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FIDELIDADE EM TRADUCAO POETICA: O CASO DONNE! Paulo Henriques Britto Na rea de Estudos da Tradugio, no Brasil, tem certa influéncia o ideario pés-estruturalista, que pode ser encarado como uma verséo contemporinea do ceticismo em sua versio mais radical — nao o ceticismo de Hume, mas 0 de Sexto Empirico. A posigéo pés-estruturalista pode ser resumida aproxima- damente como se segue: os textos néo possuem significados estaveis que correspondam a inteng6es que seus autores tivessem em mente ao escrevé-los (se & que os autores tém controle total sobre suas intengdes); s6 temos acesso a nossas préprias leituras dos textos. Assim, quando dizemos que uma dada tra- ducao ¢ fiel a0 original, estamos dizendo apenas que nossa leitura dessa traducio é fiel & nossa leitura do original; nada podemos afirmar sobre os textos em si. Entende-se, pois, que nao haja consenso absoluto a respeito dos méritos relati- vos de duas tradugGes de um dado texto; se achamos a tradugdo de um texto feita por A melhor que a feita por B, isso ocorre apenas porque nossa leitura do original se assemelha mais do tradutor A do que a de B; e nada mais haa se dizer. Analisando a polémica entre Nelson Ascher e Paulo Vizioli a respeito dos méritos relativos das tradugoes de Donne feitas, respectivamente, por Augus- to de Campos e pelo préprio Vizioli, Rosemary Arrojo (1993: 24~25) argu- menta que atradugio de um pocma ca avaliagio dessa tradusio no poderio realizar-se forade um ponto de vista, ou de uma perspectiva, ou sem a mediagao de uma “interpretagao”. Portan- to, traducio de um pocma, ou de qualquer outro texto, inevitavelmente, sré fie visio {que o tradutor tem desse poemae, também, aos objetivos de sua traducio.[... Tanto Paulo ‘Vizioli quanto Augusto de Campos sio “fcis” as suas concepgbes tebricas acerca de tradu ‘gio c acerca da poesia de Donne, ¢, nesse sentido, tanto as tradugées de um, como de ‘outro, io legitimas ¢ competentes. Inevitavelmente, as tradugies de cada um deles agra dario aos itores que, consciente ou inconscientemente, compartilharem de seus press postos, c desagradario aqueles que, como Ascher, jé foram scduzidos por pressupostos diferentes. Em Arrojo (1999: 45) a autora defende a mesma posicio: Contudo, se concluimos que toda tradusio ¢ fiel as concepgies textuaisc tedricas da comunidade interpretativa a que pertence o tradutor ¢ também aos abjetivos que se Terceira Margem Rio de Janeiro Nimero 15 pp. 239-254 « julho-dezembro/2006 « 239 Paavo Hewoues Barto ppropée, isso nao significa que czem por terra quaisquer critérios para a avaliagao de tradugSes. Inevisavelmente [..] accitaremor ecelebraremos aquelas tradugSes que julga- -mos “fis” as nossas prdprias concepgGes texcuaise tedricas, e rejeitaremos aqueles de caajos pressupostos nio compartilhamos. Assim, seria impossivel que uma traducio (ou Ieitura) de um texto fosse definitiva ¢ unanimemente aceita por todos, em qualquer gpocac em qualquerlugar As tradugées, como nds etude o que nos cerca, no podem deizarde ser mortais. Aargumentagio, num primeiro momento, parece inatacdvel: sem ditvi- da, jamais temos acesso a coisas-em-si, porém somente a nossas percepgoes delas, inevitavelmente marcadas por caracteristicas individuais nossas. Assim, 0 avaliar tradug6es, estarfamosapenas afirmando nossa maior ou menor adeséo aos pressupostos do tradutor, e nao dirfamos nadaa respeito da tradugao em sis toda e qualquer discordancia entre avaliagSes de uma mesma tradusio feita por analistas diferentes decorreria apenas do fato de que os contendores partem de pressupostos diferentes. Mashé aqui um problema: 0 argumento de Arrojo nao se aplica apenas & tradugdo. Se ele é valido, ele deveria se aplicar também aos outros campos do saber nos quais nao se tem acesso direto & essencia do real em. si—isto é, a todos eles. Recentemente, a propésito da publicacao de dois livros sobre a teoria das cordas, varios artigos (v., por exemplo, Holt, 2006) dirigidos ao piblico leigo tém abordado essa importante controvérsia no campo da fisica. Para alguns cientistas,a teoria das cordas nao ésequer uma teoria cientificas para outros, € 0 caminho que levard tao sonhada unificacio da teoria geral da relatividade com a mecanica quantica. Ora, se adotamos ponto de vista defendido por Arrojo, diremos que em fisica, como em tradugio, nao temosacesso & realida- de-em-si, porém apenasa representagées de aspectos delas assim, aqueles que adotam os pressupostos por tds da teoria das cordas—enue eles, a idéia de que o mais importante critério para se julgar um modelo cientifico é 0 estético (beleza, simplicidade) — tenderao a defender a teoria das cordas, enquanto os que “foram seduzidos por pressupostos diferentes” nao a aceitarao. Por que os fisicos nao se contentam com essa constatacao? Por que realizam experimen- tos, publicam livros e artigos, defendendo ou atacando essa ou aquela posigao? E aqui tocamos no cerne da questo. O ponto de partida de Arrojo pro- cede, mas a conclusio a que ela chega nao se sustenta. E verdade que nao temos acesso direto ao real e que todas nossas opinises sto qualificadas pelos nossos pressupostos, mas essa constatacdo no leva & conclusao de que todas as tradugoes, ou todas as teorias, sao igualmente “legitimas e competentes”. Pelo contrario, é precisamente porgue nao temos esse acesso direto ao real que é 240 « Terceira Margem Rio de Janeiro Nimero 15 © pp. 239-254 « julho-dezembro/2005, Fioeupape eu TRapucAo PoéTCx: 0 caso Donne necessério analisar, discutir e tentar estabelecer consensos, ainda que parciais — pois se o real se oferecesse diretamente como evidéncia inteligéncia humana, o que haveria para discutir? Assim, em princfpio nao ha motivo pelo qual a questo especifica que nos interessa aqui —a dos méritos relativos das tradug6es de Donne feitas por Campos Vizioli — nao possa ser discutida a partir da formulacao de hipéte- ses, andlise de dados concretose argumentos racionais, tanto quanto qualquer questo em outros campos do saber. Com base em conversas com varios cole- gs de profissdo, creio poder afirmar que, se fosse feita uma pesquisa de opi- niio entre os tradutores de poesia brasileiros da atualidade, uma maioria ex- pressiva diria que as tradugGes de Donne feitas por Campos sio melhores do que as assinadas por Vizioli. Nao se est negando que Vizioli tenha sido um tradutor sério, respeitado por seus pares, e que suas tradugées sejam “legitimas e competentes”. A pergunta que se coloca é: por que motivo muitos traduto- res de poesia — talvez a maioria deles— consideram as tradug6es de Campos melhores que as de Vizioli? Responder que isso se dé porque a maioria tem pressupostos em comum com Campos e ndo com Vizioli levaria a uma outra pergunta: por que os pressupostos de Campos tém mais adeptos que os de Vizioli? Neste ponto, valendo-se do foucaultianismo vulgar que se populari- zou na dtea de Letras, alguns, argumentariam: porque Campos tem mais “po- der institucional” que Viziolis por isso as solug6es por ele propostas se torna- ram “hegeménicas”. Mas essa explicacdo leva a esta outra: por que motivo Campos adquiriu mais “poder institucional” que Vizioli? Nao seria possivel arriscar a hipstese de que o respeito que ele goza entre os tradutores de poesia se deva a caracteristicas de seu trabalho de tradutor, caracteristicas essas que podemos depreender através da andlise de suas tradug6es? Afinal, podemos pressupor que o prestigio de Stephen Hawking entre os fisicos deve estarliga- do a caracteristicas de sua produgdo académica que podem ser explicadas pelos seus pares. Por que motivo nao ser possivel um critico de tradugio fazer algo andlogo na sua drea de especialidade? Para nosso estudo de caso, tomemos as tradugGes propostas por Campos e Vizioli para a famosa “Elegie XIX: Going to bed”. A escolha desse poema nao é arbitréria: trata-se de uma peca geralmente reconhecida como uma das obras- primas de John Donne. Parao tadutélogo Antoine Berman (1995: 148), “Going to bed” é “un poéme unique chez Donne, et dans la poésie occidentale’; ele dedicou um livro inteiro & andlise de tradug6es alternativas deste tinico poema parao francés, também examinando uma para o espanhol (assinada por Octavio Terceira Margem # Rio de Janeiro * Numero 15 + pp. 239-254 « julho-dezembro/2006 241

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