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AMUSICA, O CORPO E AS MAQUINAS* Fernando lazzetta Como se explica 0 fato de que quando alguém ouve voluntariamente uma musica com seus ouvidos @ sua mente, ele também se volta involuntariamente a essa musica de modo que seu corpo responde com movimentos de algum modo similares & musica owvida? (Boethius, 1989: 8). RESUMO; Artigo analisa de que maneira o surgimento das tecnologias elétricas, eletrénicas e digitals no decorrer do século XX vao alterar os modos. de produgao musical. O primeiro ponte levantade refere-se ao fate de que com o desenvolvimento de aparelhos como 0 fondgrato @ o gramofone, a performance da lugar reprodugaa mecdnica da musica ¢ a instituigio do concerto € substitufda pela escuta individual. Essa mudangas véo apontar para a importancia da materialidade e corporalidade na performance musical. So também analisades o papel do.gesto como velculo de significagao musical e,tinalmente, o impacto que a miisica eletroactistica e o uso de computadores causaram nos modas de produgdo e recepgao musical. Técnica e tecnologia so dois aspectos da cultura que sempre estiveram profundamente envolvidos com a musica, ndo apenas no que diz respeito a sua produgao, mas também em relagéo ao desenvolvimento de sua teoria @ ao estabelecimenta de seu papel cultural. Entende-se técnica, aqui, como os processos e métodos desenvolvidos para a realizagdo de uma determinada tarefa. Por sua vez, tecnologia refere-se as ferramentas, conceituais ou materiais, utilizadas nessa realizagéio. Instrumentos musicais podem ser vistos como extensdes tecnolégicas de nossas habilidades de produzir sons. Porém, 6 necessario que se desenvolvam técnicas para manipulagéo desses aparatos tecnolégicos para que se alcance os resultados desejados. * OPUS, Rio de Janeiro, v. 4, n. 4, ago. 1997, a7 Com a chegada do século XX a relagao entre musica e tecnologia se mostra mais intensa devido a uma série de fatores, entre eles, o aumento do conhecimento acetca de aspectos fisicos e cognitivos do som, 0 acesso & energia elétrica baratae a aplicagao das tecnologias eletronica e digital na geragao sonora artificial. Até entao, os Sons utilizados na mtisica eram fruto de um mesmo tipo de processo mecanico, Os instrumentos musicais como o cravo, a rabeca, a voz, ou 0 plano, apesar de suas formas variadas, baseavam-se em um mesmo principio de produgéio sonora: até © século passado todo sem era proveniente da vibragao de algum material eldstico (as cordas de um violdo, a palheta de um oboé, as teclas de uma marimba) que gerava ondas que se propagam pelo.ar até atingirem o sistema auditivo do ouvinte, Entretanto, © surgimento de novas tecnologias baseadas na eletricidade e o uso de sinais eletromagnéticos abriram a possibilidade da geracao de sons sem a utilizagao de instrumentos mecdnicos. Embora as ondas sonoras que atingem nosso aparelho auditive possuam a mesma natureza, sejam elas provenientes das batidas de um tambor ou dos osciladores eletrénicos contidos em um sintetizador, seus processos de produgdo so radicalmente diferentes. Por um lado ha o universo concreto, visivel @ mec&nico dos instrumentos tradicionais, onde os corpos (do insirumento @ de quem a toca) envolvidos e seus movimentos estao intrinsecamente relacionados ao resultado sonora obtida: as cordas tensas e curlas de um violino vibram mais rapido, porém com menos energia que as cordas mais longas e flacidas de um contrabaixo, que exigem a aplicacaéo de mais forca do instrumentista. Apesar de sua semelhanca em termos de forma, esses dois jinstrumentos, violino e contrabaixo, comportam-se de um modo distinto, em fungao da contormagao fisica e dimens4o de seus componentes. Também o instrumentista esta sujelto as limitagSes e possibilidades impostas pela fisica desses instrumentos ao mesmo tempo que os controla com uma técnica que as vezes beira os limites da capacidade humana, impanda os movimentos © gestos de seu préprio corpo, sobre 0 corpo do seu instrumenta, Per outro lade, com o advento da eletricidade e da eletr6nica, inais e mais passamos a ouvir e conviver com sons provenientes de corpos invisiveis contides nes circuitos de sintetizadores, samplers, gravadores magnéticos 6 computadores. Durante milénios as pessoas aprenderam a ouvir sons que quardavam relagdes estreitas com os corpos que os produziam, Subitamente, tada a experiéncia auditiva acumulada em um longo processo de evolugao da cultura musical é transformada pelo surgimento dos sons eletrénicos. A audicao desses sons nao revela as relagdes mecanicas, concretas e aparentes dos instrumentos actisticos tradicionais, ja que estes so gerados através de processos elétricos, invisiveis & nossa percepgo. Sao sons novos € extremamente ricos, mas ao mesmo tempo, conflituasos, ja que vem desvestidos de qualquer conexao com corpos ou gestos. Até o advento dos sistemas de gravagdo neste século, o contato com musica se dava primordialmente através da performance, O ouvinte, mesme que nao envolvide diretamente com a produgdo sonora, participava da realizagao musical ao reconstruir interamente, néo apenas seqéncias de notas produzidas pelos instruments musicais 28 ou as estruturas formais da composig4o, mas todo o universo gestual que os acompanha, pois a musica era fruto dos compos que a produzem e era impossivel, para 0 ouvinte, ficar alheio @ presenga desses corpos. Um exemplo da forca que existe nessa conexio entre o som e as imagens que acompanham a geragao desse som esta no artificio da utilizagao do “musico fora de cena” que tem sido usado desde os mistérios sacros da dade Média, até as sinfonias de Mahler ou os dramas de Wagner. Ao se criar uma situagae anormal, quase fantastica, fazendo com que se ouga o som sem que se veja o corpo que o produz, 6 realcado © cardter magico da figagao entre aquilo que se ouve ¢ aquilo que se vé. 1880 porque a presenga do musico e do instrumento no ato da performance representam algo por si mesmas, A realidade fisica, biolégica e social dessa presenga empresta & performance musical, tao imaterial e intangivel, uma espécie de materialidade. O corpose expressa ao produzir musica através do gesta, mapeanda o yisivel e o audivel dentro de uma mesma geografia. Em uma obra recente, Richard Leppert (1993) explora de moda bastante criativo a relagdo entre aquilo que se ouve & aquilo que 5e yg em musica através da andlise de diversas pinturas cujo tema central é a situagao de performance musical. Leppert aborda a miisica de um modo indireto: sua andlise parte de pinturas de diversos artistas e épocas representando situagdes de performance musical para mostrar o quanto se pode ver na musica e que os componentes imagéticos da linguagem musical po ‘ser de importancia fundamental no processo de compreensao de seu préprio discurso. Para o autor, musica é algo notadamente corpéreo: “Justamente porque 0 som 6 abstrato, intangivel e etéreo [...] a experiéncia visual de sua producdo 4 algo crucial para que, tanto os misicos quanto a audiéncia, possam situar e comunicar o lugar da musica e do som musical dentro da cultura e da sociedade[...] A musica, apesar de sua eterealidade sonora, & uma pratica corporal, como a danga ou a teatro." (Leppert, 1993: xxi), E interessante notar que essa dimensao gestual da musica $6 vem @ tona muito recentemente A medida que essa dimensdo desvanece com o surgimento da musica eletrénica e dos meios de gravagao e reprodugao, 08 quais modificam ou, por vezes, eliminam completamente a existéncia da performance. Ao mesmo tempo em que as tecnologias reprodutivas (0 radio, o disco, ou o CD) passam a dominar no Ambito sociocultural os processas que envolvem a produgdo e recepgao da misica, duas alterapSes se processam paralelamente. MUSICA MECANIZADA A primeira alteragao refete-se ao deslocamento da énfase no processo de produgae (composi¢ao ¢ interpretagao) para a recepeao (audio) como experiéncia 29

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