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Miguel Reale costuma ser lembrado por sua teoria tridimensional do direito e,
também, por ter coordenado a comissão de juristas responsável pela elaboração
do Código Civil de 2002. A compreensão da referida teoria tridimensional parece
passar, necessariamente, pelo estudo de duas outras importantes obras de
Reale: Fundamentos do Direito e O Direito como Experiência. Nossa coluna
no Empório do Direito estreia com a análise da última.
Mas qual seria a divergência entre Miguel Reale e a teoria kantiana dessa
relação? O que seria digno de uma categoria a priori. Em (apertadíssima)
síntese, pode-se dizer que Immanuel Kant vislumbrava o sujeito
cognoscente como — ele próprio — “apriorizável”. Como demonstra Reale, a
linha kantiana da teoria do conhecimento reconheceu a “função ativa e
constitutiva do espírito, enquanto dotado da faculdade de síntese ordenadora
dos dados sensíveis, para a determinação da experiência e a constituição
fenomênica dos objetos, pondo em correlação necessária a ‘experiência
possível’ com as ‘condições lógicas de possibilidade’ inerentes ao sujeito
cognoscente, considerado de maneira universal, isto é, não como
individualidade empírica, mas como ‘consciência em geral’”[1].
Miguel Reale, por sua vez, desloca o a priori para o próprio método, e isso
resume seu criticismo ontognoseológico: “em contraste com o dualismo abstrato
de Kant e o monismo absoluto de Hegel, que supera a aporia só enquanto
a destrói, o que se impõe é compreender a relação sujeito-objeto, ou
transcendentalidade-experiência, em sua concreta interrelação e funcionalidade;
desse modo, nem o a priori se esvazia e se exaure numa Gnoseologia formal;
nem se destrói no ato mesmo em que Gnoseologia se converte em Ontologia;
mas traduz antes a condição de uma prévia correlação necessariamente
subjetivo-objetiva, consoante o que denomino Ontognoseologia” [2].
Miguel Reale não chega a especificar qual seria a guinada processualística, mas
é provável que se refira, e. g., aos trabalhos escritos depois da conhecida
polêmica entre Bernhard Windscheid e Theodor Muther. É nela que encontramos
o germe do avanço de muitos estudos de direito processual — uns mais
publicistas, outros menos —, já que esse embate fomentou “a teoria do direito
subjetivo como poder de exigir uma prestação alheia (que tantos embaraços iria
criar à teoria do processo)” e “preparou o campo para todo o vigoroso progresso
da teoria da ação”[4], com autonomia ao direito processual em relação à
concepção civilista[5].
Não sem razão, Galeno Lacerda sustenta que “a análise histórica da teoria da
ação é a mesma análise da paulatina independência do direito processual em
relação ao direito material”[6]. Em síntese, o resultado final da polêmica foi o
surgimento da “noção de que o direito material e o direito de ação seriam
distintos, este último devendo ser entendido como um direito à prestação
jurisdicional”[7].
Posição imanente: assume a posição imanente, diz Reale, o jurista que afirma
que jamais poderá ir além do plano dos eventos históricos, considerando os
problemas jurídicos permanentemente inseridos nele e só explicáveis segundo
os valores inerentes às relações que o constituem. “Tudo o que se elabora no
mundo jurídico, quer pelo legislador, quer pelos tribunais ou através dos usos e
costumes, resulta, segundo tais doutrinas, das relações sociais mesmas, sendo,
o mais das vezes, as regras de direito explicadas indutivamente, segundo nexos
de causalidade ou funcionalidade”[12].
O viés do imanente reduz, assim, o valor ao fato, e o dever ser ao ser. O ôntico
é “visto como o valor [e] não representa senão o resultado de um fenômeno
psicológico”; o deônticos “equivale a uma diretriz possível do comportamento,
como que uma resultante enucleada do seio dos próprios fatos”[13]. A posição
imanente da experiência jurídica tem, pois, uma nota empírica: ela equivale “ao
reconhecimento de que o direito só pode ser ‘experimentado’ em função dos
resultados atingidos”.
A posição adotada por Miguel Reale é a transcendental, tanto que diz: “no
meu modo de ver, foi só com o já apontado alargamento do conceito de
transcendental que se tornou possível a teoria integral da experiência jurídica,
correlacionando-a, complementarmente, com a ‘realidade jurídica’, mas sem
reduzir um conceito ao outro”[19].
Ainda que tenha avançado em favor de uma teoria dos valores, o neokantismo
de Marburgo ainda crava um “universal lógico do direito”, numa visão estática e
resultante “de um processo de abstração, diferenciação e generalização, como
simples juízo lógico, esvaziado daquela função constitutiva que as categorias
desempenham em relação a experiência, e que, como bem pondera Renato
Treves, marca o valor do transcendentalismo kantiano”[25]. Esse viés
neokantista de Rudolf Stammler teria influenciado Hans Kelsen[26], tanto que
Reale lhe imputa um “esvaziamento do transcendental” acentuado em sua
doutrina, “com a redução de norma de direito a um puro juízo lógico de caráter
hipotético”[27].
A escolha de Baden teria dado “um passo essencial à frente”, tendo nomes como
Wilhelm Windelband, Heinrich John Rickert e, no direito, Emil Lask e Gustav
Radbruch. Os dois últimos — E. Lask & G. Radbruch — “intercalaram entre o
mundo da liberdade e o da natureza o mundo da cultura, isto é, das realidades
históricas constituídas pelo homem através do tempo, e compreensíveis, não
segundo os juízos de ser ou juízos de valor, mas segundo ‘juízos referidos a
valores’”[28].
O valor da dogmática: Miguel Reale tem atitude filosófica que não despreza a
produção dogmática. Na verdade, critica abertamente a “abstração pela
abstração”. Diz ser um “mal” que “o filósofo do Direito às vezes” ser “levado a
confundir ‘exigência de universalidade’ com indiferença para com os problemas
particulares que compõe a trama viva da experiência social, perdendo-se,
dessarte, em abstrações infecundas”[47]. A seguinte passagem é um dos
exemplos dados no meio da obra:
A tábua supra bem revela a pretensão de Reale: abranger o saber jurídico ou,
mais precisamente, a Lebenswelt do direito, no máximo de vieses
possíveis. Um penalista, e. g., não será “grande” se descuidar dos motivos
psicológicos e sociológicos de um ato, “mas isto não quer dizer que o Direito
Criminal se reduza a termos de Sociologia ou de Psicologia”, pois “a categoria
do jurista é a categoria do dever ser, que não se confunde com a do psicólogo e
a do sociólogo, pois o Direito só compreende o ser referido ao dever ser”[54].
Em texto recente, publicado na Revista Brasileira de Direito Processual, tivemos
a oportunidade de salientar — com base no próprio Miguel Reale — que a
“Lebenswelt processual”, digamos assim, pode ser captada não apenas
pela dogmática processual, mas também por aquilo que chamamos
de “processologia” (= estudo causal-explicativo do fenômeno processual,
seria como a criminologia entre os penalistas) e de “política legislativa
processual”(equivalente ao que os penalistas costumaram designar de “política
criminal”):
***
Confira a análise no
YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=C4Gr0JbzeFc
BIBLIOGRAFIA
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992.
______. Teoria Tridimensional do Direito. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – parte geral. Curitiba: ICPC, 2008.
[1] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 14. O destaque em negrito é meu.
[2] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 27.
[3] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 3.
[9] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 5.
[10] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 6.
[11] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 6-7.
[12] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 8.
[13] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 8.
[14] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 10.
[15] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 10.
[16] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 11.
[17] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 11.
[18] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 12-13.
[19] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 13.
[20] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 14-15.
[21] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 15.
[22] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 17.
[23] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 18.
[24] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 19.
[25] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 19.
[27] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 19.
[28] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 19.
[29] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 20.
[30] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 20.
[31] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 20-21.
[32] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 22.
[34] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.
380.
[35] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.
385.
[37] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 43.
[38] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 25.
[39] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 26-27.
[40] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 27.
[41] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 29.
[42] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 49.
[43] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 32.
[44] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 40.
[45] Assim, expressamente, cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal –
parte geral. Curitiba: ICPC, 2008, item n.º 2 do capítulo I.
[46] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 40.
[47] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 79.
[48] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 50.
[49] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 79.
[50] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 79.
[51] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 80.
[52] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 55.
[53] REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1992, p. 56.
[54] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.
193.
[55] SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Miguel Reale e o direito processual. Revista
Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, ano 25, n. 98, abr./jun. 2017, p.
232.
[56] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.
200.
[57] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3.ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2013, p. 108.
[59] Costuma-se dizer que Kant foi o “filósofo das três críticas”, pois buscou
pressupostos da razão (Crítica da Razão Pura, primeiramente editada em 1781),
da vontade (Crítica da Razão Pura, de 1788) e do sentimento (Crítica do Juízo,
de 1791) (cf. REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 26).
[60] “Assim como Copérnico supera o sistema ptolemaico, colocando não mais
a Terra, mas sim o Sol no centro de nosso sistema planetário, afirmava o filósofo
germânico ser necessário romper com a atitude gnoseológica tradicional. Em
lugar de se conceber o sujeito cognoscente como planeta a girar em torno do
objeto, pretende Kant serem os objetos dependentes da posição central e
primordial do sujeito cognoscente” (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed.
São Paulo: Saraiva, 1999, p. 77).
[61] Como nota Néstor Alejandro Ramos (La Filosofía de Miguel Reale. 1. Ed.
Mar del Plata: Universidad Fasta, 2011, p. 20-38).
[62] REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 123.
[63] Cf. STONE, Julius. Legal system and lawyers’ reasonings. California:
Stanford University Press, 1964, p. 269.
[64] SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Precedentes Vinculantes. Disponível em:
https://goo.gl/3y7tQB. Acesso em 16 out. 2017.