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: / A ilha dos gatos pingados Fé sei o que vou fazer. Se Cedil no voltar até o fim o ano, vou-me embora pera o sitio de minha avé. Li eu vou ter uma bezerra pra tira cria, um cavalinho pra mon- tar ¢ muitas coisas pra fazer o dia inteiro. & melhor do {que fiear aqui feito bobo, pensando toda a vida na iha, not bringuedos que a gente brincava, nas coisas que Cedil ¢ Tenisao diziam, ¢ até nos sustos que passivamos, como no dia que a jangada quase afundou com nés trés, Camilinho ainda anda atris de mim; mas nfo sei se € influéncia de Tenisio, eu no gosto muito de brincar com ele, Ele tem umat idéias bobas, chora por qualquer coisa, e tudo que a gente faz de meio estouvado ele acha de linguarar. Agora eu compreendo mais por que Tenisio implicava com ele: ele sempre foi chorio enredeiro, ‘Toda vez que a gente queria ir em algum lugar pre- ciseva combinar escondido, sair sem Camilinho ver, © as vezes nem assim adiantava. Quando a gente ia longe, 16 Vina Camilinko correndo atrés, chorando © pedindo pra sperar. Tenisio xingava, jogava pedra, mas ele nio desis tia, Era preciso parar e esperar. Af 0 bringuedo perdia fa maior parte da graga porque ele ere pequeno ¢ néo ddava conta de acompanhar, no sabia pisar em espinho sem espetar 0 pé, & toa a toa chorava. Era bobinho que 36 vendo, tinha medo de tudo. Nao engolia semente de jeni apo para nio virar barata na barriga, nfo comia rolinha assada pra nfo dar fome canina, no jogava pedra na casa de Jodo Benedito porque cle furava um ovo com agulha oa —<—<—<——__—__ (© & gente Ficava cogo (cu s6 joguei uma vez e de lone. porque tode mundo dizia que ele era feiticeiro infalivel) De entoado um de nés, ou nés tes, estava apanhando por causa de Camilinho. De mai a agosto, os meses sem r, ninguém podia tomar banho no rio, dava febre, A gente ia escondido, Camilinho seguia, © tempo todo aconselhando, fazendo edo, Tenisio dava cogue nele, mandava parar com a ladainha, mas era. mesmo que nada: ele continuava cho- ramingando, dizia que a gente todos is morrer. Eu ficava com dis de ver aquele porqueirinha chorando por causa da morte inventada da gente, dizia gue isso de morrer era invenglo, prometia armar arapuca pra ele. Tenisio ficava enfezado, dizia que nfo tinha de armar arapuea nenhuma, se ele contasse em casa apanhava de corriéo. Uma vez ele chorou tanto com uma guaspada de Tenisio que eu tive de prometer jogar burro com cle ¢ deixar ele ganhar. Com. {sso ele calou do choro mas nao deixou de enredar. Quando chegou em casa ficou rodeando a mle por todo canto, ela ‘mandava ele brinear, ele arremanchava e no saia de perto Ela perguntou o que ele queria, cle disse que era preciso fazer um cha bem forte pra Tenisio porque le tinha na- dado no rio. Dona Zipa ficou nervosa, chamou Tenisio, fez 0 coitado beber 0 chi, mas primeiro deu uma surra nele c¢ depois foi avisar 1é em casa. A minha valenga foi que feu estava na casa de yow' ¢ 1é eu no apanhava. ‘A idéia de brincar na ilha comegou um dia que Cedi ‘andow fugido de casa por causa do namorado da irma Cecil softia muito, todo rapaz que namorava Milila achava ‘de mandar nele, ele nem podia brincar diceto, vivia vigiado ‘Quando Milla comecou a namorar Zoaldo a vida de Cecil piorou, Zoaldo era muito bruto, s6 falava gritando. Nem Pedro Arcanjo, que ja tinka brigado com soldado, tirava farinha com ele, Uma vez brigaram no botequim 0 Cindide, Pedro Arcanjo puxou a garrucha, 0 povo todo saiu de perio, menos Zoaldo, Pedro gritou que corresse, uw —————_—_ Zoaldo nem nada, ¢ ainda ficou cagoando da garrucha, dizendo que era arma aleaide, arma de queijeico, que hoje fem dia em cidade s6 se usava tevélver chimite ou parabelo' Pedro Arcanjo chorava e repetia que corresse, sento ele virava assassine, © Candido entrou no meio, pediu Zoaldo que saisse um pouquinho 6 pra néo contrariar, Zoaldo disse que favor s6 fazia pra quem merecia, ¢ assim mesmo quando tinha vontade, Quando Pedro Arcanjo id tinha chorado bastante, e olhava a garrucha na mao sem saber 0 que fazer dela, ¢ todo mundo em volta jé ria sem medo nenhum, Zoaldo chegou perto. Falow manso como amigo, Pedro voct j& brincou bastante, agora me di pra uardar, e sem esperar foi tomando a garrucka e tocando Pedro pra fora a empurries, ¢ se ele no corresse teria apanhado muito, Quando Pedro jé ia longe Zoaldo voltou ppra dentro do botequim dizendo que ia fazer uma rifa da garrucha a um mibréis 0 nimero, com © dinheiro ia com- rar uma botina de cano de casimira. Pediu papel ao Candido, esereveu os nimeros, muita gente foi assinando e botando pg. ali mesmo. [Nos primeitos dias do namoro Zoaldo dew uma surra em Cedil por causa de ums malcriagio que ele fez pra Milla, Cedi estava brineando com outros meninos no bar- ranco perto da casa, Milila ‘chegou na janela e chamou. Ele disse que jé ia e ficou brincando. Ela chamou de novo, cle disse pra no amolar, Zoaldo desceu a calgada da casa fe veio vindo, parecia que ia embora. Mas quando passou perto de Cedil deu um bote ¢ agarrou o ecitado pelo can- gote, levou pra dentro debuixo de tapa e li ainda batew com 0 cinturdo. Quando Cedil contou isso Tenis escachou com ele, disse que ele era um pamonha, mais apanhasse pra deixar de ser bobo. 1 Retetncla dois tipos alemtes de revélver: Schmist e Parabélum. WE) ie — Se forse comigo — disse — eu sentava um trem nna cara daquele trelente ‘Vocé fala assim porque tem pai que pune por voc — respondeu Cedi E sua mle, por que no pune? Ai Cedil contou com muita tristeza que a mie dele cestava na cozinha moendo café quando ouviu a zoeira; veio ver, ficou olhando © no fez nada, sé dizia meu filho, meu filho, coitadinho de meu filho. Depois que Zoaldo bebeu 0 café e foi embora cla velo agradar, pés arnica nos lanhos, fez beiju pra ele comer com lite antes de deitar, mas ele disse que de pirraga nio quis. No outro dia cedo cla foi na loja e comprou um canivete Cometa pra dar de surpresa a Cedil, era o bringuedo que ele mais queria Cedil ficou meio envergonhiado com 0 que Tenisio «disse, mas explicou que a mic dele era muito boa, s6 que fera nervosa ¢ nfo gostava de questao, Depois disso Zoaldo niko deixou mais Cedil ter des- canso, Vivia mandando 0 coitado na rua fazer isso € aquilo, levar e buscar cavalo no pasto, e volta © meia enfieva o couro nile, Dizia que era para desasnar. No dia que o cavalo fugiu Cedil apanhou demais mes: mo. Ele tinha ido cedinho no pasto e s6 voltou depois do almogo — e de mio abanando. Contou que o cavalo tinha se amadrinhado com a égua de um tropeiro ¢ destampado com ela pelo morro acima, nao deixava chegar perto. Zo- aldo sapateou de raiva, disse que era mé vontade de Cedil pra atrapalhar o ganhame que ele ia ter aa viagem com 0 agrimensor. Tomou 0 cabresto da mio de Cedil com ele mesmo foi batendo sem olhar lugar. Cedil correu pedindo 6 socorto da mie, Zoaldo atts dando cabresteda. A mae de Cedil corren para o quarto, fechou a porta ficou rezan- do tio alto que de fora se ouvia ‘Quando eu vinha da escola encontrei Cedi sentado no parapeito atrs da igreja com as pernas todas lanhadas, S chorando e riseando a peda com um earvio. Néo estava pintando nem escrevendo nada, era s6 rabisco, Perguntci or que no tinha ido & escola, respondeu que nao ia mais, rhunca mais, e me contou a histéria do cavalo. Disse que nio adiantava ir & escola porque estava resolvido a fugir. Nio sabia pra onde, mas ia fugir de qualquer jeito, estava esperando um caminhio pra pular em cima. Eu disse que entio ele ia passer apertado com os indios. — Ques indios? — ele perguntou. Eu disse que todo caminho que passava ali ia para 0 Norte, e que meu pai tinha falado que no Norte dava muito indio feroz. Ele ficou tristinho, pensando, depois pergun- tow uma coisa bobs, de gente que esti’ mesmo muito dess- corgoado: perguntou se afogar doia, se a gente ficava deses- perado como quando esté mergulhando em pogo fundo © 0 flego acaba. Eu disse que afogar era horrivel, que no sitio de minha vé morreu um menino afogado, 0 Zuze- zinho, ficou de olhos estofades como sapo, et passed muitas noites sem dormir, com medo dele. Era horrivel. Cedil, pensou, & perguntou se se ele fosse viver no mato eu mais Tenisio ia todo dia brincar com ele depois da escola. Eu disse que a gente levava facdo, cortava pau pra fazer casa, Jevava mantimento, fazia cagada com espingarda de cano de guarda-sol, Tenisio estava trabalhando uma, s6 faltava colocar 0 tufo quando achasse jeito de derreter chumbo sem a mie dele ver. — EB a gente escala sentinela, inventa senha, ning passa sem dar 2 senha — disse ele animado, parece que ja esquecido da surra Eu disse que ino carecia de senha nem de sentinela, isso era mais pra de noite, como no tempo dos revoltosos, de noite eu nfo podia ir, ¢ achava que Tenisio também rio, Fle perguatou se minha mae ficasse ruim pra mim ¢ desse de me bater se eu nfo resolvia fugir também; eu disse ‘que ai podia ser, mas era preciso pensar. ae ‘Nessa hora apareceu Tenisio rodando um cubertio® velho, brecou © bicho com o pé bem diante de nés, Fala- mos com ele e ele achou que 0 melhor lugar era a ia. La ninguém ia, 0 mato era fechado na beira da gua, mas vvarando 0 mato o resto era limpo, dava muito card e sangue- ~ie-cristo. Nao tinha era canoa, & que costumava ter tinham tirado, com certeza justamente pra menino néo atravessar, jjeito era fazer uma jangada de toro de bananeira Fazer a jangada foi facil, manejar a bicha € que dew paca. Nio fizemos direito, pusemos os toros com a ponta mais grossa para um lado 6, era tao facil ver que nio dava certo, mas ninguém reparou, acho que foi a pressa de botar na 4gua. Dentro da agua ela teimava em afundar nna parte de trés, chegamos pra frente e ela afundou 2 frente pra igualar. Chegamos na ilha escandalosamente molhados da cintura para baixo, [No primeiro dia fineamos as estacas da casa, amarra ‘mos as traves e cortamos uma bracada de varas para tran- far as paredes, Cedil queria fazer uma parede de qualquer jeito, com ramo de assi-peixe mesmo, sé pra poder dormir 4 primeira noite. Enguanto ele varria 0 cho da casa muito entusiasmado eu sai com Tenisio e combinamos que era preciso desistir Cedil de fugir improvisado; a gente primeiro fazia uma casinha caprichada, com jirau e tudo pra dormir, depois ele mudava pra cla se ainda tivesse inclinagio. Ceail tinha esquecido a contrariedade, tinha brincado © dado risada, tinha até corrido atris de Teniso com uma cobra na ponta de um pau, ameacando jogar nele; mas quand falamos que era hora de voltar, que de jeito nenhum ele devia de ficar, ele caiu na tristeza de novo, fazia tudo com moleza, até caminhava sem vontade, como a gente faz quando tem de recitar em festa de escola Depois que a casa ficou pronta 0 nosso bringuedo era 6 na ilha. Eu nem queria mais almogar quando voltava Poca, em expresto antiga. (E.)

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