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No ano de 2004, 0 filésofo Anthony Flew, que até aquele momento
fora, talvez o ateu mais proeminente do mundo, anunciou que havia mu-
dado de ideia. Embora nao tivesse nenhuma intengao de aderir ao cris-
tianismo nem a qualquer outra religido monoteista tradicional, revelou
que havia sido levado, por meio de argumentos filos6ficos, a concluir que
de fato existe um Deus afinal de contas — especificamente, uma Causa
Primeira do universo, tal como descrita por Aristételes. Talvez 0 racioci-
nio aristotélico por tras da mudanga de Flew surpreenda tanto quanto a
propria conversao. Ao lado de Platao, seu professor, Aristételes é quase
universalmente considerado o maior filésofo que ja existiu. As ideias de
ambos sao conhecidas e estudadas ha mais de 2.300 anos. Flew, que tinha
81 anos na época da conversao, fora considerado, nos 50 anteriores, um
dos filésofos mais respeitados e influentes do mundo. Seria natural pensar
que, sem diivida, nao existia nenhum argumento a favor da existéncia de
Deus que ainda nao conhecesse. Contudo, no fim da carreira e em face
do atefsmo cuja defesa fizera sua reputacdo por meio século, Flew viu-se
admitindo que o antigo pensador grego ao qual os medievais se referiam
como simplesmente “O Filésofo” estivera certo 0 tempo todo, “Como nao
era especialista em Aristételes”, explicou Flew, “havia partes de sua filosoy
fia que estava lendo pela primeira vez”.! ;
Fora das fileiras religiosas, a reagdo ao recém-descoberto teismo de
Flew parece ter sido de sarcasmo undnime. O comediante Jay Leno ridi-
cularizou: “£ claro que agora acredita em Deus — ele esta com 81 anos!”
Outro comentarista especulou que, “confrontando o fim da vida”, Flew
17,estava simplesmente “fazendo uma desesperada tentativa final de se sal-
var” (embora Flew tivesse deixado claro que ainda nao acreditava em vida
apés a morte). Um filésofo de tendéncia secular considerou a conversio
“lamentavel” e “vergonhosa”, declarando que “a velhice, como sabemos,
cobra seu preco das pessoas de diferentes maneiras” € que a compreen-
sao que Flew tem de teorias cientificas relevantes “nao é, por assim dizer,
robusta”.3 Outro acusou Flew de ser “deliberadamente desleixado com 0
rigor académico”.’ Além de alegar que a perspectiva de Flew se baseava na
teoria cientificamente infame do “design inteligente” e de rejeita-la peremp-
toriamente com base nisso, a maioria dos criticos teve pouco interesse em
examinar a fundo as raz6es que poderiam té-lo levado a mudar de ideia.
Em particular, desconsideraram de maneira deliberada o papel central de-
sempenhado evidentemente por um reexame da filosofia de Aristoteles*
Enquanto a conversao de Flew era apenas um rumor, os secularistas que 0
admiravam lutaram furiosamente para negar que tal coisa poderia aconte-
cer a um homem tio inteligente; quando ele mesmo confirmou os rumores,
foi tratado como um herege e um fantoche do inimigo fundamentalista e
seus argumentos foram desprezados e considerados indignos de aprecia-
¢ao séria. “Meus companheiros de descrenga me acusaram de estupidez,
traigao, senilidade e tudo o que se pode imaginar”, queixou-se Flew, “e
nenhum deles leu sequer uma palavra de qualquer coisa que escrevi”.§
“O NEOATEISMO”
Esse episdédio ilustra, sob muitos aspectos, os principais temas deste
livro. Na suposigao paternalista de que a crenga em Deus s6 pode ser
produto da confusao entre desejo e realidade, da estupidez, da ignorancia
ou da desonestidade intelectual; na recusa correspondente a considerar a
sério a possibilidade de que essa crenga possa ser verdadeira e de que os
argumentos a favor dela possam ser sélidos; ¢ no pressuposto raso de que
as tinicas consideragGes racionais relevantes para o tema sao as “cientifi-
cas” € nao as filoséficas; em todas essas atitudes, os criticos de Flew reve-
lam a quintesséncia da mentalidade do secularismo moderno. E na medida
em que sua complacente rejei¢ao a priori dos que nao pertencem ao grupo
como primitivos e dos desertores como maldosos ou insanos o protege da
necessidade de lidar com a critica rigorosa, o secularismo é uma mentali-
dade que ecoa os preconceitos retrégrados e a irracionalidade que costu-
ma atribuir as pessoas religiosas. A sua maneira, ele é uma religido para siproprio, religido incapaz de tolerar infiéis e hereges. Veremos ao final deste
livro que nao se trata de modo algum de um acidente, mero subproduto
das paixdes e loucuras a que todo ser humano sucumbe de tempos em
io de
tempos. Pois 0 secularismo é, mecessdria e inerentemente, uma vis
mundo profundamente irracional e imoral, e quanto maior 0 grau de am-
plitude com que seus adeptos 0 assimilam, maior o grau de amplitude com
que se apartam da possibilidade mesma de exercer discernimento morale
racional. Ademais, e por essa raz4o mesma, € inevitavel que essas pessoas
achem dificil, em verdade quase impossivel, enxergar sua verdadeira con-
dicdo. Quanto menos compreendem, menos a compreendem.
Sei que essas afirmagées sao bastante chocantes, sobretudo por contra-
riarem completamente a autoimagem dos secularistas. Nos dias e semanas
que se seguiram as eleigdes presidenciais de 2004 - nas quais, segundo a
crenca geral, questes relativas aos valores morais e religiosos tradicionais
tiveram papel determinante -, eles passaram a definir-se como membros
da “comunidade baseada na realidade” em contraste com a suposta “co-
munidade baseada na fé” dos religiosos. Como se em resposta ao aban-
dono do atefsmo por Flew, dois filésofos secularistas publicaram recen-
temente, com grande fanfarra, obras que pretendem demonstrar as defi-
ciéncias morais e racionais da crenga religiosa tradicional: A morte da fé:
religio, terror e o futuro da razdo, de Sam Harris e Quebrando o encanto:
a religido como fenémeno natural, de Daniel Dennett. A esses livros logo
se seguiram Deus, um Delirio, do bidlogo Richard Dawkins, e Deus nao
é grande: como a religido envenena tudo, do jornalista Christopher Hit-
chens, e a imprensa rapidamente passou a opor 0 “neoateismo” de Harris,
Dennett, Dawkins e Hitchens a hipotética ressurgéncia do irracionalismo
e do fundamentalismo anunciada pelos defensores do “design inteligen-
te”, pelos “teocons” e por bichos-papées semelhantes’. Alguns anos atras,
num artigo publicado no New York Times, Dennett fez a famosa sugestao
de que os secularistas adotassem o rétulo de “esclarecidos” [bright] para
distinguir-se das pessoas religiosas.' Parece que a proposta nao pegou (tal-
vez porque, sem diivida, um adulto que saia por ai piando, a sério, “eu
sou esclarecido!”, soa antes como um idiota). Quaisquer que sejam as
deficiéncias retéricas do “esclarecido”, porém, o termo condensa perfeita-
mente a autossatisfagao da mentalidade secularista: “Nés somos inteligen-
tes, instruidos e racionais, ao passo que as pessoas religiosas sdo esttpidas,
ignorantes e irracionais, de modo algum esclarecidas como nés”,