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Artigo A natureza do trabalho pedagégico Vitor Henrique PARO* (Prova escrita do concurso de Ingresso na Carreira docente na disciplina "Organizagao do Trabatho na Escola" do Departa- mento de Administragao Escolar e Economia da Educagao da Fa- culdade de Fducagdo da USP, realizado em 30/4/1992. As refe- réncias bibliogréficas no final do texto foram acrescentadas tendo em vista esta publicacao.) A considerago a tespeito do trabalho pedagégico precisa ter presente, preli- minarmente, 0 proprio conceito de trabalho humano “em geral”. Se, como faz Marx, consideramos 0 trabalho como "uma atividade adequada a um fim", estamos supondo 0 trabalho como caracteristica essencialmente humana, como o que iden- tifica 0 homem e o diferencia do restante da natureza. Isto porque sé ele é capaz de estabelecer objetivos, calcados em valores, c buscar sua concretizagdo. Neste sen- tido, é também o trabalho que empresta ao homem sua caracteristica historica. O _Meramente natural nfo tem histéria. Quando consideramos uma cspécie animal, ‘por exemplo, no periodo de cem anos, constatamos nao ter havido mudanga. O ani- mal é 0 mesmo no decorrer do tempo porque est preso a sua necessidade (ou "ne- cessariedade") natural. Isto porque conceituamos o animal em sua finitude natural. Com o homem a coisa é diferente. OQ homem de hoje é substancialmente diferente, substancialmente outro em relagdo ao homem de cem anos alras, Isto porque 0 con- ceito de homem néo se detém em sua finitude corpérca ou natural. O homem é sua “porgdio" natural ¢ aquilo que ele produz, E aquilo que ele produz modifica perma- nentemente seu meio. O homem ¢ ao mesmo tempo natureza (dominio da ne- cessidade) ¢ negagéio da natureza (dominio da liberdadc). Esta transcendéncia do meramente natural que o faz um ser histérico o homem consegue pelo trabalho, No processo de trabalho o homem relaciona-se com a natureza ¢ com os ou- tros homens. Homem nenhum ¢ capaz de produzir diretamente sua existéncia, 0 que empresta ao trabalho (0 meio pelo qual cle produz sua existéncia) uma caracte- (0). Professor Associado do Departamento de Administragio Escolar e Economia da Educagio da Faculdade de Educagiio da Universidade de Sao Paulo. R. Fac. Educ., Si0 Paulo, v. 19, n. 1, p. 103-109, janvfjun. 1993 103 tistica necessariamente social, Nesse processo de trabalho, estdo envalvidos ele- mentos da natureza ¢ do proprio homem. Os primeiros referem-se ao objeto de tra- balho ¢ aos instrumentos de trabalho. O objeto de trabalho é a propria matéria sobre a qual se da o trabalho humano. Ele é transformado no processo ¢ incorpora-s¢ no produto final. Os instramentos de trabalho so os elementos utilizados pelo homem. para transformar 0 objeto de trabalho, Nao se incorporam materialmente no pro- duto, ja que sua transformagdo se da na forma de desgaste, nao originando nenhum novo produto. Os instrumentos de trabalho ja tém trabalho humano incorporado; o objeto de trabalho nao necessariamente. Este, quando tem trabalho humano incor- Pporado, costuma denominar-se matéria-prima. Além de objeto de trabalho ¢ ins- trumentos de produgdo, também chamados, cm seu conjunto, de meios de produgdo, 0 processo de trabalho exige a presenca da energia do préprio homem, denominada de forga de trabalho. Esta forga de trabalho pode scr mais ou menos qualificada e, contraditoriamente, é despendida na atividade que o homem empreende para pro- duzir sua propria forca de trabalho. E necessario, portanto, que, na produciio social de sua existéncia, através do trabalho, o homem produza mais do que 0 necessario para sua subsisténcia, ou seja, para além daquilo que é necessario para a existéncia de sua forga de trabalho. Quando transportamos esses conceitos para o trabalho pedagdgico |, algumas novas especificagdes precisam ser feitas. Em primeiro lugar, é preciso ter presente que se trata de um trabalho nao-material. Seu produto nao é um objeto tangivel, mas um "servigo”, Isto levou a que Marx cntendesse que 0 trabalho pedagdgico escolar ndo pudesse ser subsumido sendo formalmente na sociedade capitalista, em virtude da "natureza mesma" dessc trabalho. Para ele, ha dois tipos de trabalho nao-material. Um que, apesar de ser em esséncia nfo-material, acaba assumindo alguma corporeidade para entrar no mercado capitalista, como acontece, por exem- plo, com a produgio de livros. Neste tipo de trabalho, processa-se a separagiio entre a produgdo ¢ 0 consumo. Mas ha outro tipo de trabalho niio-material cuja produgaio consumo se dao simultaneamente. E 0 caso, por exemplo, do trabalho do ator no teatro, do palhago no circo ¢ do professor na sala de aula. Dermeval Saviani (Ensino pitblico ¢ algumas falas sobre universidade) faz uso dessas aproximagdes de Marx para advogar uma especificidade da educagaio escolar que estaria fundada na nao separacao entre produgio ¢ consumo ¢ na con- seqilente impossibilidade de subordinagio reat do trabalho ao capital no processo de produgdo pedagégico. Alguns autores (Arroyo, Si, Mazzotta ctc.) tentam contes- tar a tese de Saviani, procurando demonstrar que o capitalismo esta sim presente na escola, Esta tentativa se mostra, todavia, frustrada, em nosso entender, ja que bus- cam demonstrar precisamente aquilo que, tanto Marx, quanto Saviani ja tomam co- (1) Para facilitar a exposigao, ¢ dentro do contetido da diseiptina "Organizagio do Trabalho na Escola”, es tarei me referindo concretamente 20 trabalho pedagogico escolar. 104 R. Fac, due, Sto Paulo, v.19, 1, p. 103-109, jan jun. 1993 ino suposto para suas reflexdes, ou seja, que a relagio pedagégica que se da na es- cola privada subsume-se formalmente ao capital. Alguns dos trabalhos que se opdem a tese de Saviani chegam ao absurdo de sugerir que também na escola pibli- ca se dé a subordinagao do trabalho ao capital. Sem negar a importincia dos trabalhos que se produzem sobre o assunto, creio que a tese de Saviani tem ficado intocada naquilo que ela tem de mais vulne- ravel, ou seja, o apelo 4 “natureza mesma" da educagao escolar como processo de trabalho cuja produgao e consumo se di ao mesmo tempo. Ao fazer isso, Saviani supde "a atividade de ensino, a aula" (grifo meu), como o produto da educagao ¢s- colar que no se separa de seu consumo pelos alunos. Em meu livro Administragao Escolar: inirodugdo critica procurei demonstrar que a andlise da naturcra do pro- cesso pedagégico enquanto trabalho humane exige a consideragzio de um conceito mais abrangente de produto de tal processo. Na sociedade capitalista a aula é, de fato, considerada 0 produto do processo de educagio escolar. E a aula, cnquanto mercadoria, que se paga, no ensino pri- vado. E também a aula que se tem como servico prestado pela escola (publica ou privada) e que se avalia como boa ou nim, Todavia, um exame mais acurado int revelar que a aula consiste tdo-somente na atividade que da origem ao produto do ensino. Ela no é 0 produto do trabaiho, mas o proprio traballio pedagégico. Uma concepgao da educagao enquanto relacao social que se di cntre sujeitos com iguais condigdes no dominio da sociedade civil (Gramsci) nos revelar que 0 produto de tal processo é algo mais complexo do que o suposto por Saviani. Entendida a edu- cago como a apropriago de um saber (conhecimentos, valores, altitudes, compor- tamentos etc.) historicamente produzido ¢ a escola como wma das inst provéem educagio, a consideracdo de seu produlo nao pode restringir--se a0 ato de aprender. Neste ato, o educando apropria-se de um saber que a ele é incorporado. Ha, portanto, algo que permancce para além do ato de aprender. Neste sentido, 0 educando nao sc apresenta unicamente como consumidor, Se sc permite a analogia com o mundo da produgio material, o aluno no ¢ apenas consumidor do produto mas também objeto de irabatho. Sua semelhanga com 0 conceito de objeto de trabalho visto anteriormente faz sentido, na media em que ele € 0 verdadeiro objeto "sobre o qual” se processa o trabalho pedagégico c que sc “transforma” nesse pro- cesso, permanccendo para além dele. As analogia com o processo de produgdio ma- terial, entrctanto, nao podem ir muito além disso, Enquanto no processo de produ- do material o objeto de trabalho opée resisténcia a sua transformagiio de forma meramente passiva, a resposta do educando nesse processo se di de acordo com sua especificidade humana que é ao mesmo tempo natural ¢ transcendéncia do natural E, pois, uma participagio ative, enquanto ser histérico. Em vista disso, © papel do ‘educado no pracesso de producao pedagégico se da ndo apenas na condigao de con sumidor ¢ de objeto de trabalho mas também na de sujeito, portanto de “produtor" (ou co-produtor) cm tal atividade. Além disso, no processo material de produgio, as R. Fac. Edue,, So Paulo, v. 19.0. 1, p. 103-109, janjum, 1993 los

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