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CE Ontiz, Renato, org., Fernandes, Flonestan, coord. PLerne Bourdien = Soctokogia. Sao Paulo: Xtica, 1983, 4. O CAMPO CIENTIFICO * A sociologia da ciéncia repousa no postulado de que a verdade do Produto — mesmo em se tratando desse produto particular que 6 a verdade cientifica — reside numa espécie particular de condigdes sociais de producio; isto é, mais ‘precisamente, num estado determinado da estrutura e do funcionamento do campo cientifico. O universo “puro” da mais “pura” ciéncia £ um campo social como outro qualquer, com suas relagdes de forca e monopélios, suas lutas e estratégias, seus inte- Tesses e lucros, mas onde todas essas invariantes revestem formas espe~ cfficas. A luta pelo monopélio da competéncia cientifica © campo cientifico, enquanto sistema de relagSes objetivas entre Posigdes adquiridas (em lutas anteriores), 6 o lugar, o espago de jogo de uma luta concorrencial. © que esté em jogo especificamente nessa luta 6 0 monopslio da autoridade cientifica definida, de maneira inseparével, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, 0 mono- Pélio da competéncia cientifica, compreendida enquanto capacidade de * Reproduzido de Bounpieu, P, Le champ scientifique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 2/3, jun. 1976, p. 88-104, Tradugfo de Paula Montero. 123 falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com auto- ridade}, que € socialmente outorgada a um agente detecminado '. Dizer que o campo € um lugar de lutas nao é simplesmente romper com a imagen irenista da “comunidade cientifica” tal como a hagiografia cientifica a descreve — e, muitas vezes, depois dela, a prépria sociologia da ciéncia. Nao é simplesmente romper com a idéia de uma espécie de “reino dos fins” que néo conheceria sendo as leis da concorréncia pura ¢ perfeita das idéias, infalivelmente recortada pela forga intrinseca da idéia verdadeira. E também recordar que o proprio funcionamento do campo cientifico produz e supde uma forma espectfica de interesse (as Praticas cientificas nao aparecendo como “desinteressadas” seno quan- do referidas a interesses diferentes, produzidos € exigidos por outros campos). Falando de interesse cientifico e de autoridade (ou de competéncia) cientifica, pretendemos afastar, desde logo, as distingdes que habitam, implicitamente, as discussdes sobre a ciéncia. Assim, tentar dissociar o que, na competéncia cientifica, seria pura representagdo social, poder simbélico, marcado por todo um “aparelho” (no sentido de Pascal) de emblemus ¢ de signos, ¢ o que seria pura capacidade igcnica, € cair na armadilha constitutiva de toda competéncia, razdo social que se legitima apresentando-se como razio puramente técnica (conforme vemos, Por ¢xemplo, nos usos tecnocraticos da nogdo de competéncia) 7, Na 1 Duss observagdes répidas para evitar possiveis mal-entendidos. Primeiramente, nilo se pode reduzir as relagdes objetivas que sfo constitutive: do campo 20 conjunto das interacdes, no sentide do interacionismo, isto ¢, a0 conjunto das estratégias que, na realidade, ele determina. Por outro lado, € necessério precisar © que significa ser socialmente reconhecido. Veremos que o grupo que confere ome reconhecimento tende, cada vez mais, a reduzir-se 20 conjunto dos cientistas (ou concorrentes) & medida que crescem os recursos cientificos acumulsdpe e, correlativamente, a autonomia do campo. 20 conflito relatado por Sapolsky entre os partidérice da fMuorizagio, isto & 08 detentores da autoridade oficial (health officials), que se estimam os tinicos com petentes em matéria de saGde publica, ¢ os adversirios dessa inovacto, entre os quais contam-se intimeros cientistes que, sos olhos oficiais, ultrapassam os “limites de seu proprio campo de competéacia”, permite perceber claramente a verdade social da competéacia como palavra autorizada © de autoridade que esth em jogo a lute ‘entre os grupos (cf. Sarotsxy, H. M. Science, voters and the fluoridation coatroversy. Science, v. 162, 25 out. 1968, p. 427-33). Nunca o problema da compettocia se colocou com tanta acuidade ¢ clareza como nas rela¢Ses com os “profanos”. (Ver BaxNes, S. B. On the reception of scientific beliefs. In: —., ‘org. Sociology of science. Londres, Penguin, 1972. p. 269-91; Botansm, L. ¢ Matomer, P. Carriére scientifique, morale scientifique et vulgarisation. Infor- mation sur les Sciences Sociales, 3 (9), 1970, p. 99-118.) | | Al “424 realidade, © “‘augusto aparelho” que envolve aqueles a quem chamé4- vamos de “capacidades” no século passado © de “competéncias” hoje — becas rubras e arminho, sotainas e capelos dos magistrados e dou- tores em outros tempos, titulos escolares e distingSes cientificas dos pes- quisadores de hoje — essa “ostentacSo t&6 auténtica”, como dizia Pascal, toda essa fic¢fio social que nada tem de socialmente fictfcio, modifica a percepciio social da capacidade propriamente técnica. Assim, os julga- mentos sobre a capacidade cientifica de um estudante ou de um pes- quisador esto sempre contaminados, no transcurso de sua carreira, pelo conhecimento da posigfo que ele ocupa nas hierarquias institufdas (as Grandes Escolas, na Franga, ou as universidades, por exemplo, nos Estados Unidos). Pelo fato de que todas as priticas esto orientadas para a aqui- sigo de autoridade cientifica (prest(gio, reconhecimento, celebridade etc.), © que chamamos comumente de “‘interesse” por uma atividade cientifica (uma disciplina, um setor dessa disciplina, um método etc.) tem sempre uma. dupla face. O mesmo acontece com as estratégias que tendem a assegurar a satisfacSo desse interesse. ‘Uma anflise que tentasse isolar uma dimensio puramente “pol{tica” nos conflitos pela dominago do campo cientifico seria tho falsa quanto 0 parti pris inverso, mais freqiente, de somente considerar as determinagdes “puras” © puramente intelectuais dos conflitos cient{ficos. Por exemplo, « luta pela obtengfo de créditos ¢ de instrumentos de pesquisa que hoje opde os especia- listas nfo se reduz jamais a uma simples luta pelo poder propriamente “politico”. Aqueles que esto a frente des grandes burocracias clentificas 56 Poderio impor sua vtéria como sendo uma vitéria da citacie se forem capazes de impor uma definigfo de ciéacia que suponha que « boa mancira de fazer citacia implica a villzaglo de servigoe de uma grande burocracia cientifica, provida de créditos, de équipamentos técnicos poderosos, de uma mio-de-obra abundante, Assim, eles constituem em metodologi universal © eterna a prética de sondagens com amplas amostragens, as operapSes de anflise estatistica dos dados @ formalizacio dos resultados, instaurando, como medida de toda pritica cientifica, o padrfio mais favordvel as suas capacidades intelectuais ¢ institucionais, Reciprocamente, os conflitos epistemolégicos so sempre, inseparavelmente, conflitos politicos; assim, uma pesquisa sobre © poder no campo cientifico poderia perfeitamente 95 comportar questSes apa- “ rentemente epistemolégicas. De uma definigéo rigorosa do campo cient{fico enquanto espaco objetivo de um jogo onde compromissos cientificos estio engajados resulta que € inGtil distinguir entre as determinagdes propriamente cientificas ¢ as determinagSes propriamente sociais das priticas essen-

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