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Filosofia da Religiao Introdugao Religido e Filosofia seguiram, historica- mente, caminhos ora paralelos, ora divergen- Scotr RANDALL PAINE da crenga ¢ na Fenomenologia da experién- cia e linguagem religiosas, na relagao entre tes ou convergentes. .O. fendmeno-religioso™~ religiao e ciéncia, no problema do mal e da liberdade humana, como também em anti- ‘Seaaeearyhaactora asussinentededuion gb einGvod angutiichins xd e/oontra — farores-hist6ricos: (1) o-estudo na Conifessio- nal-dele-a-partir-do-século-XVIII, em pers- pectiva histérica, Linguistica, antropolégica, sociolégica e psicolégica; (2) em parte-como resultado do primeiro fator, a proliferagéo de noyos. dados. sobre turés_universos-religiosos igi até entéo pouco conhecidos: religiées-orien- tais, religibes-extintas”e religiGes~dgrafas: Destaca-se também na Filosofia contempo- rinea interesse reanimado na epistemologia Orientagdes conceituais Antes de prosseguir, daremos definicoes de trabalho das duas palavras em pauta. Em todas as Ciéncias Humanas talvez nao haja outro par de termos mais prolifero de uma turba de definigées concorrentes. Mas, lon- ge de ser sintoma de indefinibilidade, € antes marca de hiperdefinibilidade tal abundancia de definig6es. Uma realidade densa e inten- sa atrai palavras como abelhas ao mel. Mas acerca da existéncia e natureza de Deus. Ao mesmo tempo, 0 minus do comparatista da religiio esta sendo exercido cada vez mais por filésofos. Examinaremos neste capitulo tanto a relagdo histérica entre religiéo ¢ Fi- losofia, como os temas ¢ problematicas que deram ocasiio a0 nascimento da disciplina atual da Filosofia da Religiao. Suas correntes principais também serdo esbocadas. recusar defini¢ao é recusar inteligibilidade, ¢ dificultar didlogo. A Filosofia, para preservar sua identidade diante de um exército de novas Ciéncias Na- turais ¢ sociais, continua reivindicando uma espécie de universalidade e de fundamen- tagdo, mas de formas bem diversas. Alguns visam a abrangéncia por meio de projetos de sistematizagao e¢ inclusividade da parte 101 Scotr RANDALL PAINE do contetido tratado — de Plotino até Spi- noza e Hegel (uma opgio, porém, hoje em dia quase inexistente). Mais modestamente, é antes por parte da abordagem, ou do méto- do, que outros visam isolar apenas principios reais de aplicagao geral (Platao, Aristételes), ou principios subjetivos que jazem no fun- damento de todo conhecimento possivel (Kant), ou de toda linguagem usével na sua articulacao (primeiro Wittgenstein), de todo enfrentamento com um fenémeno qualquer (Husserl), de todo proceso histérico em que 0 ser humano se acha envolvido (Marx), ou, mais recentemente, de todo processo de pen- samento em suas estruturas ¢ linguagem (Fi- losofia analitica), entre outros. Apesar dessas divergéncias, o filésofo continua a aspirar a uma reflexdo de qualquer forma “sindtica” (egundo a expressio do Platio), seja qual for o angulo escolhido para propor sua vi- sao fundante. Em vez de buscar saber tudo (possivel) sobre algo (como nas ciéncias par- ticulares), ele pretende saber algo sobre tudo (seja esse algo aparatoso ou comedido). Seja dito de passagem que mesmo recuos de toda pretensdo 2 universalidade e fundamentagio nao carecem, paradoxalmente, da precisa- mente idéntica reivindicagio, s6 em chave negativa. E essa pretensdo é que jé traz a Fi- losofia perto do recinto religioso. Definigées da religiéo so ainda mais va- riadas e polémicas.' Sugiro aqui apenas qua- tro parimetros que parecem indispensdveis em qualquer tentativa de contornar a natu- reza da religiao segundo 0 autoentendimento das proprias religiGes ¢ seus aderentes, em forma de quatro convicg6es: (1) a de que exis- tem niveis heterogéneos do real superiores aqueles registrados por nossos sentidos;? (2) a de que nossa relagao com tal transcendéncia é de suma importancia; (3) a de que, por qual quer razio, essa relacdo foi interrompida oy perturbada; (4) a de que, consequentemen. te, uma religido se apresenta como meio de restaurar e sanar essa relagdo (“religé-la”) por uma opera¢ao, iniciativa ou principio pro- vindo da dimensao transcendente mesma e nao de criagéo humana s6 (embora a resposta humana produza uma impressionante apa- relhagem cultural), e na qual uma realidade ou perspectiva superior penetra ¢ transforma a pessoa humana. (Adianto que também no Budismo a realizagao do estado de ilumina- 40, mesmo se atingido sem referéncia a uma entidade transcendente, envolve uma subjeti- vidade transcendente que supera a conscién- cia cotidiana de maneira radical.) Veremos que as quest6es estudadas pela Filosofia da Religiao estruturam-se ao lon- go desses quatro eixos: (1) a discussio da existéncia e natureza de Deus ou de algo imaterialmente transcendente (metafisica ¢ questdes ontoldgicas € légicas ligadas); (2) as justificativas da crenca, a experiéncia reli- giosa, a mistica e os milagres (epistemologia, Antropologia filosdfica, Ciéncias Cogniti- vas); (3) 0 problema do mal e do livre-arbitrio (teodiceia, ética); (4) as estruturas religiosas cognitivas, morais e rituais, ou o credo, 0 cédigo ¢ 0 culto (Fenomenologia e Filosofia comparada das religides). Cabe observar que nao existem termos pontualmente equivalentes aos vocébulos ocidentais de Filosofia e religiao nas lin- guas semiticas, indianas e extremo-orientais. Contudo, as realidades designadas por esses termos tém palavras ¢ expresses andlogas nas linguas orientais ¢, de qualquer forma, sempre existem descrigées perifrasticas de equivaléncia aproximada. 102 FILosoFia Da RELIGIAO Antecedentes da Filosofia da Religiao Podemos entrever trés tentativas histé- ricas de relacionar Filosofia e religiao antes do surgimento da Filosofia da Religiao pro- priamente falando: (1) Filosofia ¢ religiao, ou vice-versa (identidade); (2) Filosofia e religiao (paralelismo); ¢ (3) Filosofia na religido (Te- ologias e metafisicas religiosas). Cada uma dessas relagdes continua vigente hoje, em for- mas diferentes, mas uma breve consideracao de suas historias nos ajudard a entender as precondigées a génese de uma reflexao sobre religiao, nos iltimos dois séculos, que seja es- pecificamente filoséfica. Absorcées e identidades Afinidades entre religiao ¢ Filosofia re- sularam por vezes em alegagdes de uma identidade, ou pelo menos uma aproximagio to intima que se assemelha a uma fusio. Ou uma Filosofia pretende assumir a indole e os direitos de uma religio, ou vice-versa. Pre- senciamos a primeira apropria¢ao em Filoso- fias como o pitagorismo, em certas correntes do Budismo ¢ do neoplatonismo, no positi- vismo comteano ¢ nas formas mais progra- miticas do marxismo. A segunda, vemos em correntes religiosas que reclamam somente & revelagéo ou a uma intuicdo mistica to- dos os direitos de conhecimento fidedigno acessivel ao homem. Essa posicao foi adota- da, em maneiras diferentes, por Tertuliano, Pedro Damiano ¢ Bernardo de Claraval, no Cristianismo, , no Isla, por Al-Ghazali ¢, mais tarde, por aqueles que reagiram contra © aristotelismo de Averroes a partir do final do século XII. Um fidefsmo comparivel en- contra-se igualmente em certos autores caba- listicos ¢ hassidicos no Judaismo. Em suma, para tedlogos fideistas, todo conhecimento filoséfico que vale a pena possuir ja estaria contido na revelagéo biblica ou corinica, ou na experiéncia mistica. Essas usurpagées, porém, seja qual for a diregao, foram mais excegées do que regras. Filosofia e religiao A medida que novos métodos ¢ nova au- toconsciéncia na Filosofia cresceram, e as formulacées doutrinais ¢ rituais das grandes religiées amadureceram, os dois campos da experiéncia humana costumaram afastar-se um do outro, Distingao e distancia estabele- ceram-se como caracteristicas consensuais da sua relagdo. De forma explicita em Aristéte- les na antiguidade e na escoléstica medieval, e de maneira geral na Filosofia moderna e contemporanea, Filosofia ¢ religido costu- mavam ser vistas como inconfundiveis, tanto no método quanto no contetido — mesmo se alguns veem a religiéo com obséquio ¢ outros com condescendéncia. Esse esquema de rela- gio é, sem divida, o mais comum. Filosofia na religiao Uma terceira opgio de relagio seria um convite feito & Filosofia — vista justamente como algo claramente distinto da religiio — para servir de instrumento dentro do mun- do das crengas e das experiéncias religiosas. No Ocidente, tal cooperacao entre Filosofia ¢ religido gerou as grandes Teologias abraa- micas, tanto no entendimento da Filosofia como serva da Teologia (ancilla theologiae) no Cristianismo, como também em correntes compariveis do Judaismo e do Islé. Na fn- dia e na China, onde divisas entre o natural e sobrenatural se articulam em termos € con- textos diferentes, muitas vezes encontramos mais “metafisicas religiosas” dentro das reli- gides do que Teologias teistas; mesmo assim, a vasta producao de obras de reflexéo cla- ramente racional e critica que constatamos, por exemplo, nos dérsanas do Hinduismo, nas numerosas escolas de reflexao budista ¢ na grande tradicéo do Neoconfucionismo, 103

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