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SABUCALE

Armários de pedra na arquitecura tradicional do Alto Côa.


Testemunhos de culto judaico?
M arc os Osório

Introdução
O recente incremento do estudo dos vestígios da presença judaica em
Portugal tem avivado o interesse por todos as marcas e monumentos
existentes nos centros históricos das antigas Vilas, que de alguma forma
possam estar associados a estas primitivas comunidades. À falta de
outros objectos ou representações de origem nitidamente hebraica, na
pedra, no metal, na cerâmica ou em pergaminho, tem-se falado muito de
cruzes, concavidades ou rasgos longitudinais nas ombreiras das portas,
e também dos nichos de pedra encastrados nas paredes interiores das
moradias que são interpretados como os armários sagrados da liturgia
judaica – denominados por aron hakodesh entre os judeus Asquenazi
ou hekhal entre os Sefarditas (Katz, 2007: 5).
A popularidade que estes traços de religiosidade judaica
têm ganho ultimamente, sobretudo ao nível da divulgação das rotas
turísticas e patrimoniais, permitiram que tomássemos conhecimento
da existência de três destes famosos armários de pedra no concelho do
Sabugal.
O caso mais falado ocorreu na recentemente restaurada Casa
do Castelo do Sabugal, onde a sua proprietária decidiu preservar um
armário detectado no interior da moradia devoluta, após a reabilitação
do imóvel, dando-lhe enorme realce e visibilidade, o que tem trazido a
esta cidade, curiosos e estudiosos do fenómeno judaico.
Com a visita de alguns destes especialistas e a respectiva
troca de informações, constatámos que existem muitas incertezas
sobre esta matéria, evidenciando a relativa ignorância a que se tem
votado o estudo e a análise deste mobiliário arquitectónico. A própria
bibliograa especíca que existe sobre a presença judaica em Portugal
(elencada no nal deste texto) concede poucas linhas ou é quase omissa

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acerca dos armários pétreos. Em todo o país, apenas se ouve falar de 4


ou 5 casos: Castelo de Vide, Castelo Mendo, Guarda, Freixo de Espada-
-à-Cinta, e mais recentemente, do Porto.
Todavia, a autoria judaica de todos estes armários pétreos
não está ainda irrefutavelmente provada, dado que não se consegue,
apenas por observação isolada ou por critérios de parecença, armar
tacitamente essa natureza. Somente através da reunião de um número
razoável de elementos liados a este culto e analisando exaustivamente
cada exemplar, quanto à dimensão, à morfologia, aos elementos
associados e à decoração; desenhando, fotografando, reunindo o
máximo de informação e confrontando com outros exemplares
conhecidos, seremos capazes de integrá-los no contexto das práticas
religiosas, mais ou menos secretas, das comunidades judaicas ou
apenas classicá-los com meras funções domésticas em qualquer
edifício medieval ou moderno.
Com este artigo desejamos apresentar três armários existentes
no Concelho do Sabugal, caracterizando-os e avaliando as diferenças e
semelhanças entre eles, deixando também alguns contributos para esta
discussão.

Descrição
1. Armário da Rua D. Dinis, 6 (Sabugal 1)
O armário situa-se numa parede
interior, na mieira da casa, que dá para as
traseiras do imóvel. Fica no 1º andar, ao
cimo das escadas, encostando do seu lado
direito à parede poente deste diminuto
edifício. Está virado para SSE.
É constituído por treze blocos de
granito trabalhado que de nem dois
nichos de contorno rectangular , sendo
o superior rematado em arco ab atido.
O compartimento inferior apres enta
a base completamente rebaixada (2,5
cm), um vazadouro frontal e possui duas
marcas circulares de desgaste (Ø 13 cm).
As ombreiras são cortadas em b isel e
encontra-se totalmente emoldur ado
por cordão e  lete estreito (actualmente
pintados a cor cinzenta). Um d os blocos
da moldura lateral direita enc ontra-se
invertido, talvez por incúria do escultor. Não possui vestígios de utilização de
porta, mas talvez de uma corti na, pelos dois orifícios de co ntorno triangular
(3X2,5 cm), existentes nas esquinas do topo do armário, para provável colocação
de um varão. (Figura 2)
Altura: 141 cm, largura 93 cm, profundidade 40 cm
Proprietário: João Cardoso (Sabugal).

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2. Armário da Casa do Castelo (Sabugal 2)


O armário estava, primitivamen te,
numa parede interior, de separ ação de
divisões da casa, no 1º andar, virado para
SSE. Hoje encontra-se no piso inferior
do edifício, com a mesma orientação.
É constituído por nove blocos de
granito trabalhado que denem dois
nichos perfeitamente quadrangu lares,
sendo o superior rematado em a rco
abatido ( gura 3). O inferior possui
duas cavidades circulares na base (Ø 15
cm), simetricamente dispostas, e uma
outra de menores dimensões, ju nto ao
rebordo exterior (Ø 7 cm). As ombreiras
são cortadas em bisel. Teve po rtas
individualizadas para cada nicho.
Altura: 151 cm, largura 76 cm,
profundidade 54 cm
Proprietário: Natália Bispo (Sabugal).

3. Armário da Rua da Costa, 5 (Vilar Maior)


O armário situa-se numa parede interior, de separação de div isões do
imóvel, encostando do seu lado direito
ao canto interior do compartim ento,
num edifício térreo. Está virado para a
porta de entrada, na direcção NO.
É constituído por quinze bloco s de
granito trabalhado que de nem três
nichos de contorno rectangular . O
superior é mais baixo, os restantes dois
são relativamente simétricos. O inferior
apresenta a base completamente
rebaixada (3 cm), com vazadouro para a
parte posterior. O compartimento mesial
tem a laje de topo inclinada para a parte
posterior ( gura 4). Não tem moldura,
nem possui vestígios de possuir porta ou
cortina.
Altura: 197 cm, largura 110 cm ,
profundidade 45 cm
Proprietário: Maria Del na (Vilar Maior).

Análise comparativa
Estes três armários pétreos, apesar de serem relativamente distintos
entre si, foram construídos com um propósito funcional semelhante e
através de processos construtivos comuns.
Ambos empregam grandes blocos de cantaria de granito
trabalhado (entre 9 a 15 elementos), montados e embutidos na

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parede de forma a criarem nichos com amplo espaço de arrumação.


Os dois armários do Sabugal têm maiores semelhanças pelo facto de
apresentarem apenas dois nichos, sendo o nicho superior rematado em
arco abatido.
O nicho inferior dos três armários parece ter a mesma
funcionalidade, talvez relacionada com a guarda/manuseamento
de recipientes com líquido, como se deduz das cavidades circulares
existentes na base desse espaço (Sabugal 2) e do rebaixamento da
base, com escoadouro frontal (Sabugal 1) ou para a parte posterior
(Vilar Maior). O armário Sabugal 1 apresenta também dois desgastes
circulares na laje inferior, provocados pela repetida utilização de um
objecto de base redonda (gura 2).
Existem, porém, diferenças entre estes três monumentos,
mais agrantes entre os do Sabugal e o de Vilar Maior, facto que pode
dever-se, entre outras coisas, a diferentes artíces.
Para além do armário de Vilar Maior ter três compartimentos
e os do Sabugal possuírem apenas dois nichos, também a inclinação do
topo do nicho intermédio do armário de Vilar Maior (gura 4) não se
repete nos armários sabugalenses (1).
O armário da Rua D. Dinis do Sabugal é o único que está
ricamente decorado, evidenciando preocupações estéticas pouco
comuns para simples mobiliário doméstico, com uma moldura de
cordão entrelaçado (gura 2), tipicamente Manuelina, que combina
com a decoração dos vãos da fachada desse imóvel.
Por m, só o armário da Casa do Castelo parece ter sido
feito com o intuito de levar portas (que talvez expliquem a natureza da
cavidade circular menor junto ao rebordo: gura 3), enquanto o da Rua
D. Dinis poderia ter um varão para uma cortina, a cobrir os nichos.
Um outro aspecto comparável prende-se com a orientação
dos armários: os do Sabugal estão, curiosamente, virados para o mesmo
lado (SSE) e localizavam-se ambos no 1º andar, enquanto o de Vilar
Maior ca num piso térreo e numa parede de orientação completamente
distinta (para NO).

Análise dos dados e hipóteses interpretativas


Numa simples observação preliminar, estes elementos arquitectónicos
serão apenas meros recessos na parede para arrumação doméstica. A
arquitectura tradicional beirã, mesmo em casos mais humildes, recorre
aos armários embutidos nas paredes, especialmente na cozinha, para
arrumos (Amaral et alii, 1988: 38-39 e 99). É frequente identicar
nichos de alvenaria de xisto ou granito, mais ou menos toscos,
encastrados nas paredes, com uma ou duas divisões separadas por uma
simples laje horizontal. É um costume que se repete e que poderia,

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Figura 1 – Mapa do Sabugal e de Vilar Maior com a localização dos imóveis com os armários
referidos no texto.
nalguns casos, revestir-se de maior esmero e cuidado, ao sabor do gosto
e das capacidades nanceiras do proprietário.

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Assim, com base nesta hipótese, considerar-se-ia que os


compartimentos inferiores se destinavam ao armazenamento de
cântaros de água – o que explicaria as cavidades e desgastes circulares
dos armários do Sabugal (guras 2 e 3) e a ligeira depressão escavada
na base do nicho inferior, com vazadouro da água vertida, em Vilar
Maior e no Sabugal 1. O nicho superior albergaria outro tipo de loiça
doméstica, talvez de ir à mesa.
No entanto, o cuidado decorativo do armário Sabugal 1
parece-nos invulgar para um mero contentor de loiça doméstica. Este
aprumo decorativo confere, indubitavelmente, alguma importância.
Tem vindo a ser atribuída uma outra funcionalidade a
estes elementos arquitectónicos, relacionada com o culto judaico:
estes armários seriam o espaço onde eram guardados os rolos dos
manuscritos da Torah, sendo por isso chamados de Armário da Lei
ou Arca Sagrada (2) (Adler et alii, 2002). Os aron ou hekhal judaicos
são normalmente compostos por dois compartimentos diferenciados
(Barroca, 2001: 193), o que coincide com os armários do Sabugal. Esta
divisão em duas partes era concebida para receber respectivamente os
livros sagrados, na inferior, e a lâmpada perpétua (Ner Tamid) no cimo
(Barroca, 2001: 193).
Deste modo, só faria sentido que as cavidades na base
dos nichos inferiores que se observam em alguns armários fossem o
assento dos rolos da Torah, que eram colocados em posição vertical (tal
como são abertos e lidos), e nunca para colocação de jarros sagrados
(Marques e Fernandes, 2004: 271) ou óleos sagrados (Fernandes, 1997:
30; Marques e Fernandes, 2004: 274), como já foi proposto.
Todavia, para dar credibilidade a esta hipótese, necessitávamos
de conhecer exemplos concretos do recurso a este artifício, em armários
de sinagogas judaicas conhecidas em Portugal ou em outras partes do
Mundo, porque não nos parece, mesmo assim, que estas cavidades de
grande diâmetro (13 a 15 cm) e de pouca profundidade (Sabugal 2) ou
apenas esboçadas (Sabugal 1), pudessem constituir um testemunho do
suporte dos cilindros sagrados.
Diante destes armários prestava-se culto, no dia de Shabat
ou dias de festa, através da leitura da Torah e do aprofundamento do
conhecimento do Talmud. Os armários cavam usualmente a uma
certa altura do piso, sendo acedidos, sobretudo nas sinagogas, através
de degraus (Adler et alii, 2002). Nas sinagogas menos importantes a
arca podia ser feita de madeira, de fácil remoção em caso de perigo,
constituindo uma mera peça de mobiliário fechada e sucientemente
alta para a congregação poder ver os rolos sagrados, quando as portas
estavam abertas. Só em algumas situações se procedia à concepção de
nichos pétreos nas paredes, acompanhados de elementos decorativos,

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Figura 2 – Planta, alçado frontal e corte do armário da Rua D. Dinis do Sabugal (Sabugal 1).

como colunas, cornijas e arcos, feitos em materiais nobres (Adler et alii,


2002).
Em Portugal têm sido estudados e propostos como armários
sagrados, de eventuais sinagogas, o hekhal (3) de Castelo de Vide
(Balesteros e Oliveira, 1993: 130), o da Guarda (Fernandes, 1997 e
Marques e Fernandes, 2004), outro em Castelo Mendo (Barroca, 2001),
recentemente na cidade do Porto (Josué, 2005) e também em Freixo de
Espada-à-Cinta (Barros, 2008).
Não queremos nestas linhas estabelecer quaisquer conjecturas
sobre estes monumentos, mas apenas recorrer a eles para estabelecer
algumas comparações que liem ou não os armários do Sabugal a este
fenómeno cultural e religioso.

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Um primeiro aspecto a considerar é a localização do armário


no interior dos imóveis. Tal como os exemplares de Castelo de Vide
(Balesteros e Oliveira, 1993: 151), Castelo Mendo (Barroca, 2001: 192),
Guarda (Marques e Fernandes, 2004: 272, g. 7) e Freixo, somente os
dois exemplares do Sabugal se encontravam no 1º andar do imóvel.
Já quanto à orientação, a não ser em escassas situações, os
armários sagrados eram sempre destinados a uma parede Nascente, para
os crentes fazerem os seus rituais virados para o armário, na direcção
de Jerusalém (4) (Adler et alii, 2002). Apenas temos conhecimento de
que o exemplar de Castelo Mendo (Barroca, 2001: 192) e o de Castelo de
Vide (Balesteros e Oliveira, 1993: 126 e 151) estão abertos para ocidente,
na parede leste do respectivo edifício – o que não acontece com
nenhum destes três exemplares do concelho do Sabugal, que ignoram
por completo essa disposição, estando virados para SSE (Sabugal 1 e
2) e para NO (Vilar Maior). Não há qualquer motivo aparente – como
falta de espaço – para não terem sido colocados na respectiva parede
oriental da moradia. Para lhe atribuirmos funções de culto judaico, só
poderemos explicar esta “incongruência” devido a qualquer reutilização
posterior, fora do contexto funcional primitivo, em outro edifício ou em
outra parede deste mesmo edifício (5).
Quanto ao estilo arquitectónico, os dois armários do
Sabugal apresentam a mesma solução que o hekhal de Castelo Mendo
(BARROCA, 2001: 192), tal como o do Porto e o da Guarda, sendo
o nicho superior rematado por arco abatido. No caso do armário
Manuelino do Sabugal, o remate do topo é análogo ao de Castelo de Vide,
e somente este armário manifestou preocupações decorativas como os
de Castelo Mendo, Guarda e Freixo de Espada-à-Cinta. Todavia, apesar
de decorados, todos eles revelam temáticas e elementos decorativos
distintos entre si e pouco liados na iconograa hebraica.
Não é fácil datar estes monumentos arquitectónicos. Apenas o
armário Sabugal 1, pela presença da ornamentação Manuelina, associada
à decoração com arco conopial, cordames e esferas esculpidas nos vãos
da fachada desse mesmo imóvel, nos permite recuar a sua cronologia ao
século XVI. Serão os restantes exemplares contemporâneos? É possível,
tal como não seria estranha a sua feitura em época mais recente. A
proposta cronológica do armário de Castelo Mendo, para o século XVI,
a partir da análise da ornamentação, é coincidente com este exemplar
decorado da Rua D. Dinis – o que surpreende pela sua cronologia tardia
- «posterior à promulgação do decreto manuelino que, por sua vez,
ditou a expulsão dos Judeus de Portugal, em 5 de Dezembro de 1496»
(Barroca, 2001: 192). Também o imóvel que alberga o armário judaico
de Freixo de Espada-à-Cinta é considerado quinhentista (Barros, 2008:
89) e o de Castelo de Vide data do século XV (Barroca, 2001: 193). Estas

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Figura 3 – Planta, alçado frontal e corte do armário da Casa do Castelo do Sabugal (Sabugal 2).
cronologias comuns dos armários, conrmando-se a origem judaica,
podem colocar-nos «perante um inédito testemunho da resistência
que certas comunidades sefarditas ofereceram ao decreto régio, não
abandonando o reino mas também não abdicando das suas convicções
religiosas mais profundas» (Barroca, 2001: 195).
A localização do hekhal da Rua D. Dinis seria mais coincidente
com uma lógica de culto clandestino e privado, do que o armário da
Casa do Castelo, situado no Largo principal do burgo, defronte da Igreja
da Senhora do Castelo, a não ser que este tivesse uma cronologia mais
antiga, numa altura em que ainda não havia necessidade de esconder
a fé. Tal como em Castelo Mendo, o armário da casa manuelina do
Sabugal situa-se num ponto periférico na trama urbana do centro
histórico, perto de uma das portas da muralha (Barroca, 2001: 195).

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Um dado interessante de reexão, para atribuição de


causalidade religiosa a estes armários, seria a presença de vestígios de
portas. Os armários sagrados do Judaísmo tinham, usualmente, portas
que fechavam os livros sagrados, sendo ainda cobertos por intermédio
de uma cortina de material nobre (denominada como paroket) (Adler et
alii, 2002, Peláez del Rosal, 1994). No entanto, esta prática diferiu entre
as diferentes comunidades judaicas, pois enquanto no rito azquenazi
a cortina cava sempre por fora das portas, nas sinagogas sefarditas
cava dentro da porta (Adler et alii, 2002; Katz, 2007: 6). Apenas o
exemplar do Sabugal 2 denota preocupações de fecho por intermédio
de portas independentes e o do Sabugal 1 por meio de uma cortina. O
armário de Freixo de Espada-à-Cinta encontra-se, ainda hoje, cerrado
por portas gradeadas de madeira. Pelo contrário, o de Castelo Mendo,
tal como o do Porto e o da Guarda não têm vestígios de encaixes de
dobradiças (Barroca, 2001: 193), assim como o de Vilar Maior, o que só
pode ser entendido numa lógica de uso doméstico.
Um elemento recorrente nestes monumentos, e presente
apenas em Castelo Mendo (Barroca, 2001: 192-193), Castelo de Vide
(Balesteros e Oliveira, 1993: 130) e Freixo de Espada-à-Cinta (Barros,
2008: 90), é a mísula para suster o candelabro sagrado de sete braços
(Menorah), colocada num dos lados do armário. Nos três armários do
concelho do Sabugal não temos quaisquer indicações da sua existência.
Este pode ser outro factor fundamental à atribuição de carácter sagrado
a estes armários.
Concordamos que é preciso ter cuidado, como alguém
lembrou (Rodrigues, 1999), em classicar um imóvel como sinagoga,
apenas pela existência de um destes armários da lei. O culto judaico
«podia ter lugar num edifício erguido com outro propósito e apenas
adaptado a esse m» (Barroca, 2001: 196), não tendo necessariamente
que ser numa sinagoga. O aron ou hekhal seria, nestes casos, o único
«equipamento imprescindível» (Idem: 196), dado que continha o mais
precioso e sagrado bem para os Judeus – a Torah.
A posse de um armário em matéria nobre como a pedra, ainda
por cima decorado, seria um sinal de riqueza e de alguma prosperidade
do imóvel, pois a normalidade seria pautada por armários de madeira
«como a esmagadora maioria do mobiliário de uso quotidiano»
(Barroca, 2001: 193), e «adequa-se também melhor a um m sagrado
do que a uma utilização quotidiana» (idem: 193). Os dois imóveis
do Sabugal, onde se encontram estes elementos, detêm algum valor
arquitectónico tal como os respectivos armários. Já a casa de Vilar
Maior não apresenta qualquer traço de riqueza ou requinte, tratando-
se praticamente de um palheiro e estábulo de animais.

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Figura 4 – Planta, alçado frontal e corte do armário da Rua da Costa de Vilar Maior.

Considerações nais
Alguns autores que se debruçaram sobre os armários judaicos têm vindo
a expressar as suas diculdades na classicação destes monumentos,
pois levantam «problemas de datação e compreensão» (Balesteros
e Oliveira, 1993: 139), ou negam simplesmente qualquer conotação
judaica (Rodrigues, 1999).
Considerando os pressupostos aqui expressos, também não
podemos asseverar com segurança que estes três armários do Sabugal
são de culto judaico. No entanto, essa possibilidade não se pode excluir
liminarmente. Faltam mais elementos para que possamos garantir
ou excluir a natureza religiosa dos monumentos em questão. O nosso
conhecimento actual destas práticas cultuais antigas é limitado,
sobretudo acerca dos contornos deste fenómeno em meios periféricos

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e afastados dos principais centros de animação cultural judaica. Estes


armários apresentados podem não se assemelhar, em requinte e esmero,
aos monumentos sagrados de uma importante sinagoga de qualquer
grande cidade espanhola ou portuguesa, não invalidando porém que
fossem usados como tal, nesta região mais recôndita e em contexto de
cripto-judaismo.
Não seria uma surpresa a identicação de um espaço de culto
judaico no Sabugal ou em Vilar Maior, pois conhecem-se referências
a comunidades judaicas aqui presentes (Tavares, 1982: 75; Balesteros,
1996a: 143; Balesteros, 1996b: 182), embora se desconheça a exacta
demarcação das primitivas judiarias destas Vilas, ao contrário de outras
povoações portuguesas. No entanto, isso não autoriza que um simples
armário doméstico encontrado num edifício destes centros históricos
seja imediatamente associado a uma sinagoga judia. Descartando a
hipótese de uma sinagoga, mesmo assim, poderia ser um nicho que
temporariamente tivesse albergado os escritos sagrados, dado que as
celebrações também se podiam realizar nas casas dos crentes (BARROS,
2008: 89) ou simplesmente guardados aí os rolos para serem levados
para a Sinagoga apenas no dia de culto (PELÁEZ DEL ROSA, 1994).
Por outro lado, a arca sagrada do período anterior à expulsão
dos judeus seria um monumento muito mais elaborado e característico
do que um armário cultual pós-1496, que poderia ser construído
de forma mais dissimulada, para o tornar menos óbvio. Isto poderia
explicar também a simplicidade destes três exemplares.
Convém dizer que se conhecem outras marcas atribuídas ao
cripto-judaísmo nos próprios edifícios onde se encontram os armários.
Na Casa do Castelo ainda se preserva hoje, mesmo após o restauro
do imóvel, uma estranha marca cruciforme, na porta de entrada. Já
em Vilar Maior, a casa do armário pétreo integra-se numa ada de
edifícios que ostentam abundantes marcas cruciformes e testemunhos
de mezuzot. Apenas por esse motivo, estes armários poderiam estar
associados a estas comunidades.
Falta ainda lembrar que qualquer testemunho da natureza
religiosa destes aparatos arquitectónicos pode ter sido apagado ou
perdido, e eles reconvertidos em funcionalidades domésticas, estando
hoje muito distantes da utilização original para a qual foram concebidos.
Assim, as dúvidas em classicar estes armários do concelho
do Sabugal como judaicos resumem-se ao seguinte:
- O armário de Vilar Maior (gura 4) possui um terceiro
compartimento, o nicho inferior revela uma depressão e um escoadouro
de líquidos para as traseiras e não tem qualquer traço de existência de
portas. Encontra--se num edifício pouco digno para espaço de culto
religioso, além da sua orientação discordante com o costume judaico.

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- Os armários pétreos do Sabugal, apesar de apresentarem


melhores paralelos morfológicos e estilísticos, exibem também
problemas: a orientação errada das paredes onde foram embutidos, a
proximidade à igreja matriz católica do armário Sabugal 2, as estranhas
cavidades circulares das bases dos nichos inferiores, mais concordantes
com outras utilizações domésticas, e a mesma depressão e escoadouro
de líquidos na base do nicho inferior do armário Sabugal 1 (guras 2 e
3).
Após a reexão em torno destes três armários, não fomos
capazes, em boa verdade, de atribuir uma natureza precisa a ambos
monumentos pétreos. Qualquer armação sobre a funcionalidade destes
elementos deve ser precedida de investigação cuidada, pois certamente
observações e análises banais não conferem cunho de autenticidade.
Talvez com a prossecução do estudo conjunto dos armários pétreos
de outras regiões portuguesas, se possa reunir mais documentação
que caracterize este fenómeno ainda desconhecido. É pois o desao
que intentaremos atingir, futuramente, de forma a contribuir para o
esclarecimento destas e outras questões em torno da presença judaica
na nossa região.

Notas:
(1) Curiosamente, este pormeno r arquitectónico apenas se repete na laje que separa
os dois nichos do armário da propalada sinagoga recentemente descoberta na
cidade do Porto (Josué, 2005).
(2) Em memória da Arca da Alia nça do Êxodo do povo de Israel (ver Livro do
Êxodo 25:10).
(3) Preferimos usar, de agora em diante, o termo sefardita hekhal sempre que
nos referirmos ao armário sagrado dos judeus peninsulares, porque foi esta a
comunidade que aqui residiu durante a Idade Média e Época Moderna.
(4) Práctica também seguida pe lo Cristianismo na orientação da capela-mor e do
altar das igrejas.
(5) Sabemos que um dos armário s da Guarda foi transferido de uma parede norte
do 1º andar do imóvel para a parede leste do rés-do-chão desse mesmo edifício
(Marques e Fernandes, 2004: 272 e 273). Também o armário do Sabugal 2, após
as obras de reabilitação do imóvel, foi recolocado na cave, embora preservando
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