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Introdução
O recente incremento do estudo dos vestígios da presença judaica em
Portugal tem avivado o interesse por todos as marcas e monumentos
existentes nos centros históricos das antigas Vilas, que de alguma forma
possam estar associados a estas primitivas comunidades. À falta de
outros objectos ou representações de origem nitidamente hebraica, na
pedra, no metal, na cerâmica ou em pergaminho, tem-se falado muito de
cruzes, concavidades ou rasgos longitudinais nas ombreiras das portas,
e também dos nichos de pedra encastrados nas paredes interiores das
moradias que são interpretados como os armários sagrados da liturgia
judaica – denominados por aron hakodesh entre os judeus Asquenazi
ou hekhal entre os Sefarditas (Katz, 2007: 5).
A popularidade que estes traços de religiosidade judaica
têm ganho ultimamente, sobretudo ao nível da divulgação das rotas
turísticas e patrimoniais, permitiram que tomássemos conhecimento
da existência de três destes famosos armários de pedra no concelho do
Sabugal.
O caso mais falado ocorreu na recentemente restaurada Casa
do Castelo do Sabugal, onde a sua proprietária decidiu preservar um
armário detectado no interior da moradia devoluta, após a reabilitação
do imóvel, dando-lhe enorme realce e visibilidade, o que tem trazido a
esta cidade, curiosos e estudiosos do fenómeno judaico.
Com a visita de alguns destes especialistas e a respectiva
troca de informações, constatámos que existem muitas incertezas
sobre esta matéria, evidenciando a relativa ignorância a que se tem
votado o estudo e a análise deste mobiliário arquitectónico. A própria
bibliograa especíca que existe sobre a presença judaica em Portugal
(elencada no nal deste texto) concede poucas linhas ou é quase omissa
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Descrição
1. Armário da Rua D. Dinis, 6 (Sabugal 1)
O armário situa-se numa parede
interior, na mieira da casa, que dá para as
traseiras do imóvel. Fica no 1º andar, ao
cimo das escadas, encostando do seu lado
direito à parede poente deste diminuto
edifício. Está virado para SSE.
É constituído por treze blocos de
granito trabalhado que de nem dois
nichos de contorno rectangular , sendo
o superior rematado em arco ab atido.
O compartimento inferior apres enta
a base completamente rebaixada (2,5
cm), um vazadouro frontal e possui duas
marcas circulares de desgaste (Ø 13 cm).
As ombreiras são cortadas em b isel e
encontra-se totalmente emoldur ado
por cordão e lete estreito (actualmente
pintados a cor cinzenta). Um d os blocos
da moldura lateral direita enc ontra-se
invertido, talvez por incúria do escultor. Não possui vestígios de utilização de
porta, mas talvez de uma corti na, pelos dois orifícios de co ntorno triangular
(3X2,5 cm), existentes nas esquinas do topo do armário, para provável colocação
de um varão. (Figura 2)
Altura: 141 cm, largura 93 cm, profundidade 40 cm
Proprietário: João Cardoso (Sabugal).
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Análise comparativa
Estes três armários pétreos, apesar de serem relativamente distintos
entre si, foram construídos com um propósito funcional semelhante e
através de processos construtivos comuns.
Ambos empregam grandes blocos de cantaria de granito
trabalhado (entre 9 a 15 elementos), montados e embutidos na
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Figura 1 – Mapa do Sabugal e de Vilar Maior com a localização dos imóveis com os armários
referidos no texto.
nalguns casos, revestir-se de maior esmero e cuidado, ao sabor do gosto
e das capacidades nanceiras do proprietário.
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Figura 2 – Planta, alçado frontal e corte do armário da Rua D. Dinis do Sabugal (Sabugal 1).
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Figura 3 – Planta, alçado frontal e corte do armário da Casa do Castelo do Sabugal (Sabugal 2).
cronologias comuns dos armários, conrmando-se a origem judaica,
podem colocar-nos «perante um inédito testemunho da resistência
que certas comunidades sefarditas ofereceram ao decreto régio, não
abandonando o reino mas também não abdicando das suas convicções
religiosas mais profundas» (Barroca, 2001: 195).
A localização do hekhal da Rua D. Dinis seria mais coincidente
com uma lógica de culto clandestino e privado, do que o armário da
Casa do Castelo, situado no Largo principal do burgo, defronte da Igreja
da Senhora do Castelo, a não ser que este tivesse uma cronologia mais
antiga, numa altura em que ainda não havia necessidade de esconder
a fé. Tal como em Castelo Mendo, o armário da casa manuelina do
Sabugal situa-se num ponto periférico na trama urbana do centro
histórico, perto de uma das portas da muralha (Barroca, 2001: 195).
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Figura 4 – Planta, alçado frontal e corte do armário da Rua da Costa de Vilar Maior.
Considerações nais
Alguns autores que se debruçaram sobre os armários judaicos têm vindo
a expressar as suas diculdades na classicação destes monumentos,
pois levantam «problemas de datação e compreensão» (Balesteros
e Oliveira, 1993: 139), ou negam simplesmente qualquer conotação
judaica (Rodrigues, 1999).
Considerando os pressupostos aqui expressos, também não
podemos asseverar com segurança que estes três armários do Sabugal
são de culto judaico. No entanto, essa possibilidade não se pode excluir
liminarmente. Faltam mais elementos para que possamos garantir
ou excluir a natureza religiosa dos monumentos em questão. O nosso
conhecimento actual destas práticas cultuais antigas é limitado,
sobretudo acerca dos contornos deste fenómeno em meios periféricos
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Notas:
(1) Curiosamente, este pormeno r arquitectónico apenas se repete na laje que separa
os dois nichos do armário da propalada sinagoga recentemente descoberta na
cidade do Porto (Josué, 2005).
(2) Em memória da Arca da Alia nça do Êxodo do povo de Israel (ver Livro do
Êxodo 25:10).
(3) Preferimos usar, de agora em diante, o termo sefardita hekhal sempre que
nos referirmos ao armário sagrado dos judeus peninsulares, porque foi esta a
comunidade que aqui residiu durante a Idade Média e Época Moderna.
(4) Práctica também seguida pe lo Cristianismo na orientação da capela-mor e do
altar das igrejas.
(5) Sabemos que um dos armário s da Guarda foi transferido de uma parede norte
do 1º andar do imóvel para a parede leste do rés-do-chão desse mesmo edifício
(Marques e Fernandes, 2004: 272 e 273). Também o armário do Sabugal 2, após
as obras de reabilitação do imóvel, foi recolocado na cave, embora preservando
a mesma orientação.
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