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ESPECIAL LIDERANÇA

O administrador-líder

IMAGEM: KIPPER

Um olhar para o passado mostra que o fenômeno da


liderança entrou na ordem do dia da administração
apenas no final do século passado. Por muito tempo,
liderança era algo apenas observável na esfera públi-
ca, com seu réquiem de personalidades carismáticas
e influentes. No domínio das empresas, a figura cor-
respondente era o administrador sério e racional. Com
o tempo, administrador e líder se separaram. Mas na
atualidade, ambos estão sendo novamente integrados
em prol do desempenho.

por Carlos Osmar Bertero FGV-EAESP

O texto de Henry Mintzberg, publicado fugir do universo da prática dentro de confinamento de parte da produção
há dois anos na Harvard Business Review uma saudável tradição do pensamen- científica a cubículos ou guetos.
(ver Quadro pág. 60), é, como tudo o to administrativista. A partir daqui,
que ele escreve, provocativo. Mintz- recusa-se a postura de que a reflexão Administração sem lideran-
berg mantém um perfil acadêmico, e a crítica implicam distanciamento e, ça. O tema da liderança surge nas
mas nunca se distancia da prática. por vezes, até renúncia da prática da ciências sociais em função de eventos
Como professor e acadêmico, sabe que administração. A fatalidade deste equí- estritamente públicos e políticos.
administração (management) não pode voco pode ser facilmente observada no Em particular, com o aparecimento,

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durante boa parte do século passado,
de regimes políticos autoritários com Embora se fale muito de executivos como pessoas corajosas,
líderes fortes e carismáticos à frente.
O século XX está repleto deles. Basta destemidas e audaciosas, a maioria das providências adotadas
lembrar Hitler, Stalin, Mao Tse Tung, no mundo da administração são conservadoras e manifestam
Vladimir Lenin, Francisco Franco,
Juan Perón, Getúlio Vargas e Antonio
uma aversão ao risco.
Salazar.
Foi a partir de líderes carismáticos
que surgiu a primeira teoria sobre li- líderes, e a segunda metade do século Liderança versus administra-
derança, a dos traços. De acordo com XX marca a extinção gradual de todas ção. A questão da liderança começa
ela, líderes seriam pessoas dotadas de estas lideranças. Algumas de maneira a reaparecer no universo da adminis-
personalidades excepcionais, que os tão violenta como haviam sido im- tração de maneira explícita a partir da
colocavam fora da média, e que o fe- plantadas. Outras pelo declínio lento década de 1980. Mas o que restou da
nômeno da liderança só se explicava a e pelo mergulho na irrelevância. abordagem tradicional, ou seja, os res-
partir das qualidades e características Enquanto isso, nas sedes das quícios da teoria dos traços e os tipos
do líder. O apelo do líder aos liderados empresas cultivava-se o aparecimen- de liderança (democrática, autocrática
consistiria, essencialmente, no estabe- to do administrador profissional ou e laissez-faire) foram colocados num
lecimento de um vínculo de natureza executivo. Tratava-se do triunfo do linguajar administrativo. Foi quando
emocional em que a confiança, a universo da racionalidade contra o John Kotter, professor da Harvard Bu-
motivação e o entusiasmo tomariam carisma emocional dos “líderes”. O siness School, estabeleceu a dicotomia
conta dos liderados, propiciando a mundo da administração aparecia liderança e administração (leadership
mobilização de vontades, inteligências como sendo racional, em que pessoas and management), a qual deu origem
e talentos que levariam à consecução ascendiam a posições administrativas a um movimento que chega a nossos
de grandes objetivos. a partir de competências, dentro dias de que empresas não precisam
Mas o assunto permaneceu, em de um jogo meritocrático, e os que apenas de administradores, mas de
larga medida, confinado ao mundo ocupavam posições de subordinação líderes. Somente estes poderiam elevar
das ciências sociais, e o tema era versa- igualmente aceitavam e praticavam e manter empresas em nível de exce-
do especificamente na área de ciência o mesmo jogo. A adesão se dava por lência. Administradores não bastam.
ou sociologia política. No mundo da conhecimento de objetivos racio- Muitas leituras podem ser feitas deste
administração o tema não encontrou nalmente estabelecidos, sendo essa movimento.
grande ressonância até o final do sé- a razão de serem partilhados. Nesse Primeira, de que ele contém uma
culo passado. A razão era simples: o contexto, a liderança, entendida como ênfase “anti-administradores”. Na
mundo da liderança não era indicativo adesão carismática ao líder e apoiada verdade, as mudanças que ocorreram
de que boas coisas se poderiam obter em emoções, migrara para outro uni- e continuam a ocorrer nas empresas
com seu uso. A maioria dos líderes verso, desprovido de razão. A arena implicam reduzir substancialmen-
políticos do século XX havia gerado política foi um espaço escolhido. No te o número e a importância dos
tirania, opressão e monstruosidades universo do management passou a administradores. Os movimentos
que atingiram e eliminaram milhões imperar a racionalidade. Empresas de reorganização que levam a uma
de pessoas. A vitória aliada na Segun- não precisavam ser lideradas, mas redução de custos têm como foco a eli-
da Guerra Mundial gerou um compro- racionalmente administradas por minação de posições administrativas,
misso de que tais regimes deveriam profissionais (managers) competentes especialmente as de administração
ser eliminados juntamente com seus e hábeis no uso da razão. intermediária. Estes gestores passam

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a ter suas atividades substituídas por concepção clássica de liderança como se imagina que procedimentos analíti-
tecnologias de informação, com a necessariamente carismática. cos, administrativamente controlados,
conseqüente redução de níveis hie- podem levar à formulação, revisão e
rárquicos e cargos. Administrar com liderança. A mudanças em estratégias.
A segunda leitura que podemos separação entre administrar e liderar No entanto, por que o admi-
fazer é de que tal movimento reflete a feita hoje mostra bem uma separação nistrar, como domínio inodoro e
tendência comum de mitificar o exer- entre razão e emoções: o administrar é desapaixonado, passou, a partir do
cício da administração. Na verdade, associado a prever, criar um universo final da década de 1980, a ser in-
muitos administradores de sucesso confiável, no qual o planejamento e suficiente para explicar a excelência
embarcam em coisas que, no passado, sua execução eliminem as surpresas. empresarial, e a liderança teve que
teriam sido definidas como simples Embora se fale muito de executivos entrar em cena? Não há como deixar
“culto da personalidade”. Pessoas como pessoas corajosas, destemidas e de reconhecer que houve mudanças e
como Jack Welch, Percy Barnevik, Bill audaciosas, a maioria das providências que o ambiente de negócios passou a
Gates e muitas outras se prestaram a adotadas no mundo da administração ser mais surpreendente. Não se trata de
ser sujeitos de uma literatura de cor- são conservadoras e manifestam uma submissão aos refrões de globalização,
del administrativo na qual são apre- aversão ao risco. aumento da competitividade etc. Mas
sentados como seres sobrenaturais: As técnicas desenvolvidas pela o desenvolvimento tecnológico tem
verdadeiros iluminados que pairam administração buscam reduzir riscos, conseqüências imprevisíveis. Os proce-
muito acima do universo de todos evitar o imprevisível e gerar rotinas. dimentos puramente administrativos,
nós e, naturalmente, dos seus subor- Isto vale desde a contabilidade de como aqui definidos, passaram a ser
dinados. Subordinados, aliás, que, em custos, inventada com propósitos insuficientes. Demandava-se agora das
deslumbramento, aguardam luzes, exclusivamente administrativos, até empresas mais capacidade de inovar,
inspirações, visões e missões a cum- sistemas diversos de controladoria, surpreender e de se reinventarem.
prir originadas da genialidade desses inclusive o BSC – Balanced Score Card. Da mesma forma, também se
luminares empresariais e administra- O planejamento estratégico se encaixa passou a demandar do administra-
tivos. Recolocava-se assim em parte a perfeitamente nesta categoria, na qual dor capacidade empreendedora. Se
consideramos o executivo clássico
parecido com um eficiente operador
de uma organização de tipo burocrá-
tico, a situação hoje é bem distinta: é
necessário superar o administrador
sobrepondo-lhe o líder. Empresas
não podem sobreviver e ser excelentes
apenas com administradores. São ne-
cessários também líderes que possuam
outro conjunto de atributos.
Os atributos da liderança são
então apresentados como suprindo
as lacunas do administrar. O liderar
implica inspirar, motivar, criar um
universo de possibilidades e de pers-
pectivas, mas nunca um universo de
certezas. Liderar deve conduzir à cria-

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ção de climas organizacionais adequa-
dos ao desenvolvimento de pessoas,
O administrador deve liderar e o líder deve administrar.
equipes e à criatividade e realização
pessoais. Não produz inevitavelmente É problemático termos numa organização o liderar e o
resultados, mas estes nunca podem administrar colocados em pessoas separadas.
acontecer sem a centelha da liderança.
Em sintonia com os novos tempos e
deixando de lado a antiga teoria dos
traços, se reconhece que o líder não e indivíduos submissos também por certeza as coisas se facilitam e ficam
existe sem os liderados. Ele não está natureza? Não chegaríamos a cometer melhores. Igualmente, lamentamos a
necessariamente acima e fora do mun- tal impropriedade ingênua. falta de liderança, tanto em nossa em-
do dos liderados. Tem que interagir Mas não podemos deixar de reco- presa, universidade como no cenário
com seus liderados, formando com nhecer que temos habilidades diversas mais amplo do Estado e da nação.
eles uma equipe. e que a nossa própria individualidade Concluímos por fim que liderar
assegura que sejamos, por natureza, e administrar podem ser separáveis
A liderança necessária. Portan- mais bem dotados nalgumas coisas conceitualmente, mas não devem ser
to, não acreditamos que a liderança e menos noutras. Não se nasce pia- separados na prática e na realidade.
seja dispensável. Ela é necessária, nista, cirurgião ou matemático. Mas O administrador deve liderar e o lí-
mas tem que ser na dose certa, sem num grupo de pessoas que resolvem der deve administrar. É problemático
os exageros que querem fazer dela o apreender qualquer uma destas coi- termos numa organização o liderar e
único caminho para a excelência em- sas haverá sempre os que se tornem o administrar colocados em pessoas
presarial (ver Quadro pág. 60). Talvez exímios e fascinantes concertistas, separadas. É fundamental que se
porque as razões para a sua existência habilíssimos cirurgiões e destacados abandone o mito do líder que conti-
se radiquem na própria natureza hu- matemáticos. nua a ser cultivado como resquício da
mana. Se olharmos os demais animais O mesmo talvez se possa afirmar antiga teoria dos traços de liderança.
da escala biológica, lá se encontrarão da liderança. Todos podem liderar, Mas administradores devem ser en-
dominados e dominadores, animais mas há aqueles que o fazem com mais corajados a entender e a praticar a
alfa, cães que comandam matilhas sucesso do que outros. As razões para liderança. O reconhecimento de que
e lobas que gerenciam competen- isto são várias e não caberia adentrar há indivíduos mais propensos e mais
temente suas alcatéias. A liderança nelas aqui. aptos a liderar não implica que a li-
não é um fenômeno exclusivamente Entre nós, haverá os que desen- derança não possa ser desenvolvida.
humano, podendo ser encontrada volverão com líderes em contextos Administradores e líderes são ambos
entre outros animais. organizacionais relações de maior ou igualmente necessários e imprescin-
Não há ultraje nem desrespeito em menor dependência. E a razão dessa díveis para que se atinja a excelência.
buscar noutros animais pistas para que dependência pode ser encontrada em De preferência que estejam unificados
se entenda um determinado animal, nossa própria fragilidade congênita, nas mesmas pessoas.
no caso o homo sapiens. Os desenvol- como o demonstrou Freud há mais
vimentos da ciência têm mostrado que de um século: precisamos de outras
talvez nos expliquemos melhor como pessoas em quem nos basear. Assim, Carlos Osmar Bertero
animais sofisticados do que como ninguém lamentaria termos ao nosso Doutor em Administração pela Cornell
University
anjos decaídos. Estaríamos propondo lado, à nossa frente ou acima de nós,
Prof. do Departamento de Administração
que há na espécie humana indivíduos dependendo do arranjo, um líder ou Geral e Recursos Humanos da FGV-EAESP
superiores e inferiores, líderes naturais uma líder bem-dotados. Com toda E-mail: cbertero@fgvsp.br

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A dose exata de liderança*


por Henry Mintzberg

Sabemos o que é liderança. Ela estimula o trabalho em equipe, propõe uma visão de longo prazo sem o imediatismo
asfixiante, gera confiança e muito mais. Agora vamos a algumas questões.

• Se liderança procura estimular o trabalho em equipe, como as bonificações em ações se distribuem na sua empresa?
• Se liderança quer dizer adotar uma visão de longo prazo, qual o percentual destas ações que podem ser vendidas e transformadas em dinheiro
no curto prazo?
• Se liderança é para gerar confiança e se as pessoas são de fato os “ativos mais preciosos”, quantos foram demitidos nos últimos anos? Qual o
nível de confiança gerado por estas demissões nos que permaneceram?

Responder a estas perguntas em muitas empresas acaba por expor o demais gestores. Qualquer um que tenha idéias e iniciativas pode ser um
culto da liderança como fator que está levando ao declínio organizacional. líder, como estes sujeitos de que falamos no caso da IBM.
Porque muitas dessas empresas entendem a liderança como fenômeno Em seguida, vamos envolver os liderados na escolha do líder. Os verda-
de um líder solitário e isolado que deve ser capaz de levar a empresa deiros líderes obtêm a liderança porque são entusiasticamente apoiados
adiante pela formulação de estratégias, decidindo sobre coisas espinhosas pelos liderados. E, apesar disto, quantas empresas concedem às pessoas
e difíceis, articulando grandes fusões enquanto providencia downsizings à voz para que escolham aqueles que vão liderá-los? Eu conheço apenas
direita e à esquerda. Freqüentemente, estas pessoas entram em empresas, uma e que desfruta de enorme sucesso: a McKinsey. Naquela empresa de
onde não possuem raízes, para salvá-las. Com igual freqüência obtêm consultoria, os sócios seniores (senior partners) elegem o diretor-gerente,
sucesso, por um ou dois anos. que é o principal executivo da empresa, para um termo de três anos
Pressupõe-se que toda empresa com problemas necessita de nova lide- por voto secreto. Será que a McKinsey já recomendou tal procedimento
rança e mais liderança. Eu, inversamente, acredito que muitas tiveram a seus clientes?
liderança demais. Elas precisam de menos liderança, talvez um velho Finalmente, reconheçamos a importância do comprometimento. Os
tipo de liderança: uma dose exata de liderança. líderes conseguem fazer com que os outros se comprometam porque
Li há alguns anos na revista Fortune que, em quatro anos, Lou Gerstner se comprometem primeiro. Eles se comprometem com o ramo, com a
adicionou mais de 40 bilhões de dólares em valor para os acionistas empresa e com seu trabalho de maneira discreta e com grande serie-
da IBM. Fez tudo isto sozinho? Quando leio nas páginas desta revista o dade. Em vez de partirem para buscar melhores oportunidades noutras
artigo de Hamel (Waking Up IBM), na edição de julho-agosto de 2000, empresas, permanecem para viver as conseqüências de suas ações.
constato que, pelo menos para a entrada da empresa no e-business, a É desta maneira que conseguem o respeito dos liderados e os fazem
história foi bem diferente. Um programador tinha uma idéia e encontrou também comprometer-se.
um gerente de cabeça aberta que não olhava apenas o orçamento. Em Esses líderes mais cuidam do que curam, comunicam e conectam mais
conjunto, montaram uma equipe que acabou por colocar a IBM no do que controlam e suas ações são mais eloqüentes que suas decisões.
mundo do e-business. Qual o papel de Gerstner nesta história? Quando Basta que se atente para seus salários e bonificações e para as pessoas de
tomou conhecimento desta iniciativa ele a encorajou. Simplesmente talento que retêm nos quadros da empresa. Esses líderes não desfrutam
a encorajou. Nada de estabelecer direções. Ele apoiou a direção que dos privilégios de estar na cúpula, mas permeiam todos os níveis da
havia sido estabelecida por outros. Ele forneceu ao grupo a dose exata empresa. Embora se fale muito sobre trabalhadores do conhecimento
de liderança. Nem mais, nem menos. e sobre redes, continuamos fascinados com a administração e os admi-
Como acertar a dose exata de liderança? Para começar, acabemos com nistradores de alta cúpula. Um administrador que se coloca no topo de
a separação disfuncional entre liderança e gestão.Todos sabem que ad- uma rede se coloca fora dela.
ministradores que não lideram são chatos, tediosos e não inspiram nada “Infeliz a terra que não tem heróis”, afirma um personagem numa peça
e ninguém. E os líderes que não administram são distantes e desligados de Bertolt Brecht. “Não”, responde outra personagem. “Infeliz a terra
das coisas que importam na empresa. Ao invés de separar a liderança que necessita de heróis”. É hora de unificar novamente administração e
da administração é necessário difundi-la pela empresa entre todos os liderança e trazê-los de volta à terra.

* Texto originalmente publicado na Harvard Business Review, sob o título “Enough Leadership”, v. 82, n. 11, p. 22, nov. 2004. Reproduzido com autorização.
© New York Times Syndicate

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