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© SOLO, A SOCIEDADE E 0 ESTADO (*) Nota do Tradutor (+*) Friedrich Ratzel (1844-1904) 6, sem die vida tum dos mais destacados representantes a escola classics oma de geografia; sua Cobra, que trata de problemas que se associam 08 de ouiras clgnclas naturals © socias, se consttei muma das contribuigées mais im- ortantes para o desenvolvimento ds seosra- fia moderna, em sua concepsio ambienta- sta, ‘Recentemente, no pais, sobretudo em tex tos de divulgssa0, multplicaremese a3 refe- runcias @ autores clissicos da geografia, entre fof quale Ruse, ulguunas vee ltades a partir de pontos de vista equivocados, em virlos casos por desconhecimento de suas obres. Isso se deve em muito, no caso de Ratze), a que a grande maioria do seus escritos se encontr apenas em idioma alemfo; foram editadas.algumss poucas tradugies de seus livros e artigos em icaliano, inglés e franets, todas atualmente esgotadas « de dificil acess, [A tradugio que ofa se publica pretende ser uma contribuigso para que se conhega © possa avaliar devidamente em nosso meio (© que Rotzel realmente disse. Foi elaborada ‘m0 comprimento de um programa de p6s- graduagio sob a orientagio do Prof. Manoel Seabra, @ partir do texto em frances publi- cado em LAnnée Sociologique, no qual 10 cconsia referincia ao traduior. Optou-se por ‘uma tradusSo estrtamente literal, sem prec- cupagio. com elegincia de estilo, que, ma circunstincia, poderia ser arriscada e peri fristca Tex posto, sua divulgagfo nos par rece oportuna. (Mario Antonio Eufrésio) Friedrich Ratzel I—O SOLO E A SOCIEDADE Como 0 Estado nao € concebivel sem territé- € sei fronteiras, constituiuse bastante rapida- mente uma geografia politica, ¢ ainda que nas cign- cias politicas em geral se tenha perdido de vista com freqiiéncia a importincia do fator espacial, da situago, etc., considerase entretanto como fora de divida que o Estado nao pode existir sem um solo. Abstrai-lo numa teoria do Estado é uma ten tativa v8 que nunca pode ter éxito sendo de modo passageiro. Pelo contrério, tem havido muitas teo- rias da sociedade que permancceram completamente alheia a quaisquer consideracies geogrificas; estas tém mesmo to pouco lugar na sociofogia moderna que € inteiramente excepcional se encontrar uma obra em que elas desempenham algun papel. A maior parte dos socidlogos estuda o homem co- mo se cle se tivesse formado no ar, sem lacos com fa terra. © Grro dessa concepgio salta aos olhos, & verdade, no que concerne as formas inferiores da sociedade, porque sua extrema simplicidade fax ‘com que sejam semethantes s formas mais elemen- tares do Estado. Mas entio, se os tipos mais simples de Estado sfo irrepresentéveis sem um solo que hes pertenca, assim também deve set com os tipos mais simples de sociedade; a conclusao se impée. (©) —Trevvzido de “Le Sol, Ia Societé et état” — LAnnée Sociologique (1898-1899) 36: 1-14, Paris (C*) —"Tradutor: Matio Antonio Enfrésio. Oa utes, ma época da elaboragio deste trabalho, era aluno {89 Depi? de Geogralia da FFLCH da USP, no curso de Pés-Graduaséo a nivel de Mestrado. Trabalho entregue para publicagtio em 18/08/82. 94 Num ¢ noutro caso, a dependéncia em relegio ao solo é am efeito de causas de todo género que ti gam o homem a terra. Sem duivida, o papel do so- To aparece com mais evidéncia na histéria dos Es- tados que na hisiGria das sociedades, e isso seria devido aos espacos mais considerdvets de que o Es tado tem necessidade. As leis da evolugio geogrd- fica sio menos féceis de se perceber no desenvol- vimento da familia ¢ da sociedade que no desenvol- vvimento do Estado; e 0 sao justamente porque aque- las esto mais profundamente cmraizadas 20 solo € mudam menos facilmente do que este. 1 mesmo sum dos fatos mais consideraveis da histéria a fora com a qual a sociedade permanece fixada a0 solo, mesmo quando 0 Estado dele se destacou. Quando © Estado romano morre, © povo romano the sobre- vive sob a forma de grupos sociais de todo tipo ¢ & pelo intermédio desses grupos que se transmitiram & posteridade uma multiplicidade de propriedades que 0 povo havia adquirido no Estado ¢ pelo Estado. Assim, quer seja 0 homem considerado isclada- mente ou em grupo (familia, tribo ou Fstado), por toda parte em que se observar se encontrar al gum pedago de terra que pertence ou A sua pessoa ou ao grupo de gue ele faz parte. No que diz respeito a0 Estado, a geogeafia politica apés fongo tempo se habituou a levar em consideracio a di- mensio do teritério ao lado da cifra da populacao. Mesmo os grupos, como a tribo, a familia, a comu- nna, que no so unidades politieas aut6nomas, 36 mente sio possiveis sobre um solo, ¢ sett desenvol- vimento nfo pode ser compreendido senao com respeito a esse solo; assim como 0 progresso do Es- tado € ininteligivel se nfo estiver relacionado com (© progresso do dominio politico. Em todos esses casos, estamos na presenga de organismos que en- ‘ram em intercfimbio mais ou menos duravel com a terra, no curso do qual se troca entre eles © a terra todo género de ages ¢ de reagSes. E quem venha f@ supor que, num povo em vias de crescimento, a importincia do solo nfo seja to evidente, que observe esse povo no momento da decadéncia ¢ da disolugio! Nao se pode entender nada a respei to do que entio ocorre se nfo for considerado 0 solo. Um povo regride quando perde territério. Ele pode contar com menos cidadios e conservar ainda muito solidamente o territério onde se en contram as fontes de sua vide. Mas se seu territ6- rio se reduz, € de uma maneira geral, © comeyo do fim. rr — TACAO HABITACAO E ALIMEN- Sob variegdes diversas, a relacio da sociedade com o solo permanece sempre condicionada, por uma dupla necessidade: a da habitacio ¢ a da ali- mentacéo. A necessidade que tem por objeto a hhabitagdo & de tal modo simples que dela resultou, entre © homem eo solo, uma relacio que perma neceu quase invatidvel no tempo. As habitagdes moderas so, na maior parte, menos efémeras que as dos poyos primitivos; mas o habitante das gran- des cidades faz para si com podas talhadas um abrigo artificial que nem sempre € tio espagoso quanto as cavernas da idade da pedra; da mesma forma, muitas das aldeias negras e polinésias sio compostas de chogas mais confortéveis que muitas aldeias européias. Em nossas capitals, os represen tantes da mais alta civilizago que jé existin dis- poem, para sties habitagées, de menos lugar que 05 habitantes miseraveis de um kraal hotentote. As habitagdes entre as quais ha mais diferenca sio, de um lado, aquelas dos pastores némades, com a extrema mobilidade necessdria as migragdes con- tinuas da vide pastoril, e, de outro, os apartamen- tos emontoados nos enormes ediffcios de nossas grandes cidades. E todavia, os préprios némades tstio ligados 20 solo, ainda que os Iagos que os ligam a ele sejam mais fracos que aqueles da so- ciedade de vida sedentétia. Eles ttm necessidade de mais espago para se mover, mas yoltam perié camente a ocupar os mesmos locuis. Portante, nto existe apoio para se opor os némades a todos os outros povos sedentérios tomados em bloco, pela finica rezfo de que apés uma estada de alguns me ses mum local, o némade levanta sua tenda ¢ 2 trans: porta, no dorso de seu camelo, para algum ou- tro lugar, de pastagem. Essa diferenca nada tem de essencials nfio tem, mesmo, a importincia da- quela resultante de sua grande mobilidade, de sua necessidade de espaco, consequéncia da vida pax toril Representou-se igualmente os némades como completamente desprovidos de qualquer organiza fo politica no sentido da antiga maxima Sacae nomades sunt, civitatem non habent. (1) Indagou- -s¢ se eles valorizam 0 solo que ocupam e, conse- quentemente, se eles o delimitam. Mas hoje, tal fato é indubitivel: 0 territério da Mongélia é tao dclimitado e dividido quanto o da Aribia. Mon- tanhas, riquezas, cursos d’égua e mesmo montes de pedra artificialmente edificados represeniam as fronteiras das tribos, e até mesmo as menores di- visGes apresentam limites. E quanto & capacidade desses mesmos povos em criar Estados, pode-st ver quanty ela & yrunde pela histria das sociedades sedentérias que se encontram rodeadas por tribos nOmades; quando os Estados das primeiras decacm, so justamente os némades vizinhos que introdu- zem uma nova vida da qual resulta novos Estar dos. De resto, nao é entre os pastores ndmades que fa ligacio com o solo esti em seu minimo; com efeito eles retormam sempre 8s mesmas pastagens: Ela € muito mais fraca entre os agricultores da Africa tropical ¢ das Américas que, a cada dois anos aproximadamente, deixam seus campos de mi- Tho ou mandioca para a eles nunca maais retornar. E ela & menor ainda entre aqueles que, por medo dos povos que ameagam sua existéncia, nfo ousam se ligar muito fortementc & terra. Eniretanto, uma lassificacso superficial nfo inclui tais sociedades entre 0s némades. Se se classificar os povos segun- do a forga com que aderem ao solo, € preciso colo- car decididamente no nivel mais baixo os pequenos povos cagadores da Africa central e da Asia do sudoeste, assim como aqueles grupos que se encon- 95 tram errantes em toda espécie de sociedade, sem que um solo determinado Ihes seja destinedo em particular (por exemplo, os boémios da Europa, 0s Fetths do Jopio). Os Australianos, os habitantes da Terra do Fogo, os esqiiimés que para suas caga- das, para suas coletas de rafzes, procuram sempre certas localidades 0 que delimitam seus territ6rios de caga, estio a um nivel mais elevado. Mais aci- ‘ma, se encontram os agricultores némades dos pai ses tropicsis; depois, os povos pastores que, nas diferentes regiées da Asia, hé séculos se mantém sobre 0 mesmo solo. E é somente entdo que vém 0s agricultores sedentétios, estabelecidos em aldcias fixas, © os povos civilizados, igualmente sedent ros, dos quais a cidade € como que o simbolo. ‘A alimentagio € a necessidade mais preiente para os particulares como para a coletividade; tatn- ‘bém as necessidades que ela impos aos individuos como aos grupos sobrepuja todas as outres. Quer © homem busque seus alimentos através da caga, da pesca, dos frutos da terra, € sempre da natureza da alimentagdo que dependem o lugar da habitagio © @ extensio do terreno que produz os alimentos. (© tempo de permanéncia dos estabelerimentos em um mesmo local varia igualmente segundo as fon- tes da alimentagéo fluam de uma maneira durivel ou se esgotcm ao fim de certo tempo. A caga em- prega os homens de preferéncia, enquanto que coleta de fruto € muito mais ocupagio das mu Iheres e criangas. Quanto mais a enga © a pesca sio produtivas, mais hé mulheres ¢ criangas dispontveis para o trabalho doméstico; e tanto mais, por conse- quéncia, a casa pode ser solidamenie construida & convenientemente disposta. Enfim, quanto mais a agricultura esti em condigdes de assegurar 8 noces- sidade de se alimentar uma satisfaedo certa, tanto mais também se torna possivel s¢ fixar sobre um. habitat Iimitado. Ha entéo uma multiplicidade de fendmenos sociais que ifm sua causa na necessida- de, primitiva e premente, da alimentacdo. E para (1) — Fm Iatim, no or-: “Os, sécios so ndmades, f¢ mio tém cidades (ao conhccem vida social urbane or- sanizada)". (N. go T.)

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