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Ferdinand de Saussure Escritos de Lingiiistica Geral Organizados e editados por a Simon Bouquet e Rudolf Engler . com a colabora¢ao de Antoinette Weil Tradugdo CARLOS AUGUSTO LEUBA SALUM ‘ANA LUCIA FRANCO ‘9BD-FFLCHUSP ‘ing EDITORA CULTRIX Si Paulo. 128 ‘Outros Escritos de Lingiifstica Geral cescudar, em si mesmo, o fendmend da linguagem, seja nas manifestagdes diversas, seja em suas leis gerals, que poderdo ser deduzidas apenas de suas formas particulares? — tal é, se 6 para indicé-o de maneira totalmente clara fe categérica, o terreno em que se coloca, atualmente, a ciéncia da lingua- ‘gem. Pode-se considerar alinguagem ou a Iingua como um objeto que pede, por si mesmo, esse estuco? Tal éa questo que se coloca, Eu nfo a discuto. Eu lhes dire, Senhores, que se recusou & nossa pobre espécie humana, como caracteristica distintiva em face de outras espécies animais, tudo, ¢ absoli tamente tudo, incluindo af o instinto de industria, incluindo af a rligiosida- de, a moralidade, ojulgamento e a rardo, tudo, exceto a linguagem, ou como se diz, a fala ariculada, sendo 0 termo articulada, no fundo, um termo obs- curo ¢ muito vago, ao qual eu faco todas as reservas. Eu nad ignoro que, neste momerito, muitas espécies de macacos, como anunciam os jornais, cestio em vias de disputar conosco esse ltimo flordo da nossa coroa, alin- ‘guagem articulada, ¢ nfo discuto quais os titulos desses macacos que po- dem ser, eu admito, dignos de consideragdo. O que é claro, como se repetiu mil vezes, é que o homem sem alinguagem seria talvez, ohomem, mas ndo tum ser que se comparasse, mesmo que aproximadamente, ao homem que nds conhecemos e que nés somos, porque a linguagem foi, por um lado, 2 ‘mais formidével ferramenta de aso coletiva e, por outro, de educacao indi- vidual, o instrumento sem o qual o individuo ou a espécie jamais poderia aspirar a desenvoiver, em algum sentido, suas faculdades nativas 525-85) gui se apresenta esta objerdo, para nés, mais ou menos funda- imentada: vocés transformam o estudo das linguas em estudo da linguagem, da linguagem considerada como faculdade do homem, como tum dos signos distintivos de sua espécie, como caracteristica antropolégica ou, por assim iizer, zooldgica. Senhores, seria necessdrio um tempo considerdvel para expor esse ponto, desenwvolvé-loe justificar meu ponto de vista, que nfo € diferen- te do ponto de vista de todos 0s linglistas atuais: que, com efeito, o estudo da linguagem como fato humano esti todo ou quase todo contido no estudo das linguas. O Sisiologista, o psicdlogo e 0 logicista poderdo dissertar longamente, o fil6sofo poders retomer, depois, os resultados combinados da légica, da psicologia e da fsiologia, mas, eu me permito dizer, os mais clementares fenémenos da linguagem jamais serdo vislumbrados, lem cla- ramente percebidos, clasificados e compreendidos, se nao se ecorrer, emt primeira e em dltima instanca, ao estudo das linguas. Lingua ¢ linguagem fo apenas uma mesma coisa: uma é a generalizagao da outa. Querér estt- dara linguagem sem se dar 20 trabalho de estudar suas diversas manifésta- Ges que, evidentemente, so as linguas, € uma empreitada absolutamente inGtil e quimérica; por outro lado, querer estudar as linguas esquecendo que elas sao primordialmente regidas por certos principios que esto resu- Antigos Documentos 128 midos na idéia de tinguagem & um trabalho ainda mais destiuido de qual- Tee can de qualquer base cientifica valida. - studo geral linguagem se alimenta inces: nte, igulae: cbeecvichis da ota tipo que terio sido ae pene lar de tal du tal lingua. Supondo que o exercicio da fala constitua, no ho- ‘mem, uma fungao natural, o que é um ponto de vista eminentemente flso fem que se colocam certas escolas ce antropologistase lingiista, seria pre. ciso, ainda assim, sustentar absolutamente que 0 exercicio dessa funga0 86 é abordavel pela ciéncia pelo lado da lingua ou pelo lado das linguas existenes, ‘Mas, reciprocamente, © estudo das linguas existentes se condenaria a ‘permanecer quase estéril, a permanecer, em todo caso, desprovido, ao mes- mo tempo, de método e de qualquer principio diretor, se nao tendesse cons tantemente a esclarecer 0 problema geral da linguagem, se nfo procurasse destacar, de cada fato particular que observa, o sentido € 0 proveito claro que dele resultam para o conhecimento que temos das operacses possivels do instinto humano aplicado a lingua. ***""** E isso nao tem uma signi: ficasao vaga e geral: qualquer pessoa um pouco versada em nossos estudos sabe com que alegria e triunfo cada pesquisador chama a atengao para um caso te6rico novo a0 descobri-lo seja onde for, no iltimo de nossosdialetos uno mais infimo'idioma polinésio. £ uma pedra que ele was no eifciog que nio sera destruida. A todo instante, em todos os ramos da ciéncia das linguas, todos estéo sobretudo ansiosos, atualmente, para tomar piblico 0 4que pode interessar@ linguagem em geral. , fenémeno notével, as observa- fe bias que raze aquels qv concenaram Sus etudos et m ecial, como o germanico, o romanico, sio muito - série maior de linguas. Percebe-se que-o tiltimo detalhe dos fendmenos é também sua razfo iltima e que, assim, a extrema especializaco pode servir eficazmente & extrema generalizacéo. Nao sfo lingtiistas como Friedrich ‘Miiller, da Universidade de Viena, que abracam quase todos os idiomas do slobo, que fazem avangar 0 conhecimiento da linguagem; mas, os nomes que se deveria citar neste sentido seria nomes de romanistas como ‘Gaston =e a re ‘Schuchardt, nomes de germanistas como Hermann Paul, mes da escola russa que se ocuy ; como N.Bridouin de Courteney Kruse ( ponto de vista a que chegamos, Senhores, e que 6, simplesmente, 0 Ponto de vista em que se inspira, sem excegio, o estudo das linguas, en toxios os seus ramos, faz ver muito claramente que ndo hd separagio entre o cstudo da linguagem ¢ 0 estudo das linguas, ou o estudo de tal on tal lingua Ou familia de Iinguas; mas que, por outro lado, cada divisao e subdiviséo de lingua representa um-documento novo, interessante como qualquer outro

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