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INSTITUTO DE DIREITO POBLlCO E CU!

NCIA POUTICA
CENTRO DE ESTUDOS DE FILOSOFIA POLfTlCA E JURIDICA

TESES BRASILlANISTAS E ANTlTESES BRASILEIRAS

DJACIR MENEZES·

1. 03 "brasilianistas"j 2. A.nomalia por qu2?; 3. A. obsessão


nacional: embranquecer!; 4 . .A. falsidade da tese; 5. Teses
brasilianisttU 8 antftese.r brasileirtU.

1. O. "brasillanista8"
Os antigos escritores que viajaram pelo Brasil, arrostando os desconfortos
do tempo (Martius, Spix, Agassis, Tollenare, Koster), eram sábios que
faziam estudos sérios, com método e consciência e, sobretudo, com res-
ponsabilidade científica. Produziram obras que se incorporaram ao nosso
patrimônio histórico, admiradas por sua veracidade, honestidade e alcance.
Não eram "brasilianistas". Que é um brasilianista? Feitas as exceções de
praxe - um Linn Smilh, um Normano, um Wagley - é um egresso de
universidade americana que, montado nos dólares de uma bolsa, escolheu
um tema de nossa história, pegou o avião e veio entrevistar, copiar, repetir,
citar, folhear cabeças, jornais, arquivos, para compor uma tese que lhe dará
o título de mestre ou doutor, com os louvores da imprensa e dos sociólo-
gos tributários indígenas.
Pois essa prole de "brasilianistas" (seria demais dizer "brasilianólogos")
nas universidades americanas cresce dia a dia: escreve sobre assuntos na-
cionais de antropologia cultural, de teoria política, de história social e zonas
limítrofes. Nestas linhas queremos comentar apenas a tradução do novo
livro do Sr. Thomas Skidmore, Preto no branco - cujo subtítulo adverte
que se trata de um estudo sobre "raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro".
g, na verdade, um curioso exame de aspectos raciais da miscigenação.
Ia quase escrevendo problemas e não aspectos. A palavra "problema"
* Ex-Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Chefe do Centro de
Estudos de Filosofia Política e Juridica do Instituto de Direito Público e Ciência
Política da Fundação Getulio Vargas.

R. Ci. pol., Rio de Janeiro, 21(2): 17·21 abr.ljun. 1978


lembra interrogação, dúvida, litígio, e, sobretudo, planteamento científico.
Grande parte dos sociólogos brasileiros e seus assemelhados acreditam
que instituímos a "democracia biológica", de que falou profusamente Cas-
siano Ricardo em dois excelentes volumes, numa prosa excelentíssima. Mas
já vai ganhando corpo a contestação contra tal "democracia", que não
passaria de uma falácia de literatos amigos do latüúndio e seus lo-
bisomens.

2. Anomalia por quê?

Não, não há problema; o "Eros" lusitano dissolveu-o. A partir do ultra


equinotialem non peccavi, de Barleus, a negritude, dessorando no parda-
cento, embranquecerá cada vez mais. Tinha razão Eça ao escrever que tí-
nhamos a alma inteiramente branca. A pele é questão secundária.
A tese se levanta na pena do professor americano, condecorado como
perito de nossa história polgtica. Ele se abastece na literatura, na coscuvi-
lhice jornalística, na reportagem, no gossip e no gostinho de fazer análise
pitoresca. Social? política? Ele que o diga, pois é um cronista sagaz e
esperto no espiolhar de bibliografias.
O ponto de convergência de sua preocupação é a relação "preto-branco".
Logo às primeiras linhas mostra sua perspicácia: "O Brasil era também
uma flagrante anomalia essencialmente agrária que continuava a tolerar a
escravidão, apesar do fim do tráfico, em 1850."
Reli e até agora não atinei com a anomalia. Ou será que anomalia não
significa anomalia? País agrário, latüúndio baseado no eito, a imigração
não alimentava o mercado de trabalho livre. Onde a anomalia? Lá adiante,
ensina que o País "era esmagadoramente agrário". Ora, o binômio agro-
e!lcravidão estava coerentemente inserido na lógica histórica. A prescrição
iegislativa, que pretendia quebrá-lo, também estava no compasso da lógica
histórica, porque representava o advento gradual do industrialismo e da ur-
banização (para chatear o leitor, direi que emprego a gradua/idade no
sentido hegeliano, soma de rupturas). Repito: onde a anomalia? Anômalo
seria ali uma organização sindical intimando os senhores de engenho a
cumprir a lei do salário mínimo.

3. A obsessão nacional: embranquecer!

Esclarece o Sr. Skidmore que a nossa filosofia e teoria política assentaram


"num curioso mosaico de idéias importadas da França" (p. 20). Ora, im-
portava-se o espartilho, o cosmético, a anedota, a opereta da Madame
Angu. Desde quando se importam idéias da França no Brasil e em Por-
tugal! Esta arquivelha opinião vem no livro. Mas por que limitá-la a
1865? Já era batida nos tempos de Pina Manique! Oliveira Martins, Ante-
ro, Eça brincaram com a idéia. Alberto Torres e Oliveira Viana deram-
lhe agasalho sociológico. Apesar de sermos um "Império agrário, carola
e escravocrata" - para usar a boa adjetivação do autor - abriram-se as

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alfândega ao positivismo, ao evolucionismo, ao ecletismo, ao tomismo, a
quantos ismos que falassem francês. Desconhece o ilustre politólogo que
no México, nas repúblicas do Caribe, nas da Sul-América espanhola, o clero
lia os enciclopedistas? Que Mariano Moreno, em 1810, traduzia o Contrato
Social de Rousseau e numa cidade norte-americana um professor era expul-
so da escola porque explicara o darwinismo?
Informa-nos, com dados verazes, que "a rejeição intelectualizante do
catolicismo, do romantismo e do ecletismo" estava "associada à gerência
da monarquia". Era, entretanto, um gerente honesto na importação das
idéias, o Sr. D. Pedro 11. Ainda não encontramos outro gerente melhor.
Esses "intelectuais rebeldes" não precisaram de Comte, como pensa o autor,
para "atacar a servil imitação de um Victor Hugo" (p. 28) pela simples
razão de que quase todos eram hugoanos, a começar por Tobias Barreto.
A tese estrebilhada no livro é a do nosso ideal de embranquecimento,
que o Sr. Skidmore afiança, com citações da bibliografia nacional, ser a
inspiração suprema das elites mestiças e arianóides responsáveis pela or-
ganização do País. De tal modo recolheu ao cabaz, no seu passeio pela
publicística, as manifestações, episódicas ou constantes, das capelas literá-
rias - que o leitor acaba suspeitando que o "embranquecimento" foi uma
obsessão nacional! Nos Sertões, de Euclides, na Canaan, de Graça Aranha,
na História da Literatura, de Sílvio Romero, no Urupês, de Lobato, nos
discursos de Rui e de Nabuco, em Nina Rodrigues, nos trabalhos de Ar-
thur Ramos, de Manuel Querino, para onde quer que alongasse a vista e pe-
gasse num livro, descobriria um autor ávido de alvejar a pele brasileira.
Não se pode atribuir as tentativas de incrementar a imigração branca
apenas ao anseio de "arianização" das populações, como parece ser o
pensamento defendido pelo Sr. Skidmore. Por esta ou aquela causa, Norte
e Nordeste (e largas áreas do Sul embranquecido desde a madrugada colo-
nizadora) não sentiram, através de suas elites, a aspiração estribilhada no
livro. Por que a cidade preferia o imigrante branco? Simplesmente porque
vinha de culturas superiores, com aptidões que o processo educativo desen-
volvera, diferentes dos elementos trazidos das cubatas africanas, vendidos
pelos sobas, cheios de superstições dos "terreiros", que eram focos de re-
gressão mental injetadas nesse catolicismo sincrético e desfigurado.
No fundo, o que o nascente empresariado cobiçava era o teor do trabalho
qualificado, representado pelo alemão, pelo italiano, pelo japonês, não
apenas o braço para o labor rudimentar da enxada. O progresso do País
não podia realizar-se senão rompendo preconceitos.

4. A falsidade da tese

Da obra de Euclides, o Sr. Skidmore repete o que disseram os críticos da


última safra sociológica - que era fundada em antropologia ultrapassada,
com as categorias científicas inspiradas em Lapouge, Gobineau e Agassis
etc. Como toda a instabilidade emocional do mestiço explicaria a resistên-
cia épica do arraial, destruído pelo número de soldados e pelos "canhões

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Krupp sofisticados",? (p. 125). Busca ele transmitir ao leitor a impressão
de que a obra era contraditória, mistificada em suas bases, falsa no seu al-
cance, insinuando uma "crítica devastadora do exército" (p. 126). Na crí-
tica de Canaan, chama Graça Aranha de "monstro sagrado", que levou
sem produzir vinte anos, até à rebelião modernista e seus roncos de ta-
quara. João do Rio é uma "mutuca literária" com admiração por Oscar
Wilde e seus vícios. Só neste deu uma paulada certa.
Ainda há muitos nomes nacionais chamados à colação. Não é intuito
destas linhas comentar Preto no Branco, cujo epílogo dá como demonstrado
o ideal do branqueamento durante longa fase da vida brasileira. Nas pági-
nas finais, o autor tem reminiscências do que ocorre em sua pátria com o
truculento sistema de segregação ali vigente. Em 1952, a Suprema Corte
teve necessidade de decretar o fim da segregação nas escolas públicas. A
medida desencadeou a propaganda da desobediência civil, com sit-in e ba-
gunças coletivas. Assim fala Skidmore:
" ... os políticos brasileiros têm mostrado um extraordinário desinteresse
na promoção da ascensão econômica dos não-brancos per se" (p. 232).
A indiferença deles não é racista, não discrimina cores: envolve todos os
pobres, indiferença de políticos vinculados a partidos girando em tomo
do poder, ideologicamente esclerosados. Tal qual os partidos americanos,
atuantes apenas nas vésperas eleitorais
Não se nega nestas linhas o valor do livro. Valor desigual, onde a maioria
das observações boas não são novas, e as novas não são tão boas. Quase
sempre tiradas de autores brasileiros, como a própria tese central do em-
branquecimento feito ideal do País. Tese discutível, porque sua antítese
poderá ser encontrada no pronunciamento dos autores citados e em outros
mais, no devido contexto.
Arthur Ramos, Roquete Pinto e Gilberto Freyre, para citar somente
essa tríade, jamais subscreveriam a tese, embora lhe fornecessem argu-
mentos. Certa pressa no manuseio das fontes levou o autor a tais arreme-
ços. Talhou, lá às tantas, uma carapuça que lhe cabe: o caca etc jon:::::~sticj
de escrever sem o vagar meditativo dos que preparam obras mas com a
ligeireza dos que escrevem artigos e ensaios para ganhar a subsistência,
conforme apontou na vida dos nossos estudiosos. Sei que não é seu caso,
com a bolsa da universidade assegurando-lhe as pesquisas e os colabora-
dores. Com mais pausa, teriam visto, por exemplo, que Manuel Querino
não era médico, lutou com grande dificuldade para instruir-se, foi pintor
e decorador (1871); aluno fundador da Escola de Belas-Artes na Bahia e
seu presidente. Tal informação se lê no prefácio de Teixeira de Barros, es-
crito em 1916.
Na edição brasileira, o tradutor não sabe a diferença entre os verbos
assumir e presumir, porque repete o erro quatro vezes, nas p. 120, 122
e 164.
Quero, entretanto, aplaudir a justiça que faz a Manuel Bomfim - his-
toriador que não fez história dessorada e servil, mas escreveu verdades
corajosas sobre as revoluções do Nordeste, apreciou, nos exatos termos,

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muitas figuras do civismo nacional, com a vibração e timbre que destoam
da ladainha dos turiferários.

5. Teses brasilianistas e antíteses brasileiras

Passo agora a um quase esquecido autor para estabelecer nestas considera-


ções o pólo antitético do problema.
Vários historiadores já disseram que o ângulo de visão de grandes epi-
sódios de nosso passado foi inspirado nos interesses da Casa de Bragança,
quase sempre confundidos com os interesses da nação que alvorecia no pas-
sado colonial. Resguardamos a afirmativa naquele quase sempre, não por-
que pretendemos abrir escapatória para uma posição evasiva, tirando aquela
linha de "imparcialidade" que se pregoa como a verdadeira atitude do his-
toriador pairando sereno acima das rivalidades. Esse historiador de con-
flitos situado no famoso ponto de vista de Sírius, que não divisa nos aconte-
cimentos o fio da justiça e do porvir, é, para nós, uma expressão da co-
vardia que, mesmo no cemitério dos heroísmos já calados, procura uma
bacia de Pilatos para eximir-se do compromisso com a verdade ou com o
que, num determinado meio histórico, parece ser a "verdade".
Esses "imparciais" são apenas variantes do aulicismo de todos os tempos
e à volta de todos os Poderes. Este pronunciamento é provocado pela relei-
tura da obra de Manuel Bomfim - o Brasil na História.
Bem sabemos que a ilustre plêiade de defensores da estirpe bragantina,
assanhada 40 anos atrás com as críticas do sergipano, empenhou-se em
demonstrar-lhe os erros e as iniqüidades cometidas contra a energia imensa
do pequeno país de pequena população, que soube conservar com bravura
a integridade territorial e política do Brasil nascente. O que, porém, dese-
jamos destacar agora é que nem todas as teses levantadas por Bomfim
podem ser relegadas e afastadas do caminho com simples gesto de enfado,
sem discutir-lhes o mérito, as fontes informativas e, sobretudo, a reflexão
interpretativa, que em todas as suas páginas se entranha na apreciação
dos fatos.
O que falta nos historiadores ditos "imparciais" é o que sobra em
Bomfim: a honesta e máscula parcialidade. Nenhum grande historiador
foi neutro diante das lutas que teve de narrar - porque a narrativa se
integra num pensamento interpretativo inevitável. Ora, vão buscar impar-
cialidade nas páginas de Tácito ou de Suetônio!
Voltamos a Manuel Bomfim. O que impressiona na ética de seu histo-
riar é, antes de tudo, a admirável parcialidade, que lhe dá a mais quente
\1bração patriótica. Quantas vezes não temos lido e ouvido, por exemplo,
desde os bancos escolares, a narrativa das lutas contra a invasão holandesa
ou as revoluções de 1817 e 24, no Nordeste! Acontece, porém, que as
figuras heróicas são "neutralizadas" nos seus objetivos patrióticos, desfi-
lando, "imparciais", na mente do estudante como seres que se sacrificaram
por ideais desidratados, o mesmo livro que elogia os mártires Frei Caneca
ou Tristão de Alencar ou Pinto Madeira elogia a reação bragantina. Nem

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conta a estupidez da reação: o chefe da Comissão Niemayer, fuzilando
Bolão, quando este ainda escabujava na areia, deu-lhe o tiro da graça;
os miolos do encéfalo saltaram e ele assobiou, chamando seu cão para
comê-los.
Detalhes? Sim, bárbaros detalhes, que compõem o quadro da repressão
bragantina. Que impressão fariam num livro didático? Péssima. Talvez
correspondente à impressão que transmitem o cinema e as tevês aos cére-
bros dos jovens, todos os dias, nos interiores domésticos. Portanto, se
queremos inspirar delicadeza na formação dos sentimentos, o argumento
cai fora da pauta. Metam a viola no saco e deixem-se de hipocrisias.
Relemos todo o longo capítulo de Bomfim sobre a invasão holandesa,
do seu Brasil na História. Reavivou-se-nos a admiração pela calidez cívica
com que o historiador nos apresenta o desenrolar dos episódios, desta-
cando-se, em André Vidal de Negreiros, o já vigoroso sentimento (porque
não dizer patriótico?) contra o invasor. Sentimento tão forte que o faz
desobedecer às ordens de D. João IV, que fazia negociatas traiçoeiras com
:i Holanda, prometendo-lhe a entrega de largo trecho da colônia em troca
óe auxílio contra a Espanha. Em carta ao Marquês de Niza, dizia o rei:
"O padre Antônio Vieira levou ordem a Francisco de Souza Coutinho
para fazer conveniência à Holanda, restituindo-lhe Pernambuco, sem
nenhuma condição mais que a faz com este reino . .. "
Já o papel de João Fernandes Vieira é oscilante, ao sabor de uns tantos
propósitos comerciais, patriotismo de ricaço, senhor de engenhos e preci-
sava ver melhor para que lado soprariam os ventos. Não tinha aquele
robusto sentimento pela independência que fervia no peito de um André
Vidal, de um Henrique Dias ou de um Camarão. "Portugal restaurado"
- resume Bomfim causticamente - "é o mísero pedinte, súplice aos pés
do antigo e inexorável inimigo. Tolhido e apavorado, ele não passa de
joguete, nas tricas da Europa, nos meados do século XVII". A que se
reduz historicamente o "ideal de embranquecimento"?
Nosso intuito aqui não é suscitar debates históricos para os quais nos
falecem competência e tempo. O intuito é bem outro, que nos apressamos
a declarar. O Conselho de Cultura, com abundantes razões conhecidas, tem
contribuído para a maior divulgação dos nossos historiadores mediante a
reedição de obras dificilmente acessíveis ao grande público. Os mais inte-
ressados são obrigados a freqüentar bibliotecas, mesmo publicações mais
destinadas às estantes particulares dos estudiosos, como instrumentos de
seu métier, livros de consulta permanente e de anotações.
A obra histórica de Manuel Bomfim está neste caso. Merece estudo e
meditação. Sobretudo porque a paixão que anima o historiador sergipano
é clara, límpida e do mais vivo teor patriótico e cívico em quase todas suas
páginas.

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