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Corpus delicti © fumante da 0 dltimo ret0« ho, Ele busea sua propria unidade com « paisagem.” A. Breton! Um dos principais pintores do surrealismo, escrevendo em 1933. imagi um homem fixa seguinte cena: lamente um ponto Iuminoso pensando tratarse de uma estrela ¢ & brutalmente tirado de seu devaneio, conta que cra apenas a ponta ineandescente de um cigarro. Dizem-lhe entio que a ponta desse cigarro € na verdade © Gnico ponto visivel de um imenso objeto *psico-aunesférico-anamérfico’, ¢ isto, assegura-nos o autor, vai instan- taneamente fazer com que esta ponta qualquer de cinzas incandescentes se ios de sedugio € curiosida- revista de “todos os scus mais incontestaveis vest de irracional”. Ja sabemos que estes objetos “psico-atmos{érico-anamérficos” sao comple- econstrugdes, produzidas na escuridao, de um objeto original escolhido também no escuro, entre muitos outros. A “reconstrugio”, que se deixa cair xa de uma altura de trinta metros, sempre no ¢scuro, para tornéla irreconheci- Yel mesmo que se pudesse véa ¢ fotografada em seguida. Depois se mergulha essa fotografia sem tla visto em um cubo de metal em fusio, que se solidifi- caasua volta, Essa sombra reproduzida de uma sombra invisivel, presa na rigi- dez de seu estojo agora inerte, sera doravante qualificada como Gnforme por nosso autor. © autor, que nio poderia ser outro que Salvador Dali, imagina entao o que yai contar ao interlocutor que agora esta cativado com a historia deste objeto particular de que se vé apenas a ponta incandescente, Essa histéria de extre- ma complexidade vai persuadir 0 interlocutor “sem que Ihe possa restar a menor dtivida, da presenga dentro do objeto dos dois cranios auténticos de Richard Wagner ¢ de Luis II de Baviera, entre outros importantes elementos cessenciais. Ese demonstrara que sio esses cranios, amolecidos por meio de um, sistema especial, que fumam conjuntamente”. A sedugio pela podridao ¢ pela) decomposigio que alga vo na fumaca é a propria esséncia do informe como, veremos adiante. 17 Man Ray, Cabeya, Nova lorque, 1933 Dali conclui seu texto com a seguinte assereao: “Nada resta Gigarro senio brilhar, e com uma resplandecéncia ainda mais lir humanos que a cintilacdo atmosférica do mais longinquo e limy Dez anos antes, Man Ray tinha criado a seguinte imagem: uma estranha construgio surge da beira inferior de uma fotografia e forma uma pirami de que se eleva em direcio a borda superior. O cume da piramide é consti tuido de um cigarro cujas cinzas afloram a borda superior da fotografia ¢ Cuja outra extremidade esta piantada em uma boca que mal se pereebe no pice desta construcdo humana. O suporte do cigarro é com efeito un rosto virado a 180 graus, mas um rosto de que é quase imp. reconhe- cero carater humano nesta posicio, Quanto a massa de cabelos caindo para baixo, ela preenche 2 metade inferior do quadro ¢ compde um campo informe de volutas Com apenas dois mor plano, Head (Cabeca), Nova lorque, 1998, produz a imagem do informe Realizada logo antes que o Manifeste du sirrialisme soltaste o8 primeiros fogos da revol- $40 de Andié Breton (chamada depois “a época dos sonos* do movimento") a imagem de Man Ray poder mentos de fria economia, a(fotagd)e 0 primeiro a muito Bein ter figurado ao lado do texto de 172 Man Ray, Anatomias, ¢. 1930 Dali no Le Surréalisme au service de la révolution (O Surtealismo a servico da revolugao), 0 que nao teria sido surpreendente para um fotdgrafo cuja obra seria logo totalmente integrada em todos os espacos literérios surrealistas. A partir de 1924, Man Ray foi considerado algo como o fotégrafo titular de La Révolution surrialiste, fornecendo seis imagens para o seu primeiro ntimero. Depois de ceder ao seu assistente Jacques-André Boiffard a ilustracao de Nadja de Breton, ele forneceu imagens para L'Amour Fou, tirou clichés que seriam escolhidos posteriormente por Tristan Tzara para exaltar 0 seu texto sobre 0 “automatismo do gosto” e fez uma montagem cénica de fotografias de fantas- mas para ilustrar um ensaio de Dali sobre as ‘apari¢ées aerodinamicas” em 1934. Cabeca, Nova lorque, nao é simplesmente um caso isolado na obra de Man Ray, uma feliz coincidéncia que. préprio Dali poderia ter descoberto ¢ uti- lizado, mas 0 acaso nao o permitiu. As estratégias utilizadas repetem-se em outras ocasies na producio fotografica de Man Ray, onde desmontam o ‘aspecto familiar do corpo humano e redesenham 0 mapa daquilo que acre- ditavamos ser 0 mais familiar dos terrenos. Anatomias, que produz os mesmos efeitos desorientadores, € outro exemplo: a carne humana forma novamente 173

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