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“O Livro” 1— H.P. Lovecraft

Fonte: “A Tumba... e Outras Histórias”. Ed. Francisco Alves.


*Notas de transcrição não constam nos originais da editora.

M INHAS MEMÓRIAS ESTÃO muito confusas. Há até mesmo muita dúvida de onde elas
começam; pois por vezes sinto imensuráveis vistas de anos se estendendo atrás de mim,
enquanto que em outros momentos parece que o momento presente é um ponto isolado num infinito
cinzento e sem forma. Não estou nem certo de como estou transmitindo esta mensagem. Enquanto
sei que estou falando, tenho uma vaga impressão de que alguma estranha e talvez terrível mediação
venha a ser necessária para suportar o que digo aos pontos onde desejo que ela seja ouvida. Minha
identidade, também, encontra-se incrivelmente toldada. Parece que sofri um grande choque: talvez
devido a algum resultado monstruoso de meus ciclos de única e incrível experiência.
Todos esses ciclos de experiência, naturalmente, emanam daquele livro dominado pelas
traças. Lembro-me de quando o encontrei — num lugar mal iluminado próximo ao rio negro e
oleoso onde as brumas sempre habitam. Aquele lugar era muito antigo, e as prateleiras cheias de
volumes apodrecidos até o teto percorriam infinitamente quartos e alcovas internas, sem janelas.
Havia, além disso, grandes pilhas informes de livros no chão e em caixas de madeira, e foi numa
dessas pilhas que encontrei a coisa. Nunca lhe soube o título, pois as páginas iniciais estavam
faltando; mas ele caiu aberto na altura do fim, e me deu um vislumbre de alguma coisa que deixou
meus sentidos em polvorosa.
Havia uma formula — uma espécie de lista de coisas para fazer e dizer — que reconheci
como sendo alguma coisa negra e proibida; alguma coisa que eu havia lido antes, em furtivos
parágrafos de nojo e fascinação misturados, escritos pela pena desses antigos e estranhos guardiões
dos segredos do universo cujos textos decadentes eu adorava assimilar. Era uma chave — um guia
— a certos portais e transições com a quais místicos sonham e sussurram desde a juventude da raça,
e que levam a liberdades e descobertas além das três dimensões e dos reinos da vida e da matéria
que conhecemos. Por séculos não havia qualquer homem recombinando sua substância vital ou
sabido onde encontrá-la, mas este livro era realmente muito antigo. Não era trabalho impresso, mas
da mão de algum monge semi-louco, havia traçado aquela ominosas frases latinas em letras unciais
de assustadora antigüidade.
Lembro-me de como o velho olhou-me de soslaio e riu à socapa, e fez um curioso sinal com
a mão quando o levei embora. Recusou-se aceitar pagamento por ele, e só muito tempo depois eu
soube por quê. Ao correr para casa por aquelas estreitas, tortuosas, brumosas ruas e beira-mar tive
uma aterrorizante impressão de ser furtivamente seguido por pés suavemente calçados. As
balouçantes casas centenárias em ambos os lados pareciam vivas com um frescor e uma
malignidade mórbida — como se algum canal maligno até então fechado tivesse abruptamente sido
aberto. Senti que aquelas paredes e frontões ressaltados de tijolos orvalhados e caimento cheio de
fungos e madeira — com janelas de grades cruzadas que lembravam olhos e me espionavam
sorrateiras — mal poderiam desistir de avançar e me esmagar... mas mesmo assim eu só havia lido
o menor fragmento daquela runa blasfematória antes de fechar o livro e leva-lo comigo.
Lembro-me de como finalmente li o livro — com o rosto pálido, e trancado no quarto do
sótão que de há muito eu devotava e estranhas buscas. A grande casa estava muito silenciosa, pois
eu não me levantara senão depois da meia-noite. Acho que eu tinha uma família então — embora os
detalhes sejam muito incertos — eu sei que havia muitos serviçais. Mas que ano era, não sei dizer;
pois desde então tenho conhecido tantas eras e dimensões, e todas as minhas noções de tempo se

1 ∗
QUATRO FRAGMENTOS (Azathot, The Descendent, The Book, The Thing in the Moonlight): estes fragmentos
descobertos entre os papéis de Lovecraft são presumivelmente suas tentativas de se estabelecer em formas
rudimentares, preparando-se para expansão em histórias mais longas, alguns de seus sonhos. Nenhum deles jamais foi
aumentado. Chaves para as fontes de sonhos destes fragmentos podem ser encontradas em cartas escritas por Lovecraft.

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dissolveram e se remoldaram. Era à luz de velas que eu lia — recordo-me do incessante pingar da
cera — e carrilhões que soavam de vez em quando, de distantes campanários. Parece que eu
acompanhava o soar daqueles carrilhões com peculiar atenção, como se eu temesse ouvir alguma
coisa muito remota, um nota intrusa entre as demais.
Então vieram os primeiros ruídos na janela do dormitório, que ficava muito acima dos
demais telhados da cidade. Veio quando eu murmurava em voz alta o nono verso daquele tratado
primário, e percebi, entre meus tremores, o que aquilo queria dizer. Pois aquele que passa os portais
sempre vence uma sombra, e nunca mais pode estar só. Eu havia evocado — e o livro era realmente
tudo o que eu suspeitara. Aquela noite eu atravessei o portal para um vórtice de tempo e visão
distorcidos, e quando a manhã me encontrou no quarto do sótão eu vi nas paredes, e nas prateleiras
e nas gavetas o que nunca vira antes.
Nem nunca mais pude ver o mundo como o conhecera. Misturados ao cenário presente havia
sempre um pouco do passado e um pouco do futuro, e cada objeto antes familiar agora pairava
alienígena na nova perspectiva trazida pela minha visão ampliada. Daí em diante caminhei num
sonho fantástico de formas desconhecidas e semiconhecidas; e a cada novo portal atravessado,
menos eu podia reconhecer as coisas da estreita esfera a qual eu portanto tempo fora ligado. O que
eu via ao meu redor, ninguém mais via; e comecei a ficar duplamente silencioso e recolhido para
não enlouquecer. Os cães tinham medo de mim, pois eles sentiam a sombra exterior que jamais me
abandonava. Mas eu ainda lia mais — às escondidas, livros e rolos esquecidos aos quais minha
nova visão me levava — e avançava por novos portais do espaço, seres e padrões de vida através do
núcleo do Cosmos desconhecido.
Lembro-me da noite em que fiz os cinco círculos concêntricos de fogo no chão, e postei-me
de pé no mais interior, entoando a monstruosa litania que o mensageiro do Tártaro havia trazido2.
As paredes se derreteram, e fui varrido por um vento negro através de abismos de um cinza sem fim
com os pináculos agudos de desconhecidas montanhas a quilômetros abaixo de mim. Depois de
algum tempo houve uma profunda escuridão, e então a luz de miríades de estrelas formando
estranhas constelações alienígenas. Finalmente vi uma planície verdejante bem abaixo de mim, e
nela discerni as torres distorcidas de uma cidade construída em nenhum estilo que eu jamais tenha
ouvido falar ou lido ou sonhado a respeito. Ao flutuar próximo a essa cidade, vi um grande edifício
quadrado de pedra num espaço aberto, e senti um medo odioso tomar conta de mim. Gritei e lutei, e
depois de um branco eu estava novamente em meu sótão, deitado sobre os cinco círculos
fosforescentes no chão. No vagar daquela noite não havia mais estranhezas do que em muitas noites
de vagares anteriores; mas havia mais terror porque eu sabia estar próximo daqueles golfos e
mundos exteriores, mais próximo do que jamais estive antes. Portanto, portei-me com mais cautela
com meus encantamentos, pois não tinha desejo de ser cortado de meu corpo e da Terra para
abismos desconhecidos dos quais eu poderia jamais retornar...
(circa 1934)

2
Tártaro, na mitologia grega, a região mais baixa dos infernos. Segundo Hesíodo e Virgílio, o Tártaro é fechado por
portais de ferro e está tão baixo do mundo subterrâneo de Hades quando a terra está em relação ao céu. (Nota de
Transcrição)

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