MARTIN HEIDEGGER
CONFERENCIAS E
ESCRITOS FILOSOFICOSNoTA DO TRADUTOR
Em nossa época observamos um proceso de despersonalizagdo do filosofar. Em
consegiiéncia, a figura do pensador solitério, que empolga e arrasta as massas académi
cas, perde em importancia ou tende a desaparecer. Em seu lugar aparecem os trabalhos
coletivos e a filosofia assume o papel de regulador de um fecundo labor interdisciplinar.
Heidegger tera sido uma das iiltimas grandes figuras que, contra sua vontade pes
soal, fornou-se um ponto de partida para diversos debates decisivos no cendrio da filoso-
fia académica do séeulo XX. E verdade, 0 fildsofo foi a testemunka de uma época; mais
‘pelo contetido de suas andllises, que pelo estilo pessoal de comportamento. Retirado na
provincia, irradiou, através dos alunos de muitos patses do mundo, que o vinham procu-
rar, una temédtica que se matizaria, de acordo com os ambientes para onde era levada.
Situado entre as duas grandes guerras, envolveu o motivo central de sua interroga-
¢do com uma linguagem muito ao gosto da época e com andlises hist6ricas e existenciais,
que pareciam refletir a angtistia do mundo de entao. O jargdo expressionista e o elemento
patético de certos temas de sua obra capital, Ser ¢ Tempo. foram tdo rapidamente assimi-
Jados que terminariam encobrindo a questéo, central que movia as intengdes do filésofo:
4 questdo do ser. Néo foi esta, mas aspectos existenciais, antropoldgicos, éticos que for.
‘maram a moldura em que foi recebido Ser e Tempo, antes e sobretudo, apos a Il Guerra
Mundial.
Para melhor compreender a posiedo do pensador e de sua obra, convém situd-lo na
vertente de uma idéia que nasceu com Dilthey e Nohl, e se bifurcou em dois tracos anta-
génicos, que ainda hoje correm paralelos, sem esperanca de uma confluéncia. De Dilthey
e Nohl receberam Heidegger e Carnap a idéia da superacdéo da Metafisica. Tomada
como tarefa, esta idéia desdobrou-se, de maneira bem diferente, nos dois filésofos, geran
do, nos seus seguidores, duas tendéncias separadas por barreivas intransponiveis até hoje.
Heidegger, por influéncia dos contatos com a erttica de Nietzsche ao platonismo e
cristianismo e com a polémica de Kierkegaard com a filosofia reflexiva do idealismo
especulativo, moldou uma forma muito original de superacdo da Metafisica. O filésofo
convenceu-se de que, até 0 seu tempo, toda a histéria da ontologia ndo passara de uma
teologia e que, com os neokantianos, caira numa teoria do conhecimento.A Metafisica
era esta hist6ria da ontologia como onto-teo-logia. Heidegger propds uma ontologia
fundamental que, através de uma analitica exisiencial, preparasse um modo de colocar a
questdo do ser. Enido, conduzido pela andlise do tempo, procederia a uma destruigdo da
ontologia da tradi¢do, superando, assim, a Metafisica. Num processo regressivo, o fil6-
sofo realizou, utilizando-se de um método fenomenoldgico husserliano radicalizado ¢
transformado, um adentramento nas camadas da existéncia, de um lado, na hist6ria da
filosofia, de outro. Ambas as incursdes revelaram a questdo esquecida: a questéo do ser.
"A temporalidade como sentido da preocupagdo que constitui o ser do ser-at tornar-se-ia202 NOTA DO TRADUTOR
0 horizonte para a interrogagdo do ser; e a questdo do ser fora precisamente esquecida
por wna falsa solugao dada ao problema no tempo na hist6ria da Metafisica ocidental.
Deste modo, Heidegger move-se sempre em dois niveis; ao nivel da andlise da exis-
téncia e ao nivel da andlise da historia da filosofia. Seu método the permite este modo
paralelo e reciprocamente imbricado de interrogagdo, Pois conduz-se no modelo bindrio
de velamento e desvelamenio: hé um encobrimento radical, ao nivel da existéncia, ¢
outro, ao nivel da historia da Metafisica. Este encobrimento vela a questiéo do ser-no
plano da existéncia e no plano da histéria. A superacdo da Metaffsica mostrard que 0 ser
sempre se vela no ente e que o homem tende a esquecer este velamento. Importa pensar
0 ser velando-se sempre e ndo propriamente expd-lo a luz da objetivacdo, 0 que seria
‘Confiundi-lo com o ente.
Carnap entenderia de maneira bem diferente a questiéo da superagdo da Metafisica.
Props sua solugdo no conhecido ensaio de 1932: Superagao da Metafisica pela Andlise
Légica da Linguagem. Todo 0 movimento neopositivista, inspirado em Frege, levado
avante por Wittgenstein através do Circulo de Viena, encaminka-se nesta diregéo: a
Metafisica constitui-se de proposigées destituidas de sentido. A anélise ldgica de suas
proposi¢ées levard @ sua superagéo. Realizada esta tarefa, o pensamento neopositivista
envereda pelo caminho fecundo do pensamento ldgico e da filosofia das ciéncias.
Enquanto a filosofia das ciéncias pée todo 0 seu empenho em promover a atividade
cientifica na era da técnica, através dos subsidios indispensaveis da reflexdo metodold
gica, Heidegger vé, em todo este processo, um signo do esquecimento do ser. Sua erftica
4 inelutdvel invasiéo do planeta pelo dominio da técnica ndo deve ser vista como postura
anticientifica ou simplesmerite reacionéria e pessimista; ele quer salvar um espaco essen-
cial para 0 humano, que ndo pode ser dissolvido no processo tecnocratico, e nisto coin-
cide singularmente com pensadores neo-hegelianos € neomarxistas. Quando afirma que
“a ciéneia ndo pensa”, néo 0 faz como uma critica, mas como uma constatagao do que
é a estrutura interna da ciéncia. Heidegger reconhece o fendmeno da autonomizagéo das
ciéncias do ambito da filosofia como um acontecimento inevitével e que nao possui nada
de negativo. O que ele quer impedir é que a razéo se instrumentalize inteiramente e perca
a visdo do todo. Também para Heidegger esté morta a possibilidade de wma filosofia pri.
meira, no sentido classico, ¢ com isto libertou ele o homem e a obra humana de modelos
cosmolégicos superados.
A recepedo das idéias de Heidegger, sobretudo na América Latina, lamentavel-
mente se orientou no sentido de compreendé-lo como restaurador de uma filosofia pri-
meira e dos mitos ontolégicos superados.
Nao apenas pelas influéncias que recebeu, também pelo sentido de abordagem de
sua temdtica, pelas vivéncias pessoais, pelo nivel de consciéncia politica e pelo contexto
historico em que se situava, mas sobretudo pelas pretensées falsas de uma problemati-
zagdo e tematizaedo certas, revela Heidegger tragos reaciondrios. Nao é sua passageira
adeséo a0 nacional-socialismo, cujas implicagdes bem cedo reconheceu que deve ser
vista como iinico elemento de peso no julgamento de sua posi¢éo politica. Hd uma certa
sobranceria que the vem da consciéncia de ser “o pastor do ser que o torna vulnerdvel
quando se-trata de fazer ju‘z0s histéricos que tém a ver com 0 aqui e agora. Move-se no
plano do ser e, a quem se move apenas neste plano, a asticia da razdo mostra muito cedo
que the faltard 0 senso da proporedo para as coisas humanas, senso que s6 poderé advir
de um conhecimento cieniffico das diversas regides dos enies. A tentacéo de apresentar-
fewla. E Heidegger nem
se como profeta, enquanto se é fildsofo, além de absurda é rid