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Mudança do papel do Estado e

o advento das Agências Reguladoras


AGRADECIMENTOS (Clique em qualquer lugar para fechar este box)

Como usar este


Nossos sinceros documento
agradecimentos a todas as pessoas que fizeram parte da criação e
da história da Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE) e da Agência Reguladora
Pela
debarra inferior,enavegue
Saneamento Energia dopelas
Estadopáginas:
de São Paulo (Arsesp). A colaboração de todos os
funcionários, colaboradores e diretores foi fundamental para que alcançássemos 20 anos
de regulação no estado de São Paulo.
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1ª página Registramos um agradecimento especial àqueles que se dispuseram a relatar suas
última página
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experiências, memórias e percepções, pois a partir dessas falas foi possível traçar um
página anterior próxima página
pouco da história da CSPE e da Arsesp, são eles: Aderbal Penteado, Fernanda Meirelles,
Guacira Guiraldini, Marcos Gouvêa e Samira Bevilaqua.

Sumário

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Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 2 / 108
APRESENTAÇÃO
Um dos maiores desafios de toda agência reguladora é estimular a participação
popular e o controle social ao longo de todo o processo decisório. Como destinatários
dos serviços de utilidade pública, usuários e consumidores devem estar no centro
da atividade regulatória, da definição de regulamentos e normas até a avaliação da
qualidade dos serviços prestados. Nesse sentido, o aperfeiçoamento institucional
das agências passa necessariamente pela democratização de suas estruturas.

Para tanto, é preciso garantir o acesso aos conhecimentos técnicos, legais e


políticos que envolvem a regulação. Na complexa relação entre usuários, poderes
concedentes e concessionárias, o primeiro passo para assegurar o equilíbrio de
interesses muitas vezes divergentes é combater a assimetria de informações.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 3 / 108
Apresentação

Por isso, ao longo de seus dez anos de atuação, a Agência A cada capítulo, um diretor da agência é convidado a introduzir
Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo o artigo de um especialista. Tal organização visa proporcionar ao
(Arsesp) sempre se preocupou em estabelecer uma relação próxima público um panorama, o mais amplo possível, da regulação como
com os usuários de serviços públicos regulados. Essa preocupação um todo e da Arsesp em particular. Integrando a visão interna dos
parte do pressuposto de que as funções de uma agência reguladora profissionais que trabalham no dia a dia da instituição e a visão
(instituição recente na história do país) são ainda pouco conhecidas externa de pesquisadores com vasto conhecimento e histórico de
pela população em geral, e somente com a divulgação de suas atuação na área, acreditamos ter alcançado com este livro nosso
atribuições e objetivos é possível criar uma relação de confiança principal objetivo: informar não apenas profissionais, mas também
entre usuários, o órgão regulador e concessionárias. interessados em geral no trabalho das agências regulatórias.

Nas páginas que seguem, contamos um pouco da história da Os dez anos de Arsesp não poderiam passar em branco. Para
Arsesp – resgatando também a atuação de sua predecessora, a comemorá-los, nada melhor que compartilhar conhecimento. Com o
Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE) –, introduzimos ideal de que todos os atores do processo regulatório tenham direito
o leitor às principais atribuições da autarquia e refletimos sobre ao protagonismo, reafirmamos nossa missão: assegurar a adequada
a regulação dos serviços de energia elétrica, gás canalizado e prestação dos serviços concedidos e garantir o equilíbrio entre usuários,
saneamento básico, assinalando os desafios enfrentados e apontando empresas concessionárias e poder público. Esperamos que este livro
para o futuro. não apenas registre, mas também contribua com nossa trajetória.

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e o advento das agências reguladoras
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SUMÁRIO
6 Introdução
6 As agências reguladoras no Brasil e no mundo
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7 Histórico
Escolha o título para ir direto 7 10 de anos de Arsesp
ao artigo. 10 Evolução do logotipo
11 Linha do tempo

12 Capítulo 1 - A Regulação sob a Perspectiva do usuário dos serviços públicos


13 Introdução | Paulo Góes
17 Agências reguladoras e proteção do consumidor | Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer

30 Capítulo 2 - Regulação Tarifária


31 Introdução | José Bonifácio de Souza Amaral Filho
34 Regulação Tarifária | Joisa Dutra

44 Capítulo 3 - Regulação dos serviços de energia elétrica


45 Introdução | Marcos Peres Barros
48 A regulação no setor elétrico brasileiro | José Mário Miranda Abdo

62 Capítulo 4 - Regulação dos serviços de gás canalizado


63 Introdução | Paula Campos
66 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios | Ieda Gomes

79 Capítulo 5 - Regulação dos Serviços de Saneamento Básico


80 Introdução | Hélio Luiz Castro
82 Regulação no setor de água e esgoto | Lucas Navarro Prado e Denis Austin Gamell

106 Anexo - Diretoria da Arsesp ao longo dos 20 anos de história

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Introdução

As agências reguladoras mais rapidamente. Nos Estados Unidos, por exemplo, a origem das
agências independentes remonta ao final do século XIX, a partir da

no Brasil e no mundo necessidade de regulação do transporte interestadual. Entre 1930 e 1945,

A
com a política do New Deal, as agências reguladoras norte-americanas
alcançariam seu auge, em um contexto completamente diverso ao do
segundo “boom” da regulação, no já citado período de implementação
As agências reguladoras brasileiras surgem na década de de políticas neoliberais. Em comum a esses três momentos, pode-se
1990 para responder às novas demandas geradas por amplas citar a necessidade de corrigir possíveis falhas de mercado em épocas
mudanças no perfil do Estado. Em convergência com outros marcadas por grandes transformações. Primeiro no século XIX, com a
países do mundo, que desde a década de 1980 buscavam urgência de intervenção estatal em um setor específico da economia,
redefinir a gestão pública, diminuindo a intervenção estatal central para o desenvolvimento do país; depois com Roosevelt, na
em diversos setores, empreendeu-se no Brasil um abrangente mudança de perfil do Estado para vencer a Crise de 1929; por fim, nas
processo de desestatização, com medidas governamentais últimas décadas do século XX, como garantia de controle no radical
orientadas à privatização da infraestrutura e concessão de processo de desestatização. A história das agências reguladoras, portanto,
serviços públicos. Alinhadas ao movimento da Nova Gestão acompanha a história das inovações institucionais em períodos críticos,
Pública, as mudanças visavam substituir o papel centralizador de amplas reformas.
do Estado na execução e prestação de serviços públicos,
reforçando, por outro lado, a função reguladora da máquina Diante de complexas relações de força, a intervenção regulatória
governamental. Nesse contexto, é estabelecido em 1995 o busca garantir o equilíbrio de interesses, desenvolvendo mecanismos que
Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, que prevê assegurem, de um lado, o bom funcionamento dos serviços públicos e, de
a criação de “agências autônomas” para fiscalizar e garantir outro, a viabilidade econômico-financeira das empresas concessionárias,
a qualidade dos serviços concedidos. a fim de que o crescimento econômico e a expansão da cobertura dos
serviços se deem de modo sustentável. A tarefa é árdua, e os desafios,
A partir do Plano e da Lei das Concessões (Lei 8.987/95), são numerosos. Como garantir, por exemplo, a participação de todos os
fundadas as primeiras agências reguladoras do país: Agência atores – sobretudo usuários e consumidores – no processo decisório?
Nacional de Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional de
Energia Elétrica (Aneel) e Agência Nacional do Petróleo (ANP), Como parte da história brevemente esboçada nesta introdução, em
entre outras. No mesmo período, compartilhando dos objetivos seus dez anos de atividade a Arsesp tem buscado responder a esses
e modelos de organização dessas agências nacionais, surgem desafios de modo equânime, reafirmando a tradição de autonomia
autarquias incumbidas de regular, controlar e fiscalizar a prestação administrativa, orçamentária, financeira e decisória das agências
de serviços também em âmbito estadual. Em São Paulo, por reguladoras. O balanço é positivo, como demonstram as pesquisas de
meio da Lei Complementar 833/97, é criada a Comissão de satisfação com usuários. Ainda há, no entanto, muito trabalho a ser
Serviços Públicos de Energia (CSPE), que em 2007 daria lugar à feito. A expectativa é que, ao estimular cada vez mais a qualidade das
Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São concessionárias, haja uma expansão ainda maior dos serviços de energia
Paulo (Arsesp). elétrica, saneamento básico e gás canalizado nos próximos dez anos.

Embora recentes no Brasil, as agências reguladoras despontaram Aguardemos, então, os próximos capítulos da história da Arsesp e
desde cedo em países onde a economia de mercado se estabeleceu das agências reguladoras…

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Histórico

10 de anos de Arsesp

P Para falar dos dez anos de Arsesp é preciso voltar a 1997,


quando a Lei Complementar 833 criou a Comissão de Serviços
Público de Energia (CSPE), autarquia que daria origem à Arsesp.
Vinculada à Secretaria de Estado de Energia, a CSPE tinha por
finalidade regular os serviços públicos de energia elétrica e
gás canalizado.

Na área de energia elétrica, a CSPE fiscalizava o cumprimento,


por parte das empresas concessionárias, dos requisitos
regulatórios previstos pela Agência Nacional de Energia Elétrica
(Aneel). Já na área de gás canalizado, a própria Comissão tinha
autonomia não apenas para fiscalizar, mas também para regular
regras, portarias, resoluções e indicadores de qualidade.

Na experiência da CSPE foram cruciais os convênios firmados


com universidades (USP, Unicamp, Unifei e Universidade
Federal de Itajubá), como forma de atrair pesquisadores/
consultores para ajudar a criar e desenvolver a autarquia.

Com a promulgação em 2007 da Lei Federal 11.445, que


estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico,
era preciso que os estados se adaptassem ao novo contexto.
A lei estipula uma série de requisitos para se ter acesso aos
recursos financeiros federais. Exigia-se, por exemplo, a
implantação de um órgão regulador para controlar e fiscalizar
as empresas operadoras dos serviços públicos.

É esse o marco jurídico que motiva a criação da Arsesp,


autarquia que, além de herdar as atribuições da CSPE na
área de energia elétrica e gás canalizado, passa também
a fiscalizar o saneamento. Caracterizada como órgão de
Estado e não de governo, com independência administrativa,
orçamentária e financeira para regular, controlar e fiscalizar
empresas concessionárias, a Arsesp surge dos dez anos

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Histórico 10 de anos de Arsesp

de experiência da CSPE, empreendendo a transição institucional área de infraestrutura, também contribuem para os propósitos de
necessária em um momento de modernização das políticas para ampliação e aperfeiçoamento dos serviços.
o setor de saneamento básico.
Quanto à transparência, desde sua criação a Arsesp tem prezado
a ampla divulgação de todo processo regulatório, com publicações
Universalização, transparência e participação de atos na internet, consultas e audiências públicas, avaliação dos
Já presentes na experiência da CSPE, os ideais de universalização, planos e diretrizes das empresas e difusão de cartilhas educativas
transparência e participação estão no cerne das atividades da com direitos e deveres dos usuários, explicados de forma acessível
Arsesp desde sua fundação. A Lei 1.025/07, que regulamenta a a qualquer interessado.
criação da autarquia, prevê amplo acesso popular à informação, Em 2015, foi iniciado o Projeto Transparência e Participação, que visa
participação efetiva da sociedade civil organizada e constante aperfeiçoar a comunicação e articulação da agência com a sociedade.
aperfeiçoamento e expansão dos serviços públicos regulados. Utilizando como referência a Lei de Acesso à Informação – materialização
No que se refere à universalização, a Arsesp tem reiterado como jurídica dos anseios da sociedade civil por mais transparência –,
meta o estímulo permanente à ampliação dos serviços, sobretudo o projeto traçou um diagnóstico dos principais pontos a serem
na área de saneamento básico. Um aspecto importante para vencer aprimorados, delineando, então, um plano de ações que contou com
esse desafio é o equilíbrio tarifário, visto que a expansão da malha de iniciativas como o Aplicativo Arsesp. Acessível em tablets ou celulares,
distribuição depende da saúde econômico-financeira das empresas o aplicativo é uma plataforma em que o consumidor pode registrar
concessionárias, ao mesmo tempo em que a modicidade da tarifa sua reclamação sobre os serviços de saneamento, gás canalizado
deve ser assegurada aos consumidores. Além da regulação tarifária, ou energia elétrica, enviando fotos e consultando o andamento da
mecanismos como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), solicitação. No app também estão disponíveis os principais direitos
que prevê a reversão de multas a empresas em investimentos na e deveres dos consumidores.

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Outro fruto do projeto, a criação da página “Acesso à informação”, gás natural. Trata-se de uma diretriz da agência que visa ampliar a
no site oficial da Arsesp, trouxe ao público importante material, participação de energias renováveis na matriz energética do estado.
composto por dados e documentos de interesse coletivo. Além disso, os usuários terão à disposição um combustível renovável
de preço estável, uma vez que não é afetado por oscilações no
A transparência é essencial para a participação da sociedade, pois câmbio e pela variação do preço internacional. Vale lembrar que o
consumidores e usuários bem informados têm mais condições de biometano produzido deverá seguir as especificações da Agência
intervir nas diversas etapas do processo de tomada de decisões. Uma Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP).
importante ferramenta de participação, instituída pela Lei 1.025, são
os Conselhos de Orientação de Energia e de Saneamento Básico da
Perspectivas para o futuro
Arsesp, órgãos de participação da sociedade que se manifestam por
meio de deliberações (decisões sobre procedimentos submetidos O balanço dos dez primeiros anos de Arsesp é positivo, mas
a aprovação) e recomendações (declarações do conselho quanto a não há tempo para descanso: a alta dinamicidade das relações
condutas e práticas da agência). Os conselhos também deliberam que envolvem a atividade regulatória exige trabalho contínuo. Para
sobre o programa plurianual, a proposta orçamentária e a prestação os próximos anos, a agência espera desenvolver ainda mais seus
de contas da Arsesp. recursos humanos e técnicos, reiterando o ideal de excelência da
instituição. Iniciativas como o aperfeiçoamento da análise de dados
Para além da representatividade dos conselhos de orientação, e o investimento na formação continuada de seus profissionais
a Arsesp conta com uma série de ferramentas de participação para responder a novos desafios estão no horizonte da Arsesp.
social: consultas e audiências públicas, pesquisas de satisfação,
prestação de contas ao poder concedente e canais como o Serviço Nesse processo de evolução institucional, as iniciativas em prol da
de Atendimento ao Usuário e a Ouvidoria. transparência e participação social serão não apenas mantidas, mas
também aprofundadas, com base na premissa de que a igualdade no
Em 2017, considerando o potencial da produção de biometano acesso à informação e o engajamento do consumidor no processo
no estado de São Paulo, a Arsesp aprovou, através de consulta regulatório são condições fundamentais para a qualidade dos serviços
pública, a regulação do biocombustível para distribuição na rede de de utilidade pública.

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Evolução do logotipo

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Toque nos períodos para abrir


1998-2007 as informações.
2007-2012 2013-atual Especial 10 anos

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Histórico 10 de anos de Arsesp

Linha do tempo

1960 1990 1997 2004 2007 2009 2011 2013 2015 2017

1965 1996 2001 2005 2008 2010 2012 2014 2016 2018

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Capítulo 1 A REGULAÇÃO SOB A
PERSPECTIVA DO USUÁRIO
DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

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Capítulo 1 Introdução

Introdução
Paulo Góes1

A relação entre os usuários dos serviços públicos

M
e a regulação

Mais de duas décadas após a grande transformação pela qual


passou o Estado brasileiro, com a redução de seu protagonismo
tipicamente empresarial e o fortalecimento de seu papel
gerencial e indutor, pode-se dizer que tem se consolidado no
Brasil o entendimento acerca da importância da regulação
para o desenvolvimento econômico e social do país2.

É consenso que a universalização do acesso a serviços


públicos, a modicidade tarifária e a qualidade dos serviços
prestados à população – propósitos da aludida transformação
– não podem ser alcançados sem marcos regulatórios claros
e objetivos e sem a presença do ente responsável por regular

1
Advogado formado pela Universidade Paulista (Unip), servidor de carreira da Fundação
Procon (SP) desde 1992, entidade na qual ocupou diversos cargos, inclusive o de Diretor
Executivo, entre 2011 e 2014. Foi membro do Conselho de Orientação e Energia (COE) da
Arsesp de 2011 a 2014. Atuou na Secretaria da Casa Civil do Governo do Estado de São
Paulo como assessor especial do governador de julho 2014 a 2015. É o atual Diretor de
Relações Institucionais na Arsesp, função que exerce desde julho de 2015.
2
As agências reguladoras, na literatura sobre o tema, constituem-se em uma das expressões
mais destacadas do processo de reformas dos anos 1990, emergindo como resultado das
tranformações decorrentes do Estado “provedor” de serviços públicos para um pautado no
modelo regulador dos “agentes econômicos”. Não à toa que, pela reforma administrativa
implementada pela Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, buscou-se
diminuir o aparato administrativo visando aumentar a sua capacidade de implementar,
de forma eficiente, políticas públicas. Nesse sentido, uma das alterações visadas pela
reforma foi a descentralização da estrutura organizacional do aparelho do Estado através
da criação de novos formatos organizacionais, como as agências executivas, regulatórias
e as organizações sociais.

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Capítulo 1 Introdução

e fiscalizar determinadas atividades, muitas das quais outrora


exercidas pelo próprio Estado.

Assim, o papel do Estado, enquanto regulador, implica no


abandono de um perfil autoritário em favor de maior interlocução
com a sociedade, assegurando a estabilidade das regras e o respeito
a elas por todos os envolvidos nesse processo. Mas isso não é tudo,
exige-se dele, ainda, a função de equalizador, de mediador e de
árbitro para equilibrar e zelar pelos legítimos interesses econômicos
e sociais.

É com esse intuito, portanto, que a Agência Reguladora de


Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) foi criada. Com a
promulgação da Lei Complementar nº 1.025, de 7 de dezembro de 2007,
a Comissão de Serviços Púbicos de Energia (CSPE) foi transformada
na atual estrutura regulatória dos serviços públicos de saneamento,
energia elétrica e de gás canalizado, reduzindo os custos da máquina
pública, e, principalmente, absorvendo toda a cultura regulatória
obtida nos quase dez anos3 de experiência da extinta CSPE.

Nesse sentido, não é demais lembrar que a CSPE é marcada por


ações pioneiras na sua relação com os usuários dos serviços públicos
supracitados. Cite-se, por exemplo, a criação da sua Ouvidoria4 logo
no primeiro ano de sua atuação, antes mesmo da publicação da Lei
Estadual nº 10.294, de 20 de abril de 1999, que dispõe sobre a proteção
e defesa do usuário do serviço público do Estado, e estabelece a
obrigatoriedade de implantação de ouvidoria em todos os órgãos e
entidades prestadores de serviços públicos no estado de São Paulo.
Além disso, foi adotada a pesquisa de satisfação junto aos usuários
dos serviços públicos, como forma de aprimorar a qualidade da
regulação. Todas essas experiências certamente norteiam até hoje
o trabalho desenvolvido pela Arsesp.

3
A CSPE foi criada pela Lei Complementar nº 833, de 17 de outubro de 1997.
4
A Ouvidoria da CSPE equivale ao Serviço de Atendimento aos Usuários da Arsesp, cujo
principal objetivo consiste em oferecer aos usuários dos serviços públicos um suporte
para o registro de reclamações, quando encontram-se esgotadas as oportunidades de
entendimento direto entre usuário e prestador, esclarecer dúvidas e informar os direitos e
Avenida Paulista, São Paulo/SP
deveres dos que fornecem e daqueles que utilizam os serviços regulados.
Depositphotos

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Capítulo 1 Introdução

Além do aproveitamento da cultura regulatória que já vinha Da Diretoria de Relações Institucionais


sendo desenvolvida pela extinta CSPE, a Arsesp passou a
desempenhar outras atividades para alcançar os seus objetivos, Das cinco diretorias que compõem a estrutura da Arsesp –
em particular a manutenção do delicado equilíbrio que deve Diretoria Econômico-Financeiro, Diretoria de Relações Institucionais,
haver entre os titulares dos serviços, os prestadores e, por fim, Diretoria de Regulação Técnica e Fiscalização de Serviços de Energia
mas não menos importante, os usuários. Essas atividades zelam Elétrica, Diretoria de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de
Saneamento Básico e Diretora de Regulação Técnica e Fiscalização dos


para que as políticas públicas setoriais atinjam seus propósitos,
proporcionando desenvolvimento econômico, bem-estar e Serviços de Gás Canalizado – é a Diretoria de Relações Institucionais
qualidade de vida à população. (DRI) a responsável pela interface direta com os usuários, sobretudo
informando, orientando e mediando conflitos entre estes e os
prestadores dos serviços regulados.

Porém, no plano institucional, as atribuições da DRI ultrapassam


ao longe essa relevante tarefa.
devido ao legado transmitido
Sendo o deficit de participação social na definição e controle
pela CSPE, o cidadão paulista de políticas e decisões na esfera pública traço ainda presente na
conta com a proteção da democracia brasileira, ele se faz sentir de maneira ainda mais aguda
no campo da regulação.
regulação dos serviços públicos A par da notória dificuldade do Poder Público em se comunicar de
há praticamente 20 anos maneira simples, clara e objetiva com o cidadão, quando o assunto
é regulação, tem-se como agravantes desse quadro a enorme
complexidade de muitos dos temas tratados, os quais muitas vezes
Algumas das suas atividades merecem destaque, como o encerram questões técnicas, econômicas e jurídicas, o linguajar
monitoramento da qualidade dos serviços públicos prestados aos tecnicista e a pouca efetividade que os instrumentos de participação
cidadãos; o acompanhamento do cumprimento dos contratos de frequentemente utilizados, tais como consulta e audiência públicas,
serviços públicos pactuados com o poder concedente; a definição de entregam em face dessa realidade assimétrica.
tarifas justas e que assegurem a manutenção do equilíbrio econômico
Logo, entre os principais desafios do regulador, insere-se o de ampliar
e financeiro dos contratos regulados, bem como o atendimento à
a participação social no processo regulatório, notadamente em relação
população e a mediação de conflitos.
ao vértice do triângulo – figura que simboliza melhor seu papel – mais
Por tudo o que foi exposto, embora este livro marque os 10 anos da distante – embora por vezes mais afetado – de suas decisões: o usuário.
Arsesp, é correto afirmar que, devido ao legado transmitido pela CSPE,
É fundamental, portanto, esforço permanente do ente regulador em
o cidadão paulista conta com a proteção da regulação dos serviços
busca da governança regulatória, baseada no ideal da transparência,
públicos há praticamente 20 anos.
como forma de promover a melhoria contínua da qualidade da regulação,
a fim de que esta alcance seus objetivos primordiais, dentre os quais,
o desenvolvimento econômico sustentável e o bem-estar social.

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Capítulo 1 Introdução

Para tanto, não só o instrumental cotidianamente empregado acentuados de atenção, dada sua grande importância para a política
(audiências e consultas públicas e pesquisas de satisfação dos usuários) de participação e engajamento da Arsesp.
há de ser aperfeiçoado, como se faz necessário também o incremento de
Trata-se de um processo contínuo, que tem sido conduzido pela
mecanismos que elevem ainda mais o grau de aderência e legitimidade
Arsesp ao longo desses dez anos de regulação – que somados aos
das decisões regulatórias, merecendo destaque, entre eles, os que
nove de CSPE representam praticamente duas décadas –, permitindo-
proporcionam maior controle social destas, como a análise de impacto
lhe alcançar elevado e reconhecido nível de maturidade institucional,
regulatório (AIR).
fruto, em larga escala, também do comprometimento e da qualidade
Esta também é a conclusão a que parece chegar Roberto Pfeiffer, técnica de seus quadros e da autonomia e independência decisória
autor do capítulo subsequente, “Agências reguladoras e proteção do que lhe é assegurada por seu arcabouço jurídico institucional.
consumidor”, ao afirmar que “os órgãos reguladores devem assegurar
O compromisso permanente da Arsesp é, portanto, o de ampliar a
aos consumidores ampla informação e participação no processo
comunicação e a articulação com a sociedade, abrindo maior espaço
decisório (por mecanismos como as consultas e audiências públicas)
para seu engajamento no trabalho da agência, possibilitando assim que
e devem levar em consideração o bem-estar do consumidor como um
as partes envolvidas e afetadas pela regulação, em especial os usuários
dos interesses a serem sopesados e balanceados”.
dos serviços públicos, ao mesmo tempo sejam capazes de depositar
sua confiança no ente regulador e percebam-se nesse processo não
Transparência e confiança: elementos-chave para apenas como sujeitos de direitos, senão, e principalmente, como
o fortalecimento institucional agentes transformadores do ambiente regulatório, dando concretude
ao ideal de cidadania.
Tal propósito tem norteado substantiva parte das ações da Arsesp
no plano institucional, notadamente com o desenvolvimento do projeto Depositphotos

denominado “Transparência e Participação”.

Em curso na agência desde o final de 2015, o projeto Transparência


e Participação tem como objetivos precípuos: (i) a análise da situação
atual da Arsesp em relação à transparência de suas ações, atos e
decisões e em relação à participação da sociedade em seu processo
decisório; (ii) o emprego das ações identificadas como necessárias
para adequar a agência à legislação em vigor; e (iii) a propositura de
medidas para aprimorar a transparência e a participação utilizando
como referência os princípios de boas práticas de governança
regulatória e ações bem-sucedidas adotadas por outras entidades
reguladoras mais avançadas no tema.

Passados quase três anos é possível afirmar ter havido significativo


avanço na disponibilização de informações e documentos previstos no
arcabouço legal a que se submete a Arsesp, assim como melhoria nos
processos de Consulta e Audiência Pública promovidos pela agência.
Já a Ouvidoria e os conselhos de orientação devem ser focos mais * Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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Capítulo 1

Agências reguladoras e
proteção do consumidor
Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer1
a prestação do serviço, já que a “livre” negociação seria impossível
ou extremamente desvantajosa para os usuários.

Agências reguladoras não são órgãos de defesa A regulação incide também sobre os parâmetros de qualidade do

T
do consumidor serviço regulado, o que inclui o estabelecimento de padrões técnicos,
para ser efetivada uma prestação eficiente do serviço.4

Portanto, são substancialmente amplas as atribuições a cargo das


agências reguladoras, abarcando, por exemplo, o poder normativo,
Tradicionalmente, a regulação econômica tem seus
a fiscalização do cumprimento da regulação. Além disso, elas
fundamentos associados às falhas de mercado: concentração
zelam pela não degradação dos serviços e pelo incremento de sua
do poder de mercado, externalidades, bens públicos (bens
qualidade.5 Se bem executada, a tarefa pode ser um importante
de uso comum) ou assimetria de informação. Mercados
eixo desencadeador de distribuição e difusão do conhecimento.6
estruturalmente concentrados são potencialmente geradores
de externalidades negativas sobre outros agentes econômicos A natureza das atividades das agências reguladoras deixa claro
e com fluxo desigual de informações2. A corrente denominada que não são órgão de defesa do consumidor, já que a regulação
Normative analysis as a positive theory (NPT) defende que a econômica não visa exclusivamente aumentar ou preservar seu o
fim de evitar que tais características diminuíam o bem-estar bem-estar.
geral, uma alternativa seria adotar regulação específica
e especializada.3 Por não serem órgãos de defesa do consumidor não integram
o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (art. 105 da Lei
Em se tratando de serviços públicos, especialmente se 8.078/1990). Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 6.621,
prestados em regime de exclusividade, a agência reguladora de 2016,7 cujo art. 33 corrobora tal conclusão, ao determinar que
normalmente tem a incumbência de fixar a tarifa que remunera
4
POSSAS, M.; FAGUNDES, J.; PONDÉ, J. Defesa da concorrência e regulação de setores de
infraestrutura em transição. XXVI Encontro Nacional de Economia. Vitória: ANPEC, v. 2,1998.
1
Professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Doutor e 5
SUNDFELD, C. A. Introdução às agências reguladoras. In: SUNDFELD, C. A. (Org.). Direito
mestre pela USP. Procurador do estado de São Paulo. Foi Diretor Executivo da Fundação Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 35.
PROCON de São Paulo, Conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), 6
SALOMÃO FILHO, C. Regulação da atividade econômica. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 41.
Consultor Jurídico do Ministério da Justiça, Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal Há, no entanto, corrente doutrinária, ligada à teoria da captura, que é bem mais pessimista,
e Presidente Nacional do Brasilcon. entendendo que a regulação tende sempre a favorecer o agente econômico regulado. Tal
2
VISCUSI, W. K.; HATTINGTON JR., J. E.; VERNON, J. M. Economics of regulation and antitrust. perspectiva será desenvolvida nos itens IV e V do artigo.
Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1995. 7
O PL 6.621/2016 encontra-se atualmente sob apreciação de uma Comissão Especial da
3
A propósito da NPT ver: JOSKOW, P. L.; NOLL, R. C. Regulation in theory and practice: Câmara dos Deputados, após a sua aprovação pelo Senado Federal (onde tramitou sob
an overview. In: FROMM, G. Studies in public regulation. Cambridge, Massachusetts: MIT a denominação de PLS nº 52/2013. Disponível em: https://bit.ly/2McllD8. Acesso em:
Press, 1981. 5 fev 2017.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 17 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

as agências reguladoras se articulem com o Sistema Nacional de a demonstrar que os serviços por ela regulados submetem-se, sem
Defesa do Consumidor (SNDC), podendo, para tanto, firmar convênios exceção, aos preceitos do Código de Defesa do Consumidor (CDC),


e acordos de cooperação8. Somente faria sentido determinar tal que não podem ser desconsiderados em sua atividade normativa.
articulação se as agências reguladoras não compusessem o SNDC,
o que corrobora a conclusão de que elas não têm a natureza de Aplicação do Código de Defesa do Consumidor
órgão de defesa do consumidor. aos setores econômicos sujeitos à regulação

Atividades econômicas em sentido estrito


os órgãos reguladores devem
assegurar aos consumidores Todos os setores econômicos são submetidos aos preceitos do

ampla informação e participação Código de Defesa do Consumidor. Neste sentido é claríssima a norma
do art. 3º da Lei 8.078/1990, que não excetua nenhuma atividade
no processo decisório econômica em sentido estrito do âmbito de sua aplicação.

Tal interpretação restou definitivamente consolidada com a decisão


Porém, os órgãos reguladores devem assegurar aos consumidores
do Supremo Tribunal Federal no julgamento de improcedência da
ampla informação e participação no processo decisório (por
ação direta de inconstitucionalidade 2.591, que entendeu plenamente
mecanismos como as consultas e audiências públicas) e devem
harmônica com a Constituição Federal a aplicação do CDC aos
levar em consideração o bem-estar do consumidor como um dos
serviços prestados por empresas pertencentes ao Sistema Financeiro
interesses a serem sopesados e balanceados.
Nacional que envolvam relação de consumo. Transcrevo a ementa
Infelizmente, constata-se insuficiente participação dos consumidores do acórdão, que tem a seguinte redação após a apreciação dos
no processo decisório das agências reguladoras, motivo pelo qual embargos de declaração:
seus interesses normalmente são desconsiderados, como será ainda
discutido neste capítulo. Art. 3º, § 2º, do CDC. Código de defesa do consumidor. Art. 5º, xxxii, da cb/88.
Art. 170, v, da cb/88. Instituições financeiras. Sujeição delas ao código de defesa
Além disso, as agências não podem desrespeitar as leis de proteção do consumidor. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.
do consumidor. A próxima seção deste capítulo é justamente dedicada
1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência
8
Transcrevo a aludida proposição: “Art. 33. No exercício de suas atribuições, e em articulação
das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor.
com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) e com o órgão de defesa do
consumidor do Ministério da Justiça e Cidadania, incumbe às agências reguladoras zelar pelo
2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor,
cumprimento da legislação de defesa do consumidor, monitorando e acompanhando as é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final,
práticas de mercado dos agentes do setor regulado. § 1º As agências reguladoras poderão atividade bancária, financeira e de crédito.
articular-se com os órgãos e as entidades integrantes do SNDC, visando à eficácia da proteção
e defesa do consumidor e do usuário de serviço público no âmbito das respectivas esferas 3. Ação direta julgada improcedente. 9
de atuação. § 2º As agências reguladoras poderão firmar convênios e acordos de cooperação
com os órgãos e as entidades integrantes do SNDC para colaboração mútua, sendo vedada a
delegação de competências que tenham sido a elas atribuídas por lei específica de proteção 9
ADI 2591 ED/DF, Relator para Acórdão:  Ministro Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em
e defesa do consumidor no âmbito do setor regulado”. 14/12/2006, DJ 13/04/2007.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 18 / 108
Capítulo 2 Agências reguladoras e proteção do consumidor

O impacto do julgamento extrapolou os limites do Sistema


Financeiro Nacional. Isto porque reafirmou a dimensão
constitucional da proteção da defesa do consumidor, que é um
direito fundamental (art. 5º, XXXII) e um princípio conformador da
ordem econômica (art. 170, V) que serve de padrão hermenêutico
para interpretar as regras de defesa do consumidor. Foi, assim,
sua matriz constitucional que subsidiou o entendimento acerca
da amplitude horizontal da aplicação do Código de Defesa do
Consumidor: todas as atividades econômicas submetem-se às
disposições de proteção do consumidor.10

Portanto, o cumprimento do dever de legislar estipulado pela


Constituição Federal demandava que a lei protegesse o consumidor
em face de todos os serviços e produtos ofertados no mercado
de consumo.

Neste contexto, nenhum setor da economia pode ser considerado


imune à aplicação do CDC.11 Isso inclui todos os serviços prestados
por agentes econômicos submetidos à regulação, como, por
exemplo, os serviços financeiros (regulados pelo Banco Central do
Brasil), securitários (regulados pela Superintendência de Seguros

10
PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Código de defesa do consumidor e sistema financeiro
nacional: primeiras reflexões sobre o julgamento da ADIn 2.591. In: MARQUES, C. L.; ALMEIDA,
J. B.; PFEIFFER, R. A. C. Aplicação do código de defesa do consumidor aos bancos: ADIn 2.591,
op. cit., p. 279-300.
11
Neste sentido são preciosas as seguintes observações contidas no voto do Ministro Celso de
Mello na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.591: “Neste contexto, a atuação normativa
do Poder Público, como aquela consubstanciada na legislação de defesa do consumidor,
vocacionada a coibir, com fundamento na prevalência do interesse social, situações e práticas
abusivas que possam comprometer a eficácia do postulado constitucional de proteção e
amparo do consumidor (que representa importante vetor interpretativo na ponderação e
superação das relações de antagonismo que se registram no mercado de consumo) justifica-
se ante a necessidade – que se impõe ao Estado – de impedir que as empresas e os agentes
econômicos em geral, qualquer que seja o domínio em que exerçam as suas atividades,
afetem e agravem a situação de vulnerabilidade a que se acham expostos os consumidores.
Os agentes econômicos não têm, nos princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência,
instrumentos de proteção incondicional. Estes postulados constitucionais – que não ostentam
valor absoluto – não criam, em torno dos organismos empresariais, inclusive das instituições
financeiras, qualquer círculo de imunidade que os exonere dos gravíssimos encargos cuja
imposição, fundada na supremacia do bem comum e do interesse social, deriva do texto da
própria Carta da República”.
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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 19 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

Privados – Susep) ou os planos de assistência privada à saúde educação, etc. Podem ser também impróprios e individuais, com
(regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar). destinatários determinados ou determináveis. Neste caso, têm uso
específico e mensurável, tais como os serviços de telefone, água e
Serviços públicos energia elétrica.

Os serviços públicos impróprios podem ser prestados por órgãos da


Nem todos os serviços públicos submetem-se às disposições administração pública indireta ou, modernamente, por delegação,
do CDC. Com efeito, os serviços públicos de natureza indivisível e como previsto na CF (art. 175). São regulados pela Lei 8.987/95, que
prestados de maneira universal, que não têm remuneração específica, dispõe sobre a concessão e permissão dos serviços público.
são custeados sobretudo por impostos que não estão sujeitos à 3. Os serviços prestados por concessionárias são remunerados por
incidência da legislação de proteção do consumidor.12 É o que ocorre, tarifa, sendo facultativa a sua utilização, que é regida pelo CDC, o que
por exemplo, com a segurança, iluminação ou saúde públicas. Não há a diferencia da taxa, esta, remuneração do serviço público próprio. 14
relação de consumo, mas de cidadania, em que o direito à utilização
do serviço público advém do fato de o usuário residir no Brasil e a ele Afastou-se, ainda, a incidência do CDC em serviços públicos de
fazer jus por disposição constitucional e não por haver remunerado natureza compulsória – por exemplo, coleta de lixo domiciliar ou
o seu usufruto. fiscalização, que são remunerados por taxa. Nessas hipóteses a
Consolidou-se, assim, a interpretação majoritária da doutrina e prestação do serviço é de natureza compulsória e instaura-se uma
jurisprudência no sentido de que o CDC se aplica exclusivamente relação tributária e não de consumo entre o Estado e o particular.15
aos serviços públicos de caráter divisível, remunerados por tarifa Assim, a posição prevalecente da doutrina e jurisprudência é a
ou preço público e prestados de maneira uti singuli.13 É o caso dos de limitar a incidência do CDC nas hipóteses de serviços públicos
serviços de água, tratamento de esgoto e gás canalizado, por exemplo. uti singuli, prestados de forma divisível, ofertados no mercado de
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no consumo e remunerados por tarifa ou preço público.
sentido da última corrente. O acórdão paradigma dessa interpretação Depositphotos

foi proferido no julgamento do Recurso Especial no 525.500, cuja


ementa é a seguir transcrita:

Administrativo – Serviço Público – Concedido – Energia Elétrica – Inadimplência.

Os serviços públicos podem ser próprios e gerais, sem possibilidade


de identificação dos destinatários. São financiados pelos tributos e
prestados pelo próprio Estado, tais como segurança pública, saúde,

12
PFEIFFER, R. A. C. Serviços públicos concedidos e proteção do consumidor. Revista de Direito
do Consumidor, n. 36, p. 170-171, out-dez 2000. MACEDO JÚNIOR, R. P. A proteção dos
usuários de serviços públicos. In: SUNDFELD, C. A. (Org.). Direito administrativo econômico. 14
RESP 525500 – Rel. Min. Eliana Calmon – Segunda Turma – DJ de 10 maio de 004.
São Paulo: Malheiros, 2002, p. 243. 15
RESP 463331 – Rel. Min. Eliana Calmon – Segunda Turma – DJ de 23.08.2004, p. 178.
13
PFEIFFER, R. A. C. Código de defesa do consumidor e serviços públicos: balanços e perspectivas.
Revista de direito do consumidor, v.25, n. 104, mar-abr. 2016, p. 65-98.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 20 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

Distinção entre usuário e consumidor de serviços públicos empresa de fabricação de toalha alegou existência de relação de
consumo com fornecedora de algodão, tese esta rejeitada pelo STF19.

Há muito venho defendendo que, em se tratando de serviço público O segundo precedente importante é o já citado julgamento da
e de seus utilizadores, devemos trabalhar com o conceito de usuário ADI 2.591, em que o STF, ao interpretar constitucional a aplicação do
como gênero e de consumidor como espécie16. Isso porque mesmo na Código de Defesa do Consumidor aos serviços financeiros, ressaltou


prestação de serviço público de natureza divisível remunerado por a importância do destino final econômico para a configuração da
tarifa nem sempre incidirá relação de consumo, pois nem todos os que relação de consumo em tais serviços.20
utilizam o serviço público podem ser considerados consumidores.17
Já a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ao longo de
quinze anos, discutiu profundamente a matéria, havendo pacificado o
acatamento da teoria finalista pela Segunda Seção, sendo o principal
precedente a ser citado no Recurso Especial 541.867, com destaque
devemos trabalhar com o para o seguinte trecho:

conceito de usuário como gênero - A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural
ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua
e de consumidor como espécie atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim,
como uma atividade de consumo intermediária.

Somente será considerado consumidor a pessoa física ou jurídica - Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetência
que adquira ou use serviço público de natureza divisível como seu absoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar
destinatário final (art. 2º do CDC). Atualmente prevalece na doutrina a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, para determinar a
e jurisprudência a teoria finalista, que preconiza que o consumidor remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca”.21
é apenas o destinatário final econômico, ou seja, aquele que frui o
Após a pacificação, o Superior Tribunal de Justiça desenvolveu a
produto ou serviço para proveito próprio ou familiar, não o utilizando
teoria finalista mitigada, que permite a aplicação do Código de Defesa
em atividade econômica empresarial.18
do Consumidor ao consumo intermediário, ou seja, à aquisição de
Em dois relevantíssimos precedentes, o Supremo Tribunal Federal produtos ou serviços no âmbito de uma atividade econômica, desde
adotou a teoria finalista. O primeiro deles deu-se com o julgamento que seja demonstrada a vulnerabilidade no caso concreto. Transcrevo
de uma ação de homologação de sentença estrangeira em que ementa de acórdão representativo de tal entendimento:

19
SEC 5847 – Relator: Min. Maurício Corrêa – Tribunal Pleno – DJ 17-12-1999. O julgamento
foi objeto de comentários no artigo de MARQUES, C. L.; TURKIENICZ, E. Caso “T” vs. “A”: em
16
PFEIFFER, R. A. C. Aplicação do código de defesa do consumidor aos serviços públicos. Revista defesa da teoria finalista de interpretação do art. 2º do CDC. Revista de direito do consumidor,
de direito do consumidor, n. 65, jan-mar 2008, p. 226-252. v. 36, out-dez. 2000, São Paulo, p. 221-240.
17
PFEIFFER, R. A. C. Código de defesa do consumidor e serviços públicos: balanços e perspectivas. 20
ADI 2591 ED. Tribunal Pleno. Rel. Min. Eros Grau. Julgado em 14 de dezembro de 2006.
Revista de direito do consumidor, v. 25, n. 104, mar-abr. 2016, p. 65-98. “2. ‘Consumidor’, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física
18
Sobre o conceito econômico de consumidor ver: VIDIGAL, G. A lei de defesa do consumidor: ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito”.
sua abrangência. In: Cadernos ICBC 22: Lei de defesa do consumidor. São Paulo: ICBC, 1991, p. 21
REsp 541867 – Rel. para o acórdão: Ministro Barros Monteiro – Segunda Seção – DJ 16.05.2005,
5-27. p. 227.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 21 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

Direito civil. Consumidor. Agravo no recurso Especial. Conceito de A promulgação da Lei 13.460, de 25 de junho de 2017 somente
consumidor. Pessoa jurídica. Excepcionalidade. Não constatação. – reforçou a pertinência de tal distinção. Com efeito, trata-se da
A jurisprudência do STJ tem evoluído no sentido de somente admitir norma editada em cumprimento ao disposto no art. 37, § 3º da
a aplicação do CDC à pessoa jurídica empresária excepcionalmente, Constituição Federal.25
quando evidenciada a sua vulnerabilidade no caso concreto; ou por
A Lei 13.460/2017 aplica-se aos serviços públicos em geral,
equiparação, nas situações previstas pelos arts. 17 e 29 do CDC.22
definidos como “atividade administrativa ou de prestação direta
Em diversos julgamentos, o Superior Tribunal de Justiça ressalva a ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por órgão ou
possibilidade de permitir a aplicação do CDC a situações de consumo entidade da administração pública” (art. 2º, II). A norma conceitua
intermediário (ou seja, nas quais o adquirente é destinatário final usuário como “pessoa física ou jurídica que se beneficia ou utiliza,
fático, mas não econômico, pois utiliza o produto ou serviço no efetiva ou potencialmente, de serviço público” (art. 2º,, I).
desenvolvimento de atividade econômica). Porém, exige que seja
A incidência precípua da proteção estabelecida na Lei 13.460/2017
demonstrada a efetiva incidência de vulnerabilidade no caso concreto
são os serviços públicos prestados pela administração pública
analisado. Há, inclusive, precedentes específicos do STJ envolvendo
direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
a aquisição de serviços públicos por pessoas jurídicas empresárias.
Municípios. Porém, expressamente ressalva que suas disposições
Um exemplo é a contratação da prestação do serviço de telefonia
são aplicadas sem prejuízo de cumprimento do disposto: “I – em
fixa por empresa provedora de acesso à internet.23 Outro precedente
normas regulamentadoras específicas, quando se tratar de serviço ou
menciona a aquisição de energia elétrica por pessoa jurídica no âmbito
atividade sujeitos a regulação ou supervisão; e II – na Lei no 8.078, de


de sua atividade econômica.24 Em ambos os casos, no entanto, não
11 de setembro de 1990, quando caracterizada relação de consumo”
foi aplicado o CDC por ausência de comprovação de vulnerabilidade
(art. 1º,, § 2º). E estabelece, ainda, que suas disposições são aplicáveis
no caso concreto.
subsidiariamente aos serviços públicos prestados por particular
(art. 1º,, § 3º). 

Assim, a Lei 13.460/2017 aplica-se a todos os serviços públicos,


de maneira precípua e direta aos serviços públicos de prestação
Em diversos julgamentos, universal, não submetidos ao Código de Defesa do Consumidor.
o Superior Tribunal de Justiça E, subsidiariamente, sem prejuízo da incidência das normas
específicas e da aplicação do Código de Defesa do Consumidor,
ressalva a possibilidade de permitir aos serviços públicos de natureza divisível e remunerados por tarifa
ou preço público.
a aplicação do CDC a situações de
consumo intermediário 25
A norma constitucional estabelece: “A lei disciplinará as formas de participação do usuário
na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I – as reclamações
relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços
de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos
22
AgRg no REsp 687239 – Rel. Ministra Nancy Andrighi – Terceira Turma – DJ 02.05.2006, p. 307. serviços; II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de
23
REsp 660026 – Rel. Min. Jorge Scartezzini – Quarta Turma – DJ 27.06.2005, p. 409. governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; III – a disciplina da representação contra
24
REsp 661145 – Rel. Ministro Jorge Scartezzini – Quarta Turma – DJ 28.03.2005, p. 286. o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública”.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 22 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

Neste contexto é possível estabelecer que o “usuário de serviços Da mandatória observância da legislação de
públicos” é o gênero que abarca todos os utilizadores e beneficiários defesa do consumidor pelas agências reguladoras
de serviços públicos de qualquer natureza. Já “consumidor de serviços
públicos” é a espécie que compreende unicamente os adquirentes e Nas hipóteses em que houver relação de consumo, o CDC é
utilizadores de serviços públicos divisíveis, remunerados por tarifa ou plenamente aplicável aos serviços que são objeto de regulação
preço público e desde que se destinem à fruição pessoal ou familiar do econômica, sejam atividade econômica em sentido estrito,
usuário, dissociada do desenvolvimento de uma atividade econômica. sejam serviços públicos. Em tais hipóteses, as normas de
Neste caso, o consumidor será o destinatário final econômico do defesa do consumidor não poderão ser desrespeitadas pelas
serviço público, pois não o utilizará no desenvolvimento ou no agências reguladoras.26
incremento de uma atividade econômica.
No entanto, nem sempre as agências reguladoras observam
Assim, não existirá relação de consumo quando o uso do serviço a legislação de proteção dos consumidores no momento de
público uti singuli for instrumental ao desenvolvimento de atividade editar suas normas regulamentadoras. Um patente exemplo
empresarial. É o caso da aquisição de serviço de energia elétrica, água, de desrespeito ao CDC deu-se com a Agência Nacional de
saneamento básico ou telefonia fixa comutada por uma empresa, que Telecomunicações ao editar resolução com dispositivo que
será considerada usuária do serviço público (mas não consumidora). desrespeitava preceito do CDC e, portanto, era inválido. De fato, o
parágrafo único do art. 65 da Resolução 85 da Anatel determinava,
Porém, excepcionalmente, o CDC poderá ser aplicado na hipótese
em caso de cobrança indevida no serviço de telefonia fixa
de utilizar o serviço público uti singuli no exercício de atividade
comutada, a devolução simples do valor cobrado mais os
empresarial, caso esteja presente, no caso concreto, uma situação
respectivos encargos, o que contrariava o texto expresso no
de vulnerabilidade (técnica, econômica ou jurídica). Seria, assim,
art. 42, parágrafo único do CDC. A norma foi posteriormente
por exemplo, o caso de um modesto profissional liberal que usa o
revogada pela Anatel com a Resolução 426, de 9 de dezembro de
serviço de energia elétrica em seu escritório.
2007, cujo artigo 98, parágrafo único, determina a devolução em
dobro ao usuário que efetuar o pagamento de quantia cobrada
Pxhere indevidamente, em consonância com o CDC.

A Resolução 567, de 24 de maio de 2011 da Anatel, é bom


exemplo de normatização harmônica com a legislação de defesa
do consumidor, uma vez que alterou regulamentos de diversos
serviços a fim de adequá-los às disposições do Decreto 6.523, de
31 de julho de 2008, que, por seu turno, regulamentou a Lei 8.078,
de 11 de setembro de 1990, para fixar normas gerais sobre o Serviço
de Atendimento ao Consumidor (SAC).

26
Aliás, o art. 33 do PL 6.621/2016, transcrito na nota de rodapé no 8, estabelece que
incumbe às agências reguladoras zelar pelo cumprimento da legislação de defesa
do consumidor.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 23 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

Participação dos consumidores no processo reguladoras, a ponto de a doutrina trabalhar com o conceito de
decisório das agências reguladoras princípio da participação do usuário no controle da prestação dos
serviços públicos.28
O direito dos consumidores de participar do processo decisório das
Como exemplo de normas que determinam essa participação
agências reguladoras assume grande relevância, tendo em vista que
destaco a Lei 9478/1997, cujo art. 19 impõe a realização de audiências
serviços essenciais como telefonia, distribuição de energia elétrica, gás
públicas nos seguintes casos:
natural ou água, normalmente são submetidos ao crivo de agências
reguladoras, que têm amplos poderes de regulação setorial. Art. 19. As iniciativas de projetos de lei ou de alteração de normas
administrativas que impliquem afetação de direito dos agentes
Esses órgãos são responsáveis por decisões que afetam os
econômicos ou de consumidores e usuários de bens e serviços da
interesses econômicos dos consumidores, como, por exemplo,
indústria do petróleo serão precedidas de audiência pública convocada
a fixação dos parâmetros de cálculo das tarifas cobradas ou o
e dirigida pela ANP.
estabelecimento de normas sobre a qualidade, adequação e eficiência
dos serviços prestados. Destaco, a seguir, a legislação pertinente ao setor de energia
elétrica. O art. 13 da Lei 8.631, de 4 de março de 1993, estabelece
Neste contexto, diversos autores acentuam a importância da
o dever do concessionário de serviço público de distribuição
participação dos consumidores no processo decisório das agências
de energia elétrica criar, no âmbito de sua área de concessão,
reguladoras, a fim de contrabalançar não apenas o poder econômico
conselho de consumidores de caráter consultivo, “composto por
dos agentes econômicos regulados, mas também seu inegável
igual número de representantes das principais classes tarifárias,
poder político.27
voltado para orientação, análise e avaliação das questões ligadas
Há várias normas que estabelecem o direito de participação ao fornecimento, tarifas e adequação dos serviços prestados ao
dos consumidores e usuários no processo decisório das agências consumidor final”.

Por seu turno, o art. 21 do anexo I do Decreto 2.335/1997


estabelece a obrigatoriedade da Aneel de promover audiência
27
Neste contexto, reproduzo as seguintes considerações de Ronaldo Porto Macedo Júnior,
op. cit., p. 252: “Sendo assim, o significado do Código de Defesa do Consumidor no campo pública precedendo o processo decisório para elaborar ato
dos serviços públicos é garantir a defesa do consumidor-usuário, ampliando o grau de administrativo ou anteprojeto de lei que tenha relação com direitos
participação qualitativa deste. Este diploma legal, ao falar em equilíbrio contratual, não
dos consumidores.
prevê apenas o equilíbrio econômico do contrato, mas trata do equilíbrio entre direitos
e obrigações. Isto significa dizer que o direito de participar pode e deve ser visto como
Há ainda espaços institucionais com a presença de representantes
um direito político do consumidor-usuário. Em outras palavras, a interpretação que nós
fazemos do Código não deve se limitar a entendê-lo como um meio legal que veio para dos consumidores. Por exemplo, no setor de telecomunicações
proteger os interesses econômicos dos consumidores, mas também como instrumento merece menção a existência do Conselho Consultivo da Anatel, que
para garantir os interesses políticos, garantir o direito a voz, garantia daquilo que alguns
autores têm chamado de uma ‘mais-valia política’. Neste sentido, o fornecedor de
serviço não pode se apropriar do ‘lucro excessivo’, como também não pode se apropriar
do ‘poder político excessivo’ (mais-valia política) que detém em razão de sua posição 28
“Hoje se desenvolve o que se pode chamar de ‘princípio da participação’ e que tem a sua
no mercado. Há um princípio e dever de solidariedade, de socialização dos lucros e origem nos diferentes textos associando os usuários dos serviços públicos à definição
poder pressuposto na principiologia do Código de Defesa do Consumidor. Por tal, o das regras de organização e de seu funcionamento, a fim de que as necessidades reais
próprio Estado, quando age em favor de algum grupo, deve pautar-se pelo princípio dos usuários sejam melhor levadas em consideração” (Grotti, A. M. Teoria dos serviços
da solidariedade. Este me parecer ser um capítulo novo e importante na defesa dos públicos e sua transformação. In: Sundfeld, C. A. Direito Administrativo Econômico. São
interesses dos usuários-consumidores”. Paulo: Malheiros, 2000, p. 58).

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 24 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

nos termos de seu art. 33 da Lei 9472/1997 “é o órgão de participação


institucionalizada da sociedade na Agência”.29

Suas funções são de natureza consultiva, destacando-se as


atribuições de: “opinar, antes de seu encaminhamento ao Ministério
das Comunicações, sobre o plano geral de outorgas, o plano geral
de metas para universalização de serviços prestados no regime
público e demais políticas governamentais de telecomunicações” e
de “aconselhar quanto à instituição ou eliminação da prestação de
serviço no regime público” (art. 35 da Lei 9.472/1997).

Assimetria de participação dos consumidores


e captura técnica das agências reguladoras
Não basta apenas prever a possibilidade de participação, sem
conferir às associações e órgãos de defesa do consumidor condições
para que seja efetiva. Na verdade, há enorme assimetria de informações
entre fornecedores dos serviços regulados e seus usuários, sendo
que estes, via de regra, enfrentam dificuldade de acesso a essas
informações, além de terem parcos recursos para se capacitar a
apresentar contribuições para a regulação.

A discrepância de conhecimentos técnicos e de recursos financeiros


entre fornecedores e consumidores ocasiona notável déficit de
participação, o que contribui para que a regulação efetivada pelas
agências reguladoras não leve em consideração os seus interesses,
que na maior parte das vezes não são adequadamente identificados,
defendidos ou sequer vocalizados.

Esse fator agrava ainda mais a captura técnica30 de que padecem as


agências reguladoras, pois elas próprias dispõem de recursos humanos,
materiais e técnicos inferiores aos agentes econômicos regulados.

29
Dispõe o art. 34 da LGT: “O Conselho será integrado por representantes indicados pelo
Senado Federal, pela Câmara dos Deputados, pelo Poder Executivo, pelas entidades de
classe das prestadoras de serviços de telecomunicações, por entidades representativas
dos usuários e por entidades representativas da sociedade, nos termos do regulamento”.
30
Sobre o fenômeno geral da captura ver: BAGATIN, A. C. O problema das agências reguladoras
independentes. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2010.
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Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 25 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

Eloquente exemplo das consequências negativas do déficit de poucos agentes e os custos são difusos na sociedade. Transportando
participação ocorreu com a tarifa de energia elétrica, em razão essas reflexões para o ambiente da regulação, é imperioso observar
de equivocada metodologia adotada pela Aneel que permitiu às como se formam grupos de interesse que buscam influenciar as
concessionárias efetivar repasses indevidos às tarifas cobradas dos decisões dos órgãos reguladores, sendo o mais proeminente e
consumidores, ocasionando o pagamento de valores superiores aos poderoso formado pelos agentes econômicos diretamente regulados.32
que seriam efetivamente devidos. O Tribunal de Contas da União
A crítica aos pressupostos da Normative Analysis as a Positive Theory
detectou essa gravíssima falha que acarretou prejuízos substanciais
(NPT) para justificar a criação e atuação das agências reguladoras 33
aos consumidores brasileiros e determinou que a agência revisasse
foi aprofundada sobretudo por George Stigler, que desenvolveu a
a metodologia adotada e efetivasse a necessária compensação.31
teoria da captura das agências reguladoras.34
Tais exemplos reforçam a pertinência de uma questão levantada
O artigo trata a regulação como um “produto” cuja “oferta” é
pela doutrina: o risco de captura das agências reguladoras, o que pode
monopólio do Governo, decorrente dos poderes conferidos ao Estado.
levar à edição de normas ou à tomada de decisões que favorecem os
O principal “demandante” é o próprio setor econômico regulado, que
regulados, muitas vezes em detrimento da sociedade e dos usuários.
se organiza como um grupo de interesse, desenvolvendo eficientes
Fugiria ao escopo do presente ensaio o aprofundamento do métodos para obter as normas que lhe beneficie.
tema da captura, que é polêmico e com várias nuances. Cumpre
Também destaca que a regulação, como atividade estatal, sofre
apenas destacar que a crítica a distorções que a atuação das agências
influxos típicos da lógica política, segundo os quais os agentes
reguladoras pode criar tem vários matizes.
públicos, em vez de buscar o bem comum, agem como maximizadores
Um ponto de partida importante é o ensaio de Mancur Olson, que de seus interesses pessoais.
destacou a existência de grupos de interesses que interferem ativa e
Nesse cenário, as agências e os agentes públicos com poder
continuamente na esfera política e no acesso a bens públicos. O autor
decisório que as integram são sujeitos à captura pela indústria
demonstra que há incentivos à aglutinação de grupos de interesse
que regulam, tomando decisões que favorecem o setor regulado.
extremamente ativos, principalmente em situações em que os
Destaca-se, assim, que muitas das decisões são tomadas para proteger
benefícios trazidos por determinada política pública concentram-se em
as empresas incumbentes de potenciais concorrentes, criando, por
exemplo, parâmetros quantitativos que podem constituir barreiras
artificiais à entrada de novos agentes econômicos,35 ou estabelecendo
31
No Acórdão 2.210/2008-TCU-Plenário, a Corte de contas determinou à Agência Nacional de
Energia Elétrica, com fundamento no inciso I do art. 14 da Lei 9.427/1996 e no § 1o do art.
6o da Lei 8.987/1995, que: “9.1.1. ajuste a metodologia atual de reajuste tarifário presente no
contrato de concessão da CELPE, corrigindo as seguintes inconsistências: 9.1.1.1. a Parcela 32
Olson, M. The logic of collective action: public goods and the theory of groups. Cambridge,
B calculada no reajuste tarifário absorve indevidamente os ganhos de escala decorrentes do Massachusetts: Harvard University Press, 2002.
aumento de demanda; 9.1.1.2. os ganhos de escala, decorrentes do aumento da demanda, 33
Os argumentos desenvolvidos pela NPT para justificar a regulação estatal foram indicados
não são repassados para o consumidor, provocando o desequilíbrio econômico-financeiro no item I deste artigo.
do contrato; 9.1.2. apresente ao TCU, no prazo de 60 (sessenta) dias, um cronograma de 34
Stigler, G. The Theory of Economic Regulation. Bell journal of economics, v. 2, p. 3-21, 1971.
implementação dos ajustes metodológicos referidos no subitem 9.1; 9.1.3. avalie o impacto, 35
É o caso, por exemplo, da fixação de capital mínimo para desenvolver determinada
no equilíbrio econômico-financeiro do contrato, da metodologia utilizada nos reajustes da atividade. Evidentemente, pode haver razões plausíveis para estabelecer um valor mínimo
CELPE desde o início da concessão até a presente data; 9.1.4. apresente ao TCU, no prazo de de capital, a fim de evitar que empresa sem qualquer condição de prestar o serviço integre
60 (sessenta) dias, a avaliação referida no item 9.1.3; 9.1.5. estenda os ajustes metodológicos a indústria em questão, como ocorre, por exemplo, no sistema financeiro. Por outro lado, o
que vierem a ser feitos no contrato da CELPE às demais empresas concessionárias de energia estabelecimento de valor desarrazoadamente elevado implica arbitrária barreira à entrada
elétrica do país”. de novos agentes econômicos.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 26 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

controles que evitem “guerra de preços” entre as empresas ou fixando mesmo em uma perspectiva que reconheça a importância da atividade
padrões de qualidade inferiores aos que deveriam ser impostos. reguladora é importante reconhecer que ela está inserida em um


contexto de disputa de grupos de interesse, que, por sua magnitude
A tese central do ensaio de George Stigler é que a edição de normas
econômica e técnica, podem tentar capturar os reguladores com o
reguladoras é solicitada sobretudo pela própria indústria regulada
intuito de que sua atividade lhes favoreça.
e, assim, desenhada e operada primariamente para seu benefício36.

O necessário aperfeiçoamento dos mecanismos


de participação dos consumidores
é preciso analisar as potenciais A captura técnica é substancialmente reforçada pela pequena
deficiências que a atividade participação dos consumidores: em razão da disparidade de
conhecimentos técnicos e em decorrência da assimetria de
reguladora pode apresentar, a fim informações, a regulação é desbalanceada em favor dos agentes
econômicos regulados.
de procurar evitá-las
Neste contexto, destaco o diagnóstico feito pelo Instituto de
Defesa do Consumidor (IDEC), que ressalta o consumidor como uma
A questão da captura está inserida em um contexto maior de
voz fraca e poucas vezes ouvida na regulação dos serviços públicos.
críticas direcionadas às agências reguladoras, efetivadas sobretudo
pela doutrina da escolha pública (public choice theory), que destaca as Em razão desse déficit de participação, a regulação é ineficiente,
falhas de governo que distorcem a atuação estatal. Um dos aspectos acarretando grande quantidade de conflitos de consumo na área de
ressaltados é o de que normalmente os políticos (e os agentes serviços regulados. Tal quadro gera muitas reclamações perante os
públicos por eles indicados) agem movidos pelo autointeresse, órgãos de defesa do consumidor e intensa judicialização de matérias
tomando decisões que lhes beneficiem, ainda que em detrimento que poderiam ser resolvidas por uma regulação mais harmônica
do interesse público.37 e adequada.38
Essa perspectiva é muitas vezes apropriada por defensores de Em razão desse diagnóstico o IDEC desenvolveu o Projeto BR-M1035,
pequena intervenção do Estado. Obviamente, não é esta a intenção com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
deste artigo, dado que entendo importante a função reguladora com vistas ao fortalecimento da capacidade técnica da participação
do Estado. social na regulação.
Porém, é preciso analisar as potenciais deficiências que a atividade Desta forma, é imprescindível que as agências reguladoras adotem
reguladora pode apresentar, a fim de procurar evitá-las. Assim, as seguintes medidas, que tendem a aperfeiçoar os mecanismos de
participação dos consumidores: disponibilização de informações
36
Stigler, G. The theory of economic regulation, op. cit., p. 3.
37
Shaw, J. S. Public Choice Theory. The concise enciclopedia for economics. In: http://bit.ly/2y4Vdpb.
Acesso em: 20 set 2017. Transcrevo o seguinte trecho: “Public choice takes the same principles 38
Ver, a propósito, LAZZARINI, M. A voz dos consumidores nas agências reguladoras. In:
that economists use to analyse people’s actions in the marketplace and applies them to http://docslide.com.br/documents/wwwidecorgbr-a-voz-dos-consumidores-nas-agencias-
people’s actions in collective decision-making. Economists who study behaviour in the private reguladoras-marilena-lazzarini-assessora-de-relacoes-institucionais-coordenadora-do-
marketplace assume that people are motivated mainly by self-interest”. projeto-bid-br-m1035.html. Acesso em: 18 dez 2015.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 27 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

claras e adequadas; simplificação da linguagem; transparência das


decisões, o que inclui sessões públicas de deliberação; efetivação
de consultas e audiências públicas para normatizar matérias de
impacto para os consumidores; institucionalização de espaços de
participação dos representantes dos consumidores nas agências
reguladoras, e capacitação técnica das associações e órgãos de
defesa do consumidor.

Destaco proposições legislativas que, embora não englobem a


totalidade dos aspectos acima destacados, preocupam-se com o
aperfeiçoamento dos mecanismos de participação dos consumidores.

Uma primeira iniciativa foi o Projeto de Lei 3.337 de 2004, que


tratava do controle social das agências reguladoras e previa diversos
mecanismos de participação institucional. Porém, a proposição,
iniciativa do Poder Executivo, foi retirada por mensagem do Presidente
da República em 2013, resultando em seu arquivamento.39

Destaco ainda, o Projeto de Lei do Senado nº 52, de 2013, com


dispositivos muito semelhantes ao PL 3.337 de 2004. O projeto
foi aprovado no Senado Federal e atualmente é analisado pela
Câmara dos Deputados como Projeto de Lei 6.621/2016, tendo sido
constituída Comissão Especial para a sua apreciação.40

Embora tenha aspectos polêmicos, relacionados com limitações


à atuação das agências reguladoras, dispõe de interessantes
mecanismos que podem ampliar a participação dos representantes
dos consumidores.

Impõe, por exemplo, a necessidade de elaborar um estudo de


impacto regulatório (AIR) que preceda a “adoção e as propostas
de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes
econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados”, o
que é importante para conferir maior transparência à atuação das

39
Teci comentários a respeito de dispositivos do PL 3.337 de 2004 em: PFEIFFER, R. A. C.
Aplicação do código de defesa do consumidor aos serviços públicos. Revista de direito do
consumidor, n. 65, jan-mar. 2008, p. 226-252.
40
Disponível em: https://bit.ly/2McllD8. Acesso em: 21 set 2017.
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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 28 / 108
Capítulo 1 Agências reguladoras e proteção do consumidor

agências reguladoras, já que tais estudos devem conter “informações Finalmente, é necessário destacar um grave problema enfrentado,
e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo” (art. 6º). sobretudo, pelas associações de proteção do consumidor, que
não dispõem dos mesmos recursos financeiros e técnicos que
Estabelece ainda a obrigatoriedade de que esses temas de
os fornecedores possuem para defender seu ponto de vista.
“interesse geral sejam submetidos à consulta pública” (art. 9º, caput).
Isto, inegavelmente, gera distorções nas audiências e consultas
No entanto, como já ressaltado, não basta apenas a genérica previsão
públicas, tendo em vista a maior capacidade financeira e técnica
da consulta pública e de audiência pública. Para que ela não seja
dos fornecedores em expor seu ponto de vista.
uma mera formalidade é necessário disponibilizar aos participantes
o acesso às informações necessárias para embasar sua posição. O PL 6.621/2016 não contém dispositivo concernente à capacitação
técnica das associações de defesa do consumidor, ao contrário do
Neste contexto, o PL 6.621/2016 determina que as seguintes
que fazia o arquivado PL 3.337 de 2004.41
informações sejam disponibilizadas na sua sede e em seu sítio
eletrônico, antes do início da consulta: “o relatório de AIR, os estudos, Deste modo, o Projeto de Lei 6.621/2016 traz efetivas contribuições
os dados e o material técnico usados como fundamento para as para o aperfeiçoamento da participação dos consumidores, ainda
propostas submetidas a consulta pública, ressalvados aqueles de que seja omisso quanto ao assessoramento técnico das associações
caráter sigiloso” (art. 9º, § 3º). de defesa do consumidor.

A proposição impõe a publicidade das críticas e sugestões efetivadas As agências reguladoras têm o dever de assegurar aos consumidores
no processo de consulta, além do posicionamento da agência a ampla informação e participação no processo decisório (principalmente
respeito delas (art. 9º, § 4º). Este dispositivo é importante, pois, ainda por meio de consultas e audiências públicas). Portanto, sua atuação
que as sugestões não sejam acatadas, os interessados têm o direito não pode levar em consideração exclusivamente a perspectiva do
de saber os motivos de sua rejeição, podendo, posteriormente, fornecedor, mas também os interesses dos consumidores que
utilizar os mecanismos tradicionais para postular a modificação podem ter dificuldade técnica, econômica e política para expressar
do entendimento esposado pela agência (ou seja, a articulação da suas pretensões e participar do processo regulatório.42
opinião pública ou os meios judiciais pertinentes). Ademais, esse
dispositivo impede a repetição dos péssimos exemplos de consultas 41
O PL 3.337 de 2004 continha dispositivo que assegurava “às associações constituídas há pelo
menos três anos, nos termos da lei civil, e que incluam, entre suas finalidades, a proteção
públicas nas quais a agência colocava determinada norma sob
ao consumidor, à ordem econômica ou à livre concorrência, o direito de indicar à Agência
audiência pública e posteriormente simplesmente adotava a versão Reguladora até três representantes com notória especialização na matéria objeto da consulta
posta em consulta sem qualquer modificação e sem dar satisfação pública, para acompanhar o processo e dar assessoramento qualificado às entidades e seus
associados. Caberá à Agência Reguladora arcar com a contratação dos especialistas, que
àqueles que se dispuseram a participar do processo consultivo. devem ser vinculados a Universidades, instituições acadêmicas e de pesquisa”.
42
Transcrevo as seguintes considerações de Joaquim Falcão em entrevista à revista do IDEC: “Outro
O PL 6.621/2016 faculta ainda à agência reguladora convocar ponto é que as agências, sobretudo as de serviços públicos, obedecem a uma lógica segundo
audiência pública para formação de juízo e tomada de decisão sobre a qual o mercado atua melhor do que o Estado, desde que o mercado seja regulado. Todo
matéria considerada relevante (art. 10), bem como estabelecer, em sistema concorrencial do setor privado necessita de certo equilíbrio setorial, mas a finalidade
das agências não é somente a busca desse equilíbrio da concorrência entre as diversas
regimento interno, outros meios de participação de interessados entidades privadas que atuam naquele mercado. Tanto a concorrência leal quanto o equilíbrio
em suas decisões (art. 11). Determina também a realização setorial são meios, não a finalidade das agências. A finalidade delas é garantir a prestação
pública das reuniões de deliberação das agências, em reforço de um serviço ao cidadão, ao consumidor. Existem interesses públicos e do consumidor
que vão além de um mero equilíbrio setorial ou de uma concorrência legal”. Disponível em:
à transparência do processo decisório (art. 8º), o que compõe o http://bit.ly/1NYJ6Zz. Acesso em: 18 dez 2015.
devido processo regulatório. * Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 29 / 108
Capítulo 2
REGULAÇÃO TARIFÁRIA

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 30 / 108
Capítulo 2 Introdução

Introdução
José Bonifácio de Souza Amaral Filho1

Arsesp 2007-2017: 10 anos contribuindo para

N
o desenvolvimento

No final do século XIX, em 1887, os EUA criaram sua primeira


agência reguladora independente federal, a Interstate Commerce
Comission (ICC), para controlar o transporte em ferrovias, cujo
monopólio e política de preços prejudicavam os produtores
agrícolas. No início do século XX surgem agências reguladoras
estaduais de serviços públicos (“public utilities comissions”).
O auge da regulação estatal aconteceu de 1930 a 1945, com
a Grande Depressão e o New Deal do presidente Roosevelt.

No Brasil, os serviços públicos foram inicialmente regulados


por contratos entre as empresas prestadoras e a administração
pública. Com o Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934, o
“Código de Águas”, ocorreu a regulação federal do uso das
águas e produção de eletricidade. A regulação dos serviços
públicos era feita por órgãos e comissões federais, estaduais

1
José Bonifácio é economista (FEA-USP, 1975), com mestrado e doutorado no Instituto de
Economia da Unicamp, onde é professor e leciona várias disciplinas desde 1982. Ocupou
cargos em instituições públicas e empresas estatais e privadas. Foi Secretário de Finanças de
Campinas (1985), Secretário Adjunto de Abastecimento e Preços do Ministério da Fazenda
(1986/87), Diretor Administrativo-Financeiro da Companhia de Processamento de Dados
do Estado de São Paulo (Prodesp) (1991/94) e, entre 1983 e 2003, ocupou diversos cargos
na Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), como Gerente de Estudos Econômicos,
Economista Especialista, Assistente Executivo da Diretoria Econômico-Financeira e, após
sua privatização, Gerente de Relações Institucionais e Diretor de Assuntos Regulatórios.
Foi Conselheiro de Administração da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE)
(2005/08) e, em 2013, assumiu o cargo de Diretor de Regulação Econômico-Financeira e de
Mercados da Arsesp, com mandato de 5 anos, respondendo pela presidência da agência
de junho de 2015 a dezembro de 2017.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 31 / 108
Capítulo 2 Introdução

e municipais, subordinados aos governos, ou por meio da presença distribuição de gás canalizado). Em um processo de revisão tarifária
direta do Estado e suas empresas (em muitos casos, indispensável são avaliados os custos operacionais da concessionária, o capital
para viabilizar a industrialização). aplicado e os investimentos previstos, a taxa de remuneração do
capital (baseada no custo médio ponderado do capital), e o mercado
No Brasil, a regulação por meio de “agências independentes”
a atender, para estabelecer novo nível tarifário. Além disso, na
surgiu nos anos 1990, em um contexto bem diferente, devido às
revisão se estimam ainda ganhos anuais previstos de eficiência e
privatizações das empresas estatais e retirada da presença direta do
produtividade da empresa (o “fator X”, a descontar do reajuste anual).
Estado, realizadas no âmbito do ajuste então associado à crise fiscal-
financeira e ao endividamento externo da economia. A transferência Revisões tarifárias extraordinárias podem ocorrer em situações
patrimonial e da prestação dos serviços tornou necessários novos excepcionais, como ocorreu na crise hídrica de 2014/16 em São
órgãos para regular e fiscalizar os serviços públicos, delegados por Paulo. A Arsesp acabara de fazer uma revisão tarifária periódica da
concessão do Estado à iniciativa privada. Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp),
em 2014, mas a persistência da crise levou a concessionária a solicitar
Em âmbito estadual, foi criada em 1998 em São Paulo a Comissão em 2015 a revisão extraordinária, pois a disponibilidade hídrica e o
de Serviços Públicos de Energia (CSPE), para a regulação técnica e consumo caíram drasticamente e sua receita se tornava insuficiente


econômica e a fiscalização da distribuição de gás canalizado, além para a cobertura dos custos operacionais, recuperação e remuneração
de fiscalizar a distribuição de eletricidade por meio de convênio do capital. Foi necessária uma nova revisão tarifária, extraordinária,
com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Em 2007, com para manter o equilíbrio econômico-financeiro da concessão.
a edição do marco regulatório do saneamento (Lei nº 11.445, de 5
de janeiro de 2007) foi criada a Arsesp, que sucedeu a CSPE para
regular também os serviços do saneamento básico estadual e os
delegados por convênio pelos municípios.
Nas revisões tarifárias, as
A Diretoria de Regulação Econômico-Financeira e de Mercados da
Arsesp tem como principal função a regulação econômico-financeira, consultas e audiências públicas são
em especial procedimentos de reajustes e revisões tarifárias dos
serviços regulados, e a fiscalização econômico-financeira para verificar
ponto importante do procedimento
o cumprimento das regras pelas concessionárias.
Nas revisões tarifárias, as consultas e audiências públicas são ponto
Os reajustes tarifários são atualizações anuais das tarifas, com
importante do procedimento. Por meio delas a agência apresenta suas
base na inflação. São utilizados índices de preços, variação do Índice
informações e recebe as contribuições, com a participação do público
Geral de Preços do Mercado (IGPM), no caso do gás canalizado, e do
em geral, para a tomada de decisão. Por exemplo, em audiência
Índice de Preços ao Consumidor (IPCA), no caso do saneamento, para
pública realizada para revisão tarifária da Sabesp, participaram
corrigir as margens da distribuidora, descontando o “fator X”, um
representantes da concessionária, de instituições do mercado de
percentual estimado de ganhos de eficiência e produtividade; no caso
investimentos e acionistas, representantes de entidades ambientais,
da energia elétrica, a regulação econômica cabe inteiramente à Aneel.
ONGs, pesquisadores universitários e outros. O interessante desses
Já as revisões tarifárias são procedimentos complexos, realizados encontros é que também são debatidos assuntos que vão além da
periodicamente (a cada 4 anos no caso do saneamento e 5 na revisão tarifária em si, com temas como tratamento de esgotos,

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 32 / 108
Capítulo 2 Introdução

proteção e recuperação de mananciais, tarifa residencial mínima e


expansão da tarifa social.

Os documentos de Audiências e Consultas Públicas – Notas


Técnicas Iniciais e Finais, Relatórios de Contribuições Recebidas – são
divulgados no site da agência, e as decisões da Diretoria Colegiada,
seu órgão máximo, são publicados no Diário Oficial, de modo a
assegurar a transparência da atuação da agência reguladora.

Os próximos dez anos


Em uma década de existência, a Arsesp já se consolidou como
agência reguladora competente, agregando as áreas de gás
canalizado e de eletricidade, que já eram responsabilidade da CSPE,
a regulamentação e fiscalização do saneamento básico, área de
suma importância para a população em geral. A perspectiva agora
e para a próxima década é instituir um plano de carreira, ampliar
o quadro de funcionários e aprimorar ainda mais suas formações,
oferecendo treinamentos e capacitações, diante da importância e
amplitude das funções exercidas em favor da sociedade.

Outro ponto crucial, e talvez seja esse o maior desafio, é tornar a


agência um coadjuvante das políticas públicas, para auxiliar o poder público
na decisão de políticas setoriais e facilitar a definição dos investimentos
prioritários que deverão ser realizados pelos concessionários – por
exemplo, para expandir a cobertura do saneamento em regiões ainda
não alcançadas e assegurar a qualidade da prestação do serviço. Nesse
sentido, a agência anda “de mãos dadas com o desenvolvimento” e
pode contribuir para o bem-estar dos habitantes de todo o Estado.

Assim, embora não caiba a uma agência reguladora fazer “política


setorial” – que é uma atribuição de outras instâncias do poder
público – sem dúvida a Arsesp tem papel fundamental ao realizar
estudos e simulações de impactos tarifários associados às diferentes
alternativas de extensão e de aceleração dos investimentos em
serviços públicos, contribuindo para o processo de decisão e a
melhora das condições de vida.

* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.


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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 33 / 108
Capítulo 2

Regulação Tarifária

C
Joisa Dutra1

Atuação da Arsesp e regulação tarifária nos


Criada em 2007, a Arsesp tem como competências a regulação, setores envolvidos
controle e fiscalização dos serviços de gás canalizado e de
saneamento básico em âmbito estadual. No setor de energia
Regulação e tarifas
elétrica, a agência atua na fiscalização das distribuidoras
que prestam o serviço no estado de São Paulo. A Arsesp é
sucessora da Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE), De modo geral, a análise da regulação envolve duas grandes
que atuava na regulação e fiscalização dos serviços de energia dimensões: conteúdo e forma.2 O conteúdo versa sobre a determinação
elétrica e gás canalizado desde 1998. das condições de provisão dos serviços e atuação das empresas
reguladas. Estas incluem fixação de tarifas, requisitos de qualidade,
O conjunto destas atribuições determina o escopo deste
restrições à entrada, quantidades e metas de investimento a serem
artigo, analisa os principais desafios na regulação tarifária
cumpridas, nos termos do disposto na legislação e da regulamentação
encontrados pela agência. Para isso, será realizada uma
aplicáveis e dos contratos.
breve explanação da atuação da agência, seguida de um
diagnóstico da situação atual da regulação tarifária no Brasil, No processo de determinação de tarifas, compete ao regulador
e os principais desafios e perspectivas para determinar tarifas garantir condições para que as empresas reguladas tenham
nos setores de energia elétrica, gás natural e saneamento capacidade de arcar com os custos prudentes – custos operacionais,
básico no país. Por fim, será analisado em maior detalhe o remuneração dos ativos que compõem a base de remuneração
processo de revisão tarifária da Comgás. Esse caso ilustra a regulatória acrescidos de uma taxa de retorno regulada, além de fazer
estreita relação entre uma atuação aderente a boas práticas frente a encargos e tributos. A eficiência na prestação dos serviços
de governança regulatória e o processo de determinação requer a capacidade de arrecadar receita suficiente para compensar
de tarifas. não apenas os custos variáveis, mas também os custos fixos, de
modo a equilibrar objetivos de curto e longo prazo – preços/tarifas e
qualidade adequados, com capacidade de remunerar investimentos
prudentes e atrair capitais para a atividade.

Ainda que a Arsesp atue nos serviços de eletricidade, nos termos


do disposto no convênio de cooperação com a Agência Nacional de
Energia Elétrica (Aneel), sua competência em matéria de regulação

1
Professora da FGV/ EPGE – Escola Brasileira de Economia e Finanças e diretora do FGV/
CERI – Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura. Foi também diretora da Aneel 2
BROWN, A. et al. Handbook for evaluating infrastructure regulatory systems. Washington DC:
entre 2005 e 2009. The International Bank for Reconstruction and Development /The World Bank, 2006.

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 34 / 108
Capítulo 2 Regulação Tarifária

tarifária se dá de modo efetivo nos setores de saneamento e no Tabela 1. Setor Elétrico – atuação da Arsesp
de gás natural. Essas competências são objeto de avaliação mais Concessionárias de distribuição de energia elétrica
detalhada nas seções a seguir. EDP BANDEIRANTE
CAIUÁ
CPFL Jaguari
Energia Elétrica CPFL Mococa
CPFL Santa Cruz
Nacional
No exercício da regulação do setor elétrico, a determinação de
CPFL Leste Paulista
tarifas é de competência da Agência Federal, a Aneel. Três são os
CPFL Piratininga
mecanismos disponíveis para adequar o valor das tarifas. De acordo CPFL Sul Paulista
com o estabelecido nos contratos de concessão das distribuidoras CPFL Paulista
de eletricidade, em cada intervalo tarifário (que varia de três a cinco Elektro
anos), é realizada uma revisão periódica das tarifas. Nos intervalos AES Eletropaulo
entre revisões tarifárias, anualmente são reajustadas as tarifas Bragantina

para permitir aos provedores de serviços arcar com as despesas Vale Paranapanema

gerenciáveis – relacionadas com a atividade objeto da concessão, Empresas autorizadas


Cooperativa de Eletrificação Rural da Média Sorocabana (Cermeso)
reajustadas como função da inflação – e não gerenciáveis. Estas
Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de Osvaldo Cruz (Ceroc)
incluem funções para as quais a empresa regulada é mero veículo
Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de Palmital (Cerpal)
de arrecadação, caso da transmissão e geração de eletricidade. As Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de Tupã (Cert)
revisões extraordinárias, por sua vez, permitem estabelecer tarifas Permissionárias
no advento de circunstâncias excepcionais que comprometam o Cooperativa de Eletrificação da Região do Alto Paraíba (Cedrap)
equilíbrio financeiro das provedoras de serviços. Cooperativa de Energização e Desenvolvimento Rural do Vale do Itariri (Cedri)
Cooperativa de Eletrificação e Desenvolvimento da Região de Mogi Mirim (Cemirim)
A Arsesp atua no setor por meio de contratos entre o governo
Cooperativa de Eletrificação e Desenvolvimento da Região de Itu-Mairinque (Cerim)
federal e o estado de São Paulo, fiscalizando 14 concessionárias Cooperativa de Eletrificação Rural de Itaí-Paranapanema-Avaré (Ceripa)
de distribuição de energia elétrica no estado, que atendem Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de Itapecerica da Serra (Ceris)
aproximadamente 18 milhões de usuários. Ademais, a agência Cooperativa de Eletrificação e Desenvolvimento da Região de Mogi das Cruzes (Cermc)
conduziu também o processo de regularização de 16 cooperativas de Cooperativa de Eletrificação e Desenvolvimento Rural de Novo Horizonte (Cernhe)
eletrificação rural no estado, enquadrando 12 como permissionárias – Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de Promissão (Cerpro)

que prestam serviço público de distribuição de energia – e quatro Cooperativa de Eletrificação Rural da Região de São José do Rio Preto (Cerrp)
Cooperativa de Energização e de Desenvolvimento Rural do Vale do Mogi (Cervam)
como autorizadas.
Cooperativa de Eletrificação de Ibiúna e Região (Cetril)
Pelo convênio de cooperação com a Aneel, a Arsesp atua na 269 Centrais Termelétricas
fiscalização de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) e Pequenas 84 Centrais Hidrelétricas
Centrais Termelétricas (PCT) em fase de implantação, operação, Fonte: Arsesp. Elaboração: FGV/CERI.
reforma e modernização, com verificações regulares, o que também
ocorre no caso de expansão de oferta.

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 35 / 108
Capítulo 2 Regulação Tarifária

Nessas empresas, a Arsesp realiza fiscalizações técnico- retorno permitida pelo regulador é calculada com base no custo
-comerciais e econômico-financeiras. Suas funções se estendem médio ponderado de capital (WACC). Os valores aplicáveis às três
ainda ao relacionamento com o usuário, orientando o recebimento revisões constam na Tabela 2. A Comgás, entretanto, contestou o
de reclamações na mediação da relação ao serviço prestado pelas valor do WACC estabelecido na terceira revisão tarifária, processo
concessionárias sob sua fiscalização. Ainda que não de modo direto, que é objeto da última seção deste capítulo.
a ação da agência estadual é fundamental para acompanhar as
condições de prestação de serviços e subsidiar o processo de Tabela 2. Revisões tarifárias realizadas pela Arsesp no setor de gás natural
determinação de tarifas. 1ª Revisão Tarifária 2ª Revisão Tarifária 3ª Revisão Tarifária
Empresa WACC WACC WACC
Ano Ano Ano
Gás natural (%) (%) (%)
GDB 2004 13,66 2009 10,05 2014 8,62
Escopo de atuação da Arsesp
GNSPS 2005 13,66 2010 9,56 2014 8,62
Comgás 2004 11,76 2009 9,55 2014 8,04*

As competências da Arsesp para regulação do gás natural são *valor ainda não em vigor
Fonte: Arsesp. Elaboração: FGV/CERI.
mais abrangentes, e incluem desde a fixação dos valores iniciais das
tarifas, passando por seus reajustes e revisões, até o monitoramento A título de comparação, o gráfico a seguir mostra o valor de WACC
e avaliação da prestação do serviço de distribuição de gás. A agência definido por outras agências reguladoras, em diferentes setores
regula a prestação do serviço das três concessionárias de distribuição no Brasil.
que atuam no estado: (i) a Companhia de Gás de São Paulo (Comgás),
responsável pelo atendimento a 79 municípios; (ii) Gás Natural São Figura 1. WACC em diferentes setores
Paulo Sul (GNSPS), que atua em 18 municípios; e (iii) a GasBrasiliano,
com atuação em 16 municípios. 12,00%
10,60%
10% 9,67% 9,60%
10,00%

Último WACC (real)


A Comgás e a GasBrasiliano firmaram contrato de concessão em 8,50%
9,20%
8,09% 8,04% 8,01% 8,15%
8,62%
8,00%
1999, e a GNSPS, no ano seguinte.
6,00%

Os contratos de concessão firmados pelas três distribuidoras 4,00%


definem revisões tarifárias em intervalo quinquenal e reajuste tarifário
2,00%
anual, com mecanismos de preço-teto, que buscam incentivar ganhos
0,00%
de eficiência a serem compartilhados com usuários periodicamente. ac
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Entre os períodos de revisão, as tarifas são reajustadas por variação to
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em um índice de preços, no caso, o IGP-M. O cálculo da tarifa ro
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inclui três componentes: o preço do gás, do transporte e margem a

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As três concessionárias se encontram no terceiro ciclo tarifário, Di
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que se estende até 2019. A primeira revisão ocorreu em 2004 e


Setor de Infraestrutura (Agência Reguladora)
2005, a segunda, em 2009 e 2010, e a terceira, em 2014. A taxa de

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 36 / 108
Capítulo 2 Regulação Tarifária

Desafios à regulação tarifária no setor impediriam de ser outorgadas pelo poder concedente estadual –,
permitir que as concessionárias prestem esses serviços como parte
O processo de estabelecimento de tarifas, parte do conteúdo da
do objeto de sua concessão e em regime de exclusividade confere
regulação, é condicionado pela estrutura e/ou desenho de mercado.
vantagem que foge ao escopo das atividades de redes. Como
Nessa seção destacamos desafios relacionados à estrutura de
a regulação setorial restringe a entrada de novos prestadores,
mercado na indústria de gás natural.
reduz-se a capacidade de que a concorrência no fornecimento
No contexto das reformas liberalizantes nas últimas décadas do gás natural beneficie os consumidores por meio de preços
do século XX, a separação de indústrias verticalmente integradas mais baixos. A regulação tarifária deve atentar para transferências
manteve as indústrias de rede sob regime de monopólio.3 Esse é o de recursos e custos entre atividades reguladas e outras que
caso do gás natural. A determinação de tarifas, com base em custo venham a ser agregadas.
e/ou fixação de um preço máximo, permite controlar e/ou mitigar
Assim como observado em relação à contratação de gás pelas
exercício de poder de mercado, que no caso se traduziria em lucros
distribuidoras, é necessário que a regulação busque mecanismos
extraordinários característicos da prestação de serviços em setores
para conferir transparência aos componentes considerados em cada
que apresentam economias de escopo ou escala.4 Por não haver
revisão e reajuste tarifário da distribuidora. Além de ser uma forma
competição de mercado, o monopolista tem menos incentivo a
de accountability perante os usuários dos serviços de distribuição, ter
buscar melhorias tecnológicas e a tornar sua operação mais eficiente.
maior clareza sobre as componentes é fundamental para diferenciar


Não apenas a determinação de tarifas mitiga comportamento desse os custos reembolsáveis às concessionárias daqueles que irão
tipo. A existência de recursos substitutos restringe a possibilidade de compor sua remuneração. Esse é o caso da determinação da base
o prestador de serviço, em regime de exclusividade em determinada de ativos regulatória ou, nos casos em que o contrato prevê, de seus
área de concessão, auferir lucros extraordinários. O exercício de custos operacionais.
poder de mercado é contido também pela existência de substitutos
próximos.5 Avanços no setor têm apresentado alternativas de
suprimento que poderiam contribuir para aliviar os incentivos e
preços altos. Isso ocorre porque a movimentação do gás natural é necessário que a regulação
através de dutos não é o único modal de distribuição disponível para
esse energético. Atualmente, o país conta também com gás natural busque mecanismos para conferir
liquefeito (GNL) e, em menor escala, movimentado por caminhões transparência aos componentes
e barcaças como gás natural comprimido (GNC).

Essas atividades, no entanto, por serem modais alternativos,


considerados em cada revisão e
competem com a distribuição de gás natural através de dutos. Além reajuste tarifário da distribuidora
de serem atividades submetidas à competência federal – o que as
Em qualquer hipótese, é válido destacar que a contabilização
3
NEWBERY, D. M. Privatization, restructuring and regulation of network industries. Cambridge, desses custos deve levar em conta aqueles pertinentes ao exercício
MA: The MIT Press, 2001. da atividade – efetivamente ligados à prestação do serviço – e
4
SALANIÉ, B. The microeconomics of market failures. Cambridge e London: MIT Press, 2000.
5
VISCUSI, W. K..; VERNON, J. M.; HARRINGTON JUNIOR., J. E. Economics of regulation and antitrust. não necessariamente aos custos em que incorre determinada
4 ed. Cambridge, MA: The MIT Press, 2005. empresa prestadora de serviços. Ou seja, os custos assumidos pela

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 37 / 108
Capítulo 2 Regulação Tarifária

concessionária que não tenham relação com a prestação do serviço


público de distribuição não devem ser objeto de repasse às tarifas.6

Esses exemplos ilustram os desafios enfrentados na regulação do


gás natural. Distinta da regulação de tarifas em eletricidade, a divisão
de competência entre o regulador federal, responsável pelo transporte
dutoviário, e o estadual, com atribuições para a distribuição, aumenta
consideravelmente a complexidade do processo. Contribuem para
esse quadro a maior proximidade entre o Poder Executivo e o
regulador em nível estadual, comparativamente ao federal, o que
torna mais complexa a autonomia decisória do regulador.7

A regulação tarifária depende de clareza quanto aos limites da


regulação, ou seja, precisa delimitar as atividades que são objeto da
concessão, bem como as razões para restringir a entrada de novos
competidores em um ou outro segmento da cadeia de valor da
indústria, revisitando sua racionalidade a qualquer tempo. Essa lógica
se aplica ao fornecimento de gás natural por meio de Gás Natural
Comprimido (GNC) e também à comercialização.

A fronteira entre as atividades reguladas e aquelas que admitem


competição pode se alterar ao longo do tempo, sendo mesmo
legítimo permitir que um concessionário possa estender sua atuação
em regime de exclusividade para outros segmentos; entretanto,
mudanças no objeto da concessão devem ser cuidadosamente
escrutinadas à luz dos fundamentos econômicos.8 Esse processo
também é parte da atividade de determinação de tarifas pelo
regulador, devendo ser cuidadosamente justificado e compensado,

6
Um caso recente sobre a cobrança de tarifas pelas distribuidoras quando não há efetivamente
um serviço cobrado pelo Estado é o Decreto do Estado de Sergipe 3.052/2016, que estabeleceu
que a TMOV (tarifa de movimentação, que não contempla o custo da molécula) não se aplica à
movimentação de gás para consumo próprio nas instalações e dutos integrantes de terminais
de GNL e gasodutos de transferência para usinas termelétricas. Ao analisar a validade desta
determinação, a Procuradoria do Estado de Sergipe destacou: “Não há renúncia indevida
sobre a cobrança da Tarifa de Movimentação de Gás (TMOV), receita supostamente devida à
SERGAS, quando se percebe que a não incidência da tarifa em tela decorre do simples fato
de que na hipótese de incidência o gás movimentado não circulará pelos dutos ou qualquer
infraestrutura dutoviária da concessionária”.
7
BROWN et al., op. cit.
8
NEWBERY, op. cit.
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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 38 / 108
Capítulo 2 Regulação Tarifária

de modo a evitar transferências indevidas entre atividades em Em geral, é criada uma tarifa-base que contempla a cobertura de
regime de monopólio de outras que admitem competição. A falha em custos do prestador e garante alguma taxa de retorno a ser auferida
estabelecer adequadamente essas fronteiras onera indevidamente pelos investimentos. Essa tarifa é escalonada em uma estrutura que
consumidores, que deixam de se beneficiar do potencial competitivo contempla uma tarifa unitária (R$/m³) para provisão de serviços
no segmento de upstream, configurando falha da regulação. de água e esgoto. Essa componente varia, comumente, de acordo
com a faixa de consumo e tipo de economia (residencial, comercial,


Condições adequadas para determinar tarifas de distribuição de
industrial e pública). Usualmente, a primeira faixa de consumo é
gás canalizado dependem da clara identificação das componentes de
definida como consumo mínimo, com propósito de assegurar a
custo (preço do gás, preço do transporte e margem de distribuição). cobertura dos custos fixos, e costuma estar entre 0 e 10 m³.
Nesse contexto, é essencial avaliar em que medida os valores
considerados para repasse ou composição da base de remuneração
do concessionário refletem (apenas) aqueles relacionados à prestação
do serviço objeto da concessão.
No Brasil, existem cerca de
Atualmente está em discussão no país uma reforma que visa
estabelecer as bases para o desenvolvimento de um mercado 50 agências reguladoras que atuam
competitivo de gás natural. Com esse fim, foi criado em meados de no setor de saneamento, com
2016 o programa “Gás para Crescer”, no âmbito do Ministério de Minas
e Energia. Essa reforma representa oportunidade de estabelecer as abrangência que pode ser estadual,
bases para cooperação institucionalizada entre reguladores estaduais
e o regulador federal visando melhorias no processo de determinação
municipal e microrregional
tarifária. Uma adequada articulação entre esses entes contribui para
fortalecer a capacidade institucional, conferindo transparência e Do ponto de vista tarifário, o saneamento no Brasil incorpora
aperfeiçoamento à regulação tarifária ao delimitar claramente os muitos subsídios cruzados: as receitas auferidas com a prestação dos
segmentos em que atua a concessionária. serviços entre os municípios de um estado ou região ajudam a sustentar
custos em outros com menor capacidade de investimento. Também há
Saneamento subsídio entre as faixas de consumo e os tipos de economia: quanto
maior o consumo, maior a tarifa praticada. As economias comerciais e
industriais normalmente contam com tarifas maiores que as residenciais,
No Brasil, existem cerca de 50 agências reguladoras que atuam subsidiando-as. Além disso, algumas companhias do setor estabelecem
no setor de saneamento, com abrangência que pode ser estadual, a tarifa social, aplicando mais subsídios para consumidores residenciais
municipal e microrregional. Nos termos do que dispõe a Lei Federal do de baixa renda ou com condições domiciliares consideradas precárias.
Saneamento Básico (Lei 11.445/2007), é atribuição do ente regulador
a definição da estrutura tarifária e determinação da tarifa. Não há
Escopo de atuação da Arsesp
referencial nacional de metodologia tarifária, decorrência inclusive
da titularidade municipal na prestação dos serviços. Pode-se afirmar, A Arsesp regula e fiscaliza os serviços de saneamento de titularidade
contudo, que muitas agências reguladoras carecem de capacidade estadual, assim como aqueles de titularidade municipal, no caso de
institucional e técnica para atender a essas competências. municípios que firmem convênio com a agência estadual. No caso,

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 39 / 108
Capítulo 2 Regulação Tarifária

a agência atua em municípios situados em regiões metropolitanas Desafios à regulação tarifária no setor
(São Paulo, Campinas, Baixada Santista e Vale do Paraíba/Litoral
Observa-se que as tarifas praticadas no Brasil, em geral, não têm
Norte), e em dois municípios com serviços prestados por empresas
conseguido fazer frente à estrutura de custos e à necessidade de
privadas: Mairinque e Santa Gertrudes, totalizando 284 municípios,
investimentos das operadoras, seja pelo alto grau de ineficiência
de acordo com dados publicados pela Arsesp9.
operacional ou ainda por serem subdimensionadas. Diante desse
Seu exercício da regulação abrange quatro prestadores: a Sabesp quadro, não raro as agências reguladoras encontram dificuldades para
(companhia estadual, incluindo as unidades Diadema, Glicério, Lins, definir as tarifas. Portanto, é necessário estabelecer metodologias
Magda, Santa Isabel e Torrinha) e duas concessionárias privadas: tarifárias de referência para os entes reguladores, que levem em
BRK Ambiental (Santa Gertrudes) e Saneaqua (Mairinque). consideração a capacidade de pagamento dos usuários, os diferentes
tipos de economias (residencial, comercial etc.) e os diferentes
No âmbito da regulação tarifária, a Arsesp reajusta as tarifas
estágios de desenvolvimento da população local, conforme prevê
anualmente e as revisa periodicamente, em intervalos de quatro
a Lei Federal do Saneamento Básico.
anos. A Sabesp já passou por duas revisões tarifárias. Os reajustes
da companhia são realizados com base no IPCA, descontado de um A estrutura tarifária praticada em geral no país é pouco transparente
fator de redução de ineficiência estimado no processo de revisão no que se refere aos custos do prestador. Além disso, tarifas mantidas
tarifária (fator X). Já no caso das concessionárias privadas reguladas em níveis artificialmente baixos como reflexo de políticas apresentam
pela Arsesp, a revisão tarifária é realizada com o intuito de garantir distorções no incentivo ao uso consciente da água e não beneficia
a Taxa Interna de Retorno (TIR) prevista no contrato de concessão, efetivamente populações que deveriam ser beneficiadas. O aumento
de quatro em quatro anos; e o reajuste é determinado pelo índice da transparência no processo pode assegurar mecanismos para
de inflação previsto em contrato. Definidas as tarifas-base, tanto comparabilidade entre os diferentes prestadores, alinhando os
no caso da Sabesp como no caso das concessionárias privadas, a incentivos para o consumo consciente da água.
estrutura tarifária (determinação dos valores aplicáveis a diferentes
A política de subsídio tarifário mencionada na seção anterior não é
grupos e/ou classes de usuários) e os critérios para sua aplicação
unificada e sua gestão é feita pelo prestador. Anteriormente, a política
(desde a elegibilidade dos usuários até benefícios como tarifa social)
de subsídio era determinada pelo Banco Nacional da Habitação (BNH)
são aprovados pela agência.
e em 2007 foi promulgada a Lei Federal de Saneamento, que prevê que
Tabela 3. Revisões tarifárias determinadas pela Arsesp no setor de saneamento a agência prestadora oriente a política de subsídio. No entanto, o que
1ª Revisão Tarifária 2ª Revisão Tarifária
observamos hoje é uma política não unificada e pouco transparente
Empresa em que os prestadores apresentam critérios distintos para identificar
Ano WACC (%) Ano WACC (%)
os beneficiários. Como resultado deste modelo, tais políticas muitas
Sabesp 2012 8,06 2017 8,01*
vezes têm natureza regressiva, beneficiando relativamente mais
  Ano TIR  
segmentos de alta renda.10 é importante, então, redefinir a política de
BRK (Santa Gertrudes) 2015 9,88   subsídios do país no setor de saneamento para promover o acesso
Saneaqua (Mairinque) 2016 8,85  
ao serviço de toda a população, e criar mecanismos de controle
*Preliminar, ainda em fase de revisão tarifária
Fonte: Arsesp. Elaboração: FGV/CERI, 2017.

10
Ver Desafios da regulação de infraestrutura no Brasil – carta de Florianópolis (2017). Disponível
9
Disponível em: https://bit.ly/2xHIhVG. Acesso em: 5 fev. 2017. em: ceri.fgv.br.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 40 / 108
Capítulo 2 Regulação Tarifária

que propiciem mais transparência e efetividade na identificação e


adesão da população a ser beneficiada.

Estudo de caso: o processo da Comgás


Para ilustrar os desafios impostos à regulação tarifária em São
Paulo, esta seção discorre sobre o processo de revisão tarifária
da Comgás referente a 2014. No ano em questão, estava prevista
a revisão tarifária periódica das companhias de distribuição de
gás natural. O valor calculado pela agência para o custo médio
ponderado de capital (WACC) foi de 8,04%. A concessionária, por sua
vez, alegava que o valor adequado seria 12%. Além disso, questionava
a metodologia de avaliação da base de ativos adotada, entendendo
que deveria ser preservado o valor econômico mínimo estabelecido
quando da privatização da empresa.

Além de discordar dos valores devidos, a concessionária


alegou irregularidades formais no processo. O tema foi objeto
de recurso junto à Procuradoria Geral do Estado de São Paulo
e, em um segundo momento, o litígio passou à esfera judicial.
Transcorridos três anos, o conflito ainda não foi resolvido e se
aproxima o novo ciclo de revisão tarifária. A situação de incerteza
jurídica da concessionária persiste, gerando indefinições tanto
para a empresa como para os usuários do serviço e a própria
agência Reguladora.

Análise de metodologia para determinar taxa


de remuneração de custo de capital para
as companhias distribuidoras de gás natural
canalizado no estado de São Paulo
No contexto do caso em questão, o FGV CERI desenvolveu, em
agosto de 2016, estudo para avaliar a metodologia vigente para o
cálculo do custo médio ponderado do capital (em inglês, Weighted
Average Cost of Capital – WACC) das empresas de distribuição de gás
em São Paulo, com base nas melhores experiências internacionais
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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 41 / 108
Capítulo 2 Regulação Tarifária

e literatura acadêmica relevante no campo de finanças corporativas estimativa e um alinhamento metodológico com relação às melhores
aplicada à regulação econômica.11 práticas e o benchmark nacional – Aneel.

As principais conclusões desse estudo mostram que a metodologia Simulações conservadoras realizadas indicam ainda que a margem
descrita nas notas técnicas ARSESP RTG/01/2014 e RTG/02/2014 e máxima poderia ser menor entre sete e oito pontos percentuais
utilizada na estimativa do WACC para as companhias de distribuição caso fosse aplicado o WACC atualizado para a Comgás, dentro do
de gás em São Paulo é completamente aderente com as práticas estudo de caso realizado.
e a teoria de Finanças Corporativas e Avaliação de Empresas para
firmas em mercados emergentes. Assim, a observação final do estudo foi que os números mais
recentemente estimados podem e devem ser aplicados na reavaliação
A sistemática utilizada também é corroborada pela literatura das margens máximas das companhias de distribuição de gás
acadêmica, bem como por evidências internacionais no tocante canalizado em São Paulo, com potenciais benefícios aos consumidores.
a estimativas de taxa de retorno para fins de revisão de tarifas de
serviços de utilidade pública.12 Esse caso demonstra as dificuldades que enfrenta a agência.
Como observado na seção que discute a regulação tarifária aplicável
As particularidades do mercado de capitais brasileiro, que ao gás natural, o contrato de concessão da Comgás foi assinado
inviabilizam a aplicação direta de um modelo CAPM13 com dados em 1999, antes da criação da Arsesp, assim como os contratos da
locais e/ou o uso de um modelo alternativo de crescimento de GNSPS e da GasBrasiliano. A determinação de nova tarifa, mesmo
dividendos, também fortalecem a decisão da Arsesp no tocante à embasada e justificada pela agência em diversas notas técnicas,
escolha metodológica. ainda não conseguiu ser implementada
Não há diferenças relevantes quando se comparam as notas
técnicas explicitadas, que apoiam a revisão mais recente do WACC e a Conclusão
nota técnica associada à revisão anterior, RTC 01/200914 – a mudança
no parâmetro é essencialmente relacionada a atualizações de bases A atuação da Arsesp abrange serviços de eletricidade, distribuição
de dados. É possível detectar, inclusive, melhorias no processo de de gás natural e água e saneamento; entretanto, sua competência
coleta das séries utilizadas, o que trouxe ganhos de consistência a em matéria tarifária é permeada por especificidades, conforme
apresentado neste capítulo.

A agência não tem competência direta na regulação tarifária dos


serviços públicos de distribuição de eletricidade, ainda que seu papel
11
“Análise de metodologia para determinação de taxa de remuneração de custo de capital
para as companhias distribuidoras de gás natural canalizado no estado de São Paulo ”, 26 na fiscalização seja instrumental para o bom exercício da regulação.
de agosto de 2016. Estudo citado em ABRACE, “Contribuições da Abrace à Consulta Pública
02/2014 (nota técnica RTG/02/2016)”. Disponível em: http://bit.ly/2yZYzLE. Acesso em: 10 abr No caso dos serviços de saneamento, a titularidade da prestação
2017. dos serviços atribuída ao município limita o exercício da regulação em
12
GIACCHINO, L. R.; LESSER, J. A. Principles of utility corporate finance. Vienna, VA: Public Utilities
Reports, 2011.
matéria tarifária. Ainda que a agência já tenha implementado revisões
13
DAMODARAN, A. Damodaran on valuation: security analysis for investment and corporate para a Sabesp, no setor o tema ainda está em processo de construção.
finance. Hoboken (NJ): John Wiley & Son, Inc., 2006. Alguns desafios importantes são apontados: a universalização do
14
ARSESP. Nota Técnica RTC 01/2009. Determinação do Custo Médio Ponderado do Capital
para a Companhia de Gás de São Paulo. Disponível em: http://bit.ly/2gRSdn1. Acesso em: 14 acesso aos serviços ainda está distante da realidade. Neste contexto,
mar 2017. as tarifas têm papel fundamental, determinando a capacidade de

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 42 / 108
Capítulo 2 Regulação Tarifária

investimento das companhias em expansão das redes. Some-se a isso


a possibilidade de se aumentar a participação privada, eventualmente
mediante privatização de ativos, o que depende da capacidade
percebida pelos competidores de auferirem receitas capazes de
fazer frente aos custos eficientes

A esse respeito, vale atentar para a experiência recente da


Arsesp na regulação da distribuição de gás natural. Ainda que do
ponto de vista de competências caiba ao estado a regulação dessa
atividade, incluindo a fixação de tarifas, a experiência da Arsesp na
determinação das tarifas da Comgás, posteriormente judicializada,
evidencia a importância de tratar o tema não apenas como parte
do conteúdo da regulação, mas também atesta a relevância do rito
no processo decisório das agências reguladoras.

Ademais, o exemplo da concessionária em questão ilustra a


importância de se ter clareza quanto ao compacto regulatório antes
da modelagem da privatização e ao processo em si. Do contrário,
uma eventual frustração de expectativas por parte da empresa
regulada pode suscitar contestações das decisões regulatórias, não
raro interpretadas como aumento da percepção de risco regulatório.

A Arsesp celebra agora uma década. De modo quase concomitante,


há cerca de duas décadas inaugurava-se no Brasil o modelo de
agências reguladoras independentes em infraestrutura. A análise
de sua experiência – provavelmente a agência multissetorial que
regula serviços em nível estadual mais dinâmica do país – expõe
os importantes desafios a serem enfrentados nos anos que virão.

Em um momento em que se criam expectativas com relação a


uma nova onda de aumento da participação privada para ajudar a
preencher a lacuna de infraestrutura, é fundamental reconhecer a
importância do conhecimento das “regras do jogo” antes da atribuição
dos contratos de concessão. Diminui-se assim a percepção de risco
regulatório e consequentemente o custo do capital, gerando ganhos
de competitividade e melhorias nas condições de prestação dos
serviços de infraestrutura.

* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.


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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 43 / 108
Capítulo 3 REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS
DE ENERGIA ELÉTRICA

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 44 / 108
Capítulo 3 Introdução

Introdução
Marcos Peres Barros1

Dez anos cumprindo com excelência

C
a fiscalização do setor elétrico paulista

Comemorar uma década de existência é um marco para


qualquer instituição, ainda mais para uma agência como a
Arsesp, que tem papel tão importante em serviços essenciais
à população. Ao longo desse tempo, a agência conseguiu
consolidar sua atuação, sendo referência para outras agências
reguladoras de todo o Brasil

Essa conquista se deve ao trabalho árduo de várias pessoas


que por aqui passaram e ajudaram a construir uma base sólida
para regular e fiscalizar os serviços de gás e saneamento em São
Paulo. Além disso, por meio do Contrato de Metas firmado entre
a União, representada pela Agência Nacional de Energia Elétrica
(Aneel), e o governo do estado de São Paulo, a Arsesp fiscaliza
24 distribuidoras de energia elétrica do estado de São Paulo –
14 concessionárias e 10 permissionárias2. Ainda no campo da
energia, a fiscalização da Arsesp também engloba a operação de
pequenas centrais hidrelétricas (PCH) e usinas termoelétricas.

Nesses dez anos, nosso objetivo tem sido garantir que a


população receba serviços de qualidade com preços justos e,
mais do que isso, que esses serviços sejam ampliados para
áreas ainda não contempladas.

1
Engenheiro eletricista formado pela Universidade de Mogi das Cruzes - UMC e Especialista
em Planejamento de Operação de Sistemas pela Universidade de Campinas - UNICAMP,
Marcos é o atual diretor de regulação técnica e fiscalização de serviços de energia elétrica.
2
Disponível em: https://bit.ly/2zUuX1g. Acesso em: 4 mar. 2018.

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 45 / 108

Capítulo 3 Introdução

Há também uma nova proposta de fiscalização, aprovada pela


Aneel, chamada de “monitoramento”. Em síntese, avalia-se o
comportamento do agente em relação aos indicadores e qualidade
Hoje, atuamos como o órgão dos serviços e, conforme os critérios de importância, prioridade
mediador entre sociedade civil, e risco, define-se ações preventivas com o agente fiscalizado.
Após essa fase é realizado um diagnóstico e orientações sobre os
prefeituras e concessionárias problemas identificados são fornecidas ao agente. O agente deverá
apresentar um plano de melhorias, propondo alterações necessárias
para que dentro de um prazo adequado a distribuidora obtenha
Diálogo entre entidades melhores resultados relacionados a qualidade dos serviços. Este
plano de melhorias será acompanhado periodicamente pela Arsesp,
A Arsesp tem se empenhado em fortalecer a relação entre verificando-se a tomada das providências propostas e o desempenho
distribuidoras, prefeituras, Ministério Público, a própria agência e da empresa em relação aos resultados esperados.
consumidores. A demanda da população para que o contato com
as distribuidoras de energia seja mais próximo sempre foi grande. Esta nova proposta de fiscalização está sendo aplicada em todo o
Trabalhamos, então, para tornar essa relação mais fácil e ágil. Hoje, Brasil, e busca não só aproximar órgão regulador e agente regulado,
atuamos como o órgão mediador entre sociedade civil, prefeituras mas também melhorar o serviço oferecido. Percebemos que apenas
e concessionárias, por vezes convidando representantes dessas multar as distribuidoras de energia não garante melhorias no serviço
esferas a virem até a agência para discutir e solucionar problemas. e resultados positivos para os consumidores, uma vez que é possível
recorrer e iniciar um processo burocrático e demorado.
Outra atividade que merece destaque é a avaliação da execução dos
planos de adequação e melhorias apresentados pelas concessionárias Em 2016, todos os colaboradores da diretoria de energia
de distribuição à Arsesp, visando ações preventivas para garantir elétrica foram incluídos neste novo processo de fiscalização por
a segurança e a qualidade do serviço prestado à população. monitoramento. Começamos com um piloto na AES Eletropaulo e,
Nessa avaliação, são abordados desafios como o atendimento aos a partir daí, nas demais distribuidoras do estado de São Paulo. Ficou
consumidores durante o verão, focando inclusive o atendimento ao comprovado que os resultados obtidos foram bastante positivos,
litoral paulista, em especial as estações de captação e tratamento além do engajamento de todos ter superado as expectativas.
de água e esgoto que necessitam de atendimento diferenciado.
Novo modelo do setor elétrico brasileiro
No período de dezembro a março, que contempla festividades
como Natal, Ano-Novo e Carnaval, é estabelecido o sobreaviso, com No momento em que a Arsesp completa dez anos, está em
a participação de especialistas da diretoria em conjunto com a área discussão o aprimoramento do marco legal do setor elétrico
de relações institucionais. Essa é a época mais crítica do ano em brasileiro, proposto pelo Ministério de Minas e Energia (MME),
relação a interrupções do serviço de energia elétrica e, por isso, é que prevê transformações significativas na geração, distribuição e
feito um acompanhamento in loco das ações das distribuidoras a comercialização da energia elétrica, necessárias para reformular as
fim de minimizar o impacto aos consumidores. bases regulatórias do serviço em questão.

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 46 / 108
Capítulo 3 Introdução

Entre as várias transformações, destaca-se o surgimento


de novas tecnologias – que acabam afetando o modo como a
energia é gerada e distribuída –, o investimento em energias
alternativas e a maior preocupação com sustentabilidade. São
temas ainda discutidos por governos, representantes da sociedade
civil, pesquisadores etc., e que não são contemplados pela atual
legislação regulatória, sendo necessária, portanto, uma mudança
de parâmetros.

O trabalho deve ser no sentido de se adequar às novas demandas,


considerando que tudo é pensado e implementado em prol da
população, ou seja, visando a melhor qualidade do serviço prestado.
É preciso estar sempre preparado, pois o próprio crescimento
econômico do país está ligado a esses serviços, principalmente
à eletricidade. Além disso, hoje a indústria está buscando outras
fontes de produção de energia, como a biomassa, a eólica e a solar.
Segundo dados de 2016 da Secretaria de Energia e Mineração
do Governo do Estado de São Paulo, o setor representa 8,83%
do total nacional, sendo o bagaço da cana-de-açúcar a principal
fonte (78,2%).

Apesar de todos os desafios que tem enfrentado e vai enfrentar


nos próximos anos, a Arsesp tem cumprido seu papel com
excelência. Fora isso, é importante ressaltar que o modelo de
privatizações, ou seja, a ideia de abrir o mercado a novos players
tem funcionado muito bem e, em longo prazo, o consumidor será
o maior beneficiado nesse processo.

* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.


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Sumário Páginas 47 / 108
Capítulo 3

A regulação no setor
elétrico brasileiro: nascer
e crescer para servir!
a) ser impossível produzir uma mesma quantidade de produto final

C
José Mário Miranda Abdo1,2 utilizando uma combinação de insumos e outros fatores de produção
mais baratos ou b) ser impossível produzir uma maior quantidade
desse mesmo produto final.

Por sua vez, algumas escolas de ciências econômicas afirmam que


Certamente não se vive mais de uma vez uma experiência
o mercado por si só seria capaz de produzir e atender às demandas e
histórica, inovadora e atual como a de Regulador. É uma
aos interesses da sociedade. Portanto, a intervenção estatal deveria
oportunidade ímpar zelar, com equilíbrio, pelos legítimos
ser mínima.3 Para alguns pensadores as próprias forças de mercado
interesses dos consumidores e usuários, dos investidores,
seriam capazes de corrigir suas deficiências.4 Seria uma espécie de
dos prestadores de serviço e da sociedade. Quero dizer que
mercado autorregulável.
nos sentimos agradecidos e felizes por, junto com tantos
outros companheiros de outrora e de agora, termos servido ao O certo é que o “tempo” necessário à correção espontânea do
nosso país e sido úteis na transformação do setor de energia mercado poderia impor sacrifícios aos interesses de um conjunto
elétrica brasileiro. Apresento aqui um pouco da história da expressivo de pessoas. Além disso, como identificar o custo social da
regulação do setor elétrico, da criação e do desenvolvimento autorregulação, uma vez que o processo de reequilíbrio do mercado
da Aneel nessas duas décadas, e, por fim, aponto algumas ignora valores não econômicos?5
perspectivas da regulação no Brasil.
As visões originárias do século XX remetiam à necessidade de
intervenção de um agente externo para eliminar defeitos e equacionar
A função reguladora e a reforma do Estado brasileiro insuficiências do mercado. Tratava-se, portanto, de um novo conceito
Num mundo ideal, um mercado economicamente de regulação, pois migrava da dimensão de apenas regular a produção
eficiente deveria ser autorregulável. Para tanto, haveria de propriamente econômica para uma regulação estatal que consistiria
em emular o mercado, com o objetivo de produzir os mesmos vetores
que o mercado poderia gerar.
1
Engenheiro eletricista (UnB, 1973) e administrador de empresas (UniCeub, 1979). Pós-graduado Nesse sentido, os principais desafios da regulação eram equalizar
em engenharia de sistemas elétricos (UnB, 1980). Sócio controlador da empresa Abdo, Ellery
e Associados – Consultoria Empresarial em Energia e Regulação Ltda. (desde 2005). Membro
as falhas de mercado, ou seja, a deficiência na concorrência, como bens
do Comitê Diretor da UnB desde 2013. Foi o primeiro diretor-geral da Aneel (1997-2004).
Trabalhou na Eletronorte e em Furnas. Professor do Departamento de Engenharia Elétrica
da UnB (1977-1978).
2
Assessoria na elaboração do artigo: Claudia N. Portal de Matos – consultora e sócia da Abdo,
Ellery e Associados – Consultoria Empresarial em Energia e Regulação Ltda. (desde 2007). 3
COOTER, R.; ULEN, T. Law and Economics. 3. ed. Massachusetts: Addison-Wesley, 2000.
Foi reguladora da Aneel (2002-2007). Mestre em economia do setor público (UnB, 2011). 4
JUSTEN FILHO, M. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002.
Matemática (UEPA, 2001). Formanda em Direito (UniCeub). 5
Ibidem.

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Sumário Páginas 48 / 108
Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

coletivos, externalidades, assimetrias da informação, desemprego, Talvez o fator “tempo” pudesse ser amenizado com os efeitos dessa
inflação e desequilíbrio.6 regulação de agências autônomas. Mas e o fator “social”? Ou seja, era
preciso que a intervenção estatal pudesse assegurar a redistribuição
Dessa forma, no século XX já se conhecia o conceito de função
de renda e proporcionar o consumo de certos serviços. A essa fase,
reguladora no Brasil, que era desempenhada por entes externos ao
Marçal Justen Filho denominou de “regulação social”, a “segunda
mercado, como as agências governamentais autônomas, consideradas
onda regulatória” em sua classificação.
entes fracionários do aparelho administrativo do Estado, que foram,
no último século, vastamente estudadas em relação a aspectos O certo é que, no fim da década de 1980, as transformações
políticos, jurídicos e técnicos. É antigo, portanto, o conceito de função ocorridas nas economias dos Estados nacionais trouxeram à tona
reguladora no Brasil.7 Essa fase em que a regulação visa evitar a reflexões sobre o modelo de intervenção direta do Estado. A conjuntura


concretização de falhas de mercado foi chamada por Marçal Justen indicava uma revisão desse modelo para buscar uma intervenção
Filho de “regulação exclusivamente econômica”, em sua obra vista mais indireta, pois não era de todo recomendável que as funções
como “a primeira onda regulatória”.8 de planejamento setorial e de regulação, as decisões estratégicas
empresariais e as de política macroeconômica ocorressem no mesmo
ambiente macroinstitucional.9

Além disso, era preciso repaginar a função reguladora. Nesse


no século XX já se conhecia contexto, Diogo de Figueiredo Moreira Neto10 afirma que “[...]
empresas estatais, por serem tidas como o próprio Estado atuando
o conceito de função reguladora indiretamente, gozavam de relativa autonomia técnica [...] e, por isso,
no Brasil, que era desempenhada considerava-se supérfluo e redundante manter controles estatais
específicos sobre o seu desempenho”. Tem razão o autor. Afinal,
por entes externos ao como poderia o Estado punir seus próprios erros? Como deixar o
próprio gestor aplicar penalidades para suas próprias ineficiências?
mercado, como as agências
Nesse contexto, para se adequar à concepção de estado
governamentais autônomas democrático de direito, a Constituição Federal de 1988,11 em seu
art. 175, estabeleceu e, de algum modo, deu diretrizes sobre as
novas concessões ou permissões dos serviços públicos:
Mas essa concepção de regulação intervencionista foi
evoluindo com o tempo. Percebeu-se que o mercado, ainda que Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou
em funcionamento “perfeito”, dada a intervenção das agências sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação,
autônomas, poderia não atingir os objetivos do interesse comum. a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:


6
MAJONE, G. La Communauté européenne: un Etat Régulateur. Paris: Montchestien, 1995.
p. 76.
7
MOREIRA NETO, D. F. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 9
Aneel 7 anos: principais realizações e desafios: 1997/2004. Brasília, DF: 2004, p. 8.
2001. p. 145. 10
MOREIRA NETO, D. F. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Renovar,
8
JUSTEN FILHO, M. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002. 2001. p. 146.
p. 32. 11
Disponível em: http://bit.ly/2wro7QU . Acesso em: 21 ago. 2017.

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Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços


públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação,
bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da
concessão ou permissão;

II – os direitos dos usuários;

III – política tarifária;

IV – a obrigação de manter serviço adequado.

Com o advento desse dispositivo, qualquer nova concessão ou


permissão deveria ocorrer mediante licitação e na forma que a lei
dispusesse. Entretanto, leis e decretos surgiram somente em 1995.
Dessa forma, vários setores ficaram pelo menos sete anos sem
novos investimentos. Primeiro, por incapacidade de financiamento;
segundo, por falta de base legal e regulamentar.

Assim, em 1995, foi lançado o Plano Diretor da Reforma do


Aparelho do Estado,12 que postulava, em sua apresentação, que
a crise brasileira (ocorrida na década de 1980) tinha sido também
considerada uma crise do Estado, justamente porque, no decorrer do
tempo, esse ente desviou-se de suas funções basilares (de controlar
e regular) para se tornar parte do setor produtivo. Esse desvio
acarretou a deterioração dos serviços públicos, o agravamento da
crise fiscal e, consequentemente, a inflação.

Nesse contexto, ressurgiram as entidades de controle externo,


com funções inovadoras, denominadas agências reguladoras – entre
elas, a Agência Nacional de Energia Elétrica13 (Aneel) –, fruto das
transformações do Estado brasileiro, que passou a dar ênfase à
sua função reguladora e social, com o objetivo de interferir apenas
indiretamente na ordem econômica,14 abrangendo tanto as empresas
estatais como as da iniciativa privada.

12
BRASIL. Presidência da República. Câmara da Reforma do Estado. Plano diretor da Reforma
do Aparelho do Estado. Brasília, DF: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado,
1995. p. 9.
13
Lei 9.427, de 26 de dezembro de 1996. Disponível em: http://bit.ly/2x6pSQu. Acesso em: 21
ago. 2017.
14
Aneel 7 anos: principais realizações e desafios: 1997/2004. Brasília, DF: 2004. p. 8.
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Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

As agências reguladoras foram criadas por lei como autarquias Elétrica (DNAEE), responsável pelo setor, era suscetível à interferência
especiais, integrantes da Administração Indireta. São órgãos de política governamental no exercício de suas atribuições.
Estado, portanto sem subordinação hierárquica ao Governo Federal,
Nesse sentido, era necessário pôr fim a essa situação caótica e
e possuem atribuições específicas na lei de criação.
retomar a atração de investimentos e a sustentabilidade dos negócios.
O enfrentamento do problema deveria vir por meio de uma reforma
Criação e implantação da Agência Nacional de ampla e sólida, não apenas do setor elétrico, mas do próprio aparelho
Energia Elétrica do Estado, abrangendo outras áreas de infraestrutura.

As agências reguladoras surgiram em razão de várias necessidades. Dessa forma, somente em 13 de fevereiro de 1995 foi publicada
O governo da década de 1990 fez um diagnóstico de como estavam os a Lei 8.987 (Lei de Concessões15), que dispõe sobre o regime de
setores dos serviços públicos no Brasil. Constatou-se uma estagnação concessão e permissão da prestação de serviços públicos, previsto no
generalizada, em particular, no setor elétrico, que tinha um histórico artigo 175 da Constituição Federal. Nove meses depois, foi lançado
de realizações importantes como a construção de usinas e de linhas o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, elaborado pelo
de transmissão. Ministério da Administração e aprovado pelo então presidente da
República, contendo diagnóstico, estratégias e diretrizes de ação.
O setor estava completamente endividado. Havia enorme
inadimplência intrassetorial. Distribuidoras estaduais não pagavam O Plano Diretor de Reforma16 trazia como um de seus projetos


as geradoras federais. Uma das distribuidoras que era suprida pela básicos a criação de agências autônomas, com atividades exclusivas
Eletronorte não pagava pela energia havia sete anos, ainda que o do Estado e com foco na modernização administrativa:
consumidor quitasse suas faturas.
8.1.2 Agências Autônomas

A responsabilização por resultados e consequente autonomia


de gestão inspiraram a formulação deste projeto, que tem como

O setor estava completamente objetivo a transformação de autarquias e de fundações que exerçam


atividades exclusivas do Estado, em agências autônomas, com foco
endividado. Havia enorme na modernização da gestão.

inadimplência intrassetorial. O Projeto das Agências Autônomas desenvolver-se-á em duas


dimensões. Em primeiro lugar, serão elaborados os instrumentos
Distribuidoras estaduais não legais necessários à viabilização das transformações pretendidas,
e um levantamento visando superar os obstáculos na legislação,
pagavam as geradoras federais normas e regulações existentes. Em paralelo, serão aplicadas as

Por sua vez, os bancos internacionais de fomento não queriam mais


financiar as empresas porque as tarifas eram defasadas artificialmente, 15
Projeto de Lei apresentado pelo senador Fernando Henrique Cardoso. Disponível em:
como instrumento de controle da inflação, tornando impagáveis https://bit.ly/2G6Ewjh. Acesso em: 21 ago 2017.
16
BRASIL. Presidência da República. Câmara da Reforma do Estado. Plano diretor da Reforma
quaisquer financiamentos. Não havia contratos de concessão entre o
do Aparelho do Estado. Brasília, DF: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado,
Estado e esses agentes. O Departamento Nacional de Águas e Energia 1995. p. 73.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 51 / 108
Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

novas abordagens em algumas autarquias selecionadas, que se com variadas profissões e das mais diversas naturalidades, num
transformarão em laboratórios de experimentação. prazo breve.

Assim, em 1997, tive a honra de ser convidado17 para liderar a Nesse sentido, foi instituído um processo seletivo nacional em que
instituição e a estruturação da primeira agência nacional de regulação psicólogas pudessem utilizar ferramentas que permitissem identificar
constituída no Brasil, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). um aguçado espírito público nos profissionais a serem contratados.

Não se tratava de uma tarefa trivial, pois envolvia enorme Pensava-se numa Aneel composta por advogados, administradores,
responsabilidade e um extraordinário desafio em implantar a nova geógrafos, sociólogos, matemáticos, contadores, engenheiros etc.
cultura da regulação no setor elétrico brasileiro. Mas essas foram Logo nas primeiras reuniões de trabalho na agência, sentimos uma
justamente as molas propulsoras da motivação que nos tomou. grande mudança. As reuniões já não eram mais de cinco engenheiros,
A Aneel teria grande importância para a sociedade. Foi um caminho de mas de 10, 15 ou mesmo vinte profissionais das mais variadas
idealismo, que teve como gênese o desejo de servir e ser útil ao país. formações, o que enriquecia enormemente as discussões e as
soluções alcançadas.
Foram-nos dados régua e compasso. Nas crenças e palavras de
Raimundo Brito, ministro do Ministério de Minas e Energia (MME), Ainda em 1997, reunimos, na Escola de Administração Fazendária
não havia “meia liberdade”. A diretoria da Aneel poderia estruturar (Esaf), em Brasília, uma equipe precursora, com cerca de 50 pessoas,18
a agência segundo suas convicções e responsabilidades, desde que para discutir, durante uma semana, num Encontro de Planejamento
não se afastasse das diretrizes dadas pelo Plano Diretor de Reforma. Estratégico, o que seriam a visão, a missão, a estrutura organizacional
e o modelo de gestão da futura Aneel.
Assim, nossa concepção da instituição foi baseada em uma visão
federativa, plural e multifuncional. Até que se fizesse o primeiro Juntos, sonhamos e desenhamos o futuro. Houve uma entrega
concurso para compor o quadro da agência, contaríamos com por inteiro, movida a ideais, sugestões e discussões de propostas.
pessoas dos diversos estados brasileiros, das mais variadas formações Ao final, desvelou-se um tesouro! A agência seria estruturada em
profissionais. Essas eram nossas diretrizes para buscar os primeiros apenas dois níveis hierárquicos, com uma Diretoria Colegiada,
funcionários que ajudariam a erguer a Aneel. Gabinete do Diretor-Geral, Assessoria da Diretoria, Secretaria-Geral,
Procuradoria-Geral, Auditoria Interna e vinte Superintendências
Para isso, contratamos o Centro de Seleção e de Promoção de
de Processos Organizacionais. Sua gestão seria por processos
Eventos (Cespe/UnB), para o qual demos orientações. Tinha que
organizacionais, e tudo isso traria uma grande inovação ao serviço
ser uma agência com atuação federativa. Não poderia, portanto,
público, como eram as próprias agências reguladoras. O objetivo
ser uma agência composta só por pessoas do Sudeste ou Sul, por
era que pudéssemos cumprir sua missão, também construída nesse
exemplo. Era importante agregar talentos e valores de todas as
encontro: “Proporcionar condições favoráveis para que o mercado
regiões do Brasil.
de energia elétrica se desenvolva com equilíbrio entre os agentes e
A lei de criação das agências permitia a contratação temporária em benefício da sociedade”.
no primeiro ano de vida da agência, única solução viável para montar
A Aneel surgiu “como uma inovação dentro da Administração
um quadro de pessoas experientes e também de recém-formados,
Pública Federal, uma instituição em condições de tratar com

17
Pelo ministro de Minas e Energia, Raimundo Brito, há menos de um ano de tê-lo conhecido
em ambientes de desafios profissionais. 18
Tendo como consultor e facilitador o professor José Monir Nasser.

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Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

equidade os legítimos interesses do Governo, das empresas do É verdade, mas também não existiam agências reguladoras
setor e do consumidor de energia elétrica, sempre com um olhar sob a forma de autarquias especiais. A Aneel chegou rompendo
voltado para o horizonte do serviço público”,19 diferentemente da o paradigma burocrático do serviço público. E tínhamos um mote:
missão de outras agências, que contempla apenas uma das partes, tratava-se do desafio da criação do novo. Afinal, depois de muitas
normalmente o consumidor ou usuário. Isso pode até parecer rodadas, acabaram aceitando a tese, mas, na visão do Mare, uma


bonito, mas é de todo insuficiente, pois quem cuida só dos direitos ou duas superintendências seriam suficientes, uma para regulação
dos consumidores não é propriamente uma agência reguladora, e outra para fiscalização.
assemelhando-se mais a um Programa de Proteção e Defesa do
Consumidor (Procon). Afinal, uma agência reguladora deve ter a
mesma obrigação de cuidar dos interesses dos consumidores, das
empresas e da sociedade como um todo. Tem que fazer valer direitos
e obrigações do usuário e do investidor, tudo isso em benefício da a estruturação da agência e seu
sociedade. Do contrário, provocará desequilíbrios que, cedo ou
tarde, trarão consequências nefastas. modelo de gestão basearam-se,
A missão da agência foi tão intensamente discutida e pensada acima de tudo, em arraigadas
naquela ocasião que, mesmo após várias avaliações quanto à
necessidade de melhorias e aperfeiçoamentos ao longo de sua convicções democráticas
existência, ainda não sofreu alteração. Caso isso ocorra algum dia,
será necessário alterar o Decreto 2.335, de 6 de outubro de 1997,20 Aos poucos, ganhamos a confiança da direção do Mare. Ampliou-se
de constituição da Aneel. Aliás, a consignação da missão de uma a roda de discussões e então revelamos nosso projeto de criar vinte
agência reguladora em seu decreto de constituição foi fato inédito. superintendências para a Aneel. Não se pretendia criar cargos, como
Por tudo isso, a estruturação da agência e seu modelo de gestão poderia parecer, mas de prover uma estrutura horizontal e integrada,
basearam-se, acima de tudo, em arraigadas convicções democráticas. com somente dois níveis hierárquicos, que cumpriria diretrizes
discutidas previamente com a diretoria. A ideia era ganhar celeridade
Por se tratar do novo, a constituição da agência não foi pacífica. de ação, preservando a integração nos processos, o que não combina
Antes da finalização do decreto de constituição da agência, houve com uma estrutura demasiadamente departamentalizada.
muita discussão com o Ministério da Administração Federal e
Reforma do Estado (Mare) para a aprovação da concepção da Aneel. Era importante que a Aneel nascesse bem para poder crescer
O impasse foi grande. O Mare não via com bons olhos a criação de estruturada e poder ser, de fato, eficiente e eficaz no seu propósito.
superintendências, dado que elas não existiam no serviço público.21 Tão importante quanto regular e fiscalizar era ter superintendências
de Planejamento Estratégico, de Recursos Humanos, de Comunicação
Social, ou seja, ser uma agência por completo.

O certo é, que, ao fim, convencidos ou comovidos pela empolgação


Aneel 7 anos: principais realizações e desafios. Agência Nacional de Energia Elétrica. Brasília, dos que seriam responsáveis por erguer a Aneel, a equipe do Mare
19

DF: 2004. p. 6.
20
Disponível em: http://bit.ly/2jHkvAO. Acesso em: 21 ago. 2017. acatou a tal proposta das vinte superintendências, mas nos desafiou:
21
A comitiva precursora junto ao Mare foi liderada por Eduardo Ellery, futuro diretor da Aneel. “Vejam lá o que vocês vão fazer com tudo isso!”.

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Sumário Páginas 53 / 108
Capítulo 4 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

Mas tínhamos segurança de que era preciso haver uma diferença


muito grande entre o que seria uma agência reguladora e o serviço
público tradicional. Não deveríamos ser um time só de técnicos,
muito menos só de engenheiros elétricos, ainda que eu fosse um
deles. Tínhamos alguns valores a serem buscados.

Tão bons quanto os engenheiros, por exemplo, eram os advogados


que nos ajudaram a instruir o processo decisório desde a primeira
reunião. Não fizemos uma simples ata de reunião. Criamos um
processo, em que havia um diretor-relator, sorteado publicamente, e
um padrão de documentação a ser observado. As superintendências
relacionadas ao caso deviam apresentar nota técnica em que
constavam os fatos, o direito, a sua análise e uma conclusão, com
recomendações. O diretor-relator deveria apresentar relatório e
voto. E a aprovação no colegiado só ocorreria por maioria simples,
com pelo menos três diretores (60%).

A superintendência, a partir das diretrizes emanadas e discutidas


com a diretoria, fazia suas análises e recomendações. Era preciso
alinhar ideias com as áreas técnicas para que pudéssemos ter
sempre o melhor resultado aderente ao norte estratégico, de
forma equilibrada, para consumidores e investidores, em benefício
da sociedade.

Numa das reuniões para discutir o Projeto de Lei de criação da


Aneel, estavam presentes o relator, deputado José Carlos Aleluia,
o ministro de Minas e Energia, Raimundo Brito, Consultor Jurídico
do Ministério de Minas e Energia, José Calasans, o presidente e
o vice-presidente à época do Fórum de Secretários de Estado
para Assuntos de Energia, David Zylbersztajn e Eraldo Tinoco,
respectivamente, e eu que era, à época, diretor-geral do DNAEE,
já com alguma perspectiva de me tornar o primeiro diretor-geral
da Aneel. No Projeto de Lei resultante dessa reunião foi incluído
um artigo que abrigava o princípio de facultar a descentralização
das atividades da Aneel para as agências reguladoras estaduais,
uma pérola da obviedade, cujo real valor só aprendemos na
prática, na estrada e em debates em audiências públicas no
Congresso Nacional.
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Sumário Páginas 54 / 108
Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

Ao término dessa reunião, no MME, às cinco horas da manhã, o Na sequência, eclodiram liminares em vários estados para


Ministro Raimundo Brito brincou: “E há quem diga que a Esplanada que a Aneel retrocedesse, reduzindo tarifas. Então, com ajuda da
dos Ministérios é solitária…”. Nascia o dia, e, junto com ele, a nova Procuradoria-Geral Federal e da Superintendência de Regulação
cultura da regulação no país! Econômica, ambas da agência, decidimos interpor um Embargo de
Declaração contra a citada decisão do TCU.

Como “réu”, em nome da agência, fiz a sustentação oral no


plenário do TCU. O ministro-relator votou contra. De largada,
A agência nasceu e cresceu começamos perdendo. Em seguida, o procurador-geral no TCU
lastreada em pelo menos três se manifestou a favor da nossa tese. O placar final foi estreito,
mas o resultado foi a favor da Aneel. Em resumo, restou definido
princípios basilares da regulação, pelo Tribunal de Contas que cabe à Aneel a discricionariedade
técnica sobre tarifas de energia elétrica, cabendo ao TCU, nessas
autonomia, independência questões, não determinar, mas fazer recomendações para o juízo
decisória e transparência, final do regulador. Os jornais e revistas semanais estamparam
“TCU decide que quem regula as tarifas é a Aneel” e “Valem os
dos quais o regulador nunca contratos! Quem regula as tarifas é a Aneel”. Ficou assegurado,
deve se afastar portanto, o princípio da independência decisória do regulador.
Lavrou-se, ali, naquela ocasião, um acórdão que nada mais era
A agência nasceu e cresceu lastreada em pelo menos três que um atestado de autonomia e de independência decisória de
princípios basilares da regulação, autonomia, independência decisória uma agência reguladora.
e transparência, dos quais o regulador nunca deve se afastar. Mas Por sua vez, o tesouro da transparência, além das audiências
não só de flores vive o regulador. Em oposição a esses três princípios, e consultas públicas, veio com o case da definição, concepção,
que são verdadeiros tesouros, temos alguns casos que merecem estruturação e implantação das Reuniões Deliberativas Públicas de
ser lembrados.
Diretoria da Aneel, em 04 de outubro de 2004. A Aneel foi a primeira
Em relação ao tesouro da autonomia, o experimentamos e única agência reguladora no país a utilizar esse mecanismo
logo de início, pois veio com a escolha e a nomeação dos vinte por muito tempo. Na época, ainda cheguei a ouvir de uma alta
superintendentes pela própria diretoria da Aneel, quebrando outro autoridade: “Vão decidir em público? Vocês são loucos!”. Não se
paradigma no serviço público. tratava de loucura. Eram nossas crenças.

Quanto ao tesouro da independência decisória, vivemos um Com as reuniões públicas de diretoria, demos oportunidade a
grande desafio, quando, em 2004, a Aneel, de quase um pequeno qualquer agente do setor elétrico, no país ou no exterior, de poder
“juizado administrativo”, tornou-se ré. Foi quando o Acórdão do acompanhar as reuniões ao vivo, presencialmente ou pela internet.
Tribunal de Contas da União (TCU) 556/2004 determinou que a Aneel Com isso, aumentou a consistência das decisões e diminuíram os
deveria rever sua decisão quanto à consideração dos juros sobre custos das empresas. Eram os princípios da transparência e da
capital próprio nas tarifas de energia elétrica. eficiência sendo colocados em prática na administração pública.

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 55 / 108
Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

De fato e de direito, estava nascendo a nova cultura da regulação O certo é que o setor estava há muito tempo sem investimentos, e
no país. Tínhamos uma agência reguladora de energia elétrica a cada ano era uma corrida contra o tempo. O objetivo era promover
dotada de: investimentos para diminuir o déficit de oferta e não houvesse falta
de energia elétrica no Brasil.
• Independência técnica decisória;
Mas, infelizmente, em 2001, quando já havia um crescimento
• Independência política dos gestores;
significativo da oferta de energia, graças à retomada dos investimentos
• Autonomia normativa; feitos, o Brasil foi surpreendido pela pior seca de um período de
70 anos. Pelas expectativas, se não fosse a seca severa, com mais
• Autonomia gerencial, orçamentária, financeira e patrimonial;
dois anos se recuperaria o hiato de investimentos ocorrido entre
• Transparência 1988 a 1995.

A agência cresceu e hoje é reconhecida nacional e O que de fato aconteceu não foi propriamente um racionamento,
internacionalmente como a melhor agência reguladora do Brasil. porque não houve interrupção de fornecimento a nenhum consumidor
Fico muito feliz em saber que pudemos servir e ser útil. Ouvir do e a nenhuma cidade. Embora tenha sido chamado de “apagão” ou
atual e competente diretor-geral da agência, Romeu Rufino, que “a “racionamento” por alguns, o que houve, tecnicamente, foi uma
Aneel tem reconhecimento em seus trabalhos até porque foi bem- racionalização do consumo, mediante um engenhoso sistema de ônus
nascida”, gera um sentimento de realização. Isso teve a ver com e bônus ao consumidor, ao qual a população rapidamente aderiu.
nossas crenças.
No programa, quem consumisse acima da sua média, pagaria
A lei de criação da agência foi interpretada de uma forma que a fez um adicional. Em contrapartida, quem economizasse teria bônus
grande. A Aneel nasceu com uma missão forte, estrutura moderna financeiro. Foi um período de dificuldades que deixou aprendizados.
e gestão com alinhamento estratégico para alcançar o bem comum! Tempos depois do encerramento do período de escassez, várias
comitivas de outros países vieram ao Brasil conhecer aquele bem-
O crescimento da regulação do setor elétrico no sucedido modelo de racionalização de consumo.
Brasil – 20 anos A participação do regulador foi ativa nesse período. A Aneel fez
parte da Câmara de Gestão da Crise, cujas ações foram centralizadas
Programa Emergencial de Redução do Consumo de pelo governo. Foi uma câmara multidisciplinar, com várias instituições
Energia Elétrica (PERCEE) governamentais envolvidas, que buscou soluções para que a escassez
de energia fosse a menos traumática possível para a população.

A regulação do setor elétrico enfrentou, já de início, extraordinários Criou-se ali um Acordo Geral do Setor Elétrico, para que a Câmara
desafios. Ainda no primeiro ano de vida, pairava o desafio de de Gestão da Crise pudesse intervir mais agilmente na implantação
viabilizar a retomada de várias obras paralisadas e de implantar das soluções necessárias. Foi uma transição que alterou, sim, o
novas usinas e linhas. Afinal, ainda havia reflexos do grande hiato ciclo de gestão da Aneel, mas para o bem da sociedade. Em 2002,
de investimentos do período entre a Constituição de 1988 e a Lei a situação de oferta e de preço de energia retomou o caminho
de Concessões de 1995. da normalidade.

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Sumário Páginas 56 / 108
Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

As agências reguladoras estaduais de saber orientar e ajudar a resolver o problema do consumidor e,


certamente, com maior compreensão da realidade local.

Um ponto muito perseguido pelo Fórum dos Secretários de Estado A Aneel seria uma instância para resolver alguma pendência que
para Assuntos de Energia, na discussão da Lei de criação da Aneel, não se conseguisse resolver localmente. Apresentamos minutas
foi a possibilidade de delegação de algumas atividades da Aneel de projetos de lei de criação da agência estadual para vários
para agências reguladoras estaduais, conquistada conforme citado governadores, eles foram aperfeiçoados e aprovados. Alguns estados
no item 2. Tratava-se da atuação descentralizada do regulador por partiram na frente, como Rio Grande do Sul22 e São Paulo,23 criando
meio de convênio com os estados. Mas o que figurava na lei como suas agências reguladoras, pioneiramente, em 1997.
uma permissão, para nós, da agência, era uma crença. Descentralizar Depositphotos

era preciso!

A parceria com as agências reguladoras estaduais era indispensável.


Nós tínhamos a firme convicção de que de Brasília não cuidaria bem
de todas as questões de energia elétrica desse gigante país chamado
Brasil. Era preciso criar as agências estaduais à imagem e semelhança
da Aneel, ou seja, com autonomia, independência, mandato fixo de
diretores, decisões colegiadas e autonomia patrimonial e financeira, e
firmar convênios com elas. Nesses convênios, prevê-se a transferência
de parte dos recursos financeiros, oriundos da taxa de fiscalização,
arrecadados no próprio estado.

Com isso participamos da discussão de projetos de lei estaduais


e tivemos audiências com vários governadores do Brasil, deixando
claro que aquilo que era uma faculdade conferida por lei à Aneel.
Para nós tornou-se um imperativo. Isso porque entendíamos, por
exemplo, que um consumidor no Rio Grande do Norte ou no Rio
Grande do Sul que quisesse resolver um problema não precisaria
ligar para Aneel em Brasília. Era importante inclusive incorporar a
criteriosa hierarquia de acesso que um dia assimilamos da Agência
de Regulação e Controle de Serviços Públicos do Estado do Pará
(Arcon-PA): “Problema de energia? Procure seu concessionário.
Não resolveu, procure a Arcon; se não foi suficiente, procure a Aneel”.

Na nossa visão era muito melhor o consumidor resolver o 22


Em 9 de janeiro de 1997, na forma da Lei 10.931, foi criada a Agência Estadual de Regulação
problema com alguém que “falasse a sua língua”, vivesse a mesma dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs).
realidade para melhor compreender sua necessidade, tivesse o
23
Em 17 de outubro de 1997, a Lei Complementar 833 criou a autarquia Comissão de Serviços
Públicos de Energia (CSPE), que posteriormente foi sucedida pela Agência Reguladora de
mesmo sotaque para se sentir próximo. A agência estadual saberia Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp – autarquia de regime especial,
seus direitos e deveres e teria a mesma responsabilidade da Aneel vinculada à secretaria Estadual de Governo, criada pela Lei Complementar 1.025/2007).

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Sumário Páginas 57 / 108
Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

Logo de início, as agências de São Paulo e do Rio Grande do nasceu e cresceu com tal propósito. As políticas setoriais e públicas
Sul estabeleceram sólida parceria com a Aneel, pois era grande advindas do Ministério de Minas e Energia e do Poder Legislativo
a convicção de que juntos faríamos melhor. Sentíamos que era vêm sendo permanentemente implementadas pela agência.
possível contribuir além do adequado fornecimento de energia
A Aneel, em suas ações de regulação e fiscalização dos
elétrica, contribuiríamos para fortalecer a cidadania. Nos anos segmentos de geração, transmissão, distribuição e comercialização,
seguintes, nasceram e cresceram agências reguladoras em outros introduziu pioneiramente a dimensão do balanço social na busca
13 estados, que vêm, desde então, cumprindo importante papel em da sustentabilidade do negócio de energia elétrica:
servir a população nos estados. Sobretudo, para atender, à época,
O Setor Elétrico, numa atitude pioneira, vem elaborando desde 2002,


às 64 distribuidoras, das quais, 13 com sede em São Paulo e 8 no
o Relatório Anual de Responsabilidade Empresarial, em conformidade
Rio Grande do Sul, além de diversas cooperativas de eletrificação e
com as orientações constantes do Manual de Contabilidade do Setor
os cerca de mil geradores que surgiram nos anos pós-Aneel.
Elétrico – MCSE, instituído pela Resolução Aneel nº 444, de 26 de
outubro de 2001, e alterações posteriores. Considerando a evolução
de relevantes questões vivenciadas pelo setor nos últimos anos, tais
como: universalização dos serviços; eficiência energética; pesquisa e
As ações descentralizadas, por desenvolvimento; e fontes alternativas de energia, no final de 2004, a
Aneel iniciou um processo de análise sobre o referido relatório, visando
meio das agências reguladoras o seu aprimoramento e adequação a essa nova realidade.24

estaduais, fizeram da Aneel uma Segundo o site da Aneel,25 uma das ações foi

agência de atuação abrangente, o estabelecimento em 2007 da obrigatoriedade dos agentes do setor


elétrico de apresentarem anualmente seu Balanço Social (Empresa
capaz de olhar o Brasil Cidadã), sob coordenação da Superintendência de Fiscalização

como um todo Econômico-Financeira (SFF).

Desde 2002 era recomendado; a partir de 2007 tornou-se


obrigatório o balanço social, e a partir de 2015 evoluiu para Relatório
As ações descentralizadas, por meio das agências reguladoras
de Responsabilidade Socioambiental e Econômico-Financeiro (RSA).
estaduais, fizeram da Aneel uma agência de atuação abrangente,
capaz de olhar o Brasil como um todo, sem descuidar da variável A elaboração do RSA, além de atender aos requisitos do “Manual de
local, para ajudar a melhorar a vida das pessoas e democratizar as Elaboração do Relatório Anual de Responsabilidade Socioambiental e
oportunidades de investimentos no país. Econômico-Financeiro das Outorgadas do Setor de Energia Elétrica”,
e deve adotar como princípios mínimos:
Regulação social

Fazendo uma conexão com a segunda onda regulatória referida 24


Disponível em: http://bit.ly/2H1VVWY. Acesso em: 20 fev 2016.
por Marçal Justen Filho, a “regulação social”, diríamos que a Aneel 25
Disponível em: http://bit.ly/2jRMIch. Acesso em: 20 fev 2016.

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Sumário Páginas 58 / 108
Capítulo 4 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

[...] a transparência, relevância, integridade e clareza, precisão e


regularidade, que expressam o compromisso empresarial de prestar
contas à sociedade das ações efetivamente realizadas no sentido de:
promoção da cidadania (inclusão social); continuidade e qualidade
dos serviços aos consumidores; preocupação com a qualidade de vida
dos seus empregados; otimização dos recursos naturais, de forma a
preservar a integridade do planeta para as futuras gerações; e com
a adoção de melhores práticas de governança corporativa, criando
valor aos acionistas.26

Ainda como desdobramento do compromisso da agenda de cunho


social, várias políticas sociais na área de energia foram definidas
pelo Legislativo e pelo Executivo, sendo implementadas pela Aneel
mediante audiências públicas abrangendo temas como a Conta
de Consumo de Combustíveis (CCC),27 Conta de Desenvolvimento
Energético (CDE),28 Tarifa Social (Baixa Renda),29 Programa Luz Para
Todos (PLPT),30 além, obviamente, das ações de melhoria da qualidade
dos serviços e da busca da tarifa justa.

26
Disponível em: http://bit.ly/2zcHcU5. Acesso em: 20 fev 2016.
27
A CCC é um encargo do setor elétrico brasileiro pago por todas as concessionárias de
distribuição e de transmissão de energia elétrica, de forma a subsidiar os custos anuais de
geração em áreas ainda não integradas ao Sistema Interligado Nacional (SIN), chamadas de
Sistemas Isolados.  Hoje a CCC integra a CDE.
28
A Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) é um encargo setorial que tem diversos
objetivos, como promover a universalização do serviço de energia elétrica em todo o território
nacional; conceder descontos tarifários a diversos usuários (Baixa Renda, Rural, Irrigante
etc.); custear a geração de energia nos sistemas elétricos isolados (Conta de Consumo de
Combustíveis – CCC); pagar indenizações de concessões; garantir a modicidade tarifária;
promover a competitividade do carvão mineral nacional, entre outros.
29
A tarifa social foi estabelecida pela Lei 10.438/2002 e regulamentada pela Agência Nacional de
Energia Elétrica (Aneel) pelas Resoluções 246/2002, 485/2002 e 253/2007. Posteriormente, a
Tarifa Social de Energia Elétrica tornou a ser regulamentada pela Lei 12.212, de 20 de janeiro
de 2010 e pelo Decreto 7.583, de 13 de outubro de 2011, e é caracterizada por descontos
incidentes sobre a tarifa aplicável à classe residencial das distribuidoras de energia elétrica,
sendo calculada de modo cumulativo de acordo com a tabela constante do link http://bit.
ly/23O949n. Acesso em: 8 ago 2017.
30
Combina subsídios do governo com ações de concessionárias privadas. Criado em novembro
de 2003, pelo Decreto 4.873, o PLPT visa acabar com a exclusão elétrica no país e prover
acesso gratuito à eletricidade. O programa é um desdobramento do Programa Luz no
Campo, criado pelo Decreto de 2 de dezembro de 1999.
Depositphotos

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Sumário Páginas 59 / 108
Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

Projeto de Lei das agências reguladoras normativos de caráter geral e significativo impacto econômico,
social ou concorrencial que lhe sejam submetidas pelas agências
reguladoras, além das respectivas análises de impacto regulatório.
Segurança jurídica, respeito aos contratos, qualidade das instituições,
Esses pontos, tidos como essenciais pelas agências reguladoras, e
marcos regulatórios modernos e agências reguladoras independentes
pela Associação Brasileira das Agências Reguladora (Abar), tiveram
são instrumentos importantes para atrair investimentos e garantir a
avanços no PL aprovado no Senado em 6 de dezembro de 2016.
competitividade de um país. Porém, no Brasil, o aspecto do direito Nessa oportunidade, o PLS 52, de 2013, foi submetido à revisão da
regulatório que mais provoca calorosos debates doutrinários é o Câmara dos Deputados, sob a nomenclatura de PL 6.621, de 2016.31
poder normativo dos órgãos reguladores.


Em 16 de agosto de 2017, foi criada a Comissão Especial na Câmara
As discussões envolvendo temas relacionados ao limite do poder dos Deputados para analisar o PL 6.621/2016, após oito meses da
regulamentador das agências, seu grau de autonomia, controle a aprovação do projeto pelo Senado Federal.
que devem estar submetidas, mandatos de seus dirigentes, entre
outros aspectos, ganharam nova dimensão com o envio do Projeto
de Lei 3.337, de 2004, ao Congresso Nacional.

No Senado Federal, outras tantas propostas legislativas estão em para um melhor controle, é
andamento. Porém, todas as ações estão voltadas para o Projeto
de Lei do Senado (PLS) 52, de 2013, sobre a Lei Geral das Agências de fundamental importância que
Reguladoras, com regras relativas à gestão, organização e mecanismos
de controle social das agências federais.
as agências reguladoras prestem
O PLS 52, de 2013, contém avanços. Destaque para o controle contas, anualmente
das agências pelo Congresso Nacional e delimitações para a atuação
do TCU; o não contingenciamento orçamentário com as agências, Do exposto, verifica-se que, passados vinte anos de sua criação,
passando a constituir unidade orçamentária própria independente as primeiras agências reguladoras continuam sendo foco de debates
do ministério de vinculação; mecanismos para evitar a vacância na no Legislativo. Espera-se que o desenvolvimento da sociedade e
diretoria colegiada; perfil técnico para indicação dos diretores, além da atuação das próprias agências possam conduzir às melhores
da extensão de outras práticas já implementadas pela Aneel, como propostas, com o equilíbrio necessário para o desenvolvimento da
as reuniões deliberativas públicas da diretoria, a agenda regulatória infraestrutura do país.
e a análise de impacto regulatório. Por outro lado, tem propostas
O controle das agências pelo Congresso Nacional, com delimitações
que podem conflitar com a autonomia das agências reguladoras.
adequadas para a atuação do TCU, seu órgão auxiliar, seria desejável,
Entre os pontos críticos e riscos do projeto, registrava-se a dada sua representatividade e por ser o Senado a porta de entrada
preocupação com a figura do ouvidor que não seria sabatinado de seus dirigentes, que ali são sabatinados antes da nomeação. Por
no Senado Federal e, principalmente, com a instituição, no âmbito outro lado, para um melhor controle, é de fundamental importância
do Conselho de Governo da Presidência da República, de câmara que as agências reguladoras prestem contas, anualmente, quanto
específica destinada a avaliar e acompanhar assuntos regulatórios
e a opinar sobre propostas de edição ou alterações de atos 31
Disponível em: https://bit.ly/2McllD8. Acesso em: 21 ago. 2017.

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Capítulo 3 A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer para servir!

ao cumprimento de sua missão às Casas do Senado e da Câmara, Assim, cabe ao regulador reforçar a crença na transparência e no
e as estaduais às Assembleias Legislativas correspondentes. amplo diálogo para que cada vez mais os agentes explicitem esses
pontos através da capacitação da equipe com ênfase nas experiências
Adicionalmente, como mecanismos de controle da atuação das
práticas, do realismo das metas regulatórias e na postura proativa
agências reguladoras tem-se, além do Congresso Nacional e do TCU,
para vencer os desafios.
também a Controladoria Geral da União (CGU), o Ministério Público
da União (MPU), o Poder Judiciário, as organizações sociais, como o Certo é que os agentes têm demonstrado seu descontentamento,
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), a PROTESTE – e o regulador busca construir formas de encaminhamento, mas
Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, a mídia, a Associação nota-se a necessidade de algo maior, de alguns ajustes no modelo
Nacional dos Consumidores de Energia (Anace), os conselhos de do setor elétrico.
consumidores, entre outros.
Nesse sentido, o atual governo colocou em consulta pública uma
reforma do modelo setorial com propostas densas e que carecem
Perspectivas da regulação no setor elétrico brasileiro de muita discussão. Trata-se de assunto recente e merece ser
aprofundado. É um processo legítimo de não intervencionismo, que
As perspectivas da regulação no Brasil estão atreladas à economia,
não descuida da regulação quando necessária, de transparência e
política e seu processo de desenvolvimento. É um sistema vivo e
de ampla participação da sociedade. Processo, cujo produto final,
dinâmico. Sofre avaliações, ajustes, redirecionamentos a cada ciclo,
espera-se, sirva melhor ao bem comum.
que pode ser de 10, 15 ou 20 anos.
Porém, precisa ser mais abrangente, incluindo, além dos temas de
Vive-se, neste momento, algumas dificuldades no campo
geração, comercialização e consumidores livres, também questões
da realização dos investimentos, do atingimento de metas, da
estruturais do segmento de distribuição de energia, de modo a
judicialização de muitas demandas, da sustentabilidade da cadeia do
destravar investimentos, prover sustentabilidade, melhorar a
setor elétrico, que envolve consumidores, investidores e prestadores
qualidade do serviço e cobrar tarifa justa dos consumidores.
de serviços, no bojo de uma dinâmica em que surgem elementos
novos como, por exemplo, o “prossumidor” que é o consumidor que Esperamos com isso que o setor elétrico como um todo –
produz energia renovável distribuída. formuladores de políticas, investidores, prestadores de serviços,
consumidores e as agências reguladoras federais, estaduais e
Sobretudo, a geração renovável, distribuída, fotovoltaica, eólica,
municipais – cada vez mais contribua de forma eficaz e sustentável
a geração renovável concentrada, o smart grid, a digitalização, a
com as políticas de desenvolvimento do país.
prestação de outros serviços pelas distribuidoras estão criando outras
dinâmicas e práticas novas. Valem como exemplos a sobrecontratação Foi assim, com foco no bem comum, que em duas décadas de
que acabou ocorrendo e o Generation Scaling Factor32 (GSF) para existência, a cultura da regulação no setor elétrico brasileiro consolida
os geradores, que levaram a uma excessiva judicialização no sua trajetória de nascer e crescer para servir, com equilíbrio, tanto
setor elétrico. aos consumidores quanto aos agentes e à sociedade.

32
O GSF mede a geração hidráulica em relação à garantia física, cujo cálculo é feito mensalmente
pela CCEE. * Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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Sumário Páginas 61 / 108
Capítulo 4 REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS
DE GÁS CANALIZADO

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Sumário Páginas 62 / 108
Capítulo 4 Introdução

Introdução
Paula Campos1

Serviços locais de gás canalizado –

R
uma competência do Estado

Reza a Constituição Federal do Brasil que cabe aos estados


explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços
locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de
medida provisória para sua regulamentação.

Assim, homologou o Governo do Estado de São Paulo a


lei de criação da Arsesp, Lei Complementar nº 1025, de 7 de
dezembro de 2007, instituindo as competências da agência:
regular, controlar e fiscalizar, no âmbito do Estado, os serviços
de gás canalizado prestados pelas concessionárias.

À diretoria de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços


de Distribuição de Gás Canalizado da Arsesp compete
especificamente: submeter ao estado proposta de Plano
de Outorgas para a concessão dos serviços, de Plano de
Metas de Gás Canalizado, e a intervenção ou extinção da
concessão, bem como de prorrogação ou extensão do contrato;
realizar licitação para a concessão dos serviços e celebrar os
respectivos contratos, exercendo as atribuições legais de poder

1
Engenheira Eletricista/ Eletrônica, formada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
e pós-graduada em Análise de Sistemas, pelo Instituto de Matemática da UERJ. Atualmente
cursa a faculdade de Direito na Universidade Paulista. Com mais de 20 anos de experiência
no setor elétrico e de gás, trabalhou como gerente na Consultoria Andrade&Canellas, como
executiva master de contratos na Comgás, como coordenadora de energia na ABRACE,
como diretora técnica e regulatória na Anace, como gerente de energia América do Sul na
Air Liquide, como Head na Safira Gestão e CEO na Infinity Energias. Trabalhou ainda por
seis anos em engenharia biomédica. Desde outubro de 2017, Paula é diretora de Regulação
Técnica e Fiscalização dos Serviços de Distribuição de Gás Canalizado da Arsesp.

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Sumário Páginas 63 / 108
Capítulo 4 Introdução

concedente, salvo quanto à intervenção, extinção, prorrogação e Autorizações, Comercialização, Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)
extensão da concessão; dar suporte regulatório à revisão tarifária e de Fiscalização. São gerências de natureza técnica, comercial
para a Diretoria de Regulação Econômico-Financeira e de Mercados; e econômico-financeira. A fiscalização na área do gás, realizada
fixar limitações aos prestadores quanto ao volume de gás canalizado pela Arsesp, visa controlar a qualidade e segurança dos serviços
contratado com empresas do mesmo grupo econômico, bem como executados, resultando no cumprimento das regras previstas no
restrições à integração vertical; homologar ou autorizar contratos contrato de concessão. São fiscalizados indicadores e padrões de
de prestação dos serviços, quando previsto na regulamentação; segurança no fornecimento, de qualidade do produto e do serviço
autorizar as atividades realizadas pelo concessionário, acessórias ou e de qualidade do atendimento comercial, como a Concentração
correlatas ao serviço objeto do contrato de concessão; disciplinar o de Odorante no Gás (COG), Índice de Vazamentos no Sistema de
acesso não discriminatório de terceiros, mediante o pagamento de Distribuição de Gás (IVAZ) e Tempo de Atendimento de Emergência
tarifa de uso, ao sistema de distribuição de gás canalizado; autorizar (TAE), além das demais normas aplicáveis à prestação de serviços.
a atividade do comercializador de gás natural a usuários livres;
Para situarmo-nos em importância e responsabilidade, a Arsesp
homologar a servidão gratuita e permanente de acesso, a partir do
regula, controla e fiscaliza a distribuição de gás canalizado prestada
gasoduto de transporte, aos dutos de sistema de distribuição de
pelas três concessionárias que atuam no mercado paulista: a Comgás
gás canalizado, instituída pelo concessionário em favor de outros
(área leste do estado), a GasBrasiliano (área noroeste do estado) e a
distribuidores; autorizar previamente a alienação ou oneração dos
Gás Natural São Paulo Sul (área sul do estado), que juntas resultaram
bens vinculados à concessão; autorizar as atividades de assessoria,
em um faturamento bruto em 2017 da ordem de 8 bilhões de reais,
pesquisa e desenvolvimento, a serem financiadas com as receitas
e P&D e Conservação e Racionalização (C&R) próximos a 8 milhões
provenientes da fiscalização destes serviços.
de reais e investimentos em redes locais de 23 milhões de reais.
Em sequência ao trabalho realizado pela Comissão de Serviços
Públicos de Energia (CSPE), há 10 anos a diretoria vem editando Para onde caminha o setor do gás no estado de São Paulo
normas e regulamentos, de modo a garantir os princípios de
eficiência, isonomia e competitividade, além de corrigir imperfeições
de mercado, buscando o equilíbrio econômico e financeiro dos Em paralelo e em complemento às discussões sobre o monopólio
contratos de concessão, contribuindo para o bem-estar da população da Petrobras e a abertura real do mercado livre tratados pelo
do estado de São Paulo. programa “Gás para crescer”, instituído pelo Ministério de Minas e
Energia (MME), no biênio 2016-2017, em parceria com outros atores
governamentais e empresariais, a agência tem um importante papel
A Diretoria de Regulação Técnica e Fiscalização dos
também “para dentro”.
Serviços de Distribuição de Gás Canalizado – quem somos
Às vésperas de 2018, visando o usual e contínuo processo de
aperfeiçoamento de sua regulação e com base em sua experiência
A diretoria é pautada pela excelência e qualificação de seus
acumulada e nas demandas dos diversos agentes do setor, reforçando
servidores, locados em duas superintendências, a de regulação e a de
o processo de transparência, publicou a agência a Deliberação
fiscalização. São concursados e empossados em cargos de confiança
Arsesp nº 776, que dispõe sobre a instituição de Agenda Regulatória
engenheiros, advogados, economistas, administradores, tecnólogos
da Diretoria de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de
e estagiários, que se empenham nas áreas de Gerência de Contratos,
Distribuição de Gás Canalizado para o ano de 2018.

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Sumário Páginas 64 / 108
Capítulo 4 Introdução

A agenda apresenta diretrizes e compromissos para o ano em


questão. Há o compromisso ainda de abertura de audiência pública
no segundo semestre, por período longo, que será precedido de
discussões com os agentes, de todos os segmentos, sobre os temas
de importância a serem desenvolvidos, aprimorados e concluídos
no biênio 2019-2020.

A agenda regulatória do gás

A primeira agenda regulatória foi cuidadosamente estruturada


em 13 temas, que englobaram (i) o suporte à revisão tarifária, (ii) o
processo administrativo sancionatório, (iii) a revisão e atualização
de alguns indicadores técnicos, comerciais e de segurança, como
monitoração das características físico-químicas do gás natural
canalizado entregue aos usuários e comunicação de incidentes
com gás canalizado, (iv) a atualização dos segmentos de usuários
nas três áreas de concessão, (v) os limites de repasse aos projetos
estruturantes de rede local para as Concessionárias, (vi) os Projetos de
Programa Anual de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e Conservação
e Racionalização (C&R), com a inédita publicação de seus resumos
no site da agência, entre outros temas.

Dois estudos também foram propostos e estão em andamento,


para que no biênio seguinte possam ser transformados em
deliberações e avanços do mercado de gás, que são o estudo sobre
o mercado livre e sobre a troca operacional entre as concessionárias
do estado de São Paulo (swap).

A preocupação da diretoria do gás, como é conhecida, tem sido


cada vez mais assegurar uma prestação de serviço de excelência
e transparência à população de São Paulo, garantindo o equilíbrio
nas relações entre usuários e prestadores de serviços públicos.

* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.


Pxhere

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Sumário Páginas 65 / 108
Capítulo 4

Regulação do setor
de gás natural no Brasil:
gênese e desafios
Figura 1. São Paulo: antiga Casa das Retortas
Ieda Gomes 1

A
Contexto histórico

A história do gás canalizado no Brasil teve início em 1851,


quando Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, assinou
um contrato para a iluminação da cidade do Rio de Janeiro com
lampiões de gás. A Companhia de Iluminação a Gás foi criada
em 1854. Em 1857 a cidade do Rio de Janeiro contava com
3.027 lampiões públicos, 3.200 residências e três teatros, todos

Crédito: Dornicke/Wikicommons
iluminados a gás. Em 1865, a Companhia de Iluminação a Gás
foi vendida para uma empresa inglesa que assumiu os serviços
de gás por meio da Rio de Janeiro Gas Company Limited.2

No decorrer do tempo, a concessão dos serviços passou


sucessivamente para a empresa belga Société Anonyme du
Gaz – SAG (1876), The Rio de Janeiro Tramway, Light and
Power Company, Limited (1910) e finalmente para o estado da Fonte: http://bit.ly/2wzbe7h.
Guanabara (1969), quando foi criada a Companhia Estadual
Em 28 de agosto 1872, a San Paulo Gas Company – hoje
de Gás da Guanabara (CEG-GB). Em julho de 1997 a CEG-GB
conhecida como Comgás – foi autorizada a funcionar pelo Decreto
foi privatizada, e seu controle acionário é atualmente detido
imperial 5.071, com a finalidade de explorar os serviços públicos
pelo grupo espanhol Gas Natural Fenosa.
de iluminação de São Paulo. A Comgás, assim como a CEG-GB,
passou por sucessivas trocas de controle acionário: em 1912
1
Engenheira química e mestre em Energia pela USP e Engenharia Ambiental pela École
passou a ser controlada pela empresa canadense Ligth, sendo
Polytechnique Fédérale de Lausanne (Suíça). Foi CEO da Companhia de Gás de São Paulo
(1995-1998) e presidente da BP Brasil (2000-2002), ocupando diversos cargos de direção nacionalizada em 1959. Em seguida, a empresa passou ao controle
na BP entre 1998 e 2011. Atualmente é membro do Conselho de Administração da Bureau da Prefeitura de São Paulo e, depois disso, do Estado de São Paulo.
Veritas, Saint Gobain, Exterran Corporation, InterEnergy Holdings e Odebrecht S.A., e Visiting
A Comgás foi privatizada em 1999, e atualmente o grupo Cosan é
Senior Fellow do Oxford Institute for Energy Studies e da FGV Energia.
2
Disponível em: http://bit.ly/2BMMKdh. Acesso em: 21 ago. 2017. o acionista controlador.

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 66 / 108
Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

Outras municipalidades como Salvador, Recife, Santos, Taubaté e A história do gás natural no Brasil é mais recente que a história
Porto Alegre também autorizaram a exploração dos serviços locais do gás canalizado, e confunde-se com a história do petróleo no


de gás canalizado por empresas privadas. Essas empresas produziam país. Na década de 1950, a Petrobras iniciou a produção de petróleo
gás de baixo e médio poder calorífico, à baixa pressão, obtido através em terra, disponilizando gás natural associado. A produção de gás
da gaseificação de carvão mineral importado em unidades industriais natural teve início no estado da Bahia e era praticamente toda
conhecidas como “retortas”.  destinada às indústrias.3 A descoberta de petróleo em campos no
mar, em particular nas bacias nordestinas e na Bacia de Campos
levaram à expansão dos sistemas de transporte e à disseminação
do uso de gás natural nas regiões Nordeste e Sudeste. A construção
A história do gás natural no do gasoduto Bolívia-Brasil, finalizada entre 1999 e 2000, possibilitou

Brasil é mais recente que a história a duplicação do suprimento de gás e o atendimento às regiões Sul
e Centro-Oeste do Brasil.
do gás canalizado, e confunde-se
O modelo regulatório brasileiro
com a história do petróleo no país
Na década de 1980, a indústria de gás no Brasil, apesar de ainda
Devido às limitações de pressão do processo produtivo, os serviços incipiente, passava por problemas causados por um modelo que
prestados por essas empresas eram limitados geograficamente dificultava seu crescimento. O modelo opunha, de um lado, a Petrobras,
a serviços locais. O gás de carvão era usado primariamente na que controlava todo o suprimento, transporte e distribuição de gás
iluminação pública. O advento da eletricidade tornou obsoleta a em diversos estados, além da produção e suprimento de energéticos
iluminação a gás e, no início do século XX, apenas duas empresas concorrentes, como o óleo combustível e o Gás Liquefeito de Petróleo
sobreviveram, a Comgás e a CEG-GB. (GLP) e, de outro, as empresas distribuidoras de gás de São Paulo e
Rio de Janeiro e os governos estaduais, desejosos de ampliar suas
A produção de gás de carvão era cara e ineficiente e foi substituída
redes de gás e expandir o atendimento ao mercado local.
pela produção de gás obtido pela transformação de nafta de petróleo
em gás de médio poder calorífico. O gás de nafta, produzido à alta A Constituição de 1988 foi um marco decisivo para a indústria de
pressão, possibilitou a extensão dos serviços de gás canalizado a gás no Brasil, pois estabeleceu a autonomia dos estados sobre os
regiões mais distantes e o atendimento a um número maior de serviços de gás canalizado. Em seu texto original, o artigo 25, § 2º
consumidores. No início da década de 1970, a Comgás construiu da Constituição Federal de 1988, dispunha que “cabe aos Estados
um anel de alta pressão em aço, o chamado Reservatório de Alta explorar diretamente, ou mediante concessão a empresa estatal, com
Pressão (RETAP), em torno das avenidas marginais dos rios Tietê e exclusividade de distribuição, os serviços locais de gás canalizado[…]”.
Pinheiros, que, além de armazenar gás para suprir horários de pico
A redação do artigo 25 resultou de um compromisso de meio
de consumo, também garantia maior segurança no abastecimento. termo entre os estados, que desejavam consolidar seu poder sobre
As crises do petróleo de 1973 e 1979 encareceram o preço da nafta, a distribuição de gás, e entidades sindicais e nacionalistas que não
e as empresas de gás canalizado passaram a buscar alternativas mais
baratas e eficientes, pois eram deficitárias e necessitavam de aportes
financeiros constantes por parte dos acionistas controladores. 3
Disponível em: http://bit.ly/2BLDPsN. Acesso em: 21 ago. 2017.

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Sumário Páginas 67 / 108
Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

viam com bons olhos a possibilidade de outorga de tais serviços à


iniciativa privada.

A partir da promulgação da Constituição de 1988 foram criadas


empresas concessionárias de gás canalizado em diversos estados,
quase todas em um modelo tripartite, sendo que os estados detinham
o controle das ações ordinárias e a Petrobras e um sócio privado
detinham a maioria das ações preferenciais. 

A Constituição de 1995 quebrou o monopólio estatal do petróleo,


até então exercido pela Petrobras. O § 1º do artigo 177 estabelece
que “a União poderá contratar com empresas estatais ou privadas
a realização das atividades previstas nos incisos I a V deste artigo
observadas as condições estabelecidas em lei”.

A emenda constitucional ao artigo 25 removeu a obrigatoriedade de


concessão dos serviços locais de gás a empresa estatal e possibilitou
a privatização da Comgás e da CEG-GB e a criação de novas empresas
concessionárias no Rio de Janeiro (Riogas) e São Paulo (Gás Natural
Sul e Gas Brasiliano).

A Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997 (Lei do Petróleo), regulamentou


o artigo 177 e estabeleceu a criação do órgão regulador federal, a
Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). 

Em fevereiro de 1990 foi criada a Associação Brasileira das


Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), que atualmente
conta com 21 empresas distribuidoras associadas, em praticamente
todos os estados da Federação.4

Após a promulgação da Lei do Petróleo, o Governo Federal criou


uma agência federal para regular as atividades de exploração,
produção, transporte, tratamento, importação e exportação de
petróleo e gás natural, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural
e Biocombustíveis (ANP).

Construção de rede de distribuição de gás canalizado


4
Dados disponíveis em https://bit.ly/2L0tDyc. Acesso em: 22 ago 2017.
Depositphotos

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Sumário Páginas 68 / 108
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A partir de 1998 (Rodada Zero), a ANP passou a organizar leilões Apesar de intensificar as atividades de exploração e produção,
anuais de exploração de petróleo e gás.5 As rodadas de licitações isso não trouxe ainda a almejada competição e diversificação no
atraíram cerca de 100 empresas para as atividades de exploração suprimento de gás natural. Com exceção de um sistema isolado no
e produção no país e possibilitaram ainda a criação de empresas Maranhão, cujo desenvolvimento foi iniciado pela empresa OGX e
petroleiras nacionais de menor porte. completado pela Parnaíba Gás Natural (PGN), a Petrobras continuava
– e continua – a dominar o suprimento de gás nacional e importado,
Graças a esses leilões, foram feitas importantes descobertas,
bem como toda a infraestrutura de transferência, processamento
em particular a chamada “camada do pré-sal”, que ocorreram em
e transporte de gás. Além disso, participa como acionista em vinte
2006. Até 2008 as atividades de exploração e produção cresceram e
das empresas distribuidoras de gás canalizado.
permitiram o desenvolvimento e participação de fornecedores locais
e internacionais de bens e serviços. As descobertas de petróleo na A Lei 11.909, de 4 de março de 2009 (Lei do Gás), estabeleceu
camada do pré-sal contribuíram para tornar o Brasil uma nova Meca as diretrizes relativas ao transporte, importação, transferência e
potencial do petróleo, atraindo investidores e fornecedores. Entretanto, tratamento de gás no âmbito federal e reafirmou a competência
devido ao potencial do pré-sal, o Governo Federal resolveu mudar a constitucional dos estados sobre os serviços de distribuição de gás


legislação para explorar e produzir hidrocarbonetos na área do pré- canalizado. A construção e operação de gasodutos de transporte no
sal e em “áreas estratégicas”, paralisando os leilões de exploração por território nacional passou para o regime de concessão, e os gasodutos
5 anos, enquanto discutia e votava a mudança nas regras vigentes. de transporte construídos antes da vigência da Lei passaram a contar
por um período de exclusividade de 10 anos. Após esse prazo, o
operador era obrigado a outorgar livre acesso para capacidade
não contratada.
As descobertas de petróleo na A lei ainda garantiu a isenção de livre acesso às atividades de
camada do pré-sal contribuíram escoamento da produção, processamento e regaseificação de
GNL. É notório ressaltar que após a promulgação da lei não foram
para tornar o Brasil uma nova Meca ainda iniciados projetos de novos gasodutos de transporte no país.
potencial do petróleo, atraindo A Petrobras comissionou três terminais de GNL em 2009, 2010 e
2014, para os quais não está obrigada a conceder livre acesso.
investidores e fornecedores
A privatização da indústria de gás em São Paulo
A partir de 2010, foi introduzida legislação para o pré-sal mudando O Programa Estadual de Desestatização (PED) foi instituído pela
o regime de concessão para a partilha da produção em futuras Lei estadual 9.361, de 05 de julho de 1996, que dispõe sobre a
rodadas, tornando obrigatória a participação da Petrobras como Reestruturação Societária e Patrimonial do Setor Energético. O artigo
operadora única, com participação mínima de 30%. Além disso, foi 10, § 2º, dessa mesma lei, autorizava a divisão do estado de São
criada uma nova empresa estatal para administrar o óleo e gás da Paulo em até três áreas de concessão. O Conselho Diretor do PED
União, a Pré-Sal Petróleo S.A. decidiu quanto à outorga da concessão para explorar os serviços
de distribuição de gás canalizado no estado de São Paulo, mediante
5
Disponível em: http://bit.ly/2vy56es. Acesso em: 22 ago 2017. licitação na modalidade de concorrência.

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Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

O Decreto 43.889, de 10 de março de 1999, estabeleceu o Após o leilão de privatização da Comgás foram realizados mais
regulamento de concessão e permissão da prestação de serviços dois leilões para outorga de concessões “greenfield”8 nas regiões
públicos de distribuição de gás canalizado no Estado. Nordeste e Sul do estado de São Paulo.

Em face dos desafios enfrentados pela Comgás – falta de recursos O leilão para concessão da área Nordeste foi realizado em 9 de
para estender a rede além da região metropolitana de São Paulo, novembro de 1999. O consórcio formado pelas empresas italianas
ineficiência administrativa e ingerência política, o governo decidiu Agip, Italgas e Snam, do grupo italiano Eni, adquiriu a concessão
pela inclusão da Comgás no PED, enquanto negociava com a pelo preço de R$ 274,9 milhões, com um ágio de 150%, cerca de
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo a votação de uma US$ 142,5 milhões no câmbio da época da privatização.
emenda à Constituição Estadual, uma vez que ainda não tinha sido
Em 26 de abril de 2000, o governo paulista realizou o leilão
adequada ao estabelecido na emenda ao artigo 25 da Constituição
de licitação da concessão dos serviços de gás canalizado da Área
Federal de 1995.
Sul. O grupo espanhol Gás Natural pagou R$ 533,8 milhões, o que
Em 1997 foram contratados os serviços de consultoria para representa um ágio de 461,89% sobre o preço mínimo, estipulado
executar a análise econômico-financeira da companhia e definir o em R$ 95 milhões.
modelo a ser seguido no processo de privatização (os chamados
Em abril de 2017, o estado de São Paulo contava com 1,8 milhão
serviços A e B).
de consumidores de gás canalizado, dos quais 98,9% pertenciam
Em março de 1999, a Comgás atendia a cerca de 300 mil ao setor residencial,9 ou seja, um crescimento de mais de 600% em
consumidores residenciais, industriais e comerciais, localizados relação aos números de 1999.
em 17 municípios do estado. O orçamento da Comgás para 1999
previa investimentos de R$ 120 milhões, dos quais R$ 100 milhões Regulação da distribuição de gás nos estados
destinados à ampliação da rede e R$ 20 milhões à manutenção.6
Os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo foram pioneiros na
O leilão de privatização da Comgás ocorreu em 14 de abril de
regulação dos serviços de gás canalizado.
1999. O consórcio Integral Holdings S.A. (Shell e BG Group, mais
conhecido como British Gas) foi o vencedor do leilão com um preço No caso de São Paulo, além de conceder os serviços de
de R$ 261 76 por lote de mil ações, com um ágio de 119,32% sobre gás canalizado a três empresas privadas, em diferentes áreas
o valor mínimo fixado para o leilao, R$ 753,69. O valor pago pela geográficas, foi criada uma agência reguladora para os serviços
Comgás foi de R$ 1,6 bilhão. A Shell já tinha, antes do leilão, 19,86% de gás canalizado e de eletricidade (esses últimos, por delegação
do capital votante da Comgás e 16,14% do total de ações.7 da Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel). A Comissão de
Serviços Públicos de Energia (CSPE) foi criada em 1998 como uma
autarquia para regular e fiscalizar os serviços de energia elétrica
e gás canalizado.

6
Segundo reportagem da Folha de Londrina disponível em: http://bit.ly/2viTbxX. Acesso em:
24 ago 2016.
7
Segundo dados disponíveis na reportagem do Diário do Grande ABC. Disponível em: 8
Greenfield: projeto que carece de restrições impostas por um processo anterior.
http://bit.ly/2v9ttA7. Acesso em: 24 ago 2017. 9
Disponível em: https://bit.ly/2rISEVX. Acesso em: 24 ago 2017.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 70 / 108
Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

A CSPE foi sucedida pela Agência Reguladora de Saneamento e


Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), que é uma autarquia de
regime especial, vinculada à Secretaria Estadual de Governo, criada
pela Lei Complementar 1.025/2007 e regulamentada pelo Decreto
52.455/2007, “com o objetivo de regular, controlar e fiscalizar, no
âmbito do Estado, os serviços de gás canalizado e, preservadas as
competências e prerrogativas municipais, de saneamento básico de
titularidade estadual”.10

As empresas de São Paulo tiveram suas concessões outorgadas


através de processo licitatório, com contratos de 30 anos, prorrogáveis
por mais 20 anos. Dada a natureza monopolística dos serviços, as
concessões teriam exclusividade geográfica por um período de
12 anos, após o qual os consumidores industriais de certo porte
e geradoras termoelétricas passariam a ser livres, mas teriam de
pagar tarifa de distribuição à concessionária local.

Os contratos de concessão em São Paulo tinham cláusula de


revisão tarifária a cada 5 anos, com fórmulas que incorporavam
fatores de eficiência (Fator X) e de ajuste para desvios de margem
(Fator K). A revisão tarifária quinquenal, bem como a revisão de
outros aspectos da concessão, seria precedida por audiência pública.

No caso da Comgás, o Poder Concedente exigiu um plano mínimo


de investimentos no primeiro decênio, além da manutenção de
capacitação técnica mínima por parte do investidor privado. Os
investidores privados foram obrigados a ampliar o número de
consumidores em 66,6% nos primeiros dez anos após a privatização,
ou seja, de 300 mil para 500 mil no período entre 1999 e 2009.

Nos demais estados brasileiros, as empresas distribuidoras


tiveram a outorga de contratos de concessão de 30 a 50 anos.
Na maioria dos estados foram criadas agências reguladoras dos
serviços de gás canalizado, sendo que várias delas são mistas
e regulam outros serviços como eletricidade, saneamento e
transporte, por exemplo, em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e
Rio Grande do Sul.

10
Disponível em: http://bit.ly/2xtmTkn. Acesso em: 23 ago 2016.
Depositphotos

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Sumário Páginas 71 / 108
Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

Regulação das atividades atinentes às esferas • Exploração e produção: atualmente existem mais de 40
federal e estadual empresas explorando e produzindo petróleo e gás natural no Brasil, a
maior parte em parceria com a Petrobras. Essas empresas parceiras
O gás natural produzido no Brasil – ou importado em gasodutos têm preferido vender seu gás para Petrobras, em vez de investir na
ou em terminais de GNL – passa por Unidades de Processamento de infraestrutura de escoamento, visando monetizar sua produção. Como
Gás Natural (UPGN) e é transportado até as estações primárias de mencionado anteriormente, a única exceção é o sistema integrado
transferência e redução de pressão (city-gates), onde a titularidade é de gás natural não associado e geração termelétrica operados pela
dada às empresas distribuidoras de gás, que, por sua vez, comercializam Parnaíba Gás Natural (PGN) no Maranhão, que representa apenas
o produto aos consumidores finais. As exceções a esse modelo são 9,7% da oferta (5,2/52,4) e 5% da produção total no Brasil.
as refinarias de petróleo, plantas de fertilizantes e algumas usinas
• Transporte: a Petrobras controla direta ou indiretamente
termelétricas, que recebem gás diretamente da Petrobras.
toda a rede de 9.409 km de gasodutos no território nacional e os
Enquanto os estados regulam as atividades de distribuição de gasodutos de importação da Bolívia. Em 2016 a empresa passou a
gás canalizado, a ANP regula as atividades nos segmentos upstream negociar a venda de ativos de transporte da Nova Transportadora do
e midstream da cadeia de valor do gás, assim como as atividades de Sudeste (NTS) para a empresa canadense Brookfield, compreendendo
importação e exportação. 2.050 km de gasodutos e capacidade de transporte de 158,2 MMm3/
dia.11 A venda de 90% da participação acionária na NTS foi concluída
Figura 2. Esferas de competência da regulação de gás natural em abril de 2017, ao preço de USD 4,23 bilhões. A NTS passa a ter
como acionistas a Brookfield (82,35%), Petrobrás (10%) e Itaúsa
(7,65%). Além de continuar a participar da composição acionária
Federal Estadual da NTS, a Petrobrás controla toda a capacidade de transporte dos
gasodutos através de cinco contratos de longo prazo na modalidade
firme (ship-or-pay), que vencem no período entre 2025 e 2031. Além
Lei 9.478/1997
Leis estaduais disso, a Petrobras Transporte S.A. (Transpetro), subsidiária integral,
Lei 11.909/2009
permanecerá responsável pela operação e manutenção dos ativos,
através de um novo contrato de serviços, firmado com a NTS e com
ANP: Agências/ prazo de 10 anos, contados a partir de abril de 2017.12
· Exploração e Produção governos estaduais: • Escoamento, transferência e processamento de gás natural:
· Transporte · Distribuição de gás canalizado
· Importação e exportação a Petrobras controla toda a capacidade de escoamento (254 dutos,
· Processamento 4.650 km) e transferência (5 dutos, 30 km) de gás natural, bem como
· Terminais de GNL todas as plantas de processamento de gás, cerca de 95 MMm3/dia

Fonte: Elaboração própria. • Importação de gás natural por gasoduto: a Petrobras controla a
Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG), responsável
Apesar de decorridos 20 anos desde a promulgação da Lei do
Petróleo, a Petrobras continua a dominar o setor e exerce um monopólio 11
MMm3/dia: milhões de metros cúbicos por dia.
de fato em praticamente todos os elos da cadeia de valor do gás natural: 12
Disponível em: http://bit.ly/2FWf6jw. Acesso em: 23 ago 2017.

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Sumário Páginas 72 / 108
Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

pelo transporte de gás importado da Bolívia; além disso, a empresa Regulação do gás natural e panorama internacional
brasileira controla também o contrato de suprimento de cerca de
30 MMm3/dia de gás boliviano, mediante contratos que deverão As atividades de transporte e distribuição constituem monopólio
expirar em 2019 e 2020. natural, uma vez que não é economicamente eficiente construir
e operar sistemas paralelos servindo a um mesmo grupo de
• Importação de Gás Natural Liquefeito (GNL): a Petrobras
consumidores. A regulação do gás natural em diversos países teve
controla e opera os três terminais de importação e regaseificação
como imperativo a otimização e controle desses monopólios, além
de GNL no Brasil, com capacidade total de 41 MMm3/dia.
de incentivar a competição nas atividades que não constituem
• Distribuição de gás: a Petrobras controla e opera a GasBrasiliano monopólio natural, como a produção, importação e comercialização.
Distribuidora S.A. (SP) e é a concessionária de distribuição no
Espírito Santo. A Petrobras também participa do controle de 22 Em diversos países, a regulação da indústria do gás teve
empresas distribuidoras, seja através de sua subsidiária Gaspetro como objetivo final o aumento da competição no suprimento,
ou diretamente em parceria com os estados e sócios privados. a obrigatoriedade de acesso à capacidade ociosa em gasodutos
de transporte e distribuição, plantas de processamento de gás
• Geração termelétrica a gás: a Petrobras é o sexto maior agente
e regaseificação do GNL, a desverticalização e privatização dos
de geração de eletricidade no Brasil, com capacidade instalada de
monopólios estatais, possibilitando ao consumidor a escolha do
6.240 MW em usinas de gás natural.
supridor final com preços competitivos de mercado.
Figura 3. Brasil: participação da Petrobras na cadeia de valor do gás natural
Os países que mais avançaram quanto a esses objetivos foram
os Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Espanha. As sucessivas
· Petrobras (81% da produção, 95% da oferta e 100% diretrizes da União Europeia obrigaram os demais países a
das importações)
progressivamente liberalizar a indústria do gás.
· Outros produtores domésticos: Shell, Petrogal, Repsol,
Upstream Queiroz Galvão, Brasoil, PGN etc.
Na América do Sul, a Argentina tomou a dianteira com a
promulgação da Lei 24.796 em 20 de maio de 1992, seguida da
· Petrobras privatização da empresa de petróleo estatal, a Yacimientos Petrolíferos
· 97% do transporte de gás Fiscales (YPF), da desverticalização e privatização da empresa estatal
· 100% dos terminais de GNL de transporte e distribuição (Gas del Estado), que foi subdividida
Midstream · 92% da capacidade de processamento
em 8 empresas distribuidoras e duas empresas transportadoras.
Ademais, foi criada uma agência reguladora para o transporte e
· Petrobras distribuição de gás, a Enargas. O marco regulatório argentino tinha
· 20 das 27 distribuidoras estaduais, equivalente a
ainda como objetivo evitar o conflito de interesse entre os agentes
51,7% da demanda em distribuição (média de 2015)
Downstream · 48% da capacidade de geração térmica a gás da cadeia de valor, proibindo que empresas produtoras detivessem o
· 40% do consumo de gás natural (2015) controle de empresas de transporte e distribuição. Dada a maturidade
da indústria de gás no país, os produtores podem comercializar
gás natural diretamente com distribuidoras e consumidores livres
Fonte: http://bit.ly/2wFYRWl e http://bit.ly/2vttBWo. (indústrias e usinas termelétricas).

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Sumário Páginas 73 / 108
Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

O modelo argentino teve como objetivos principais estimular • Programa Plangas (“Programa de Estímulo à Injeção
o aumento da produção e a concorrência no suprimento de gás, Excedente de Gás Natural”), de janeiro de 2013, que aumentou o
ampliar investimentos na infraestrutura de redes físicas através de preço da produção excedente para USD 7,5/MMBtu, e estabeleceu
investimentos privados, além de maximizar a renda obtida na venda penalidades severas em caso de descumprimento, pois os produtores
dos ativos da YPF e da Gas del Estado. O leilão de venda desses ativos inadimplentes teriam de compensar o Governo, pagando o preço
atraiu empresas de grande porte da Europa e América do Norte e equivalente ao gás natural importado sob a forma de GNL, que
possibilitou o renascimento da indústria de gás no país. Além do variava entre USD 11 e 16/MMBtu para os importadores brasileiros
crescimento do mercado interno, a Argentina passou a exportar gás e argentinos em 2012.15
para Chile, Brasil e Uruguai.
Os planos mencionados contribuíram para aumentar a produção
O sistema argentino funcionou a contento até os governos de doméstica de 5% para 15%, mas não resolveram um problema
Néstor e Cristina Kirchner, que passaram a exercer controle de preços, fundamental de preços subsidiados ao consumidor final (Figura 4),
tornaram proibitivas as exportações, pela imposição de impostos em média inferiores aos preços do gás importado e do gás doméstico
elevados, além de criarem uma empresa federal estatal de energia, produzido sob a égide do Plangas. O governo Macri tem buscado
a Enarsa e renacionalizarem a YPF. realinhar os preços ao consumidor, através de sucessivos, mas
impopulares, “tarifaços”.
Não obstante, a Argentina continua a manter o modelo de
separação das atividades de produção, transporte e distribuição, e, Figura 4. Argentina: preços de gás natural ao produtor/importador e
apesar da importância da YPF, os produtores privados comercializam consumidor final (agosto 2016)
livremente seu gás com distribuidoras e consumidores livres.
A intervenção do governo nos preços do gás teve o efeito negativo 7,5
de desencorajar a exploração e afastar investidores estrangeiros das 6,9

atividades de transporte e distribuição. A partir de 2005, a Argentina 6


cortou suas exportações de gás e aumentou suas importações de gás 5,2 5,3
5,5

USD/MMBTU
da Bolívia, além de construir dois terminais para importação de GNL. 4,5
4
A partir de 2008, e depois de 4 anos consecutivos de suprimentos
3,2
insuficientes, o governo introduziu diversos planos para estimular 2,5 2,4
a exploração de gás natural, em particular gás não convencional:

• Programa Gas Plus (Resolução 24/2008):13 aumentou o


preço ao produtor para novas descobertas de gás, em particular
de gás não convencional, de USD 1,4-2,4 /MMBtu14 para USD 4,5 e nt
e us II II ia ile L ia
l
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Ch GN c t CN ica
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e s Ga Bo en us m
subsequentemente 4,5-5,2/MMBtu. Os produtores estavam sujeitos ex Ga Ga
s
an sid In
d õ es
Tér
s an Pl Re t aç as
a penalidades financeiras, caso não cumprissem metas de produção Ga Pl Es in
Us
estabelecidas pelo Governo.
Fonte: Adaptado de Gomes et al., 2016.16

13
Disponível em: http://bit.ly/2w7pz81. Acesso em: 24 ago 2017. 15
Disponível em: http://bit.ly/2g8bUJQ. Acesso em: 24 ago 2017.
14
MMBtu: Milhões de British Thermal Units. 16
Disponível em: https://goo.gl/kXRAJ5. Acesso em: 27 ago 2017.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 74 / 108
Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

Além disso, a partir de 2015 os preços internacionais do GNL e gás No caso do Reino Unido e da Espanha, os programas de
importado da Bolívia (indexados a derivados de petróleo) começaram desverticalização, privatização e regulação de monopólios naturais,
a cair gradualmente. Em 2017 os preços do GNL importado pela fruto da determinação política do governo Thatcher na década de
empresa nacional de energia Energía Argentina S.A. (ENARSA) são, 1980 e das diretrizes da União Europeia, a partir de 1998, resultaram
em média, USD 5,6-5,79/MMBtu, enquanto que o preço médio em uma indústria do gás competitiva e diversificada, conforme
do gás importado da Bolívia no primeiro semestre de 2017 foi de resumido na Tabela 1.
USD 4,7/MMBTU.17,18
Tabela 1. Quadro comparativo dos marcos regulatórios em países selecionados
Depositphoto

Brasil Argentina Reino Unido Espanha


Oil and Gas
Authority –
ANP (E&P, OGA (E&P) Comisión
Secretaria de
transporte) Nacional
Energia (E&P)*
Gas and de los
Agência reguladora Governos Electricity Mercados y la
ENARGAS
e agências Markets Competencia
(transporte e
estaduais Authority (transporte e
distribuição)
(distribuição) - GEMA distribuição)
(transporte e
distribuição)

Número de
produtores >40 >50 >50 Negligível****
(petróleo/gás)**,***
Número de
02 >20 >20 >20
supridores
Desverticalização Parcial Total Total Total

Acesso de terceiros Dificultado Obrigatório Obrigatório Obrigatório

Preços livres Preços livres


Preços livres Preços ao
ao produtor ao produtor
ao produtor produtor,
e tarifas de e tarifas de
Precificação e tarifas transportador
transporte e transporte e
reguladas na e distribuidor
distribuição distribuição
distribuição regulados*****
reguladas reguladas

Fonte: Elaborado a partir de Bondorevsky e Petrecolla e outros documentos.19


* E&P: Exploração e Produção. ** Disponível em: http://bit.ly/2fE33Qj. Acesso em: 24 ago 2017.
*** Disponível em: http://bit.ly/2wBXHMa. Acesso em: 24 ago 2017. **** A Espanha importa
a maior parte do gás que consome. ***** Antes de 2002, os preços eram determinados pela
competitividade do gás nos mercados locais.

17
Disponível em: https://bit.ly/2GwfeeR. Acesso em: 24 ago 2017. 19
Disponível em: http://bit.ly/2w1yCsP. Acesso em: 24 ago 2017. Ver também: http://bit.
18
Disponível em: https://bit.ly/2SZP0CJ. Acesso em: 24 ago 2017. ly/2wFYRWl; http://bit.ly/2vttBWo; http://bit.ly/2iumYlm e http://bit.ly/2w8uNk2.

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 75 / 108
Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

Regulação e preços de gás natural termelétricas, que responderam por mais de 40% do mercado de
gás em 2014 e 2015.
No Brasil, os preços de gás natural do produtor/importador
aplicados às distribuidoras e consumidores livres são livremente • O preço de gás de origem nacional20 no city-gate é superior ao
negociados e não regulados. preço do gás importado da Bolívia e possivelmente equipara-se ao
preço do GNL após adicionados custos de transporte e regaseificação.
Os preços do gás ao consumidor final são regulados tanto pelas
agências reguladoras estaduais como diretamente pelo poder Figura 5. Brasil: preços de gás natural ao produtor/importador e consumidor
concedente. Em geral, o preço ao consumidor consiste no pass- (abril 2017)
through do preço da molécula acrescido da margem de distribuição
e impostos.
25 23,25
Diferentemente do que ocorre em diversos países onde a indústria
do gás é regulada, e mesmo considerando o contrato de importação 20

da Bolívia, o preço do gás natural nacional no city-gate não diferencia

USD/MMBtu
15 13,26
o componente “molécula” do componente “transporte”. 12,09

10
Além disso, não existe transparência quanto aos preços praticados 6,97 7,39
6,87
5,67
com as empresas afiliadas à Petrobras – refinarias, plantas de 5
4,17

fertilizantes e usinas termelétricas.


0
No Brasil ainda não se chegou ao estágio de desenvolvimento e do ív
ia B)
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tr
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cia
l
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m ia l (F
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da competição gás versus gás, como ocorre nos Estados Unidos e tic
o
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GN
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mercados europeus liberalizados. Historicamente, a precificação do m t ico Té and Es
Do és Gr
m
gás teve como objetivo tornar o gás competitivo com seus principais Do
concorrentes, no caso do mercado industrial, o oléo combustível,
Fonte: http://bit.ly/2wFYRWl
adicionando-se um prêmio que leva em conta certas externalidades,
como a menor emissão de poluentes por parte do gás e ainda a
melhor qualidade e eficácia do gás nos processos industriais. No As grandes questões regulatórias no Brasil
caso dos mercados residencial e comercial, o principal concorrente
Apesar de centenária, a indústria do gás natural no Brasil ainda
é o GLP, enquanto que no setor de transportes o gás compete com
não conseguiu atingir um grau de maturidade e liberalização que
a gasolina e com o etanol.
possibilitem a competição na oferta e a expansão dos serviços a
A Figura 5 ilustra os preços ao produtor/importador e consumidor uma parcela mais ampla da população brasileira.
final vigentes em abril de 2017 e ressalta duas importantes distorções:
A despeito do crescimento da oferta e do número de consumidores
• O preço do gás para as usinas do Programa Prioritário de nos últimos dez anos, as redes de gás natural atingem apenas 5%
Termeletricidade (PPT) é inferior aos preços para o produtor e o
importador e aos preços do gás doméstico nos city-gates. A Petrobras
importa GNL a preços de mercado e fornece gás para usinas 20
Cerca de 80% do gás natural produzido no Brasil é associado ao petróleo.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 76 / 108
Capítulo 4 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

dos domicílios no país e o consumo industrial tem se mantido • O acesso a financiamento competitivo também é um obstáculo
relativamente estagnado nos últimos 5 anos.21 para o desenvolvimento das redes de gás canalizado. Os juros elevados
do setor bancário e a ausência de financiamentos a juros baixos por
Os principais obstáculos ao desenvolvimento da indústria do gás
parte do BNDES têm sido fatores impeditivos à capilarização das
estão sumarizados na figura a seguir:
redes de gás no Brasil.
Figura 6. Brasil: barreiras e obstáculos ao desenvolvimento da indústria de gás
• A regulação da indústria de gás é heterogênea a nível estadual,
não existindo padrões comuns de incentivo à expansão e de modicidade
tarifária. Além disso, em vários estados, a atuação das agências
Infraestrutura Tributação reguladoras oscila ao sabor das mudanças nos governos estaduais,
incipiente elevada sendo que elas não são totalmente autonômas ou independentes
do poder concedente. Além disso, no âmbito federal, a ANP tem
tido sucesso limitado em coibir práticas monopolísticas, devido à
ausência de marco legal compatível para a coibição dessas práticas.
Ausência
Monopólio
de política
• Apesar de sucessivos planos de gás, iniciados pelo Governo
verticalizado
de governo Federal desde a década de 1980, inexiste uma política governamental
clara e abrangente para o gás natural. A política de fato é executada
pelo agente predominante de acordo com sua estratégia empresarial
e necessidade de caixa.
Financiamento Regulação
escasso e caro heterogênea
• A tributação do gás natural no Brasil não leva em conta as
vantagens ambientais desse recurso energético, nem o diferencia de
combustíveis mais poluentes, como o carvão e o óleo combustível.
O modelo tributário também é uma barreira à liberalização do setor,
• O monopólio verticalizado da Petrobrás inibe as ações por encarecer práticas como o swap financeiro e operacional, o
comerciais de outros produtores, que enfrentam imensas dificuldades armazenamento de moléculas de GNL de dois ou mais importadores
para comercializar sua produção no mercado, incluindo barreiras ao em um mesmo tanque, além de tributar gás natural e GNL de
acesso à infraestrutura de transporte, deslocamento e tratamento forma diferenciada.
de gás, bem como a regaseificação do GNL.
• A venda de ativos de gás da Petrobras, iniciada em 2015,
• A infraestrutura de transporte e distribuição gás é incipiente não foi precedida de um plano de governo. Também não foram
para um país com as dimensões continentais do Brasil. Além disso, os estabelecidos princípios e condições mínimas para evitar a formação
elevados custos de construção, o baixo consumo unitário residencial e de monopólios privados ou a continuidade do monopólio de fato da
a dificuldade de se obter licenças ambientais e alvarás de construção Petrobras, exercido sob a forma de acordo de acionistas, bem como
também inibem e atrasam a expansão das redes de gás. de reserva de toda a capacidade de transporte dos ativos vendidos
a terceiros. Além disso, a Petrobras continua a operar ativos de
21
Segundo dados a Abegás. Disponível: https://bit.ly/2A7LfnM. Acesso em: 24 ago 2017. transporte através da Transpetro.

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 77 / 108
Capítulo 5 Regulação do setor de gás natural no Brasil: gênese e desafios

Conclusões
O Brasil tem tido sucesso limitado na expansão e liberalização da
indústria de gás natural e gás canalizado. No âmbito federal, a política
de fato de gás é definida pelas estratégias comerciais da Petrobras
e pelos planos de investimentos ou de desinvestimento da estatal.

Apesar da situação de monopólio de fato, o arcabouço regulatório


brasileiro é muito limitado para coibir práticas de reserva de
capacidade para empresas do mesmo grupo econômico e para
proporcionar mais transparência e justificativas econômicas para
o preço do gás nacional. No âmbito estadual, a falta de critérios
regulatórios homogêneos, a predominância da Petrobrás como
acionista das distribuidoras de gás, o conflito de interesse entre o
poder concedente com o duplo papel de acionista e regulador e a
ausência de metas mais ambiciosas de expansão têm sido obstáculos
ao crescimento mais eficiente e capilarizado em diversos estados.

Desde 1990 diversos planos federais têm sido criados no âmbito


federal, como o intuito de desatar nós regulatórios e legislativos, mas
esses programas têm sofrido solução de continuidade, em razão
do calendário eleitoral e de uma vontade governamental firme de
mudar as regras para o setor, conforme ocorreu na Argentina no
início dos anos 1990 e na União Europeia, a partir dos pacotes de
diretrizes de 1998, 2003 e 2009.

A experiência internacional tem demonstrado que, sem uma forte


política de governo, metas de longo prazo e um arcabouço legal e
regulatório compatível, é muito díficil remover privilégios monopolísticos
e criar uma indústria de gás verdadeiramente competitiva.

Caso o Brasil fosse bem-sucedido em desenvolver mais produtores


independentes de gás e um mercado consumidor mais robusto,
seriam criadas tensões competitivas mais fortes para o acesso à
infraestrutura de gás. A redução do papel da Petrobrás na importação
de gás boliviano constitui teste importante para que as distribuidoras
estaduais possam negociar livremente com o supridor único naquele
país, a Yacimiento Fiscales Bolivianos (YPFB).
* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.
Depositphotos

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 78 / 108
Capítulo 5 REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS
DE SANEAMENTO BÁSICO

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 79 / 108
Capítulo 5 Introdução

Introdução
Hélio Luiz Castro1

Tarifas mais justas e saneamento básico

E
de qualidade no estado de São Paulo

Em 2017, a imprensa internacional publicou dados preocupantes


sobre o saneamento básico no mundo. De acordo com
relatório da ONU, divulgado pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef), mais da metade da população mundial não tem
acesso a serviços básicos de saneamento, como tratamento
de esgoto, e 2,1 bilhões de pessoas não possuem água tratada
em suas residências.

No entanto, o estado de São Paulo vive outra realidade. Em


março deste ano, o Instituto Trata Brasil apontou São Paulo
como a segunda melhor capital do país em saneamento
básico. A cidade de Franca, cuja concessionária também é
a Sabesp, destacou-se, pelo terceiro ano consecutivo, como
a primeira cidade do Brasil com 100% de abastecimento de
água e coleta e tratamento de esgoto.

É justamente nesse contexto que se insere o trabalho da


Agência Reguladora de Saneamento e Energia de São Paulo:
garantir que todos os cidadãos dos municípios por ela
regulados tenham os serviços de abastecimento de água e
coleta e tratamento de esgoto, com qualidade na prestação

1
Diretor de regulação técnica e fiscalização dos serviços de saneamento básico, Hélio trabalhou
durante 19 anos na Sabesp, assumindo, entre outras funções, o cargo de superintendente
de produção de água. Formado em engenharia sanitária, obteve os títulos de mestre em
engenharia pela USP e MBA em gestão empresarial pela FIA.

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 80 / 108
Capítulo 5 Introdução

dos serviços e preços compatíveis com a capacidade de pagamento


da população.

Apesar de relativamente recente, a criação da agência, que coincidiu


com a implantação da Lei Federal 11.445/2007 sobre diretrizes
nacionais e política federal de saneamento básico, gerou uma grande
mudança de cultura na área. Até então, as próprias concessionárias
eram as responsáveis pelos processos de planejamento, operação
dos sistemas e definição das tarifas. Em 2007, por conta da Lei
de Saneamento, essa situação mudou: hoje, o responsável pelo
planejamento, que é feito por meio dos Planos Municipais de
Saneamento Básico, é o poder concedente; a operação dos sistemas
de abastecimento de água e coleta e tratamento de esgoto, pelas
concessionárias ou prestadoras de serviços; e a regulação, incluindo
a definição das tarifas, pelas agências reguladoras.

É função da agência, portanto, equilibrar um mercado monopolista,


uma vez que não se mostra viável a existência de mais de um prestador
de serviços públicos de água e esgoto na mesma localidade, como
ocorre com as telecomunicações, área em que o consumidor tem
diversas opções de operadoras de celular, por exemplo. Desta forma,
como não há concorrência no saneamento, as empresas podem
acabar não priorizando aspectos importantes, como a qualidade e
a eficiência do serviço oferecido aos usuários.

É nesse ponto que o órgão regulador passa a atuar, fazendo que


sejam cumpridos determinados padrões e metas. O mesmo vale
para a tarifa: o órgão regulador avalia os custos e investimentos da
concessionária e define um valor que permita implantar as melhorias
previstas no planejamento, proporcionar o retorno financeiro à
concessionária e, ao mesmo tempo, garantir a modicidade tarifária
ao usuário.

Este capítulo oferecerá ao leitor uma síntese do processo de


regulação no setor de saneamento básico, especificamente na
prestação de serviços de distribuição de água e coleta e tratamento
de esgotos, versando sobre aspectos teóricos aliados a exemplos
práticos da atividade regulatória.
* Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.
Pixabay

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e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 81 / 108
Capítulo 5

Regulação no setor
de água e esgoto
Lucas Navarro Prado1
serviços mais caros e de menor qualidade em comparação à situação

O
Denis Austin Gamell2 em que enfrentasse competição.

Os monopólios naturais em infraestrutura são caracterizados


por economias de escala e de escopo (baixo custo marginal) e por
O objetivo deste artigo é explorar, sucintamente, o tema altos custos fixos ou afundados (sunk costs) para disponibilizar os
da regulação no setor de água e esgoto, que ganhou ativos, de modo que uma única empresa, teoricamente, conseguiria
destaque especialmente a partir da edição da Lei Nacional prestar o serviço a um custo menor do que numa situação em que
de Saneamento Básico, a Lei Federal 11.445/2007. Lembre-se duas ou mais empresas o fizessem competindo entre si – resultando
que a expressão “saneamento básico” engloba, nos termos em uma consistente barreira de mercado.3 Isso impede ou dificulta
dessa lei, não apenas os serviços de abastecimento de água bastante a entrada de novos competidores.
tratada e esgotamento sanitário, mas também limpeza
urbana e manejo de resíduos sólidos, além de drenagem e No caso do setor de água e esgoto, ainda existem barreiras
manejo das águas pluviais, limpeza e fiscalização preventiva regulatórias adicionais, pois, por envolver fornecimento de água
das respectivas redes urbanas. Para este artigo, no entanto, tratada para consumo humano, há preocupação com a saúde pública
optou-se por focar nos serviços de água e esgoto, dado que, e, nessa perspectiva, privilegia-se a concessionária de serviço público
em relação aos demais serviços de saneamento básico, a em face das fontes alternativas de abastecimento. Isso torna o poder
regulação ainda é bastante incipiente. monopolístico da concessionária ainda mais relevante.

Como se sabe, em mercados monopolizados, existe grande Dado esse contexto, a regulação no setor de água e esgoto é
preocupação com os preços cobrados e a qualidade dos fundamental para melhorar a qualidade dos serviços e assegurar a
serviços prestados. Na teoria, o monopolista tenderia a ofertar modicidade tarifária.

O texto está dividido em quatro seções, sendo a primeira delas


esta introdução. Na Seção 2, discute-se a segregação institucional
1
Advogado especializado na interação público-privada, particularmente no âmbito de contratos das funções de planejamento, regulação e execução dos serviços
governamentais nas áreas de infraestrutura, defesa e tecnologia (www.navarroprado. de água e esgoto, atribuindo o papel de regulação necessariamente
com.br), temas sobre os quais tem escrito diversos livros e artigos. Graduado em direito
pela USP e pós-graduado em Finanças Corporativas pela FIA/USP, foi Consultor do Banco
a uma entidade reguladora independente nas suas decisões e com
Mundial (2011-2012), Superintendente Jurídico da Sabesp (2009-2010), assessor jurídico autonomia administrativa, orçamentária e financeira. Para garantir
da Unidade de PPP do Governo Federal (2005-2007), e conselheiro de administração de que a regulação seja efetiva e que, por conseguinte, os serviços
algumas empresas no setor de infraestrutura.
2
Advogado especializado na interação público-privada, particularmente no âmbito de contratos
sejam prestados pelas empresas de forma adequada aos usuários,
governamentais nas áreas de infraestrutura, defesa e tecnologia, temas sobre os quais tem
escrito diversos artigos. Formado em Direito pela UnB, atualmente faz pós-gradução em
Finanças Corporativas pela Fundação Getulio Vargas (FGV). 3
MANKIW, G. Principles of Microeconomics. 7. ed. Stamford: Cengage Learning, 2015. p. 328.

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 82 / 108
Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

o marco legal de saneamento básico vigente no Brasil deu especial


importância a esse tema.

Na Seção 3, abordam-se os aspectos pertinentes à regulação


técnica, econômica e fiscalização definidos no âmbito da Lei Federal
11.445/2007. Particularmente em relação à regulação econômica,
para melhor compreensão do tema, entendeu-se necessário explorar
os possíveis modelos de regulação existentes, antes de adentrar
aspectos específicos relacionados ao setor de água e esgotos. Assim,
foram apresentadas as características do modelo de “regulação
discricionária”, consideradas suas subdivisões em regulação price-
cap e regulação por taxa de retorno, e a “regulação por contrato”,
levando em conta as possibilidades de compensação conforme o
Plano de Negócios da concessão ou aplicando-se a metodologia de
Fluxo de Caixa Marginal.

A Seção 4 apresenta brevemente as principais conclusões.

Segregação institucional das funções de


planejamento, regulação e prestação dos
serviços de água e esgoto
A segregação de funções no setor de água e esgoto foi uma das
principais inovações trazidas pela Lei Federal 11.445/07. A seguir,
após breve digressão sobre o histórico do setor, demonstraremos
como o novo marco legal atribuiu a entidades distintas as funções
de planejamento, regulação e execução dos serviços, mesmo que
todas essas atividades sejam desempenhadas por entidades estatais.

Histórico do setor e interferência na segregação


institucional da função regulatória

A fim de compreender a importância da mudança realizada pela


Lei Federal 11.445/2007, vale refletir sobre o fato de que a maior
parte dos municípios brasileiros ainda é atendida por prestadores de
serviço pertencentes à própria Administração Pública, usualmente
Fiscalização em estação de tratamento de esgoto em 2014
as companhias estaduais de saneamento (CESB), os serviços ou
Acervo Arsesp

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 83 / 108
Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

departamentos autônomos de água e esgoto (SAAE ou DAAE) e • 24% dos municípios são atendidos por prestadores locais e
companhias estatais municipais, que historicamente são responsáveis microrregionais públicos; e
pela prestação de serviços de abastecimento de água tratada e
• Apenas 6% dos municípios (322 ao todo) são atendidos por
esgotamento em nosso país.
prestadores privados, sendo que, do total de 322 municípios nessa
Embora possam ser encontrados exemplos de participação situação, 216 estão concentrados em três estados da Federação:
privada no setor de água e esgoto no Brasil já no século XIX,4 o fato Tocantins (125), São Paulo (53) e Mato Grosso (38).
é que, ao longo do século XX, o que se viu foi o desenvolvimento do
Essa informação é relevante porque o debate sobre a segregação
setor por meio de entidades públicas. Durante o governo militar,
de funções (planejamento, regulação e prestação dos serviços) e
especialmente na década de 1970, no âmbito do Plano Nacional de
a necessidade de criação de agências reguladoras independentes
Saneamento (Planasa), foram criadas diversas companhias estaduais
ocorre, historicamente no Brasil, em setores objeto de desestatização.
de saneamento, que contaram com sistema de financiamento
Particularmente, foi nesse contexto que surgiram as primeiras
subsidiado para fazer frente aos investimentos requeridos. A maioria
agências reguladoras na segunda metade da década de 1990
dos municípios que não aderiu às CESB e acabou optando por
e no início dos anos 2000, tanto no plano nacional, quanto nas
manter ou criar entidades próprias para a prestação dos serviços
esferas estaduais.5
de abastecimento de água tratada e esgotamento sanitário,
frequentemente, em regime autárquico, isto é, os já citados SAAE Lembre-se que, até então, os diversos setores de infraestrutura,
e DAAE, embora existam também experiências de empresas bem como os setores de mineração e siderurgia, eram explorados
públicas municipais. essencialmente por empresas estatais. O Estado, portanto, planejava,
regulava e executava os investimentos e serviços nesses diversos
A participação privada no setor continua proporcionalmente
setores, por meio de entidades públicas e suas empresas estatais.
muito abaixo das entidades da Administração Pública, embora tenha
crescido significativamente nos últimos anos. Conforme dados da Uma vez que avançaram os programas de desestatização na
publicação “Panorama da participação privada no saneamento – segunda metade dos anos 1990, foi preciso construir um novo
Brasil 2017” da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de modelo de Estado, que se afastava da execução, mas permanecia
Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON) e do Sindicato Nacional com competências relevantes do ponto de vista do planejamento
das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto
(SINDCON):

• 70% dos municípios são atendidos por prestadores 5


No que toca aos setores de infraestrutura que foram objetos de desestatização, vale destacar
regionais públicos; o quadro a seguir, que relaciona as principais agências reguladoras no plano do Governo
Federal e sua lei de criação:

Nome da agência reguladora Ano de criação


Agência Nacional de Energia Elétrica 1996
4
Um exemplo é a cidade de Santos no estado de São Paulo. Segundo narram os Engenheiros Agência Nacional de Telecomunicações 1997
José Chiara e Renato Teruo Tanaka (http://bit.ly/2w26kOF), o primeiro abastecimento regular Agência Nacional do Petróleo 1997
de água ocorreu em 1870, pela Companhia de Melhoramento de Santos. Em 1881, os serviços Agência Nacional de Transportes Terrestres 2001
foram entregues por meio de concessão à The City of Santos Improvements Company Ltda.
Agência Nacional de Transportes Aquaviários 2001
Em 1953, o governo do estado encampou os serviços e criou o Serviço de Água de Santos
Agência Nacional de Aviação Civil 2005
e Cubatão.

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 84 / 108
Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

e da regulação, especialmente em relação aos serviços públicos.6


A decorrência natural dessa reforma do Estado brasileiro, até mesmo
para dar maior segurança jurídica e atrair o capital privado no âmbito
dos programas de desestatização, foi a busca por um modelo mais
técnico de regulação nos setores de infraestrutura, isto é, que
permitisse reduzir as interferências políticas nesses negócios, por
natureza, de longo prazo. Daí a principal razão para o já referido
surgimento de diversas agências reguladoras em variados setores
de infraestrutura no final do século XX.

O setor de água e esgoto, no entanto, não chegou a ser, pelo


menos não de forma ampla, objeto de um grande programa de
desestatização. Nesse contexto, diferentemente de outros setores
de infraestrutura, neste setor, o surgimento da obrigatoriedade de
agências reguladoras independentes parece ter sido mais associado à
necessidade de aprimorar a prestação dos serviços, de criar incentivos
para melhorar a gestão, aumentar o nível de transparência etc.,
em um contexto em que a maioria dos prestadores de serviços
continuava a ser entidades autárquicas ou empresas estatais.

Cerca de 10 anos após a edição da Lei Federal 11.445/2007, é


possível notar, nos casos em que se submeteu os serviços de água e
esgoto à supervisão de agência reguladora, ganhos significativos no
nível de transparência e de prestação de contas da prestadora dos
serviços. Além disso, à medida que as agências vão se capacitando
e se fortalecendo técnica e institucionalmente, aumentam-se os
incentivos para que os prestadores sejam mais eficientes, ampliem
a infraestrutura e melhorem a qualidade dos serviços.

Destaque-se ainda que, para as empresas estatais atuantes no


setor, longe de ser uma ameaça, as agências reguladoras devem ser
vistas como uma oportunidade de fortalecimento, pois sua existência

6
Nos setores nos quais houve privatização, como mineração e siderurgia, a regulação passou
a ser exercida essencialmente por meio do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência,
liderado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que teve suas
competências e estrutura reforçados em 1994, por meio da Lei nº 8.884/1994. Isso sugere,
pela coincidência temporal, ter existido no governo da época a compreensão sobre a
necessidade de reforçar a aplicação do direito antitruste, uma vez que diversas empresas,
Estação de tratamento de esgoto
com elevada participação de mercado, passariam ao controle da iniciativa privada.
Depositphotos

Mudança do papel do estado


e o advento das agências reguladoras
Sumário Páginas 85 / 108
Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

tende a aprimorar a governança dessas empresas estatais, dando- Em nossa avaliação, o modelo adequado para assegurar
lhes maior foco na gestão e eficiência, e reduzindo a politização independência decisória – com autonomia administrativa,
de decisões empresariais. Isso abre caminho para a valorização orçamentária e financeira – passa necessariamente pela constituição
da empresa estatal, facilitando, inclusive, a abertura de capital e de uma pessoa jurídica distinta do titular dos serviços. Usualmente,
atração de capital privado para financiamento das atividades da cria-se uma autarquia de natureza especial, a qual, ainda que fique
companhia, sem prejuízo da manutenção de seu controle com a vinculada a uma determinada pasta da Administração Direta, não
Administração Pública. poderá ter sua autonomia restringida.

Apesar disso, a Lei Federal 11.445/2007 não foi tão clara sobre o
Segregação obrigatória por força legal assunto. A grande maioria dos dispositivos legais se refere à existência
de “entidade” ou “ente” responsável pela regulação e fiscalização, o
que, em princípio, pressupõe a existência de personalidade jurídica
A partir da Lei Federal 11.445/2007, passou a ser obrigatória a
própria, diferentemente do que ocorre com um “órgão”. Aliás, essa
segregação da função regulatória. Isso fica particularmente claro
é uma distinção clássica no Direito Administrativo. Todavia, ao tratar
diante dos seguintes dispositivos legais:


dos contratos de interdependência e da prestação regionalizada, a lei
o art. 9º, inc. I e II, da referida lei, segundo os quais o titular dos acabou abrindo espaço para indicar órgãos que fiquem responsáveis
serviços deverá elaborar o plano de saneamento básico e prestar os pelas atividades de regulação e fiscalização (art. 12, § 2º, inc. X; e
serviços, direta ou indiretamente, ficando a regulação e fiscalização art. 15, inc. I).
por conta de um terceiro ente a ser indicado pelo titular dos serviços;

o art. 21, inc. I, da referida lei, segundo o qual a entidade


reguladora deve ter “independência decisória, incluindo autonomia insistimos na importância de
administrativa, orçamentária e financeira”.
que seja sempre constituída uma
Não pode, portanto, a função regulatória ser exercida pelo próprio
órgão que atua como contratante da prestação dos serviços, isto pessoa jurídica distinta do titular
é, o titular dos serviços, também chamado por vezes de Poder dos serviços, para atuar como
Concedente. Muito menos poderia essa função ser exercida pela
própria prestadora dos serviços. Há, pois, que se estabelecer uma entidade reguladora
entidade independente, sob pena de descumprimento da Lei.
Talvez por essa razão, o Decreto 7.217/2010, que regulamentou
Mais que isso, a designação de uma entidade responsável pela
a Lei Federal 11.445/2007, admitiu expressamente a possibilidade
regulação e fiscalização é mesmo uma condição de validade do
de que a entidade reguladora seja simplesmente um órgão da
contrato de prestação de serviços públicos de abastecimento de
Administração Pública (art. 2º, inc. IV).
água e esgotamento sanitário (art. 11, inc. III). Diante dessa regra,
em tese, a indicação da entidade reguladora deve ocorrer antes da A opção por um “órgão”, em detrimento de uma entidade com
celebração do contrato e, idealmente, antes mesmo da publicação personalidade jurídica própria, parece-nos incompatível com a
do edital de licitação (quando for o caso de licitação). exigência de autonomia administrativa, orçamentária e financeira.

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Sumário Páginas 86 / 108
Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

Assim, insistimos na importância de que seja sempre constituída entidade pública (empresa estatal ou autarquia) ou a concessionária
uma pessoa jurídica distinta do titular dos serviços, para atuar como privada, por meio de algum instrumento de outorga ou delegação.
entidade reguladora.
A Lei de Saneamento apresentou especial cuidado com a
Em suma, nesse contexto, podemos concluir que, a partir da sustentabilidade econômica dos empreendimentos destinados à
Lei Federal 11.445/2007, deve haver uma separação clara entre prestação dos serviços que seriam, por sua vez, caracterizados por
(i) o titular dos serviços, (ii) a entidade reguladora e fiscalizadora uma contratualização de média a alta densidade.
e (iii) o prestador dos serviços propriamente ditos, ressalvada,
neste último caso, a hipótese em que o titular dos serviços decide Para garantir as finalidades propostas, foram estabelecidos os
prestá-los diretamente.7 objetivos da regulação setorial como sendo: (i) estabelecer padrões e
normas para a adequada prestação dos serviços e para a satisfação
A regulação dos serviços de água e esgoto no dos usuários; (ii) garantir o cumprimento das condições e metas
estabelecidas; (iii) prevenir e reprimir o abuso do poder econômico;
âmbito da Lei Federal 11.445/2007
(iv) definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econômico e
A Lei 11.445/2007 definiu diretrizes e princípios para o setor de financeiro dos contratos como a modicidade tarifária, mediante
saneamento básico no âmbito nacional, delineando os contornos mecanismos que induzam a eficiência e eficácia dos serviços e que
para que os titulares dos serviços elaborem suas próprias políticas permitam a apropriação social dos ganhos de produtividade (art. 22,
públicas, com especial preocupação pela integração regional dos inc. I a IV).
municípios, pela independência da fiscalização e da regulação e pela
transparência e publicidade perante o público em geral. Além disso, foi estabelecido um rol mínimo de assuntos sobre
os quais devem ser editadas normas pelas entidades reguladoras,
A normativa distribuiu claramente os papéis dos agentes envolvidos sendo alguns deles: (i) padrões, indicadores de qualidade e requisitos
na prestação dos serviços, marcadamente, como se viu na seção operacionais; (ii) regime tarifário e procedimentos e prazos de revisão,
anterior, optando por uma regulação e fiscalização independentes. reajuste e fixação; (iii) monitoramento dos custos e avaliação da
Assim, ao Poder Concedente coube o planejamento (definição da eficiência e eficácia dos serviços prestados (art. 23, inc. I a XII).
política pública) e a figuração como parte contratante nos contratos
de concessão ou de programa. O papel de desempenhar a regulação De forma geral, as atribuições das entidades reguladoras
técnica e econômica coube necessariamente a uma entidade podem ser divididas em três grandes grupos: a regulação técnica,
reguladora que tenha autonomia administrativa, orçamentária e a regulação econômica e a fiscalização. A seguir serão tratadas essas
financeira. Por sua vez, a prestação dos serviços, embora legalmente três atividades.
possa ser realizada diretamente pelo titular, usualmente é atribuída a
Regulação técnica
7
Temos, vez por outra, ouvido alguma discussão sobre a obrigatoriedade ou não de regulação
independente na hipótese em que o titular decide prestar os serviços diretamente. A nosso
ver, no entanto, o art. 9º, inc. II, estabelece que, mesmo no caso de prestação direta dos As agências reguladoras de água e esgoto têm competência
serviços, cabe ao titular definir a entidade responsável pela sua regulação e fiscalização. para regulamentar os aspectos técnicos da prestação dos serviços.
Ou seja, seria um caso peculiar em que o próprio prestador indica seu regulador e fiscalizador.
Ainda assim, é necessário estruturar uma entidade reguladora autônoma, a fim de zelar
O art. 23 da Lei Federal 11.445/2007 expressamente lhes atribui
pelos aspectos técnicos, econômico e financeiros da prestação dos serviços. competência normativa nesse sentido.

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Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

Aliás, os incisos do art. 23 esclarecem algumas matérias Isso não significa dizer que a agência reguladora tem um “cheque
técnicas, sobre as quais a agência tem competência normativa, em branco” para fazer o que bem entender do ponto de vista da
exemplificativamente: regulação técnica da prestação dos serviços.

• Padrões e indicadores de qualidade da prestação dos Primeiramente é preciso notar que todas as decisões da agência,
serviços (inc. I); inclusive a normatização de aspectos técnicos, estão sujeitas ao
dever de motivação e devem se pautar pelos princípios da eficiência,
• Requisitos operacionais e de manutenção dos sistemas (inc. II);
publicidade, moralidade, impessoalidade, da razoabilidade e
• Metas progressivas de expansão e de qualidade dos serviços proporcionalidade, entre outros, como qualquer outra entidade da
e os respectivos prazos (inc. III); Administração Pública. Além disso, cada vez mais se tem discutido a
importância de as propostas de normas regulatórias serem precedidas
• Padrões de atendimento ao público e mecanismos de
de uma ampla análise de impacto regulatório. Portanto, existe um
participação e informação (inc. X);


controle de procedimento e de atendimento aos princípios gerais
• Medidas de contingência e de emergência, inclusive que regem a Administração Pública, de maneira que, eventualmente,
racionamento (inc. XI). pode ser necessária a revisão de decisões técnicas da agência pelo
próprio Poder Judiciário.

Em segundo lugar, o próprio titular dos serviços pode dar


contornos mais limitados para a atuação da agência. Destaque-se
cada vez mais se tem discutido que, nos termos do art. 23, § 1º, no ato de delegação da regulação, o
titular dos serviços especificará a forma de atuação e a abrangência
a importância de as propostas das atividades a serem desempenhadas pelas partes envolvidas.
Nesse contexto, se houver normas emanadas pelo titular dos serviços
de normas regulatórias serem que devam ser observadas pela agência, basta especificar isso no
precedidas de uma ampla análise ato de delegação.

de impacto regulatório De qualquer forma, é recomendável que o titular dos serviços se


abstenha ou seja bastante parcimonioso no eventual estabelecimento
de parâmetros técnicos relativos à prestação dos serviços, por meio
O fato de a agência ter competência para normatizar os
da edição de atos normativos municipais, como leis e decretos.
parâmetros de prestação dos serviços significa que o prestador deve
Embora não seja ilegal per se, parece-nos inadequado que o titular
se adaptar às normas técnicas emitidas nesse contexto. Se houver
dos serviços delegue a competência regulatória e, ao mesmo tempo,
incompatibilidade entre as normas técnicas da agência e o disposto
ocupe o espaço normativo que, institucionalmente, deveria caber à
no contrato de programa ou de concessão, em princípio, o contrato
agência reguladora.
deverá ser ajustado para atender aos parâmetros técnicos definidos
pela agência, sem prejuízo do direito à recomposição do equilíbrio O principal instrumento disponível para o titular dos serviços
econômico-financeiro, que deve ocorrer de forma concomitante, influenciar a execução contratual é o Plano de Saneamento Básico
em analogia ao art. 9º, § 4º, da Lei Federal 8.987/1995, pois se trata (art. 19), o qual, lembre-se, deve ser revisado periodicamente, em
nesse caso de uma espécie de alteração unilateral do contrato. prazo não superior a quatro anos (cf.: art. 19, § 4º). Aí está o veículo

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Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

adequado para que o Poder Concedente imponha o interesse Registre-se, por fim, que, nos termos do art. 11, § 3º, da Lei
público municipal e da sociedade civil organizada, fazendo com Federal 11.445/2007, “os contratos não poderão conter cláusulas
que o contrato seja legitimamente revisado, com acompanhamento que prejudiquem as atividades de regulação e de fiscalização ou
e atuação da agência reguladora, sem prejuízo da manutenção do o acesso às informações sobre os serviços contratados”. Serão
equilíbrio econômico-financeiro, concomitantemente à implantação nulas, portanto, eventuais cláusulas restritivas que prejudiquem
das determinações do novo plano. as atividades de regulação técnica dos serviços de água e esgoto.
Aliás, isso é uma decorrência natural do entendimento tradicional
Em suma, portanto: (a) a agência reguladora não deve sofrer
do Direito Administrativo brasileiro segundo o qual a Administração
restrições no seu poder de normatização dos parâmetros técnicos
Pública pode, unilateralmente, alterar as especificações dos serviços,
para a prestação dos serviços, de maneira que, exceto quando houver
assegurado ao contratado o direito à manutenção do equilíbrio
(a.1) evidente inobservância dos princípios da Administração Pública
econômico-financeiro.
ou (a.2) extrapolação do ato de delegação, as normas da agência
devem prevalecer; (b) o principal instrumento a ser utilizado pelo Esse contexto deve nortear a interpretação do art. 11, § 3º, com a
titular dos serviços, a fim de influenciar a execução contratual, é o única peculiaridade de que, nesse caso, a alteração unilateral se dá
Plano de Saneamento Básico, devendo o Poder Concedente se abster por conta de uma norma técnica emanada pela agência. De qualquer
ou ser bastante parcimonioso em eventuais investidas no sentido de forma, lembre-se que, em função do ato de delegação, a agência
normatizar tecnicamente a prestação dos serviços; e (c) o contrato nesse ponto nada está a fazer senão exercendo uma competência
deverá ser revisado a fim de manter sua compatibilidade com as que lhe foi delegada e, portanto, não há aí usurpação da prerrogativa
especificações técnicas relativas à prestação dos serviços, não se de modificação unilateral dos contratos administrativos.
admitindo cláusulas que restrinjam a competência da agência para
emitir normas técnicas sobre a prestação dos serviços, mas sempre Regulação econômica
tendo em vista que é direito do prestador de serviços a manutenção
do equilíbrio econômico-financeiro, de forma concomitante ao
atendimento dos novos parâmetros técnicos. O objetivo da regulação econômica como forma de intervenção
Joao G B Junior/ Pixabay
nos monopólios naturais é trazer o preço cobrado pela prestadora
dos serviços para o mais próximo possível do que seria o preço
cobrado em uma situação de mercado competitivo (com o preço
igualado ao custo e à receita marginais). Ao fazê-lo, o regulador busca
preservar o bem-estar econômico dos usuários, ao mesmo tempo
que garante remuneração justa ao investimento feito pela prestadora
monopolista.8 No entanto, antes de adentrar as especificidades da

8
É importante ressaltar que uma das características do monopólio natural é a de que o custo
médio de produção (aumentado pelos largos custos fixos ou custos afundados), normalmente,
está acima do custo marginal (reduzido pelas economias de escala e de escopo). Desse
modo, a solução não é tão simples como igualar o preço do monopólio ao custo marginal
na tentativa de simular condições de mercado competitivo, pois isso levaria a empresa ao
prejuízo e consequentemente a deixar o mercado (MANKIW, G. Principles of microeconomics.
7. ed. Stamford: Cegange Learning, 2015. p. 320).

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Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

regulação econômica no setor de água e esgoto, vale contextualizar na atividade (cost-based regulation), isto é, a remuneração dos
a discussão de acordo com modelos teóricos possíveis. investimentos já realizados e/ou previstos de serem realizados no(s)
período(s) seguinte(s) (capital expenditures – CAPEX) e a recuperação
Dada a necessidade de intervenção do Estado para corrigir a
dos custos operacionais incorridos e/ou previstos de serem incorridos
falha de mercado ocasionada pelos monopólios naturais, existem
no(s) período(s) seguinte(s) (operational expenditures – OPEX),
basicamente dois modelos teóricos de regulação econômica: a
consideradas ainda a necessidade de remuneração do capital de giro
regulação discricionária (discretionary regulation) e a regulação por
(inclusive suas variações ao longo da vigência contratual), os tributos,
contrato (regulation by contract). Isso não significa dizer que, no
as taxas de amortização/depreciação aplicáveis aos investimentos
contexto de regulação discricionária, não exista um contrato; pelo
e a taxa de retorno implícita nos fluxos de saída e entrada de caixa,
contrário, na experiência brasileira, todas as concessões de serviço
que, por sua vez, deve refletir o custo médio ponderado de capital
público são regidas por um contrato. A diferença está no maior
do negócio (weighted average cost of capital – WACC).10
ou menor grau de liberdade ofertado ao regulador para ajustar o
preço tarifário. O objetivo é impedir que o monopólio natural resulte em
preço tarifário acima do que deveria ser se houvesse condições
Na regulação discricionária, há amplo espaço para o regulador
concorrenciais ideais, preservando-se, de qualquer forma, uma taxa
corrigir eventuais distorções nos custos e receitas, para cima ou
de retorno justa (fair rate of return). A regulação discricionária, nesse
para baixo; já na regulação por contrato, essa discricionariedade
sentido, visa simular uma situação de competição que pressione a
é restringida por meio de detalhamento contratual, em termos
empresa monopolista a operar de forma eficiente, ou seja, próximo
de alocação de riscos, metodologia de reequilíbrio (mecanismo
do preço igualado ao custo e à receita marginais (competition in
compensatório) e procedimento de revisão contratual.
the market).
Os dois tipos de regulação usualmente têm em comum a correção
Há duas variações de regulação discricionária que serão
anual do preço cobrado (Pt) por determinado serviço por meio da
apresentadas a seguir: (a) regulação por preço-teto (price cap) e (b)
aplicação de um índice inflacionário (RPI).9 No Brasil, chamamos esse
regulação por taxa de retorno (rate of return regulation).
mecanismo tecnicamente de reajuste tarifário (Lei 8.987/1993, art.
18, inc. VIII) ou simplesmente reajuste.
Regulação por preço-teto
Regulação discricionária A regulação por preço-teto (price cap) é um tipo de regulação
baseada no custo (cost-based regulation), pois leva em consideração os
A regulação discricionária consiste na definição dos preços
custos da empresa regulada, incorridos na prestação dos serviços, para
praticados pela empresa regulada por meio de revisões tarifárias
cálculo do preço/tarifa. Caracteriza-se como uma regulação ex ante,
periódicas (RTP) promovidas pelo agente regulador, tendo-se em vista
a obtenção de receitas suficientes para cobrir os custos envolvidos
10
Em relação à remuneração sobre os investimentos, é importante lembrar que não é todo e
qualquer investimento realizado ou pleiteado pela empresa regulada que deve ser considerado
9
A sigla RPI é tomada da literatura internacional e refere-se ao retail price index que consiste para efeito das RTP. Em princípio, apenas os investimentos considerados prudentes, ou
em uma medida de inflação comum utilizada no Reino Unido. A fórmula de correção é seja, aqueles adequados e necessários à prestação dos serviços são incluídos nas revisões
bastante simples: Pt = Pt-1 (1 + RPI) tarifárias. Assim, evita-se que o preço tarifário seja aumentado indevidamente, remunerando

(CAMACHO, T. F.; RODRIGUES, B. C. L. Regulação econômica de infraestruturas: como escolher investimentos inoportunos. Além disso, o custo de investimento deve ser eficiente, isto é,
o modelo mais adequado? In: Revista do BNDES, n. 41, junho 2014, p. 257-288). deve corresponder a parâmetros de mercado.

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porque a definição do preço ocorre na RTP antes que a empresa


incorra efetivamente nos custos, a partir de uma parametrização
dos custos eficientes a serem incorridos no futuro. Além disso, a
regulação por preço-teto conta com o Fator X, por meio do qual
se busca impor à concessionária o compartilhamento de ganhos
de produtividade com os usuários, em benefício da modicidade
tarifária. O Fator X é aplicado na ocasião do reajuste tarifário, como
um desconto, tradicionalmente representado como RPI-X.11

Este tipo de regulação foi criado por Stephen Littlechild em


1983 como proposta para regular o setor de telecomunicações,
no contexto da privatização da British Telecom na Inglaterra.
Desde então se difundiu para os mais diversos mercados
regulados.12 Ao fixar os custos da empresa regulada antes que
sejam incorridos, e ao se considerar a aplicação do Fator X como
desconto sobre o reajuste inflacionário, cria-se um incentivo
para que a regulada seja mais eficiente e incorra efetivamente
em custos menores, a fim de preservar ou até aumentar seu
lucro.13 Por essas razões, a regulação por preço-teto é chamada
de regulação por incentivo.

A estimativa dos custos eficientes implica a previsão de quais seriam


os custos envolvidos se o mercado supostamente fosse competitivo.
Uma vez estimados os custos eficientes, a sua aplicação por meio da

11
A fórmula para cálculo do reajuste inflacionário considerando o Fator X é a seguinte:

Pt = Pt-1(1 + RPI) (1 - X)

Onde: X é o Fator X de produtividade.
12
Ambos constam do relatório de 1983 para o Department of Industry denominado Regulation of
British telecommunications profitability. STERN, J. What the Littlechild report actually said? 2003.
(Regulation Initiative Working Paper, n. 55).
13
Há diferentes metodologias de cálculo do Fator X. Entre elas, pode se mencionar quatro
principais: (i) valor arbitrário (ad hoc), na qual o regulador atribui um valor a X de acordo com
sua sensibilidade, normalmente utilizada em privatizações dada a falta de uma série histórica
em que se basear; (ii) fluxo de caixa descontado (FCD), na qual o valor de X é o valor necessário
para obter-se o valor presente líquido (VPL) igual a zero, considerando CAPEX, OPEX e NOPEX; (iii)
índice histórico, na qual o regulador define um índice de referência de produtividade total dos
fatores de produção a partir de informações históricas sobre preços de insumos e produtos;
(iv) benchmarking (yardstick regulation), na qual é utilizada uma empresa teórica de referência
para comparação com a empresa monopolista a partir de modelos construídos por diversas
abordagens (BRAGANÇA, G. G. F.; CAMACHO, F. T). Uma nota sobre o repasse de ganhos de
produtividade em setores de infraestrutura no Brasil (Fator X)(IPEA, Radar nº 22, p. 7-16).
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regulação discricionária, em tese, termina por criar de forma sintética tem flexibilidade para adaptá-la à flutuação dos cenários econômicos.
condições de mercado competitivo em um contexto de monopólio No longo prazo, isso pode ser benéfico para os usuários e para a
natural. Por essa razão, preços definidos em RTP devem refletir a própria empresa regulada;
dinâmica do setor regulado como amortização/depreciação dos
• Minimização do risco moral. Como o preço que cobre os
investimentos já realizados, necessidade de novos investimentos,
custos eficientes estimados é constante até a próxima RTP e os
custos dos insumos, custo de pessoal, alterações na curva de demanda,
ganhos de produtividade são compartilhados em razão do Fator X,
avanços tecnológicos, tributos e aperfeiçoamentos na qualidade
qualquer ganho de produtividade/eficiência acima de X é incorporado
dos serviços.14
à margem de lucro da empresa regulada, funcionando como incentivo
Uma vez estimados os custos eficientes, o agente regulador projeta para a aproximação dos custos da empresa aos custos eficientes
a receita bruta requerida pela empresa regulada no período da RTP por meio, por exemplo, da adoção de novas tecnologias, técnicas
para cobrir esses custos, de modo a garantir uma determinada taxa de gestão e estratégias de marketing.
de retorno considerada justa. Observe-se que essa receita bruta não
Por outro lado, possui as seguintes desvantagens:
é exatamente aquela que a empresa regulada realizará no período,
mas uma receita requerida para arcar com os custos eficientes a • Risco de seleção adversa (adverse selection). O incentivo para
uma determinada taxa de retorno. A partir da receita bruta dessa reduzir custos pode levar a uma situação de subinvestimento e
forma calculada, e considerando-se as estimativas de demanda para diminuição da qualidade do serviço. Esse risco diminui à medida que o
o período, é determinado um preço-teto da tarifa que será cobrado regulador interage com a empresa regulada e tem mais conhecimento
pela empresa regulada naquele período. dos custos envolvidos na prestação do serviço. Há duas ferramentas
utilizadas para mitigar esse risco:
Para que se possa parametrizar custos eficientes, é necessária
uma agência reguladora suficientemente bem equipada. Há várias • previsão de remuneração variável atrelada a indicadores
metodologias para se estimar custos eficientes. Em geral, essas de qualidade por meio da aplicação de um Fator Q na fórmula de
metodologias são intensivas em informação e requerem profissionais reajuste inflacionário;16
especializados e independentes. O aparato regulatório necessário para
• previsão de investimentos obrigatórios e de gatilhos de
prover esse nível de informação possui um custo regulatório alto.15
expansão dos investimentos definidos no momento de celebração
A regulação por preço-teto possui as seguintes vantagens: do contrato e integrados à modelagem do projeto.
• Flexibilidade regulatória. Uma vez que a remuneração do • Elevado custo regulatório. O custo regulatório decorrente
prestador é definida de acordo com os custos previstos, o regulador da necessidade de parametrizar os custos a serem incorridos pela
empresa regulada implica normalmente a adoção de metodologias
14
CAMACHO, T. F.; RODRIGUES, B. C. L. Regulação econômica de infraestruturas: como escolher intensivas em informação que requerem investimentos relevantes
o modelo mais adequado? Revista do BNDES, Rio de Janeiro, n. 41, p. 257-288, jun. 2014. em uma agência reguladora;
15
Em 2006, o Banco Mundial publicou obra em que são apresentados os requisitos de uma agência
reguladora considerados como melhores práticas. Entre eles: (i) independência; (ii) prestação
de contas; (iii) publicidade e participação popular; (iv) previsibilidade; (v) competências
claramente definidas; (vi) completude e clareza de regras; (vii) proporcionalidade; (viii) 16
O Fator Q é um valor percentual determinado pela valoração dos indicadores de desempenho
poderes regulatórios; (ix) características institucionais apropriadas; (x) integridade (BROWN, por meio de notas, sendo inserido na equação de reajuste da seguinte forma:
A. C.; STERN, J.; TENENBAUM, B.; GENCER, D. Handbook for evaluating infrastructure regulatory
Pt = Pt-1 (1 + RPI) (1 - X) (1 - Q)
systems. Washington DC: World Bank, 2006).
onde: X é o Fator X de produtividade; e Q é o Fator Q de qualidade.

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• Maior custo de capital. Uma vez que o custo futuro eficiente


que for definido pelo regulador pode não se realizar (o custo real
pode ser maior ou menor), o risco assumido pelo investidor é maior,
levando à exigência de uma taxa de retorno maior.17

Regulação por taxa de retorno


A regulação discricionária por taxa de retorno (rate of return
regulation) é o tipo de regulação mais antigo. Consiste na fixação
ex post dos custos para fins de cálculo do preço/tarifa da firma
monopolista, isto é, a fixação do preço é feita após os custos terem
sido incorridos. À medida que vão sendo incorridos, os custos são
computados pela empresa regulada e, após eventuais glosas de custos
considerados ineficientes sob a perspectiva da agência reguladora,
estabelece-se a receita necessária que garanta à empresa regulada
uma taxa de retorno justa (fair rate of return) previamente definida.

A regulação por taxa de retorno tem as seguintes vantagens:

• Flexibilidade regulatória. Há flexibilidade regulatória, pois a


definição do preço também acompanha a dinâmica dos custos nas
flutuações da economia. Todavia, essa flexibilidade é menor, uma
vez que, já tendo sido incorridos os custos, o regulador tem menos
autonomia do que possuiria no caso de uma regulação price-cap;

• Baixo risco de seleção adversa. Como o preço é estabelecido


após os custos serem incorridos e depois de o regulador distinguir os
investimentos prudentes,18 a empresa regulada tem incentivo para
realizar os investimentos necessários, não se verificando normalmente
diminuição da qualidade do serviço ou subinvestimento, uma vez
que qualquer investimento prudente em melhoria é remunerado
pelo aumento do preço na RTP;

17
Toda percepção de risco pelo investidor é precificada, havendo uma relação positiva entre
risco e retorno. Quanto maior o risco, maior o retorno exigido ( ROSS, S.; WESTERFIELD, R.;
JAFFE, J. Corporate Finance, 11th. New York: McGraw-Hill Education, 2016. p. 331).
18
Isto é, os investimentos adequados especialmente para o atendimento dos níveis de
qualidade, avaliados a preço de mercado e cujo valor constitui a base de remuneração da
empresa regulada (Resolução Normativa/ANEEL nº 234, de 31 de outubro de 2006, art. 2º,
Fancycrave/Pexels

inc. XIII).

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• Menor custo de capital. Como o preço é realinhado aos custos Yardstick regulation
incorridos a cada RTP, o risco do negócio é baixo, pois a taxa de
Na regulação por comparação (yardstick regulation ou benchmarking),
retorno é preservada de modo que, considerando a relação inversa
basicamente o preço/tarifa cobrado pela empresa regulada é definido
entre risco e retorno, o custo de capital exigido é menor.
ou reajustado com base em metodologia que envolve a comparação
Em contrapartida, consideram-se as seguintes desvantagens de seus custos com os de uma empresa teórica (de referência) ou
desse tipo de regulação: a partir dos custos de empresas comparáveis, isto é, do mesmo
segmento de mercado e de características semelhantes.
• Risco moral (moral hazard). Como a taxa de retorno é garantida
de modo que sejam cobertos os custos incorridos e existe assimetria O padrão de comparação é denominado benchmark. Ao se
de informação entre o regulador e a empresa regulada, há baixo identificar os custos eficientes por meio da comparação, pretende-
incentivo para que a empresa regulada seja eficiente. Na prática, se fixar o preço cobrado pela empresa regulada fazendo com que
a empresa regulada tende a incorrer em maiores custos de forma esta seja forçada a adequar sua estrutura de custos para garantir sua
ineficiente e ser remunerada com a aplicação da taxa de retorno margem de rentabilidade. Nesse sentido, a regulação por comparação
sobre o total do investimento; também simula uma competição no mercado que é denominada
competição por comparação ou yardstick competition.20
• Efeito Averch-Johnson. Trata-se de um desdobramento do
risco anterior. Como há assimetria de informação entre os custos
eficientes – ou seja, o regulador, em tese, não conhece tão bem a Regulação por contrato
dinâmica de custos do negócio da outra parte –, a empresa regulada
tem incentivos para se comportar como se o custo fosse mais alto A regulação por contrato (regulation by contract) é aquela
que custo real, inflando a base de ativos para aumentar o custo na qual os preços praticados pela empresa regulada não são
e, consequentemente, sua remuneração. O resultado disso é o necessariamente ajustados conforme as flutuações de mercado.
sobreinvestimento, isto é, a empresa regulada superdimensiona Neste caso o preço é definido em contrato após a uma licitação e sua
sua base de ativos (gold planting).19 revisão apenas ocorre em razão da alocação de riscos estabelecida
no próprio contrato, ou seja, na hipótese de existir um risco atribuído
à parte contratante, o preço será revisto para compensar o prejuízo/
ganho extraordinário da parte contratada. Portanto, na prática,
a decisão sobre alterar ou não o preço depende da alocação de
riscos pactuada, e não dos custos incorridos. Por essa razão, a
19
Se a taxa de retorno regulada é maior que o custo de capital, a firma tem incentivo para regulação por contrato é chamada de non cost-based. Trata-se
inflar seus custos por meio da ampliação da base de ativos (provocando um deslocamento
para baixo na curva de custo médio), o que leva à produção de uma quantidade de output
também de uma regulação ex ante, pois o preço pós-licitação é
superior. Além disso, se a base de ativos para cálculo do retorno inclui outros mercados definido previamente em relação aos custos que serão incorridos
regulados, a firma tem um incentivo para adentrar mercados competitivos ainda que nesses pela empresa regulada.
mercados opere com prejuízos no longo prazo, porque tem o benefício de fazer o subsídio
cruzado com a taxa de retorno assegurada pela prestação do serviço original, o que tende
a expulsar as firmas dos mercados, ainda que tenham custo menor, e a desencorajar a
entrada de novas firmas, pois estas não têm, em tese, o benefício do mesmo subsídio
cruzado. (AVERCH, H.; JOHNSON, L. L. Behavior of the firm under regulatory constraint. 20
SCHLEIFER, A. A theory of yardstick competition. RAND Journal of Economics, v. 16, n. 3,
American Economic Review, v. 5, n. 52, p. 1052-1070, 1962). p. 319-327, 1985.

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Sumário Páginas 94 / 108
Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

Nesse tipo de regulação, o preço/tarifa, a regra de reajuste anual, Caso o leilão seja mal desenhado, corre-se o risco de serem
os investimentos obrigatórios e seus respectivos gatilhos, os níveis selecionados interessados despreparados para executar os serviços
de qualidade de prestação do serviço, a alocação de riscos entre as (“aventureiros”) e amplia-se a possibilidade da chamada maldição do
partes e as regras de reequilíbrio econômico-financeiro são todos vencedor (winner’s curse), isto é, uma situação na qual o interessado
definidos no contrato desde a partida. O reajuste do contrato segue exagera em sua oferta, no intuito de vencer o leilão, e acaba
a equação pactuada, normalmente apontando-se um índice de colocando em risco a própria viabilidade econômico-financeira
inflação específico ou uma fórmula paramétrica. do empreendimento. Outro risco no desenho do leilão pode ser o
estabelecimento de critérios muito rígidos ou restritivos à partição,
Em regra, o objeto do leilão é o direito de celebrar o contrato e
com consequente prejuízo da competitividade e, por conseguinte,
explorar o monopólio natural. Verifica-se, pois, uma competição pelo
uma proposta menos vantajosa. Portanto, é fundamental que o
mercado (competition for the market), pois as empresas competem
leilão esteja bem desenhado. Atualmente há vasta literatura sobre
entre si no leilão, mas, após sua realização, a empresa vencedora
a teoria dos leilões, o que inclui a concepção do seu desenho
assume a posição de monopolista.21 O leilão é o principal instrumento
(auction design).22,23
para captar as eventuais expectativas futuras de ganhos de eficiência


e produtividade, dado que, em princípio, no modelo teórico, não Também é de suma relevância que o contrato reflita uma
há revisões periódicas para se corrigir distorções de preços e modelagem robusta. Daí a importância de que sejam preparados
compartilhar ganhos de eficiência e produtividade ao longo da Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA)
vigência contratual. consistentes.

Além disso, é necessário distribuir adequadamente os riscos


entre as partes (matriz de risco) e estabelecer regras claras de
O leilão é o principal reequilíbrio econômico-financeiro, incluindo: (i) o procedimento
de reequilíbrio; e (ii) a metodologia de cálculo do reequilíbrio.
instrumento para captar Da mesma forma, é importante que a definição dos indicadores
as eventuais expectativas de desempenho seja equilibrada e proporcional. Falhas na
modelagem, omissões contratuais, premissas inadequadas,
futuras de ganhos de eficiência obscuridades sobre regras, enfim, tudo aquilo que é definido

e produtividade pela alcunha de incompletude contratual abre espaço para o


comportamento oportunista das partes e consequentemente são
Por essa razão, na regulação por contrato dá-se muita importância lidas como risco pelas empresas e precificadas como exigência
ao desenho do contrato e do leilão, de modo que haja a maior de taxas de retorno mais elevadas.
concorrência possível e se mitiguem os riscos de seleção adversa,
São consideradas vantagens da regulação por contrato:
para que a proposta vencedora seja a mais vantajosa ao usuário
do serviço.
22
MILGROM, P. Putting auction theory to work. Cambridge: Cambridge University Press, 2008;
KLEMPERER, P. Auctions: theory and practice. Princeton: Princeton University Press, 2004.
21
Também na regulação discricionária costuma-se realizar leilão para definir a firma monopolista. 23
No Brasil, pode-se destacar três normas que permitem modelar o leilão de forma que se
A diferença é que, na regulação discricionária, além de uma competição pelo mercado, adapte melhor ao objeto a ser leiloado: Lei nº 11.079/2004, Lei nº 12.462/2011 e Lei nº
busca-se simular também uma competição no mercado ao longo da vigência contratual. 13.303/2016.

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Sumário Páginas 95 / 108
Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

• Baixo custo regulatório. Restringe a regulação ao previsto no Por sua vez, existem algumas desvantagens:
contrato. O custo consistirá em acompanhar o cumprimento do contrato,
• Menor flexibilidade. O fato de essa regulação se dar
não sendo necessário manter um aparato regulatório tão desenvolvido
essencialmente por um contrato que predefine as regras de
para gerir o contrato em longo prazo. Ressalte-se que essa vantagem
execução de seu objeto torna esse tipo de regulação muito
(baixo custo regulatório) é diluída e pode mesmo desaparecer se o
menos flexível a incertezas como alteração no preço dos insumos,
contrato necessitar de diversos reequilíbrios ao longo de sua vigência.
alterações da curva de demanda, avanços tecnológicos e alteração
Nessa situação, a suposta afirmação de custos regulatórios menores fica
das condições de financiamento. Caso seja necessário alterar o
prejudicada, uma vez que será requerido do agente regulador excelência
contrato, a assimetria de informação beneficia a empresa regulada,
técnica e grande esforço para avaliar cada pleito de reequilíbrio posto.
incrementando o risco de seleção adversa. O problema de ter que
Hipóteses de reequilíbrio devem, obrigatoriamente, ser bastante claras,
alterar o contrato durante sua execução é que já não existem as
transparentes e fáceis de serem implementadas do ponto de vista
condições de competitividade geradas durante o leilão. Portanto,
metodológico, sob o risco de ensejarem condutas oportunistas, tanto não haverá o mesmo incentivo para a empresa regulada adotar
da perspectiva do Poder Concedente, quanto da prestadora de serviços; custos eficientes;
• Baixo risco de seleção adversa. Uma vez que o preço é • Casos de subinvestimento. Pelo fato de o preço ser definido
definido em leilão e não há RTP, não há oportunidade para que a no contrato, o incentivo à eficiência pode significar também um
empresa regulada se aproveite da assimetria de informação e tente incentivo para não investir adequadamente, podendo provocar uma
convencer o regulador de que seus custos eficientes são maiores redução da qualidade, assim como uma expansão insuficiente24
do que o previsto, na tentativa de aumentar seu retorno. Todavia, do serviço. Os mecanismos para mitigar esse risco são os mesmos
essa vantagem pode desaparecer quando é necessário renegociar o já mencionados: (i) adoção de remuneração variável com Fator Q;
contrato (por exemplo, inclusão de novos investimentos, reequilíbrio (ii) previsão contratual de investimentos obrigatórios na partida
econômico-financeiro decorrente de caso fortuito ou fato do príncipe, do contrato e de gatilhos de investimentos disparados conforme
alterações de cronograma físico-financeiro, alterações unilaterais crescimento da demanda.
de indicadores de desempenho etc.);
Pelo fato de na regulação por contrato não existir RTP para
• Baixo risco moral. Na concorrência pelo mercado por meio alinhar a remuneração do concessionário aos custos eficientes
do leilão, os lances ofertados pelos interessados tendem a refletir de mercado, além do reajuste tarifário anual, é necessário criar
melhor os custos eficientes da empresa regulada, assim como uma outros mecanismos compensatórios para garantir a manutenção da
rentabilidade justa do negócio, supondo que a modelagem do leilão e equação econômico-financeira do contrato. Basicamente, os eventos
de projeto seja adequada. Posteriormente, como o preço é fixado no que levam ao desequilíbrio dessa equação são de duas ordens:
contrato, a empresa regulada tem incentivo para ser mais eficiente, alteração unilateral do contrato realizada pelo Poder Concedente,
reduzindo custos para maximizar seu retorno. bem como ocorrência de riscos alocados ao Poder Concedente que

• Menor custo de capital. O estabelecimento de cláusulas


suficientemente detalhadas e completas no contrato confere à
empresa regulada uma percepção menor de risco de comportamento 24
Não raramente os prestadores buscam postergar os investimentos iniciais, em geral aqueles
de grande monta. Essa postergação pode implica aumento do VPL, indevidamente. Por isso,
oportunista. Portanto, a redução do risco tende a gerar, em tese, o regulador deve estar atento a eventuais estratégias de postergação de investimento,
uma exigência de retorno menor. procedendo, se for o caso, à revisão tarifária para neutralizar o efeito da postergação.

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podem ensejar efeitos negativos ou positivos sobre os custos ou


receitas da concessionária.

Em regra, no estrangeiro, os contratos de concessão não


podem ser unilateralmente alterados pelo Poder Concedente.
A razão para isso é que a possibilidade de alteração unilateral é
vista pelo investidor como um risco, o que requer uma taxa de
retorno maior. Portanto, representa tarifas ou preços mais caros
para o usuário. No Brasil, entretanto, existe a possibilidade de
alteração unilateral de contratos administrativos. Essa alternativa
é considerada como prerrogativa da Administração Pública, mas
em compensação vem acompanhada da garantia constitucional do
equilíbrio econômico-financeiro (art. 37, inc. XXI da Constituição
Federal). Assim, mesmo que haja alterações unilaterais, o “preço”
deve ser mantido, isto é, revisado para acompanhar os novos
custos ou perda de receitas.

A repartição objetiva de riscos entre as partes, por sua vez, é guiada


pelo critério de que cada risco deve ser atribuído à parte que tem
condições de gerenciá-lo de forma mais eficiente. Segundo essa técnica
contratual, quando ocorrer um risco que foi contratualmente alocado
ao Poder Concedente e disso resultar a alteração dos custos ou das
receitas da concessionária, considera-se que foi quebrada a equação
econômico-financeira do contrato. Portanto, a empresa regulada
ou o Poder Concedente, conforme o caso, fará jus à compensação
pela variação de custo ou de receita. O evento qualificado como
causador do desequilíbrio, que merece ser compensado, é chamado,
por vezes, de compensation event.

Neste ponto é importante não confundir a adoção de uma


alocação de riscos objetiva com a teoria da imprevisão, pois enquanto
nesta é necessário demonstrar a existência de circunstâncias
extraordinárias, imprevisíveis, inevitáveis, onerosidade excessiva,
ônus insuportáveis etc. – aspectos notadamente subjetivos e
incertos –, naquela basta a constatação do fato atribuído como
risco do Poder Concedente e dos efeitos sobre os custos ou
receitas da concessionária para dar causa à compensação.
O modelo da alocação objetiva de riscos foi adotado exatamente
Pxhere

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para ser mais transparente e, portanto, menos conflituoso em Compensação pela metodologia de Fluxo de Caixa
relação à teoria da imprevisão tradicionalmente utilizada em Marginal
contratos administrativos.25
A tradição no âmbito de contratos de concessão no Brasil em
Como metodologias de compensação, apresentamos as duas que se aplica o modelo de regulação por contrato, até poucos anos
mais comuns: a compensação com base nos parâmetros da proposta atrás, era que o licitante apresentasse com sua proposta um Plano
ou no Plano de Negócios da empresa regulada e a compensação de Negócios acompanhado do respectivo Fluxo de Caixa, no qual
pela metodologia do Fluxo de Caixa Marginal. estivessem explícitas não apenas a TIR da proposta como também
outras premissas financeiras. Esse é justamente o modelo apontado
Compensação com base nos parâmetros da proposta no item anterior, isto é, de compensação com base nos parâmetros
(Plano de Negócios) da proposta. Em caso de eventual necessidade de reequilíbrio, a
metodologia aplicada era basicamente a de ajustar o Fluxo de Caixa,
A compensação com base nos parâmetros da proposta implica para compensar o evento causador de desequilíbrio, de modo a
vincular a execução do contrato de concessão ao Plano de Negócios manter a TIR da proposta original.
apresentado pela empresa regulada na ocasião do leilão. Basicamente,
isso significa dizer que a equação econômico-financeira do contrato Esse modelo sofreu críticas e algumas entidades públicas
fica vinculada ao Capex e ao Opex definidos na proposta, assim passaram a licitar as concessões permitindo que: (i) os investimentos
como por sua taxa interna de retorno, de modo que se cria uma inicialmente pactuados, nos termos do Edital de Licitação, fossem
garantia de rentabilidade em favor da empresa regulada, observada remunerados pela TIR da proposta do licitante vencedor; e, (ii) os
a alocação de riscos pactuada. novos investimentos – aqueles que houvessem sido carreados à
responsabilidade da concessionária ao longo da execução contratual
Desse modo, sempre que se verificar a ocorrência de um risco – fossem objeto de reequilíbrio por uma TIR distinta daquela prevista
atribuído ao Poder Concedente, mas cujos efeitos são suportados na proposta original, além de que, para esses novos investimentos,
pela concessionária, proceder-se-á ao reequilíbrio conforme as os parâmetros de investimentos e de custos operacionais poderiam
condições do Plano de Negócios, a fim de manter a rentabilidade ser recalculados por ocasião do reequilíbrio, para ajustá-los às
original do projeto conforme prevista na proposta. condições de mercado mais atuais, não estando vinculados àqueles
A adoção desse tipo de metodologia tem como desvantagem parâmetros utilizados na proposta do licitante vencedor.
a possibilidade de “jogo de planilha”. Para mitigar o risco de isso O reequilíbrio para novos investimentos, nesse contexto,
ocorrer, é necessário que haja a análise do Plano de Negócios durante dar-se-ia pela aplicação da chamada “metodologia de Fluxo de Caixa
a fase de licitação, de modo a aferir sua consistência (aderência Marginal”, que representava a ideia de se criar um novo Fluxo de
das premissas adotadas à realidade técnica e econômica). Todavia, Caixa, específico para compensar o evento causador de desequilíbrio,
em decorrência da assimetria de informação, esse cuidado apenas que poderia contemplar uma TIR distinta, bem como custos de
mitiga o risco e não o elimina. investimentos e operacionais diferentes, em relação aos parâmetros
previstos na proposta original.

Dado que esse modelo de Fluxo de Caixa Marginal é bem peculiar


25
RIBEIRO, M. P.; PRADO, L. N. Comentários à Lei de PPP: fundamentos econômico-jurídicos. a nossa experiência brasileira, a seguir passamos a exemplificar
1ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 120-124. sua utilização em diversos setores, a fim de melhor ilustrar como

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Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

essa metodologia tem se desenvolvido, particularmente quanto ao de necessidade de reequilíbrio. Na prática, isso permite que cada
cálculo das taxas de desconto. procedimento de reequilíbrio seja realizado com uma TIR distinta.

O primeiro caso em que se previu isso contratualmente no Brasil Essa foi a experiência, grosso modo, das últimas licitações de
foi a concessão rodoviária de trechos na Bahia da BR 116 e BR 324, rodovias e de aeroportos, em regime de concessão.
quando se estabeleceu que a taxa de desconto seria calculada
No caso das rodovias federais (3ª Etapa – Fase III), a cláusula
a partir de uma fórmula envolvendo um spread sobre a TJLP por
22.5 da minuta-padrão dizia que “[o] processo de recomposição
ocasião do reequilíbrio.26
de evento não sujeito à aplicação do Fator D e do Fator C será
Posteriormente, a ideia de aplicar a metodologia de Fluxo de Caixa sempre realizado de forma que seja nulo o valor presente líquido
Marginal, para reequilibrar novos investimentos, acabou estendida, do Fluxo de Caixa Marginal projetado em razão do evento que
inclusive por provocação do Tribunal de Contas da União (TCU) – ensejou a recomposição, nos termos de regulamentação específica”.
acórdãos 2.154/2007, 1.055/2011 e 2.927/2011, todos do Plenário A remissão à “regulamentação específica” traz à baila a Resolução
– para outras rodovias federais concedidas. ANTT 3.651/2011, já citada. Novamente, o pressuposto é de que os
sucessivos reequilíbrios poderão ensejar aplicação de TIR distintas.
Nesse contexto, a Agência Nacional de Transportes Terrestres
De acordo com o art. 8º da Resolução 3.651/2011, a taxa de desconto
(ANTT) publicou a Resolução 3.651/2011 que trata do assunto.
utilizada na metodologia de Fluxo de Caixa Marginal para cada evento
Destaque-se, nesse caso, que o reequilíbrio por TIR distinta daquela
de reequilíbrio é determinada com base no Custo Médio Ponderado
proposta foi aplicado a concessões que, na partida, não previam
de Capital (WACC)27, lembrando que, para essa metodologia, a TIR
essa possibilidade, o que, por vezes, provocou reclamação dos
é igualada ao WACC.
concessionários.
Em relação aos aeroportos, tomando o edital e a minuta do
Mais recentemente, o Governo Federal tem licitado concessões
contrato de Guarulhos por exemplo, ao tratar da possibilidade da
em que é mesmo proibido ao licitante apresentar um Plano de
Revisão Extraordinária, remeteu-se à aplicação da metodologia de
Negócios, com o respectivo Fluxo de Caixa. A intenção é descolar
Fluxo de Caixa Marginal, conforme definida em anexo do próprio
as discussões de reequilíbrio de uma proposta originalmente
edital. No anexo desse documento, no entanto, o ponto específico
apresentada pelo vencedor da licitação. Dessa perspectiva, tem-se
da Taxa de Desconto do Fluxo de Caixa Marginal foi remetido para
pretendido aplicar a metodologia de Fluxo de Caixa Marginal não
uma metodologia a ser definida pela Agência Nacional de Aviação
apenas aos novos investimentos, mas também aos investimentos
Civil (Anac). Nesse contexto, a agência aprovou a Resolução 355/2015,
originalmente previstos na proposta do licitante vencedor, em caso
que definiu a taxa de retorno para eventuais procedimentos de

27
Conforme o dispositivo: “Art. 8º A taxa de desconto a ser utilizada nos fluxos dos
26
No caso da concessão BR 116/324, a taxa pós-fixada tem como referencial a TJLP: 20.5.2 dispêndios e das receitas marginais para efeito de equilíbrio terá como base Custo Médio
Os fluxos dos dispêndios e das receitas marginais referidos na subcláusula 20.5.1 acima Ponderado de Capital (WACC – Weighted Average Cost of Capital), a seguir reproduzida:
serão descontados pela taxa obtida mediante utilização da fórmula seguinte: WACC=E D
RE + RD (1 - T)
1 + TJLP + 8% E+D E+D
-1
(1 + π)
onde: E –  capital  próprio; D  –  capital  de  terceiros; T  –  impostos  sobre  a  Renda;

onde (i) π equivale a meta para a inflação fixada peIo Conselho Monetário Nacional para o RE – custo de capital próprio; RD – custo de capital de terceiros. Parágrafo único. A metodologia
ano em que ocorreu a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro e (ii) a TJLP adotada de cálculo das variáveis da fórmula de que trata este artigo será proposta pela área técnica
no cálculo será a vigente na data da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro. competente e validada mediante o processo de audiência pública.”

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Sumário Páginas 99 / 108
Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

reequilíbrio em 6,81% para os aeroportos de Guarulhos, Brasília,


Confins e Galeão e de 7,47% para o aeroporto de São Gonçalo.28
Destaque-se que, conforme as subcláusulas 6.14 e 6.15 do contrato
de Guarulhos, a taxa de retorno definida pela ANAC deve ser revista
a cada cinco anos. Portanto, haverá TIR distintas, para efeito de
reequilíbrio, ao longo da execução contratual.

No caso das recentes licitações de arrendamentos portuários


(Bloco I – 1ª e 2ª Etapa), embora sem utilizar a expressão “Fluxo
de Caixa Marginal”, a minuta de contrato (condições gerais) prevê
que “[p]ara a solicitação da recomposição do equilíbrio econômico-
financeiro do Contrato, deverão ser observados os procedimentos,
prazos e exigências previstos em regulamento editado pela ANTAQ”
(segundo a subcláusula 14.1.4). Por sua vez, a norma da Agência
Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), sobre o equilíbrio
econômico-financeiro, é a Resolução 3.220/2014, que apresenta a
metodologia de Fluxo de Caixa Marginal. Segundo essa Resolução,
a taxa de desconto será aquela definida pela ANTAQ (se outra não
houver sido definida no contrato de arrendamento, o que tem sido
o caso dos últimos leilões no final de 2015 e no início de 2016).
Nesse contexto, a ANTAQ provavelmente estabelecerá taxas de
desconto distintas, a depender do momento em que vier a ocorrer
o reequilíbrio (art. 9º, caput).29

Na esfera estadual, a Agência de Transporte do Estado São Paulo


(Artesp) estabeleceu a mesma metodologia para as concessões de
sua competência, definindo como forma de determinar a taxa de

28
Conforme anexo à Resolução nº 355/2015: “A taxa de desconto a ser utilizada nos fluxos
de caixa marginais para efeito de reequilíbrio econômico-financeiro será de: I – 6,81% (seis
inteiros e oitenta e um décimos por cento) para os aeroportos de Guarulhos, Viracopos,
Brasília, Confins e Galeão, permanecendo em vigor até que seja realizada a 1ª Revisão dos
Parâmetros da Concessão, nos termos dos respectivos contratos; II – 7,47% (sete inteiros e
quarenta e sete décimos por cento) para o aeroporto de São Gonçalo do Amarante, entrando
em vigor no dia 1º de fevereiro de 2015, e assim permanecendo até que seja realizada a 2ª
Revisão dos Parâmetros da Concessão, nos termos do respectivo contrato.”
29
De acordo com o dispositivo: “Art. 9º O processo de recomposição do equilíbrio econômico-
financeiro de que trata o artigo anterior será realizado de forma a neutralizar os impactos
negativos ou positivos gerados especificamente pelo evento que ensejou a recomposição,
considerando os dispêndios e receitas marginais e a Taxa de Desconto definida pela ANTAQ,
se outra não houver sido definida no contrato de arrendamento”.
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desconto para o reequilíbrio também o custo médio ponderado de • Art. 18. Os prestadores que atuem em mais de um município
capital (WACC). É o que se verifica na Resolução 01/2013. ou que prestem serviços públicos de saneamento básico diferentes
em um mesmo município manterão sistema contábil que permita
Ainda no setor de transportes no estado de São Paulo, pode-se
registrar e demonstrar, separadamente, os custos e as receitas de
mencionar o contrato de Parceria Público-Privada (PPP) da Linha 6 do
cada serviço em cada um dos municípios atendidos e, se for o caso,
Metrô. Esse contrato também previu a adoção de uma metodologia
no Distrito Federal;
de Fluxo de Caixa Marginal para recompor o equilíbrio econômico-
financeiro. No caso é interessante observar que, diferentemente • Art. 23. A entidade reguladora editará normas relativas às
do setor de rodovias federais, há uma taxa pós-fixada determinada dimensões técnica, econômica e social de prestação dos serviços,
com base na taxa de juros de Notas do Tesouro Nacional – Série B que abrangerão, pelo menos, os seguintes aspectos: (…) VI –
(NTN-B) e um spread (prêmio de risco) de 2,5%.30 monitoramento dos custos;

• Art. 29. § 1º (…) a instituição das tarifas, preços públicos e


Enquadramento da regulação econômica no âmbito da
taxas para os serviços de saneamento básico observará as seguintes
Lei Federal 11.445/2007
diretrizes: (...) III – geração dos recursos necessários para realização
dos investimentos, objetivando o cumprimento das metas e objetivos
Feitas essas considerações sobre os modelos teóricos de do serviço; (...) V – recuperação dos custos incorridos na prestação
regulação, cabe questionar se existe no âmbito da Lei de Saneamento do serviço, em regime de eficiência;
Básico preferência por algum modelo de regulação para o setor de
• Art. 29, § 2º Poderão ser adotados subsídios tarifários e não
água e esgoto.
tarifários para os usuários e localidades que não tenham capacidade
No modelo anterior ao da Lei 11.445/2007 havia clara preferência de pagamento ou escala econômica suficiente para cobrir o custo
por uma regulação baseada no custo do serviço. Na Lei 6.528/1978 integral dos serviços.
já revogada, o art. 2º, § 2º, dispunha que as tarifas obedeceriam
Essas diversas referências ao custo dos serviços denotam
ao regime do “serviço pelo custo”, garantindo ao responsável pela
execução dos serviços a remuneração de até 12% (doze por cento) preocupação com a adoção de requisitos básicos para que se possa
ao ano sobre o investimento reconhecido. ter uma regulação discricionária de qualidade, com abordagem ex
ante ou ex post. Ou seja, embora não seja tão incisiva quanto a lei
De maneira distinta, na Lei 11.445/2007 não há uma norma incisiva anterior, a Lei Federal 11.445/2007 tem preferência pelo modelo de
nesse sentido. Não obstante, os dispositivos da lei atual deixam regulação discricionária baseada em custo, o que é justificável em
transparecer a preocupação do legislador em acompanhar os custos vista das peculiaridades do setor.
dos serviços. Veja-se, nesse sentido, os seguintes dispositivos:
De fato, o crescimento das cidades é tão dinâmico que se torna muito
difícil ter um contrato fechado, que não enseje renegociação entre 20
30
Nos termos do contrato de PPP: “22.3.4 A Taxa de Desconto real anual a ser utilizada no
cálculo do Valor Presente de que trata o item 22.3.3 será composta pela média dos últimos
e 30 anos. Nesse contexto, o modelo de regulação discricionária ganha
3 (três) meses da taxa bruta de juros de venda das Notas do Tesouro Nacional – Série B espaço, sobretudo por conta de sua flexibilidade. Além disso, a suposta
(NTN-B), ex ante a deducão do Imposto de Renda, com vencimento em 15/05/2045, publicada vantagem do baixo custo regulatório da “regulação por contrato”
pela Secretaria do Tesouro Nacional, apurada na data do efetivo impacto do evento de
desequilíbrio no fluxo de caixa da CONCESSIONÁRIA, acrescida de um prêmio de risco de costuma ser bastante diluída ou mesmo inexistente em concessões de
2,5% a.a.”. abastecimento de água e esgotamento sanitário. Isso porque, dada a

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Sumário Páginas 101 / 108
Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

dinâmica do crescimento urbano, que quase sempre não se coaduna Outra questão peculiar em relação ao modelo de regulação
com a previsão inicial, e o longo prazo desse tipo de contrato, é comum está relacionada aos casos de contratos precedidos de licitação.
a necessidade de diversos reequilíbrios ao longo de sua vigência. O Não raramente, nas licitações tem sido adotado o menor valor de
agente regulador acaba envolvido, portanto, com frequência, em tarifa como critério de julgamento. Evidentemente, não há nenhum
discussões complexas de revisão contratual, ensejando não raramente problema com a adoção desse critério se estivermos diante de um
renegociações extensas das disposições contratuais. Isso empurra o modelo fechado de “regulação por contrato”. O problema surge
regulador para uma análise mais profunda dos custos envolvidos na quando, após uma licitação dessa natureza, pretende-se aplicar uma
prestação dos serviços, a fim de reduzir a assimetria de informações “regulação discricionária”. Nesse caso, corre-se o risco de anular o
e mitigar os impactos tarifários dos sucessivos pleitos de reequilíbrio. efeito da licitação, pois, se o regulador ajusta a tarifa para remunerar
Ao fim e ao cabo, corre-se o risco de se ter elevado custo do aparato o custo do serviço, o desconto dado na licitação vai se perder
regulatório necessário para lidar com diversos pleitos de reequilíbrio, automaticamente na primeira revisão tarifária. Dessa perspectiva,
sem se ter os benefícios da regulação discricionária. caso se pretenda realizar uma licitação com perspectiva de aplicar
uma “regulação discricionária”, o melhor critério de julgamento
Nessa linha de ideias, vale notar que, no caso de prestadores
tende a ser o de maior valor de outorga. Isso porque, nesse modelo,
públicos, como SAAE, DAAE e empresas estatais, esse modelo de
quando o regulador for calcular a tarifa adequada para remunerar
“regulação discricionária” parece ser, de fato, o mais recomendado.
o custo do serviço, bastará deixar de fora o valor de outorga.
O desafio maior é sua utilização para concessões privadas. Isso
Por fim, é preciso registrar que, assim como no caso da regulação
porque muitos investidores ainda têm receio da efetiva independência
técnica, as agências reguladoras também têm poder normativo para
das agências reguladoras e, dessa perspectiva, veem como um risco
tratar dos aspectos econômico-financeiros. Nos termos do art. 23,
adicional do negócio a existência de modelo regulatório que assegure
compete à agência editar normas relativas à dimensão econômica,
maior discricionariedade para a gestão do contrato pelas respectivas
abrangendo, pelo menos, os seguintes aspectos:
agências. Em decorrência dessa desconfiança, surge por vezes a
intenção de limitar – dentro dos parâmetros legais, obviamente – a • Regime, estrutura e níveis tarifários, bem como os procedimentos
atuação das agências, criando nos contratos cláusulas detalhadas e prazos de sua fixação, reajuste e revisão (inc. IV);
de alocação de riscos e de metodologia aplicável para o reequilíbrio
• Medição, faturamento e cobrança de serviços (inc. V);
econômico-financeiro.
• Subsídios tarifários e não tarifários (inc. IX).
Não vislumbramos ilegalidade nessa alternativa, embora haja
distanciamento da opção preferencial da Lei Federal 11.445/2007. Esses temas, no entanto, são centrais na equação econômico-
De qualquer forma, quando se opta por uma “regulação por contrato”, financeira de qualquer contrato de concessão. Dessa perspectiva,
com cláusulas de risco e de reequilíbrio econômico-financeiro bem existe uma limitação tradicionalmente reconhecida no Direito
detalhadas, é importante não esquecer da obrigatoriedade de se Administrativo brasileiro, segundo a qual a prerrogativa de alteração
introduzir mecanismos que induzam a eficiência e eficácia dos serviços unilateral do contrato não engloba as cláusulas econômico-financeiras.
e que permitam a apropriação social dos ganhos de produtividade, Isso está bem estabelecido, por exemplo, no art. 58, § 1º, da Lei Geral
em vista da exigência legal dessa apropriação (art. 22, inc. IV, e art. 38, de Licitações e Contratos, segundo o qual: “as cláusulas econômico-
§§ 2º e 3º). Assim, de alguma forma será preciso acompanhar custos, financeiras e monetárias dos contratos administrativos não poderão
a fim de compartilhar os ganhos de produtividade. ser alteradas sem prévia concordância do contratado”.

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Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

Dessa perspectiva, é preciso ter claro que as normas da agência como espelho daquele utilizado pela própria concessionária, o
reguladora sobre matéria econômico-financeira apenas se aplicarão que permitiria à agência verificar em tempo real as ocorrências
naquilo que não contrariarem o contrato de concessão. Não é da operação.31
possível admitir a alteração unilateral dessas cláusulas, nem, por
Além disso, em grande medida, a fiscalização se exerce sobre os
via transversa, penalizar a concessionária que se recusa a alterar
dados fornecidos pela própria prestadora dos serviços, sendo que,
cláusulas econômico-financeiras de seu contrato. Qualquer alteração
nesse caso, para mitigar o risco de fornecimento de dados incorretos,
nessas cláusulas apenas poderá se dar por consenso entre as partes é possível estabelecer auditoria obrigatória e independente de
contratantes. Portanto, existe uma limitação aqui à normatização forma rotineira.
da agência reguladora, que, em caso de conflito com o contrato,
para se tornar eficaz, depende de um aditivo contratual a fim de Acervo Arsesp

ajustar as disposições do contrato de concessão às normas da


entidade reguladora.

Evidentemente, na prática, mesmo sem o aditivo, se a concessionária


não se opuser à aplicação das normas da agência conflitantes com as
disposições contratuais, pode não haver maiores problemas. Porém,
a existência do aditivo contratual, para compatibilizar as normas
contratuais com as normas da agência, seria conveniente para mitigar
risco de eventual judicialização futura e/ou questionamentos por
parte de órgãos de fiscalização.

Fiscalização

A fiscalização exercida pela entidade reguladora integra a regulação


exercida sobre a prestação dos serviços pela empresa contratada,
completando o quadro de incentivos para que haja efetiva e adequada
prestação desses serviços. Fiscalização em estação de tratamento de esgoto em 2013

Uma das formas mais modernas de exercício de fiscalização


em contratos de concessão é o monitoramento de indicadores de
desempenho. Tem sido cada vez mais comum a definição de indicadores
específicos, nos contratos ou ainda em normas regulatórias.
31
Na consulta pública, realizada em julho e agosto de 2017, acerca de possível licitação do
Por vezes, o monitoramento desses indicadores pode ser feito trecho ferroviário entre Porto Nacional (GO) e Estrela d’Oeste (SP), existe uma obrigação
remotamente, reduzindo o custo da fiscalização, o que é facilitado prevista para o futuro contratado no sentido de disponibilizar uma estrutura/sistema na
sede da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que permitiria a essa agência
pela crescente automação dos sistemas. Em algumas agências, acompanhar, em tempo real, a operação da ferrovia. No setor de água e esgoto, não se tem
já se discute a existência de um centro de controle operacional, notícia de que alguma agência pretenda adotar estratégia de fiscalização semelhante.

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Sumário Páginas 103 / 108
Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

De qualquer forma, eventualmente, pode ser necessário o envio Vale ressaltar, no entanto, que, estranhamente, foi vetado
de fiscais da agência, o apoio de terceiros contratados pela agência dispositivo importantíssimo nessa matéria, por sugestão do
ou, ainda, disponibilizados por meio de convênios com órgãos do Ministério da Justiça. O projeto de lei enviado à sanção do presidente
titular dos serviços, para a verificação in loco do cumprimento de da República contemplava, como inc. XXIII do art. 23, justamente a
obrigações, e o monitoramento de indicadores de desempenho. autorização para as entidades reguladoras emitirem normas sobre
penalidades. Nas razões do veto, constou o seguinte:
As ações de fiscalização podem ser feitas como parte do planejamento
ordinário da agência ou como reação a achados extraordinários da Quanto ao mérito, registra-se que o inciso XII do art. 23 da proposição
fiscalização ou ainda decorrentes de denúncia de terceiros. concede à entidade reguladora permissão para expedir normas
relativas à imposição de penalidades pelo descumprimento de regras.
Em qualquer caso, sempre que houver a perspectiva de
aplicação de sanções à concessionária, será necessária abrir Entretanto, constata-se que o Projeto de Lei não define as infrações,
processo administrativo sancionador, conforme as normas legais, nem as penalidades que podem ser aplicadas. Tampouco cabe à
regulamentares e contratuais aplicáveis, que devem tratar não entidade reguladora legislar a respeito, sob pena de ferir o princípio
apenas do procedimento, mas também da tipificação das condutas da reserva legal que limita o exercício da função punitiva do Estado
infracionais e das respectivas sanções. Em linhas gerais, tais normas somente às infrações definidas em lei, o que exclui a possibilidade
devem estabelecer o formato de autos de infração, seus elementos, os de criação de infrações, ainda que administrativas, no âmbito de
processos de fiscalização, os prazos para apresentar esclarecimentos, qualquer dos poderes do Estado que não seja o Legislativo.
defesas e recursos, as autoridades julgadoras competentes, a forma Com o devido respeito, a posição adotada pelo Ministério da
de instrução e critérios para dosimetria das penalidades, de modo Justiça não condiz com a razão de ser das agências reguladoras.
que haja plena garantia do contraditório e da ampla defesa, assim É imprescindível que as agências possam editar normas sobre
como do devido processo legal. penalidades, criando a devida tipificação e as respectivas sanções,
A importância de haver normas a esse respeito reside no fato de ainda mais no contexto em que, por vezes, os contratos são omissos
que a previsibilidade do procedimento e as garantias processuais ou incompletos acerca da matéria. Infelizmente, o referido veto
mitigam o risco de questionamento judicial posterior das decisões acabou criando uma fragilidade jurídica e a possibilidade de discussão
sancionadoras, assim como reduzem também o risco de arbitrariedade sobre as penalidades aplicadas em razão de atos normativos das
e de comportamento oportunista por parte do Poder Público. agências de água e esgoto.

Em relação às previsões normativas específicas da Lei Federal Pensamos que essa competência, para editar normas a respeito
11.445/2005, vale destacar a existência de poder normativo para tratar de penalidades, é implícita e condição necessária para a eficácia da
de aspectos da fiscalização, no âmbito de seu art. 23, a exemplo de: fiscalização e, portanto, não se pode admitir uma agência reguladora
sem tais poderes.
• Monitoramento dos custos (inc. VI);
Isso não significa dizer que a agência possa, unilateralmente,
• Avaliação da eficiência e eficácia dos serviços prestados
alterar as regras contratualmente estabelecidas sobre a matéria.
(inc. VII);
As regras sobre penalidades fazem parte do cerne da equação
• Plano de contas e mecanismos de informação, auditoria e econômico-financeira considerada pelo contratado. Em decorrência
certificação (inc. VIII). disso, entendemos que a alterar disposições contratuais

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Capítulo 5 Regulação no setor de água e esgoto

depende de concordância das partes envolvidas, especialmente setores de infraestrutura. Nesse sentido, vale registrar que o setor
da concessionária.32 de água e esgoto andou bem ao seguir no mesmo sentido, podendo
se beneficiar, agora, da experiência acumulada em outros setores.
A existência dessa discussão, a nosso ver, pode ser superada pela
inclusão de disposição contratual que remeta à aplicação das normas Do ponto de vista da regulação técnica, a entidade reguladora
da agência sobre penalidades. Dessa forma, é possível contornar a deve exercer seu poder normativo para suprir eventuais omissões
ausência de autorização legal expressa para que as agências emitam contratuais, dar transparência e calibrar a qualidade da prestação dos
normas a respeito da aplicação de penalidades. Em outras palavras, serviços e o atendimento adequado aos usuários. As eventuais normas
a competência adviria não da lei, mas do acordo entre as partes, emanadas nesse contexto devem ser acatadas pela concessionária,
para que se apliquem as normas da agência a respeito. ajustando-se o contrato sempre que necessário, sem prejuízo da
manutenção do equilíbrio econômico-financeiro.
Não apenas por esse motivo, mas também por tal razão, é
conveniente que a agência reguladora participe da modelagem da Quanto à regulação econômica, foram discutidos possíveis
contratação, a fim de evitar a introdução de normas inadequadas, modelos teóricos, sendo que há uma preferência na Lei Federal
do ponto de vista da regulação econômico-financeira, bem como 11.445/2007 por um modelo de “regulação discricionária”, baseado
para fazer constar expressamente no contrato a aplicação de suas em análise de custos. Uma preocupação importante é com as
normas concernentes a penalidades. concessões precedidas de licitação, pois, nesses casos, a adoção
de um modelo de regulação discricionária deve cuidar para que não
Conclusões se perca a utilidade do leilão. Além disso, deve-se ter em mente que,
no caso da regulação econômica, é importante compatibilizar as
A regulação é fundamental para assegurar a melhoria da qualidade regras da agência com as disposições contratuais, lembrando que,
dos serviços e a modicidade tarifária, em um contexto de mercado nessa matéria, não há espaço para alteração unilateral.
monopolizado. Por essa razão, a fim de fortalecer a regulação, a Lei
Em relação aos poderes de fiscalização, trata-se de um instrumento
Federal 11.445/2007 obrigou a segregação da função reguladora
fundamental para fazer valer as regulações técnica e econômica. Nesse
em uma entidade com autonomia orçamentária, financeira e
contexto, é evidente que as agências devem ter a competência para
administrativa. Trata-se, talvez, de uma das mais importantes
normatizar a aplicação de penalidades, criando os tipos penais e as
inovações do marco legal de saneamento.
respectivas sanções, a despeito do veto existente no art. 23, inc. XXIII do
Esse movimento, de estimular uma regulação técnica e Projeto de Lei que deu origem à Lei Federal 11.445/2007. Uma forma
independente, está em linha com as melhores práticas nos diversos de contornar eventuais críticas é a inclusão, no contrato de prestação
de serviços públicos de água e esgoto, de cláusula por meio da qual as
32
Há casos em que o contrato estabelece limites à aplicação de penalidades tão baixos que, na partes pactuem a aplicação das normas da agência sobre penalidades.
prática, as sanções se mostram absolutamente ineficazes. Nessas hipóteses, o fato de que
não se admite a alteração unilateral das regras sobre penalidades, por estarem no cerne da Nesse contexto, é bastante conveniente que a agência reguladora
equação econômico-financeira, não significa que o titular dos serviços e a agência reguladora
participe da modelagem da contratação, com o objetivo de assegurar,
estejam de mão atadas. De fato, se as partes não chegarem a um acordo que permita ajustar
o sistema de penalidades e as sanções forem ineficazes como instrumento de enforcement do no contrato, o espaço adequado para que a regulação seja exercida
contrato, é preciso lembrar que o titular dos serviços sempre tem à disposição a possibilidade de forma eficiente, eficaz e com segurança jurídica.
de declarar caducidade ou encampação do contrato, observado o devido processo legal.
A eventual limitante da indenização poderá ser superada mediante a previsão de que o
vencedor da licitação pague a indenização devida ao antigo prestador de serviços. * Os dados deste artigo referem-se ao ano de 2017.

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Anexo

Diretoria da Arsesp ao longo dos 20 anos de história

Diretor Presidente

Diretor de
Relações Institucionais

Diretor de Regulação Econômico-


-Financeira e de Mercados

Instruções: Escolha a área para abrir as informações.


Diretor de Regulação Técnica
e Fiscalização dos Serviços de
Distribuição de Gás Canalizado

Diretor de Regulação Técnica


e Fiscalização dos Serviços
de Energia

Diretor de Regulação Técnica


e Fiscalização dos Serviços de
Saneamento Básico

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Sumário Páginas 106 / 108
Expediente

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO


Governador
Márcio França

SECRETARIA DE ENERGIA E MINERAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO


Secretário de Energia e Mineração do Estado de São Paulo
João Carlos de Souza Meirelles

AGÊNCIA REGULADORA DE SANEAMENTO E ENERGIA


DO ESTADO DE SÃO PAULO Artigos
Regulação do setor de gás natural no Brasil:
Diretor-Presidente e Diretor de Regulação Técnica gênese e desafios
e Fiscalização dos Serviços de Saneamento Básico Ieda Gomes
Helio Luiz Castro
Regulação tarifária
Diretor de Regulação Econômico-Financeira Joisa Dutra
e de Mercados
A regulação no setor elétrico brasileiro: nascer e crescer
José Bonifácio de Souza Amaral Filho
para servir!
José Mário Miranda Abdo
Diretor de Relações Institucionais
Paulo Arthur Lencioni Góes Regulação no setor de água e esgoto
Lucas Navarro Prado e Denis Austin Gamell
Diretor de Regulação Técnica e Fiscalização
de Serviços de Energia Elétrica Agências Reguladoras e proteção do consumidor
Marcos Peres Barros Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer

Diretora de Regulação Técnica e Fiscalização Conteúdo, elaboração, entrevistas e revisão


dos Serviços de Gás Canalizado Hamilton Fernandes | Tikinet
Paula Fernandes da Rocha Campos Amanda Oliveira | Tikinet
Caique Zen | Tikinet
Gerência de Comunicação da Diretoria Projeto gráfico, ilustração e diagramação
de Relações Institucionais Patricia Okamoto | Tikinet

Coordenação Executiva Imagens


Samira Bevilaqua | Superintendente de Relações Acervo Arsesp, PXHere e Depositphotos
Institucionais / DRI-Arsesp
Contato
Coordenação Geral Av. Paulista, 2313 – 1º ao 4º andar
Sílvia Vivona | Comunicação / DRI-Arsesp São Paulo/SP – CEP: 01311-300
fone: + 55 11 3293-5100
Colaboração fax: + 55 11 3293-5107
Sergio Brandt | Comunicação / DRI-Arsesp arsesp@sp.gov.br
Cássio Cruz | Comunicação / DRI-Arsesp www.arsesp.sp.gov.br

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