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O COMETA, O PREGADOR E O CIENTISTA ANTONIO VIEIRA E VALENTIN STANSEL OBSERVAM O CEU DA BAHIA NO SECULO XVII CARLOS ZILLER CAMENIETZKI RESUMO - Desde a Antigiiidade, os cometas foram vistos como desordens no céu. Este género de interpretagio fregiientemente se associava @ crenga astrolégica. Durante a Idade Moderna, quando a vida cultural sofre intimeras transformagées, os cometas passam a ser ¢estudados néo mais do ponto de vista de sua finalidade mas apenas enquanto fendmeno celeste. O esforgo que resultou na concepcdo moderna dos cometas integrou temas filoséficos teoldgicos da maior importiincia dos séculos XVI e XVII. No presente texto, examinamos duas abordagens deste problema feitas por dois intelectuais jesuftas atuando na vida cultural do Brasil, A primeira abordagem é devida a Antonio Vieira e esté ligada a tradigio filoséfica de santo Agostinho e suas concepgdes da natureza. A segunda é feita por Valentim Stansel e se liga.d tradigdo tomista, renovada pela escoldstica tardia do século XVI. RESUME - Depuis l’Antiquité les cométes furent interprétées comme des éléments de désordre du ciel. Cette interprétation est fréquemment lide aux croyances astrologiques. A P’époque moderne, au moment oit la vie culturelle connaitd' innombrables transformations, les savants sont enclins @ étudier les cométes non plus du point de vue de leur finalité mais ‘en tant que phénoméne céleste. Le travail qui aboutit d la conception moderne des cométes intégra des themes philosophiques et théologiques prépondérants aux XVle et XVIe sidcles, Dans le présent texte, nous examinons différentes facons de traiter ce probleme {que nous devons d deux intellectuels jésuites trés importants dans la vie culturelle du Brésil. La premiére est l'oeuvre d’Anténio Vieira qui se situe dans la tradition philosophique de saint Augustin et de ses conceptions de la nature. La seconde présentée par Valentim Stansel se place, quant a elle, dans la tradition thomiste, renouvelée par la scolastique tardive du XVle siécle. O século XVII pode ser considerado como um perfodo de tranformagées intelectuais duradouras na cultura ocidental. No que respeita pensamento filos6fico e cientifico, esta é a época em que o lento trabalho de elaboragdo de uma alternativa & filosofia de base aristotélica chega a seu termo. Ainda que a imensa maioria dos estudos filos6ficos das universidades européias ainda estivesse imersa na tradigao, o deslocamento dos centros de investigagao do mundo natural (das faculdades de artes para as academias), © dinamismo e as realizagées da “nova filosofia” garantiram aos novos métodos a predomindncia na produgo cultural. Se 0 século comega com contestagdes s6lidas de teorias aceitas durante centenas de anos (Tycho Brahe, Kepler, Galileu, Harvey, etc.) ele prossegue com a proposigao de novos métodos & de uma nova linguagem para o conhecimento do mundo natural (experimentalismo, matematizagao, etc.), ele constréi novas concepgdes do mundo (atomismo, mecanicismo, etc.) ¢ se fecha com a elaboragio de Revista da SBHC, n. 14, p. 37-52, 1995. 37 uma nova teoria para o mundo fisico (Newton). Este processo é marcante e seu estudo jé levou muitos ceruditos de nossa época a caracterizé-lo como sendo uma “Revolugo Cientffica”. Evidentemente, esse processo de transformagao das principais referéncias filosGficas ¢ culturais no poderia ter lugar sem dsperas controvérsias e, &s vezes, vitimas célebres. A construgdo da concepgio newtoniana do mundo se deu, como nao poderia deixar de ser, por forca de um embate intelectual de longo curso, integrando disputas que, em muitos casos, vinham jé de muito tempo. Um excelente exemplo disso 6 o debate em torno da astrologia. Antiquissima, a crenca nos astros governando 0 mundo inferior fora combatida ao longo dos séculos a medida em que se via confrontada com obstaculos filos6ficos ou teol6gicos. Durante a Idade Moderna, a prética astrol6gica se viu condenada diversas vezes por criticas vindas de uma ou de outra destas disciplinas. Evidentemente, um tratamento completo destas disputas esté fora de questo neste trabalho.' E, contudo, evidente que a crenga astrolégica constituiu um obstéculo real e importantissimo ao esta- belecimento de uma visio mecanicista do mundo. Em sua verso judiciéria, a nogo segundo a qual os acontecimentos da vida social e politica so governados pelos astros nao poderia se compatibilizar de forma alguma com as modemas teorias do Estado, em gestagio ou em amadurecimento durante os séculos XVI ¢ XVIL Por outro lado, em sua versio “natural”, a crenga nos planetas interferindo nos fen6menos da natureza por meio de influxos astrais se chocava frontalmente com os principios mecanicistas, segundo os quais toda a natureza se resolvia por choques entre as particulas que comporiam o mundo macrosc6pico”. Durante todo século XVII pode-se verificar a existéncia de obras filos6ficas, médicas ou teol6gicas discutindo esse problema. E verdade que mais 0 século avanga, mais a critica & astrologia vai tomando tum tom satfrico, mais essa crenga vai sendo usada para discutir problemas sociais e culturais da época, para realizar uma espécie de balango do perfodo. Um excelente exemplo deste tipo de literatura é a obra Pensées Diverses sur la Cométe, de Pierre Bayle, mas também o livro Histoire des Oracles do cartesiano Fontenelle, Seguramente, estes dois escritores no foram os primeiros intelectuais a combater a Astrologia ‘com a arma aguda da sétira. Permanecendo no universo dos autores de lingua francesa, Rabelais ainda no comego do século precedente jé se servira desta forma de ataque e certamente outros antes dele, Contudo, é ingénuo crer que uma linha de demarcago definida separava radicalmente o campo do “‘progresso” do campo do “atrazo” durante toda a discussdo sobre a Astrologia: uns negando perempto- riamente qualquer validez & arte, outros afirmando sua verdade em todas os terrenos. Nadinémicahistorica concreta, as préticas astrolégicas se misturavam em muitos casos as atividades de construgio das modernas teorias e proposig6es cientificas; boa parte dos principes e reis da Idade Moderna dispunha de seu astrélogo; boa parte dos médicos desde a Antiguidade examinava seus pacientes consultando 0 hor6scopo. No final do século XVII, as colOnias fbero-Americanas se encontravam em condigdes bem diferentes daquelas vivides um século antes. Do ponto de vista social, econdmico, juridico, politico e cultural essas col6nias j4 contavam com estruturas bem melhor definidas ¢ bem mais solidamente estabelecidas. Assim, © intercémbio cultural entre a colonia e a metrépole possibilitava que muitas das questdes que mais empolgavam os intelectuais metropolitanos também fossem vividas intensamente por seus congéneres do além-mar. Certamente, um problema cultural da relevancia da disputa da Astrologia nao poderia constituir ‘excegai. De fato, na colénia talvez.a mais dindmica culturalmente da América;na Nova Espanha (México), a polémica também se desenvolveu. L4, ela tomou contornos prOprios ¢ teve seu ponto mais alto na disputa entre o universitério Don Carlos de Sigilenza y Gongora e o jesuita Francisco Eusébio Kino’. 1A bibliografia da disputa astrolégica na Idade Modema ¢ gigantesca; ela integra alguns dos filésofos ¢ tedlogos mais ‘importantes do perfodo: Pico della Mirandola (1463-1494), Jean Calvin (1509-1564), por exemplo 2 Umexemplo importante dos conteidos deste confronto é 0 debate entre Pierre Gassendi e Jean Baptiste Morin, ocorrido na primeira metade do século XVI. 3. Nose trata aqui de examinar detidamente essa polémica, cabe porém ressaltar que a disputa contou com livros publicados, carta, etc. Um estudo da Astrologia na Nova Espanha desta época e das controversias ligadas a ela pode ser encontrado no livro: Miguel QUINTANA, La Astrologia en la Nueva Espata en el siglo XVII, México: Biblisfilos Mexicanos, 1969 Revista da SBHC, n. 14, p. 37-52, 1995 38 Nesta época, a coldnia lusitana vivia um perfodo de florecimento cultural importante, embora ndo se vivesse nada de tio intenso e diversificado como o que se passava na terra de Sor Juana Inés de la Cruz’ Por exemplo, apesar dos esforgos dos jesuftas, o projeto de criar uma universidade na Bahia nfo foi adiante. Contudo, certamente no & desprezivel a produgdo cultural de um Ant6nio Vieira, ou de um Gregério de Matos, para exemplificar apenas com o que se poderiacmodamente chamar de dois extremos no campo da cultura colonial. ‘A disputa astrol6gica conjugava temas filos6ficos, politicos ¢ teol6gicos da maior atualidade naquele final de século. A Astrologia Judicidria - aquela parte da arte que esté voltada & previsii dos acontecimen- tos humanos e sociais futuros - se confrontava jé havia quase duzentos anos com as teorias do Livre Arbitrio, renovadas na época do humanismo®. No que conceme espectficamente aos jesuftas, esse problema é crucial visto que a teologia adotada majoritariamente na Companhia - o molinismo - postulava aliberdade de escolha do homem como ponto central. A Astrologia Natural - aquela que procurarelacionar 65 influxos planetérios com fenémenos naturais, com epidemias, doengas, etc. - se confrontava com as novas concepges do mundo e da natureza, em elaboragio ao longo do século XVII. Afinal, esses influxos ram imateriais e essa caracteristica os tornava inaceitdveis ou muito dificilmente conciliéveis com a ciéncia nascente, Para a Companhia de Jesus, essa parte da Astrologia nfo colocava problemas graves pois no atingia pontos essenciais do pensamento predominante na Ordem, capazes de gerar um grande consenso contrério. Ademais, essa astrologia foi em grande parte poupada até o final do primeiro quartel do século e, como ja foi registrado acima, uma boa parte dos médicos de entao considerava indispensdvel consulta astrolégica no estabelecimento de suas agGes terapéuticas e mesmo no diagnéstico. ‘Na col6nia lusitana da América, no foi ainda encontrado nenhum sinal de uma controvérsia astrolégica ‘com a envergadura daquela francésa ou mesmo da mexicana. Porém, hé residuos importantes dos debates em andamento em todo 0 mundo ocidental, No presente trabalho examina-se duas atitudes diferentes tomadas por dois jesuitas atuantes no Brasil diante do fendmeno dos cometas. A primeira atitude foi tomada por Ant6nio Vieira, intelectual muito conhecido e que dispensa qualquer apresentago. A segunda, tomada por Valentim Stansel, filésofo e matemético da Campanhia, professor do Colégio da Bahia ¢ personagem quase comple- tamenteesquecido mas que teve atuagdo importante na produgio cultural da col6nia. Esse contraste se estabelece a partir das consideragdes que estes dois intelectuais fizeram por ocasiao do aparecimento de cometas nos céus durante a segunda metade do século XVII. A matéria deste contraste € bastante propria uma vez que a interpretag3o dos cometas, seu estudo ¢ as teorias astrondmicas produzidas para explicé-los encontram-se na encruzithada cultural que levou ao nascimento da ciéncia moderna’. ‘Assim, passa-se ao exame dos textos produzidos por esses autores antes de proceder &s comparagdes necessérias entre as concepgGes, que constataremos antag6nicas, do mundo natural e dos céus que eram sustentadas por estes dois jesuitas. A Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e a Bahia. ‘Ao final da vida, j4 em seu retiro colonial, o Padre Antonio Vieira preparava a edigdo de seus sermées. Em 1681, velhoe com seu prestigio jé um tanto corrofdo pelos intimeros conflitos em que foi protagonista 4. O padre Serafim Leite, na sua monumental obra sobre os jesuftas no Brasil e com um ponto de vista todo particular, expde as iniciativas da CAmara de Salvador e da hierarquia da Companhia neste sentido, Cf. Serafim LEITE.Histéria da Companhia de Jesus no Brasil, Rio de Janeiro: INL, 1949, tomo VI, p. 191-208. 5. Ondcleo deste confronto pode ser resumido na incompatibilidade entre qualquer determinago dos atos humanos por forgas {que #fo superiores ao homens e a liberdade de escolher entre a reaizagio de um ato ou de outro. Se o homem ¢ livre para escolher entre uma ou outra ago, os astros no podem saber de antemo qual decisio seré tomada. 6 Acsse respeito, alguns estudos de relevo é foram produzidos. Por exemplo,o texto, Peter BARKER e Bernard GOLDSTEIN, “The role of Comets in the Copernican Revolution, Studies in History and Philosophy of Science, v. XIX, n.3,p. 299-319, 1988 ¢ ainda, S. DRAKE € C. D. O'MALLEY (org.) The Controversy on the Comets of 1618. Philadelphia: University of Pensilvania Press, 1960. Revista da SBHC, n. 14, p. 37-52, 1995. 39

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