JOSE ORTEGA Y GASSET
IDEIAS E CRENCAS
‘Tradugio de Felipe DenardiJOSE ORTEGAY Gasser
superlativa, recorre dela & natureza, Rousseau foge
do Versalhes das marquesas para o bosque de Fon-
tainebleau, para imitar ali os selvagens. E curioso: 0
homem das civilizagdes extremas, desesperado, cla-
ma ao selvagem que suspeita trazer dentro de si. E
nosso selvagem interior sempre acode & nossa voz.
Pelo visto imperecivel, esté ai oculto, sempre pron-
to ao nosso chamado. Nas portas delicadamente
esculpidas das igrejas e catedrais do século XV é
freqiiente encontrar em ambos 0s lados, enormes ¢
hirsutos, dois selvagens. E assim como no tempo de
Rousseau, entao a literatura os coloca na moda. E
estava na moda ter “zoolégicos”. E nosso refinado
Joao Uf, rei de poetas e poeta ele mesmo, recebe os
embaixadores com um leopard doméstico deitado
aos seus pés. Um embaixador de Moscou se assus-
tou tanto que nao parou de correr até o Vistula.’
A asfixia cultural provoca a rebelido. E a rebe-
ligo, toda rebelido, comega pela selvageria.
La Nacién de Buenos Aires,
dezembro de 1940,
na Polonia — NT.
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O INTELECTUAL E 0 OUTRO
intelectual do qual se fala aqui nao é 0 “es-
critor” nem o “homem de ciéncia”, nem o-
“professor”, nem 0 “filésofo”. Tudo isso
sio nomes de oficios ou de profissdes, ou seja, fi-
guras sociais, perfis pablicos que o individuo adota
€ que nfo garantem nem minimamente a autenti-
cidade de uma incoercivel vocagio intelectual no
homem que os exerce. Trata-se aqui do intelectual
que 0 é de verdade, qualquer que seja sua ocupagio
notéria ¢ aparente. Ser intelectual nao é algo que
tem que ver com o eu social do homem. Nao se é
intelectual para os outros, com este ou aquele pro
pésito, a fim de ganhar dinheiro, de brilhar, de s
tentar-se no abismo tempestuoso da coletividade,
E-sc intelectual para si mesmo, apesar de si mesit
contra si mesmo, irremediavelmente.
F indubitavel que nao existiriam aqueles off
¢ profissdes se nao houvesse existido antes h
que foram escritores, homens de ciéncia, pro
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ou fildsofos desta forma original, auténtica ¢ irre~
medidvel, Tudo quanto € figura social surgiu como
destino criador cle um individuo. Mas af esta! Essa
forma de vida que o individuo criou e fatalmente
foi, desaparecendo este, restou como uma carapa-
ga esvaziada do efetivo contetido pessoal; restou
como um “posto” piblico, como molde impessoal
dentro do qual qualquer um poderia alojar-se frau-
dulentamente. Tudo que é social, tudo que é cole-
tivo é, neste sentido, fraudulento, inauténtico —
6 falsete, imitagao, titulo e mascara. A maior parte
dos intelectuais que andam por ai nao o sao, € cla-
o, mas vivem se fazendo de intelectuais; as vezes
corretamente, servindo com honradez e néo pouca
utilidade 0 oficio com 0 qual se comprometeram
socialmente, 0 “cargo que ocupam”. Esta expres-
sio do nosso idioma é certeira. Revela-nos que 0
cargo é a forma de algo humano, s6 que oca — oca
precisamente de efetiva humanidade. Esse vazio
tem de ser preenchido ou ocupado por alguém que
s vezes serve para isso, e outras vezes, a maioria
delas, no. Dé no mesmo! A sociedade se contenta
com um cumprimento ou preenchimento minimo
do cargo. Diz para si mesma como costumaya di-
er, a0 comecar a pintar, aquele humilde imagineito
andaluz, consciente de sua inépcia total: “Se sair
com barba... Santo Antao; se nao... a Imaculada
Conceigio!”. Foi sempre assim, em todos os domi-
s. Primeiro ocorreu a Jilio César, com certa ori-
ade, ser Julio César. Quando 0 assassinaram,
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IDEIAS ECRENGAS
a coletividade romana sentiu a necessidade de que
César continuasse existindo. Mas 0 individuo César
se ausentara para sempre. Dele restara s6 0 buraco,
ou seja, o formato de sua necessidade, sentida pelo
mundo romano. E César foi, desde entao, esse mol-
de solidificado — um cargo, uma magistratura que
durou cinco séculos. O cargo, a magistratura por
exceléncia, que j4 houve no mundo. Mas, por um
grande azar, ocorreu que nem sequer um dos inu-
merveis césares subseqiientes foi de longe pareci-
do com César, Muitos ocuparam o espago “César”,
mas nenhum o foi.
Do mesmo modo houve na Franga, hé cem anos,
um homem que era uma espécie de furacao postico
ou maré viva do lirismo. Chamava-se Victor Hugo.
Como um poder elemental — jé disse, furacdo, sizi-
gia —, sacudiu e inundou toda a vida francesa, Sua
poesia é rudimentar, sem qualidade, sem riquezas
secretas, mas ciclépica, magnanima, herciilea, mi-
guelangelesca, Em rimas audazes cantou 0 amor, a
mulher, a crianca, a folha do outono, a velha lenda,
a grande batalha, divinizou Napoledo I, lapidou
Napoledo III, verbalizou sobre Pbumanité. Nao ha
nada da Franga ¢ do homem ante 0 que nao agitas-
se seu sonoro ¢ enorme chocalho, num magnifico,
universal carnaval. Compreende-se que os france-
ses vissem nele algo que nao existia desde Virgilio,
Homero ¢ Dante: 0 Poeta de um povo, o lirismo
como instituicdo. Mas desde entéo a Franga se
obstinou em sempre ter um Poeta, como tinha um
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