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O administrador-líder
IMAGEM: KIPPER
O texto de Henry Mintzberg, publicado fugir do universo da prática dentro de confinamento de parte da produção
há dois anos na Harvard Business Review uma saudável tradição do pensamen- científica a cubículos ou guetos.
(ver Quadro pág. 60), é, como tudo o to administrativista. A partir daqui,
que ele escreve, provocativo. Mintz- recusa-se a postura de que a reflexão Administração sem lideran-
berg mantém um perfil acadêmico, e a crítica implicam distanciamento e, ça. O tema da liderança surge nas
mas nunca se distancia da prática. por vezes, até renúncia da prática da ciências sociais em função de eventos
Como professor e acadêmico, sabe que administração. A fatalidade deste equí- estritamente públicos e políticos.
administração (management) não pode voco pode ser facilmente observada no Em particular, com o aparecimento,
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a ter suas atividades substituídas por concepção clássica de liderança como se imagina que procedimentos analíti-
tecnologias de informação, com a necessariamente carismática. cos, administrativamente controlados,
conseqüente redução de níveis hie- podem levar à formulação, revisão e
rárquicos e cargos. Administrar com liderança. A mudanças em estratégias.
A segunda leitura que podemos separação entre administrar e liderar No entanto, por que o admi-
fazer é de que tal movimento reflete a feita hoje mostra bem uma separação nistrar, como domínio inodoro e
tendência comum de mitificar o exer- entre razão e emoções: o administrar é desapaixonado, passou, a partir do
cício da administração. Na verdade, associado a prever, criar um universo final da década de 1980, a ser in-
muitos administradores de sucesso confiável, no qual o planejamento e suficiente para explicar a excelência
embarcam em coisas que, no passado, sua execução eliminem as surpresas. empresarial, e a liderança teve que
teriam sido definidas como simples Embora se fale muito de executivos entrar em cena? Não há como deixar
“culto da personalidade”. Pessoas como pessoas corajosas, destemidas e de reconhecer que houve mudanças e
como Jack Welch, Percy Barnevik, Bill audaciosas, a maioria das providências que o ambiente de negócios passou a
Gates e muitas outras se prestaram a adotadas no mundo da administração ser mais surpreendente. Não se trata de
ser sujeitos de uma literatura de cor- são conservadoras e manifestam uma submissão aos refrões de globalização,
del administrativo na qual são apre- aversão ao risco. aumento da competitividade etc. Mas
sentados como seres sobrenaturais: As técnicas desenvolvidas pela o desenvolvimento tecnológico tem
verdadeiros iluminados que pairam administração buscam reduzir riscos, conseqüências imprevisíveis. Os proce-
muito acima do universo de todos evitar o imprevisível e gerar rotinas. dimentos puramente administrativos,
nós e, naturalmente, dos seus subor- Isto vale desde a contabilidade de como aqui definidos, passaram a ser
dinados. Subordinados, aliás, que, em custos, inventada com propósitos insuficientes. Demandava-se agora das
deslumbramento, aguardam luzes, exclusivamente administrativos, até empresas mais capacidade de inovar,
inspirações, visões e missões a cum- sistemas diversos de controladoria, surpreender e de se reinventarem.
prir originadas da genialidade desses inclusive o BSC – Balanced Score Card. Da mesma forma, também se
luminares empresariais e administra- O planejamento estratégico se encaixa passou a demandar do administra-
tivos. Recolocava-se assim em parte a perfeitamente nesta categoria, na qual dor capacidade empreendedora. Se
consideramos o executivo clássico
parecido com um eficiente operador
de uma organização de tipo burocrá-
tico, a situação hoje é bem distinta: é
necessário superar o administrador
sobrepondo-lhe o líder. Empresas
não podem sobreviver e ser excelentes
apenas com administradores. São ne-
cessários também líderes que possuam
outro conjunto de atributos.
Os atributos da liderança são
então apresentados como suprindo
as lacunas do administrar. O liderar
implica inspirar, motivar, criar um
universo de possibilidades e de pers-
pectivas, mas nunca um universo de
certezas. Liderar deve conduzir à cria-
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Sabemos o que é liderança. Ela estimula o trabalho em equipe, propõe uma visão de longo prazo sem o imediatismo
asfixiante, gera confiança e muito mais. Agora vamos a algumas questões.
• Se liderança procura estimular o trabalho em equipe, como as bonificações em ações se distribuem na sua empresa?
• Se liderança quer dizer adotar uma visão de longo prazo, qual o percentual destas ações que podem ser vendidas e transformadas em dinheiro
no curto prazo?
• Se liderança é para gerar confiança e se as pessoas são de fato os “ativos mais preciosos”, quantos foram demitidos nos últimos anos? Qual o
nível de confiança gerado por estas demissões nos que permaneceram?
Responder a estas perguntas em muitas empresas acaba por expor o demais gestores. Qualquer um que tenha idéias e iniciativas pode ser um
culto da liderança como fator que está levando ao declínio organizacional. líder, como estes sujeitos de que falamos no caso da IBM.
Porque muitas dessas empresas entendem a liderança como fenômeno Em seguida, vamos envolver os liderados na escolha do líder. Os verda-
de um líder solitário e isolado que deve ser capaz de levar a empresa deiros líderes obtêm a liderança porque são entusiasticamente apoiados
adiante pela formulação de estratégias, decidindo sobre coisas espinhosas pelos liderados. E, apesar disto, quantas empresas concedem às pessoas
e difíceis, articulando grandes fusões enquanto providencia downsizings à voz para que escolham aqueles que vão liderá-los? Eu conheço apenas
direita e à esquerda. Freqüentemente, estas pessoas entram em empresas, uma e que desfruta de enorme sucesso: a McKinsey. Naquela empresa de
onde não possuem raízes, para salvá-las. Com igual freqüência obtêm consultoria, os sócios seniores (senior partners) elegem o diretor-gerente,
sucesso, por um ou dois anos. que é o principal executivo da empresa, para um termo de três anos
Pressupõe-se que toda empresa com problemas necessita de nova lide- por voto secreto. Será que a McKinsey já recomendou tal procedimento
rança e mais liderança. Eu, inversamente, acredito que muitas tiveram a seus clientes?
liderança demais. Elas precisam de menos liderança, talvez um velho Finalmente, reconheçamos a importância do comprometimento. Os
tipo de liderança: uma dose exata de liderança. líderes conseguem fazer com que os outros se comprometam porque
Li há alguns anos na revista Fortune que, em quatro anos, Lou Gerstner se comprometem primeiro. Eles se comprometem com o ramo, com a
adicionou mais de 40 bilhões de dólares em valor para os acionistas empresa e com seu trabalho de maneira discreta e com grande serie-
da IBM. Fez tudo isto sozinho? Quando leio nas páginas desta revista o dade. Em vez de partirem para buscar melhores oportunidades noutras
artigo de Hamel (Waking Up IBM), na edição de julho-agosto de 2000, empresas, permanecem para viver as conseqüências de suas ações.
constato que, pelo menos para a entrada da empresa no e-business, a É desta maneira que conseguem o respeito dos liderados e os fazem
história foi bem diferente. Um programador tinha uma idéia e encontrou também comprometer-se.
um gerente de cabeça aberta que não olhava apenas o orçamento. Em Esses líderes mais cuidam do que curam, comunicam e conectam mais
conjunto, montaram uma equipe que acabou por colocar a IBM no do que controlam e suas ações são mais eloqüentes que suas decisões.
mundo do e-business. Qual o papel de Gerstner nesta história? Quando Basta que se atente para seus salários e bonificações e para as pessoas de
tomou conhecimento desta iniciativa ele a encorajou. Simplesmente talento que retêm nos quadros da empresa. Esses líderes não desfrutam
a encorajou. Nada de estabelecer direções. Ele apoiou a direção que dos privilégios de estar na cúpula, mas permeiam todos os níveis da
havia sido estabelecida por outros. Ele forneceu ao grupo a dose exata empresa. Embora se fale muito sobre trabalhadores do conhecimento
de liderança. Nem mais, nem menos. e sobre redes, continuamos fascinados com a administração e os admi-
Como acertar a dose exata de liderança? Para começar, acabemos com nistradores de alta cúpula. Um administrador que se coloca no topo de
a separação disfuncional entre liderança e gestão.Todos sabem que ad- uma rede se coloca fora dela.
ministradores que não lideram são chatos, tediosos e não inspiram nada “Infeliz a terra que não tem heróis”, afirma um personagem numa peça
e ninguém. E os líderes que não administram são distantes e desligados de Bertolt Brecht. “Não”, responde outra personagem. “Infeliz a terra
das coisas que importam na empresa. Ao invés de separar a liderança que necessita de heróis”. É hora de unificar novamente administração e
da administração é necessário difundi-la pela empresa entre todos os liderança e trazê-los de volta à terra.
* Texto originalmente publicado na Harvard Business Review, sob o título “Enough Leadership”, v. 82, n. 11, p. 22, nov. 2004. Reproduzido com autorização.
© New York Times Syndicate