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Parte IV O QUE E UM SHAKESPEARE? 99 100 dapat aisbambaieton onsen, Fins} ob ote SHAKESPEARE NAO E: CHATO Mesmo que nao tenha outros méritos, minha montagem de Romeu ¢ Julieta pelo menos causou polémica, 0 que j4 € timo — tem havido muito pouca polémica no teatro, ultimamente. Fuicriticado por varios motivos — as vezes bastante contraditérios — mas © que importa que, em 1946, estamos tentando romper de vez.com 6 estilo convencional de encenagio shakespeariana, ¢ 0 calor da polémica dé a medida de nosso sucesso. O fascinioexercido por Shakespeare no mundo inteiro provinha, no inicio, do carter dinimico, empolgante ¢ dramético de suas pecas. Mas convenhamos: por mais fiéis ao texto que tenham sido as producées do século passado, para o espectador comum Sha- kespeare tornou-se um grande chato. Em Shakespeare, todas as cenas devem ter a mesma importan- cia; cada ator deveria ser um protagonista em suas falas —mas 0 que ocorreu? Com o desenvolvimento do teatro ao longo dos séculos, e com o advento do palco italiano, da “estrela” e do ator-produtor, as cenas secundarias foram muito cortadas, para dar realce aos solos. Assim, Romeu e Julieta —concebida, vejam bem, Paul Scofield como Rei Lear. 101 para ser representada por dois rapazes, jovens inte pn esi ose an talento de um casal de “grandes” artistas, me Disseram que poesia de Shakespeare padece de um tratame muito “rude” em nossas méos. Tentamos expressar 0 verdad . sentido da poesia, como era entendido por Raleigh, Sydney, Mar, lowe e Essex — nao por Tennyson e Coventry Patmore Hee elizabetanos, era impossivel separar violencia, paixio e poesia, . Minha tentativa é de fugir a concepcio vulgarizada de Romeu e Julieta como uma love story pernéstica e sentimental, recupe- rando a violéncia, a paixdo e a ebuligao das multidées miseraveis, dos feudos, das intrigas. E assim redescobrir a poesia e a beleza que emanam das sarjetas de Verona, em relagao as quais a estéria dos dois amantes é meramente incidental. ‘Antes mesmo de comegar jé sabfamos que uma proposta tio radical, que rompe totalmente com a tradigdo de uma peca tao queria e popular, estava fadada a despertarum forte antagonismo, Estévamos certos — foi assim mesmo, Recebemos de bom grado as criticas — sio titeis e valiosas — mas é somente pela reacio das pessoas que vierem a Stratford-Upon-Avon querendo simples- mente apreciar 0 espetdculo, sem preconceitos sobre a encenagio shakespeariana, que poderemos saber até que ponto é valida ¢ ccorreta nossa tentativa de encontrar um novo caminho para esta década de 40. es CARTA ABERTA A WILLIAM OU “AS I DON’T LIKE Ss ‘SPEARE, ¢ TT...” (“COMO NAO GOSTEL...”) (*) Prezado William Shakespeare: © que houve com vocé? Sempre achamos que merecia toda confianga. Quanto as nossas tentativas no palco, estavamos pre parados para receberelogios algumas vezes, outs nfo, 6 normal. Mas agora é voce quem est4 sempre sendo malhado pela eritica. Quando sairam as criticas de Titus Andronicus, dando nota dez a todos nés por termos conseguido salvar sua abomindvel pega, mio pude deixar de sentir uma ponta de culpa. Porque, francamente, Gurante os ensaios nunca passou pela nossa cabeca que a pega fosse tio ruim. ‘Logo pereebemos, é claro, que estivamos completamente erra- dos, ¢ $6 nfo concordei com a opiniao de que esta é sua pior obra porque certas lembrangas me deixaram confuso, Quando dirigi Trabalhos de Amor Perdidos, por exemplo, nao houve um critic Gque afirmou ser a coisa “mais mediocre ¢ tola” que vocé jé fez? E O Conto de Inverno? Lembro-me de uma critica que dizia: “Esta 6 pior peca de Shakespeare — uma bobagem enfadonha, sem pé rem cabeca.” E eu que havia montado a pega completamente iludido, achando que era admiravelmente bela, profundamente comovente em sua fantasia, uma fabula cujo final feliz, a estétua que volta’ vida, era um milagre de verdade, gerado pela sabedoria intraduzivel com o titulo da comédia de Shakespeare, As (Como Quiserdes). (N-T.) Trocadilho Like It ‘ 103

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