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A INTERPRETACAO DOS SONHOS S. FREUD (1900a) SOBRE O SONHO S. FREUD (1901) “A interpretagao dos sonhos ¢ a via régia que conduz a0 conhecimento do inconsciente da vida psiquica” (Freud, 1900a, p. 517 [663}). Em A interpretagto des sonhos, Freud lanca as idéias inovadoras que nao apenas vao re- volucionar a compreensio dos sonhos que se tinha até entao, come também proporciona- rao um esclarecimento inédito sobre o funcio- namento do pensamento e da linguagem. Freud defende ali a tese de que 0 sonho é uma atividade psiquica organizada, diferente da atividade da vigilia, e que tem suas proprias leis, opondo-se tanto as concepcdes popula~ res como a opiniao cientifica. De um lado, ele se demarca dos métodos classicos e popula- res utilizados para interpretar os sonhos des- dea Antigitidade, que recorriam a decifracao em fungao de chaves simbéticas culturais, vi- sando a prever o futuro. De outro, ele se de- ‘marca dos cientistas de sua época para quem @ sonho nao tem nenhum significado psicolé- gicoe que véem nele unicamente uma produ- ao desorganizada, desencadeada por estfimu- los fisicos — opiniao que corre ainda hoje entre certos cientistas. Freud traz um outro aspecto inovador em A interpretagio dos sonhos, que é a demonstra- do de que 0 sonho € uma producao propria de quem sonha ¢ que no provém de uma fonte estranha a ele, imposta de fora. Por muito tem- Po, acreditou-se que o sonho era uma mensa- gem auspiciosa ou nefasta dirigida a pessoa que sonha, vinda de forcas superiores, deuses ou deménios. O que levou Freud a descobrir 0 objetivo e o significado dos sonhos foi o méto- do psicanalitico da assaciacao livre, o que Ihe permitiu fazera seguinte afirmacao, citada com freqiéncia: “A interpretagio dos sonhos € via ré- gia que conducz ao conhecimento do inconsciente da vida psiquica” (1900a, p. 517 [663]).Portanto, essa obra fundamental, que Freud considerou por toda vida como sua obra mais importante, se- gundo seu bidgrafo E. Jones, vai além de uma explicacao do sonho notumo. Ao propor em A interpretagdo des sontios uma concepcao geral do funcionamento psiquico, seja normal ou pato- légico, Freud estabelece os fundamentos da psicanalise sob seus diferentes aspectos ~clini- co, técnico e tesrico. Mais do que centendria atualmente, a con- cepedo de vida onirica lancada por Freud em 1900 continua sendo a referéncia indispensé- vel em seu campo préprio, o da psicanilise. Desde 1900 até o presente, os desenvolvimen- tos psicanaliticos pés-freudianos, assim como 08 progressos cientificos em diversos domi nios, em particular no das neurociéncias, am- pliaram nosso conhecimento dos mecanismos, envolvidos na formagao dos sonhos, mas ne~ nhuma nova teoria veio substituir a interpre~ tagao freudiana dos sonhosno seu campo pré- prio deaplicacao, o campo psicanalitico. Além disso, se fosse 0 caso, os préprios psicanalis- tas nio teriam sido os primeiros a se conta disso? 8 Jean-Michel Quinodoz Olivro do século ‘A partir de seus proprios sonhos Froud parece terse interessado por seus sonhos desde a infancia e menciona um cademo de anotages onde registra suas rellexSes sobre esse tema em uma carta de 18 de juno de 1883 A sua noiva Martha. Mas sou interesse pelo estudio cientfico dos sons data da época em que passou a aplicar seu método de associac3o, livre em pacientes histéicos, pois essa abordagem Ihe permitiu descobrir as estretas ligacées existentes entre ssonhos, fantasias e sintomas. Freud também estabeleceu aproximagbes entre seus prOprios sonhos @ os de seus pacientes e assim conseguiu dimensionar a importéncia do papel que a vida onirica desempenha no apenas na psicopatologia, mas também no funcionamento psiquico normal. No més de julho de 1895, ele fez a andlise completa de um de seus sonhos, “a injegdo de Irma’, primeiro sonho que exarinou detalhadamente em ‘A interpretacao dos sonhos. Entusiasmado com as novas perspectivas abertas pelo estuco dos sonhos e pela recente descoberta des neurénics, Freud tentou fazer uma sintese de tudo isso, @ em 1895 langou-se & redacSo do manuscrito de “Projeto para uma psicologia cientifica’. Pressentindo que esse tipo de conduta levaria a um impasse, abandonou a idéia de fundar uma teoria geral do psiquismo com base em dados quaniitatives mensuréveis e renunciou a publicar esse manuscrito. Virando as costas deliberadamente a neurofisiologia, optou por uma perspeciiva que circunscrevia os fenémenos psiquicos ao campo da experiéncia subjetiva, que ‘se tomouo da psicandlise, Por isso, situa-se o nascimento da psicanilise entre os anos de 1896 e 1899, periodo que coincide com a auto-andlise de Freud e a gestacio de A interpretacdo dos sonhos.. ‘A morte do pai de Froud & 0 inicio da auto-snéiise ‘Ainda que as idéias de Freud sobre os sonhos ja estivessem bem presentes em sua mente em 1895, a elaboracao da obra propriamente dita levou quase quatro anos. Foi apés a morte de seu pai, Jakob Freud, ocorrida em 1896, que ele iniciou pesquisas sistematicas nesse dominio, analisando em particular seus proprios sonhes, trabalho de elaboragdo que serviu de fermento para sua auto-andlise. O tema da morte de ‘Seu pai e-as inumeras lembrancas relacionadas a ele apareceram de maneira recorrente em seus sonhos durante 0s meses que se seguiram, Foi um periodo difcil, e pode-se supor que Freud escreveu essa obra ‘no apenas com um objetivo cientifico, mas igualmente para tentar superar a crise interior em que esse lito @ submergiu. Mas fol um periodo fecundo, pois, gracas @ sua auto-andlise ¢ interpretando seus sonhos, Freud descobriu a técnica de interpretacdo especiica da psicandlise. ‘Sua relagao com Fliess teve iqualmente um papel importante nesses anos. Por um lado, as cartas que Freud enderecava regularmente ao seu amigo constituem a posterior’ um testemunho valioso das etapas que ele percorreu durante sua auio-andlise, por exemplo, quando anuncia ter encontrado confirmagao de que 0 motivo do sonho 6 a realizacao de um desejo: “Antes de ontem, escrevet 20 seu amigo, um sonho me ofereceu @ confimacao mais éuriosa de que o motivo do sonho é uma realizacdo de desejo” (carta de Freud a Fliess de 23 de setembro de 1895). Mas, além de ter sido um testernunho privilegiado, Fess fol também um intertocutor no qual Freud pocia projetar suas fantasias e sous aleios transterenciais. Contudo, essa de transferéncia e contratransteréncia inconsciente que se dava a revelia de ambos ~ embora Freud a tenha intuido — conduziriainevitavelmenie a um impasse, por no ter se efetuado em condigées que permifissem analiséva e elaboréa, isto 6, com a ajuda de outro psicanalsta. Essa foi, sem duvida, uma das causas da ruptura enize Freud e Fiess que ocorretta pouco depois, quando ele terminou o periodo de auio-anslise. A interpretagéo dos sonhos (1900a) Freud conciuiu a redacdo da obra em setembro de 1899. Viveu momentos de inibiedo e momentos de exaltagao, como aquele em que redigiu em duas semanas, em agosto de 1899, 0 famoso capitulo VI, dedicado @ psicologia do sonho. A obra foi lancada em 4 de novembro de 1899, mas foi pés-datada de 1900 pelo editor. Freud esperava muito dessa publicacéo, principalmente o reconhecimento do valor de sua obra, mas 0s 600 exemplares da tiragem inicial levaram oito anos para serem vendidos. Pouco a ouco, 0 sucesso despontou, e 0 estudo dos sonhos fo! uma preocupagao constants por toca sua vida. Assim, ele fez varias modificagdes na obra a medida que foram sendo lancadas as oito edicoes em lingua alema que apareceram enquanto estava vivo, a titima em 1930. Continua @ Ler Freud 49 @continvageo ‘A obra-prima que constitu A interpretagao dos sonhos contém 700 paginas na sua edigao completa. Nelas Froud analisa quase 200 sonhos, dos quais 47 so seus, e os outros provém de seu circulo e de colegas. Mas, embora 0 numero de sonhos @ a diversidade de hip6teses desenvalvidas nessa obra volumosa fagam dela ainda hoje uma obra indispensdvel, esas qualidades a tomam iqualmente uma obra de -difell acesso para © leitor nao-esclarecide. Nao poderiamos descrever melhor do que D. Anzieu a impressao que pode dar a0 ne6iito a leitura de A interpretacdo dos sonhos. Assim, passo a palavra a ele: “Die Traumdeutung & um lvro inspirado”, escreve ele, “cheio de ardor, intrépido, mas que se toriow dificil pela originalidade das idéias que reine, pela complexidade de sua arquitetura, pelo rigor e a muttipicidade de suas articulacoes ‘te6ricas, pela novidade dos conceitos, pela abundancia de exemplos, pela concisao de seu estucio ou, inversamente, pela dispersao destes em diferentes capituios, pela ristura de auto-observacdes de Freud @ de observagdes da vida onirica de outro, pela incerteza sobre o género literdrio adotado pelo autor: ‘ratado cientiico, didrio intimo, confisséo, chave des sonhos, viagem fantéstica, busca iniciatica, ensaio sobre a condi¢ao humana e, mais ainda, vasio alresco alegérico do inconsciente...” ({988a, p. 10) Sobre o sonho (190%) _Afimde tomar mais acessiveis ao pilblics as idéias inovadoras contidas em A interpretaco dos sonhos., 0 editor pediu a Freud que fizesse um resume, Ele hesitou um pouco, mas acabou acetande escrever Sobre © sonha, uma obra curta de vuigarizacdo redigida em um estilo acessivel, em um tom quase coloquial, ¢ associando 0 leitor & busca do sentido dos sonhos & maneira de uma sondagem de ramance policial. Freud acrescenta ali varios sonhos naves, dos quais 0 mais eonhecide 6 0 da “mesa de albergue”, assim como um sonho que revela uma agressividade inconsciente em retacao a Flless, anunciando a ruptura préxima com seu amigo. Como assinala com muita propriedade Anzieu, a escrita psicanalitica se coloca de imediato com os dois primeiros livros de Freud, pois essas obras téo diferentes mostram que a escita oscilard sempre entre cos polos: um pélo inspirado, coma é A interpretacao dos sonhos = obra “aberta” no sentido de Umberto Eco, escrita em um estilo “barraco” — @ um pélo didatico, como Sobre 0 sonho - exposiclo \destinada ao ensino, escrita em um estio “cléssico” (Anzieu, 1986a, p. 34) DESCOBERTA DAS OBRAS Para 0 leitor nedfito, aconseino a comegar lendo Sobre o sono (1901a), antes de A interpretagao dos ‘sonhos (1900a), ainda que isso signifique inverter a cronologia. Depois de ler Sabre 0 sonho, o leitor se orientard mais facilmente na abra imensa e complexa que constitu A interpretagao dos sanhos. > SOBRE O SONHO (19012) {As paginas indicadas remetem ao texto publicado em S. Freud (1901), Sur fe réve, prefécio de D. Anzieu, trad. C. Heim, Paris, Gallimard, 1988. O sentido das sonhos ¢ dado pelas associagées livres da pessoa que sonha Freud lembra que apenas recentemente 0 sonho passou a ser considerado como uma produgio psiquica propria & pessoa que s0- nha e deixou de ser visto como uma mensa- gem auspiciosa ou nefasta “de forgas superio~ res, deuses ou deménios” , como nos tempos mi tolégicos (p. 45). Ele diz, no entanto, que m tos cientistas entre seus contemporaneos ain- da pensam que 0 sonho possui unicamente uma fungio bioldgica e que seu contetide nao tem nenhum significado psicolégico. E verdade que, quando se tenta compre- ender 0 contetide de um sonho tomado isola- damente, é dificil captar seu sentido, prosse- gue Freud. Ao contrario, isso é possivel quan: do se aplica 0 novo método de investigacdo que ele aprimorou recentemente ea que deu © nome de “método de associacao livre”. Por esse método, descobriu que os sonhos tém um

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