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seo oa baewgn tmnt ates cen an anh aim ie Autor: Jean-Luc Nancy ‘Thulo: Corpus Titulo original: Corpus ‘Tradugao: Tomés Maia Capa: Paulo Bacelar Imagem da capa: Pintura de Frangois Martin, “Le soleil se couche, mot aussi”, série 1018 des. 1422 (1999) Director de ColeceRo: José A. Braganga de Miranda Revisio: Alice Aratijo @ Vega, Limitada (1.* edigHo em 2000) Apartado 41034 1526 Lisboa Codex Fotocomposicao, paginagio ¢ fotolitos: CA - Artes Gnificas ISBN: 972-699-648-1 Depésito legal: 160578/01 Impressiio e Acabamento: Grafewropa Jean-Luc Nancy Corpus ves Passagens Agradego, na tradu¢ao, ao André, Bruno, Jean-Luc ¢ Sofia. hes Corpus Hoc est enim corpus meum: vimos de uma cultu- ra em que esta frase ritual tera sido pronunciada, in- cansavelmente, por milbées de oficiantes de mithoes de cultos. Nesta cuitura todos a (re)conhecem, quer sejam ou nfo cristios. Entre os cristios, uns déo-Ihe valor de consagragio real — o corpo de Deus esta ali—, outros de simbolo — onde comungam os que fazem corpo em Deus. Esta frase constitui também, entre nés, a repetigao mais visivel de um paganismo obsti- nado, ou sublimado: péo © vinho, outros corpos de outros deuses, mistérios da certeza sensivel. Fla é tal- vez, no espago das nossas frases, a repeticao por ex- celéncia, até A obsessio — e até que «isto é 0 meu corpo> se preste também a inumeraveis gracejos. Lo nosso Om mani padne..., 0 nosso Allah ill'aliah..., 0 nosso Schema Israél... Mas a variante da nossa f6rmula indica de imediato a diferenga que nos € mais propria: somos obcecados pela vontade de mostrar um isto, ¢ de (nos) convencermos que este isto, aqui, 0 que nao se pode nem ver nem tocar, nem aqui nem noutro lugar — € que isto € aquilo, nao de qualquer maneira mas como o seu corpo. O corpo daquilo (Deus, absoluto, ou como se queira chamar), e que aquilo tenha wm corpo ou que isto seja um corpo (€ deste modo que isto seja 0 corpo, absoluiamente), eis a nossa obsessio. O isto onde se apresenta o Ausente por exceléncia: nunca 0 teremos deixado de chamar, convocar, consagrar, interpelar, captar, querer, ¢ querer absolutamente. Quisemos 6 Jenn-Lue Nancy sempre a seguranga, a certeza pura de um EIS: eis, sem mais, em absoluto, eis, aqui, isto, a mesma coi- sa, Hoc est enim... desafia, apazigua todas as nossas. diividas sobre as apar€ncias, e dé ao real o verdadeiro retoque final da sua Ideia pura: a sua realidade, a sua existéncia. Desta frase, nunca acabarfamos de modu- Jar as variantes (ao acaso: ego sum, o nu na pintura, 0 Contrato social, a loucura de Nietzsche, os Ensaios de Montaigne, o Pesa-nervos, «Madame Bovary, sou eu», a cabega de Luis XVI, as estampas anatémicas de VeSilio ou de Leonardo, a voz —- de castrado, de soprano, etc, —, a cana pensante, o histérico: na ver- dade, € toda a textura de que somos tecidos...). Hoc est enim... pode gerar a totalidade do corpus de uma Enciclopédia Geral das Ciéncias, das Artes e dos Pen- samentos do Ocidente. O corpo: eis como nés 0 inventémos. Quem mais no mundo o conhece? Mas pode-se imaginar a angistia tremenda: «eis» no € seguro: € preciso assegurarmo-nos dele. Néo ha a certeza que a prépria coisa possa estar ai. Ag, onde nés estamos, talvez nunca chegue a passar de um reflexo, sombras flutuantes. B preciso insistir: «hoc est enim, em verdade vos digo, € sou eu que vos digo: quem poderia estar mais certo da minha pre- senga em carne e em sangue? Esta cetteza seri a vos- sa, com este corpo que tero encorporado.» Mas a angtistia nio acaba: o que € isto que € o corpo? Sera isto que vos mostro, mas cada «isto»? todo o indeterminado do «isto» e dos «isto»? Tudo isso? Uma ' : ‘ i t corpus 7 vez tocada, a certeza sensivel torna-se um caos, uma tempestade, e todos os sentidos af se confundem. Corpo é a certeza siderada, estilhacada. Nada de mais préprio, nada de mais estranho ao nosso velho mundo. Corpo pr6prio, corpo estranho e estrangeiro: o que hoc est enim mostra, o que ele torna tangfvel © dé a comer, € 0 corpo préprio. O corpo préprio ou a pré- ptia Propriedade, o Ser-a-Si em corpo. Mas nesse mesmo instante, € sempre um corpo estrangeiro que se mostra, monstro impossivel de engolir. Néo saf- mos disto, enredados numa embrulhada de imagens que vao do Cristo que medita sobre o seu pao azimo até ao Cristo que se exticpa um Sagrado Coragio pal- pitante, sanguinolento. Isto, isto... isto é sempre de- mais ou insuficiente para ser aquilo. E todas as teorias do «corpo proprio», as laborio- sas tentativas para reapropriar aquilo que se julgava deploravelmente «objectivado», ou

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