comunicam, coordenam, consolidam
cularidade cultural. Isso é trabalho prático. e objetivam (você poderia se reportar às mui-
Você pode descobrir o quão fabulosamente tas passagens brilhantes de Husserl sobre o
coletiva é a maior parte do pensamento ob- fenômeno da objetivação) as palavras-chave
servando como degustadores profissionais de que vão usar para compreender as qualidades
café avaliam várias xícaras de café. Eles en- gustativas de um dado grão. Quando um es-
tram colaborativamente em acordo sobre cer- tudo procede assim, os detalhes vividos po-
tas palavras descritivas que são chaves e elas dem ser capturados e apreciados com uma
funcionam como guias para as línguas que especificidade tão refinada que a investiga-
estão realizando a degustação. Se se tenta, ção fenomenológica ganha uma nova vida.
pode encontrar-se, mesmo da primeira vez, Temos que enfatizar que não estamos
os sabores “cítricos”, e esses mesmos sabo- exilando a autorreflexão fenomenológica à
res “cítricos” vão chegar ao paladar daqueles “Ciberlândia”. O que importa aqui não é a so-
que estão degustando o café em São Francis- lução tecnológica, no entanto, registrar esse
co. Mas ainda há um bom tanto de trabalho grau de detalhe depende muito das proprie-
prático para organizar o entendimento. De dades da edição digital de vídeo, inclusive de
fato, há organizações internacionais que pro- como elas facilitam os processos de pensa-
movem algumas padronizações para essas mento durante a análise fenomenológica de
palavras descritivas, mas esse esforço se de- detalhes. O que importa é a fenomenologia
para com a resistência de muitos degustado- que podemos fazer com os instrumentos con-
res de café que insistem que sempre haverá temporâneos, não os instrumentos mesmos.
mais sabores do que se pode categorizar e que É claro, Husserl não se beneficiou de tais ins-

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trumentos (nem Schutz ou Gurwitsch), então em grande medida, usamos a razão pensante
não tem sentido criticá-los por nunca serem para desfazer o encobrimento realizado por
suficientemente específicos. Mas a boa notí- nossas práticas de saber. Mas quando o ca-
cia é que agora nós podemos ser específicos minho ficou mais difícil, Heidegger às vezes
como a análise fenomenológica precisa ser e, se refugiou mitologizando os gregos ou os
entretanto, a maioria dos fenomenólogos seus próprios aforismos (e não é sempre que
contemporâneos reluta em realizar tais in- é fácil distinguir os dois casos). Ele se sai
vestigações ou abandonar por pouco que seja melhor identificando problemas que resol-
sua estreita dependência das rotinas analíti- vendo. Eu prefiro uma dialética negativa mais
cas que compõem sua erudição. radical que insiste em desmistificar tudo. Em
Alguns etnometodólogos muito bons sociologia, referimo-nos a isso como o “mo-
(Michael Lynch e Eric Livingston entre eles) tivo do desmascaramento” da análise social.
têm estudado cientistas indo a seus laborató- Temos que continuar a pensar e temos que
rios e gravando suas práticas, sejam eles bió- usar o raciocínio formal em nosso pensamen-
logos investigando o desenvolvimento de axô- to, inclusive o método científico, mas preci-
nios, astrônomos descobrindo um pulsar ótico samos continuar a submeter tudo isso ao con-
ou matemáticos provando um teorema. Os re- gresso da reflexão humana. A ciência como
sultados de todos esses cientistas são transcul- ideologia é só mais um mito.
turais, mas as práticas de pesquisa e raciocínio Mas realmente surpreende que a antimi-
que compõem sua ciência podem ser igual- tologia da ciência moderna tenha se transfor-
mente investigadas etnometodologicamente. mado em mais uma mitologia? Isso me faz
lembrar do que o grande dialético negativo
Fenomenólogos ulteriores, como Heidegger e Chandrikirti, um pensador budista do sécu-
Merleau-Ponty, já tinham criticado os resulta- lo vii, disse: há esperança para alguém que
dos formais do trabalho de Husserl. As limitações não tenha reconhecido que as entidades são
de Husserl não foram corrigidas no desenvolvi- vazias de essências inerentes, e para quem se
mento da própria fenomenologia? investiu nas reificações que inventou, mas
para quem já estudou a natureza do vazio de
Você questiona o papel da filosofia de essências e ainda assim seguiu em frente e
Heidegger nisso tudo. Heidegger foi um pen- transformou o vazio mesmo em um essencia-
sador fenomenológico seminal que lutou de- lismo não há esperança alguma. De forma que
cididamente para se ater ao que realmente Husserl e todos nós que o seguimos temos que
merece ser pensado e para não esconder o ser conservar essa inclinação antimitológica, e
daquilo que está sendo pensado, não encobri- temo que Heidegger às vezes se rende à sua
lo com os exercícios de nenhum regime de própria mitologização idiossincrática. Ou tal-
pensamento que usemos. Em termos heideg- vez eu simplesmente não seja um místico.
gerianos, que foram retomados por Derrida

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Marcus Sacrini

Quanto a Merleau-Ponty, praticamente avançamos pelo livro, frase por frase, bem
não há como superá-lo. Sua orientação sobre do jeito que os tibetanos fazem seus próprios
as maneiras pelas quais o entendimento e a estudos de texto. Mais ou menos uma vez a
experiência excedem a conceitualidade e suas cada lição o abade interrompia minha expli-
descrições de como dirigir a atenção ao feitio cação e corria para a biblioteca em seu quar-
do mundo como um tópico primordial para a to, pegava um texto tibetano impresso com
pesquisa formal são incomparáveis. tipos de madeira e lia para mim uma passa-
gem muito próxima ao que Husserl estava di-
Você estudou em detalhe os debates filosóficos zendo. De fato, não havia uma única ideia nas
do budismo tibetano. O que esse estudo revela Ideias com que o abade já não tivesse se de-
sobre o desenvolvimento concreto da racionali- parado durante a educação que ele teve em sua
dade? O que ele pode nos ensinar sobre nossa ra- própria tradição, embora ele não estivesse
zão científica? nem um pouco convencido da noção da exis-
tência de um ego transcendental.
A maioria dos problemas concernentes à ra- Depois de mais ou menos um mês disso,
zão que tenho discutido foi enfrentada por resolvi que teria de aprender tibetano e ler
epistemólogos e dialéticos budistas. Isso se esses textos para poder julgar eu mesmo, o
tornou evidente para mim durante minha pri- que consegui três décadas depois. Se os tibe-
meira visita a um monastério tibetano no tanos estão nesse tipo de investigação mais ou
Nepal em 1978, a convite do abade do monas- menos mil anos a mais do que nós, isso sig-
tério. Durante a maior parte dos quatro me- nifica que podemos aprender com eles.
ses que estive lá, o abade, Lama Thubten Então eu me autonomeei embaixador da
Yeshe, apresentou uma palestra, dia sim, dia fenomenologia junto ao budismo tibetano.
não, sobre um texto da tradição mente-ape- Infelizmente não tenho certeza de que a fe-
nas (tradição idealista) de Asanga, chamado nomenologia quer um tal embaixador, já que
Distinção entre o meio e os extremos. Os extre- a maioria dos filósofos ocidentais não vai le-
mos são o positivismo e o niilismo. Depois de var muito a sério nenhuma tradição de pen-
algumas semanas dessas palestras, visitei o samento que não se originou com os gregos.
abade para informá-lo de que o texto tratava Ainda assim, a escolástica tibetana reagiu ao
em grande medida da mesma problemática idealismo da escola mente-apenas com uma
que a fenomenologia, especialmente no to- fabulosa elaboração da dialética negativa de
cante à projeção do sentido noemático. Ele Chandrakirti e Nagarjuna da escola do cami-
ficou feliz de ouvir isso e me convidou a en- nho do meio, uma dialética que adianta mui-
sinar-lhe fenomenologia durante uma hora to da virada pós-moderna na fenomenologia.
nos dias em que não ministrasse palestras. E assim eu estou dedicando um bom tempo a
Calhou de eu ter comigo um exemplar da tra- analisar os principais textos e práticas dessa
dução de Boyce Gibson das Ideias e assim nós dialética negativa. Mas aqui, de novo, não es-

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Da fenomenologia à etnometodologia. Entrevista com Kenneth Liberman

tou só lendo os principais textos, tenho tam- testemunhar o pensamento na prática e não
bém gravado os estudiosos tibetanos enquan- só em teoria. Então nessa investigação eu
to participam de debates públicos formais também estou atuando como etnometodólo-
sobre essas questões epistemológicas. Quero go, bem como fenomenólogo.

Marcus Sacrini
Pós-doutorando do Departamento de Filosofia,
Universidade de São Paulo.
Pesquisador do Projeto Temático “Gênese e significado da tecnociência”,
Fapesp, Brasil.
sacrini@usp.br

referências bibliográficas
Liberman, K. Understanding interaction in central Australia: an ethnomethodology of australian aboriginal
people. London: Routledge, 1985.
_____. Dialectical practice in tibetan philosophical culture: an ethnomethodological inquiry into formal reasoning.
Maryland: Rowman & Littlefield, 2007a.
_____. Husserl’s criticism of reason, with ethnomethodological specifications. Maryland: Lexington Books,
2007b.

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