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Celso Mangucci, Museu de Evora ENTRE O ESPELHO, A COPIA E A FRUIGAO, As formas de apropriacdo das “FETES GALANTES” na AZULEJARIA PORTUGUESA DO SECULO XVIII A quase total inexisténcia de fontes criticas escritas contemporineas para a azulejaria portuguesa do século XVIII, faz com que a identificacao das gra- vuras utilizadas para a composigio dos painéis de azulejos seja um dos melhores pontos de partida para a anilise da produgio desse periodo. A partir de meados do século XVI, Portugal é destino frequente de varias encomendas de gravuras, a0 mesmo tempo que nas tipografias comega a gene- ralizar-se a incluso de imagens em tratados especializados na disciplina de arqui- tectura, marcenaria, ourivesaria e artes decorativas. Ainda como ilustragdes de livros de ciéncias, histéria ¢ geografia, as estampas deram um contributo fundamental para a divulgagio de ideias ¢ conceitos e a perfeita relacio de complementaridade com os textos foi uma razio maior para a aquisi¢ao por artistas € coleccionadores, contribuindo para a consolidagio de uma cultura comum de imagens. Cedo, a gravura constitui uma expressio plistica independente, abrindo lugar a um coleccionismo informado e cada vez mais alargado, que em Portugal, alcanga © exemplo paradigmético com a encomenda, por D. Joao V, de um fabuloso conjunto de cento e seis volumes de estampas, ao prestigiado impressor francés Jean Mariette” — conjunto, infelizmente quase totalmente desaparecido com o grande sismo de 1755. A vitalidade da produgio da azulejaria portuguesa, como jé foi por diversas vezes sublinhado®, muito deve a proficua sintonia com esse universo grafico, responsvel por contributos importantes tanto ao nivel da ornamentagio quanto da iconografia. No entanto, para a historiografia moderna, ao mesmo tempo em que 0 conhe- cimento das gravuras utilizadas permite uma compreensio mais alargada da esfera cultural em que se movem os pintores de azulejos e os programas decorativos de edificios civis ¢ religiosos, parece, por outro lado, restringir 0 papel do artista plistico e secundarizar a importancia da produgio artistica realizada em Portugal, na medida em que se possa sobrevalorizar a dependéncia em relacio a matriz 313 314 AS FORMAS DE APROPRIAGAO DAS “PETES GALANTES” NA AZULEJARIA PORTUGUESA DO sicuLo XVITL original. Sio esses dois lados da questo que vamos analisar através do exemplo da recepcio do género das ies galuntes © particularmente de um conjunto de painéis de azulejos figurativos do Ecomuseu Municipal do Scixal, para os quais foram utilizadas as gravuras realizadas a partir dos trabalhos do pintor francés Nicolas Lancret (1690-1743). O ESTIGMA DA COPIA Entre os estudos que identificam gravuras que estiveram na otigem de painéis de azulejos portugueses, permanece exemplar as questées levantadas pelo tra- balho de Robert Smith (1973), no qual se comprovava a frequente utilizacio de estampas de Jean Lepautre e de gravuras realizadas a partir da obra de Antoine Watteau para a execucio de painéis de azulejos figurativos, na primeira metade do século XVIII. Ao particularizar a anilise, Robert Smith interpreta a pintura de azulejos como um ponto de conjungio do universo erudito e popular, enfatizando o caracter oficinal desta producio, realizada por pintores-artesios com uma for- magio artistica ndo académica”. O ponto de partida para essa leitura € a com- paracao entre a gravura e a obra produzida — no caso a estampa A fountain in the italian style, de Jean Lepautre, de c.1661, parcialmente utilizada num painel repre- sentando um eremita em oragio, para o transepto da Igreja de io Domingos de Benfica, em Lisboa, atribufvel a Anténio Pereira Ravasco e datavel de 1710”. Para Robert Smith, é evidente uma compreensio imperfeita do modelo, embora as alteragdes realizadas tenham 0 objectivo, consciente ou inconsciente, de adap- té-lo A mentalidade nacional”. Como hoje sabemos, Anténio Pereira Ravasco (act. 1683-1712), longe de ser um mero artesio, é um pintor 4 dleo com uma carreira sdlida, marcada pela influéncia da pintura francesa do periodo, com trabalhos identificados na Igreja de Nossa Senhora da Nazaré, e em Lisboa nas igrejas de So Miguel de Alfama, Cardais e Anunciada®, tendo a sua formacio ocorrida, provavelmente, como cra norma, pela frequéncia como aprendiz de um atelier de um pintor reconhe- cido. Como 0 exemplo demonstra, a auséncia de um aprendizado académico, uma falha constantemente apontada na formacio dos artistas, € 0 sistema em vigor para 0 conjunto da arte portuguesa, ¢ nfio exclusiva dos pintores de azulejos. Com outros artistas do perfodo, como o reconhecido Anténio de Oliveira Bernardes, Anténio Pereira dedicou-se também & pintura de azulejos, num AS FORMAS DE: APROPRIAGKO DAS “FETES GALANTES” NA AZULEJARIA PORTUGUESA DO sECULO XVIII momento em que os novos modelos para a decoragao de edificios civis e reli- giosos reclamavam intérpretes experientes ¢ qualificados, substituindo a grande maioria dos pintores de azulejos seiscentistas que estreitamente vinculados as olarias, e que se dedicavam simplesmente a reprodugdo de padrées, ou a pintura de pequenos painéis hagiograficos. Como € evidente no exemplo analisado, Anténio Pereira utilizou a fonte como um actéscimo cenografico & representagio de um eremita, num painel secundétio em relagio a figurago principal, dedicada aos varées ilustres da Ordem Dominicana, e assinada por Anténio de Oliveira Bernardes. Alids, © reconhecimento das fontes de 4gua como marca arquitecténica de um jardim erudito, transformaram-nas num tema independente da azulejaria setecentista, com coeréncia suficiente para marcar significativamente a decoragio de um. aposento ou uma casa de fresco”. Devemos recordar ainda que estas gravuras de Lepautre se integram no conjunto de informacao de base erudita da disciplina de arquitectura, presente nas bibliotecas de arquitectos como Joao Frederico Ludovice ¢ Rodrigo Franco®, mesmo um século depois de realizadas. De maneita diversa, 0 segundo exemplo de Robert Smith, a utilizagio das Bravuras L'Aventuritre de Benoist Audran, € Iris c'est de bonne heure avoir lair & la dansey de Charles-Nicolas Cochin, ambas realizadas a partir de obras de Antoine Watteau, para um conjunto de painéis, actualmente aplicados na entrada do edificio da Calgada do Combro”, insere-se no fendmeno de consolidagio, a nivel europeu, do estilo Rococé. Devem-se na nossa opiniao, nio ao operoso Bartolomeu Antunes — um mestre ladrilhador importante na articulacio global das enco- mendas, mas que nao se dedicowA pintura dos azulejos , mas sim ao pincel de Valentim de Almeida (1692-1777). Essas gravuras popularizam um novo género de pintura, conhecido como as fe galante, que alcangou em Portugal, a diversos niveis, uma tecep¢io inicial importante ¢ contemporinea ao auge do fulgor parisiense. E dessa cidade que chega a Portugal, em 1726, Pierre- Antoine Quillard, que o tei D. Joao V, determinado na sua politica de renovacio do ambiente cultural portugués € na afirmagio como mecenas europeu, ira nomear pintor régio. O jovem Quillard, que nos dois anos imediatamente anteriores fora derrotado para o Prix de Rome apenas por Charles Van Loo ¢ Francois Boucher, realizara ainda muito jovem um estagio no atelier de Antoine Watteau. A sua morte prematura, em 1733, tornou pouco conhecido o importante papel desempenhado pelo pintor na formacio de um novo 315

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